7 minute read

MHARIO LINCOLN

DRIBLANDO BONDES E A HISTÓRIA

MHARIO LINCOLN

Advertisement

Nesta história, Mhario Lincoln envolve os velhos bondes de São Luís e ex-amores (facetubes.com.br)

Todas as vezes que chego ao Maranhão e tento renegociar meus novos costumes aprendidos (e apreendidos) lá pelo sul, saio perdendo. E perco com muita felicidade. Exemplo: "caboco de sorte o senhor, seu Mhario, escapulir dessa doidiça, rodeando pelos becos", me disse a funcionária de minha irmã, há anos com ela. Que beleza de autenticidade. Nada mais original para meus ouvidos. Outra coisa é voltar a dormir numa 'rede de vara', (nas palavras de meu avô Sírio), isso, quando a gente coloca um cabo de vassoura para abrir a cabeceira da rede, em dias de muito calor. E mais outra: usar 'japonesa' (sandálias havaianas), tomar banho no chuveiro de água fria, sem se preocupar com termostato, e ter no café da manhã uma porção generosa de bolo de macaxeira, beiju e cuscuz "IDEAL", (de milho), fumegante. Isso quando 'tô' preguiçoso para ir até a Padaria 'Santa Maria' - de japonesa, camisa regatas no ombro e calção de pano (com aquela listinha branca do lado), para buscar as bolachinhas de trigo salgado ou o delicioso 'pão baiano', com manteiga de lata, escorrendo pelo papel do mesmo nome, em razão da temperatura, lá pelos 35°, quando está (meio) quente. Na verdade, eu vivo cada minuto nesta Ilha de São Luís pulando entre um paralelepípedo e outro, atento aos limos da pedra e fotografando restos de fita colorida, deixadas pelo chapéu de algum vaqueiro catuabento, ao longo do caminho pela Praia Grande, sedento por uma juçara fresquinha, um punhado de camarão seco e muita farinha dágua de quebrar o dente. Tudo misturado e em temperatura ambiente. Isso,quando gazeio uma outra atividade: andar na praia. Andar pela beira do mar, chutando as ondinhas que vêm molhar seus pés cansados de botinas. Muitas vezes nem me faz bem avançar mais na água, com medo de pisar num 'chama-maré', nem correr na areia, para não atrapalhar o sossego do bando de maçarico da perna fina, no afã de almoçarem os moluscos que sobram das cascas quebradas dos sarnambis. Tenho caminhado até o forte de "Santo Antonio", de onde vislumbro as ilhas 'Duas Irmãs', sentado em um dos canhões dessa antiga fortaleza, na Ponta D'áreia. De lá o obra de Deus. Um dos poentes mais bonitos que já fitei. Aliás, nestes dias atuais, foi lá que encontrei meu parceiro e amigo Wellington Reis, na mesma frequência de paz, em que estava. Que assim seja, sempre, amigo! E quando estou só, em minha pseuda-solidão, começo a rememorar antanhos e lembrar da 'croa' (areia que aflora na baixa da maré, onde, no time de futebol formado no 'aponta', eu sempre era escolhido para o gol). Lembrei das alvarengas do Sr. 'Chocolate' (quantas vezes atravessei da Beira-Mar para a Ponta D'áreia, até a quebrada do forte). Lembrei também dos domingos ensolarados, onde encontrava as alunas do Rosa Castro, sem aquelas fardas de 'bombeiro', com bermudinhas, saiotes e bustiers, pedalando bicicletas com cestinhas no guidão. Foi exatamente nesse cenário que conheci Dolores, morena de olhos verdes - na época até pensei que morreria por ela. E também sem ela. Aliás, quem me apresentou Dolores foi 'Mocinha', meu amigo. Ele era funcionário graduado da VASP e havia prometido para Dolores levá-la para ser aeromoça, aos 18 anos.

O tempo passou. 'Mocinha' e Dolores se foram. Em vida, todavia, Dolores preferiu ser Assistente Social e trabalhar em instituições de caridade. Mesmo assim, quando estou à solta no Forte, a vejo pedalando nas nuvens cinzas, por sobre o amurado da praia. E isso me faz falta lá pelos ares do sul. E vai me enchendo de muita saudade quando chega perto a hora de voltar para Curitiba, no Paraná. Porém, eu nunca volto para o sul, sozinho! Sempre subo as escadas do asa dura cantando "Haja Deus" e lembrando Augusto Tampinha (meu amigo querido). E cada pessoa que vejo, ao atravessar o espremido corredor do avião (para mim, quase um corredor polonês), vou transformando aqueles rostos desconhecidos em pessoas que marcaram a minha vida na Ilha de São Luís, como Marcio Fogueteiro, Zezé Caveira, Badu, Sarita 'Motel' (assisti na minha adolescência, dançar na 'Gaiola de Ouro), Rita Baiana, Rei dos Homens, "João Pessoa", Zulu, Jafé, Caluca, "seu" Moisés, do Baile de Máscaras, Cabo Zé, do Clube dos Sargentos, Faísca, Boca de Fenda, Cusuado, Cristóvão Alô Brasil, Zé Hemetério, a Louca da Sé, Jurandi Caçapa, 'Companheiro', do Cachorro-Quente, Ziza Tripa, Mata-Onça, Bafo-de-Chila, Seu Lilico (o deficiente visual do trompete da Rua Grande), 'Raimundão do Mocotó', no Mercado Central, filial do "Come em Pé", da Av. Magalhães de Almeida, Zé Farinha, 'Espicha', do Casino, Coroa Trinta, da Corsário, 'Piriquito', da Boite Maré, Jumentinho, do 'Carrinho', Luquinha, da Pedrita... e por aí vai. Pronto, lotação completa. Portas fechando! Eu sento, aperto o cinto, faço minha oração. Aí, esse negócio de 'portas fechando' imediatamente me faz lembrar do velho Juarez (nada a ver, mas sempre lembro), o cobrador de bonde (sem portas) da São Pantaleão. Juarez estava mais para trapezista de circo, haja vista as acrobacias que fazia para impedir os meninos (como eu) da época, de driblarem o transporte. Ele era uma figura. Um cobrador 'hábil e astuto', desde quando ingressou no DMTU - Departamento Municipal de Transportes Urbanos, indicado por um Senador, usuário de um terno de linho branco, sempre amassado. E quando se perguntava sobre isso, respondia: "Isso é trabalho. Quem não trabalha anda engomadinho". Pois bem, permita-me contar rapidinho essa história, antes do asa dura alçar voo. Seu 'Jura' tinha muita habilidade. Quando notava que alguém queria driblar o bonde, ele pulava perigosamente do corrimão da frente e vinha segurar o corrimão do meio (sem deixar cair as notas de papel enfiadas no anelar e apoiadas entre os dedos mindinho médio, além de ter na mão fechada, as moedinhas de centavos.

No pulo, ele, acrobaticamente, se colocava em frente ao suspeito - praticamente abraçado. Só que a gente sempre enganava seu 'Jura'. Mandava esse menino (não lembro o nome agora, tipo 'Boi de Piranha'), fazer malabarismos como se quisesse enganar o cobrador até ele vir 'abraçá-lo'. Assim, o espaço ficava livre para nós, os outros, pularmos fora, antes da parada. Gente, nem era uma infração. Era, na verdade, uma grande brincadeira, perigosa, às vezes. Vamos dizer, perigosa, sim. Uma vez, Zé Antonio 'Pelado' (porque era lourinho e no sol não se enxergava os cabelos, nem os pelos), filho do seu Cabral, sapateiro da praça da Macaúba, escorregou, e por pouco não teve a perna amputada pelas rodas de aço do bonde. Repito: antes de ser infração, era uma grande alegria. Porém, de alto risco. Acho que não faria isso novamente. A história ainda não terminou. Eu aperto ainda mais o sinto, olho o aviso de 'não fumar', em desuso, acho, e me lembro do quanto seu Jura fumava. Mas, vale lembrar: alguns anos depois, seu 'Jura', o cobrador, foi internado no 'Hospital Nina Rodrigues', para doentes mentais. Quantas vezes fomos lá (eu e minha patota), levar mantimentos para ele. Desde o pagamento de alguns remédios, até mesmo maçãs e peras. Uma das amizades bacanas que fiz na puberdade. Seu Jura nunca esqueceu de nossos nomes, até falecer em 1987.

Enfim, esta é um pouco de minha cidade. Incrível como isso fica latente. Quanto mais o tempo passa, mais aviva a minha memória. De repente, ainda aguardando a decolagem, abro os panfletos técnicos no bolsão a frente a minha poltrona e me deparo com um grande mapa colorido, com as rotas da companhia aérea. Bastou isso para relembrar minha inesquecível professora primária, D. Zuleide Bogea. Então limpa os óculos que lá vem a história final: todas as manhãs a professora Zuleide reunia os alunos e alunas na sala principal, cheia de mapas em alto relevo, e ela mesma puxava o Hino do Maranhão (lembro o estribilho: "Salve Pátria, Pátria amada/ Maranhão, Maranhão berço de heróis/ Por divisa tens a glória/ Por nume nossos avós (...)". E depois o Hino Nacional. Aí foi que o bicho pegou. Certo dia, nessa hora solene, não a vi atrás de mim. E comecei a cantar o Hino brasileiro, em ritmo de samba, com uma galerinha (dessa, dois são juízes aposentados), da minha turma. Adivinha quem foi o prejudicado? Euzinho. Daí, durante uma semana inteira, nas aulas dela, fiquei em pé, de costas para a turma e de frente para um Mapa Mundi gigantesco, em alto relevo, com cores sóbrias, principal decoração da sala da 4° série. E foi lá durante essa semana de castigo, que descobri onde era a Groenlândia, a União Soviética (à época), o Mar Morto....

Portanto, todas as vezes que me deparo com um Mapa Mundi, seja virtual ou físico, ou, ainda, num bolsão de aeronave, minha doce e amável diretora-professora Zuleide Bogea, do Colégio 'São Luíz Gonzaga', na rua do Sol, vem a minha cabeça. Sinceramente? Sinto muitas saudades dessa que, com certeza, foi uma mãe. E está no Céu por ter-me aguentado por 3 anos consecutivos.

*Mhario Lincoln é presidente da Academia Poética Brasileira.

This article is from: