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CERES COSTA FERNANDES

O escritor carismático

CERES COSTA FERNANDES

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O público leitor de hoje, mormente os mais jovens, não conhece quem foi e o que escreveu Humberto de Campos. Um restrito número de leitores da outrora multidão de admiradores ainda o lê. Posto de lado pela crítica, pouco se ouve falar no escritor que convocava e comovia milhares de leitores, diariamente, por meio dos jornais. Ainda mais, quando sabemos que, durante apenas um semestre do ano de 1934, o ano de sua morte, foram publicados e vendidos, pela José Olympio 62.800 exemplares de diversos de seus títulos. A importância desse número pode ser mais bem aferida, se nos reportarmos ao incipiente mercado editorial brasileiro dos anos 30, que enfrentava a competição com o livro estrangeiro, particularmente os franceses e os portugueses, e a dificuldade da aquisição de livros fora do âmbito das grandes cidades. Após a sua morte, ainda foram editados Memórias inacabadas (1935), Diário secreto (1954) e alguns inéditos. Aproveitando o impacto da morte do escritor mais querido do público, até tendas espíritas começaram a receber dele mensagens psicografadas. Com o passar do tempo, os leitores e as publicações foram minguando e os sebos acumulando as sobras de edições não vendidas. Até a edição comemorativa do centenário de seu nascimento, em 1986, com a reedição de Obras escolhidas de Humberto de Campos, em 10 vol., pela Editora Opus, não produziu o boom esperado. O sebo foi novamente o seu destino de grande parte da edição. Partindo dessas considerações sobre a ascensão e a queda editorial de HB, caminhemos rumo ao entendimento das causas que as motivaram. A fase decisiva da vida do escritor Humberto de Campos começa quando ele aporta no Rio de Janeiro, no ano de 1912, fugido das intrigas da feroz política paraense. Humberto encontra a Capital Federal vivendo um momento neutro de sua história política e social, após terem passado as agitações da Abolição e estar consolidada a República, sem a expectativa de outros grandes feitos. A par disso, o clima que imperava na Capital Federal era o da Belle Époque francesa. Os modismos europeus, o gosto pela literatura ligeira, herdada dos novos gêneros importados da França – em especial a reportagem, a entrevista e a crônica – o dandismo, tudo favorecia ao encorajamento da superficialidade e do culto ao prazer em todas as áreas. Nas letras, surge a possibilidade da profissionalização do escritor por meio do jornalismo literário. A novidade propiciava ao escritor jornalista chegar à fama mais rapidamente do que o escritor que não contasse com a poderosa divulgação dos periódicos. Com a volta da efervescência política e da liberdade de imprensa, que vicejou até a Revolução de 1930, a máquina jornalística prospera e os jornais espalham-se por todo o país. Os jornais dos estados transcrevem notícias e artigos dos grandes periódicos do Rio de Janeiro e São Paulo. Os jornalistas atuantes nestas cidades tornam-se bastante conhecidos nas capitais mais importantes do Brasil. É possível, assim, a um escritor, viver exclusivamente do que escreve na imprensa. NOTA DA AUTORA Trabalhamos com a condição de jornalista de Humberto de Campos e com as suas obras divulgadas através dos jornais e revistas, cuja capilaridade direcionou toda a trajetória pessoal, profissional e de sucesso literário do autor, inclusas , também, as Memórias e Memórias inacabadas, que consolidaram, em nível mais alto sua fama e que Alcides Maia classifica como uma “epopeia do jornalismo”.

A esse respeito, nos informa Sérgio Micelli (1977) que: “O Jornal do Comércio pagava trinta, cinquenta e até sessenta mil réis por uma colaboração literária”1 Ao chegar a esse novo mundo, Humberto de Campos, que tinha sido redator de um grande jornal paraense, A Província do Pará, se encaminha, contrariando as tendências dos intelectuais da época que buscavam abrigo no serviço público, para os grandes periódicos da Capital Federal e começa a trabalhar em O Imparcial. Não tarda, já colabora em vários jornais diários e semanais do Rio de Janeiro, expandindo suas colaborações a várias outras capitais brasileiras. Escreve ensaios políticos, contos, críticas, poemas e principalmente crônicas, gênero que popularizou através do país.

Ambicioso, vindo de uma infância miserável, Humberto tenta recuperar o tempo perdido, lançando-se na conquista da fama. O caminho mais seguro lhe aparece no aproveitamento do espírito frívolo e cosmopolita da época. Cria, então, o Conselheiro XX, personagem que encenará as suas crônicas galantes. Seus contos fesceninos ganham tamanha notoriedade, a ponto de as pessoas, pertencentes a círculos sociais distintos, desde a alta sociedade ao povo das ruas, perguntarem ao se encontrar: “Sabe da última do Conselheiro XX?” A produção acerca do Conselheiro ocupa vários volumes de sua obra. Maria de Lourdes Lebert (1965 ) ,a respeito da atividade jornalística do autor, nos diz: Tinha colunas diárias, semanais ou bissemanais nos seguintes jornais: A Tarde (Bahia); Diário de Notícias (Porto alegre); Jornal do Recife (Pernambuco); São Paulo - Jornal, Correio Paulistano, A Gazeta (São Paulo); O Jornal, Gazeta de Notícias, O Imparcial, Correio da Manhã (Rio de Janeiro). Escrevia na revista O cruzeiro, no semanário Dom Quixote e ainda fundou, por conta própria a revista, A Maçã, que foi aceita com particular agrado pelo povo..”2

Humberto de Campos cria assim o primeiro grande público para a crônica no Brasil, iniciando uma época em que, segundo Miceli: “os grandes cronistas tomam o lugar dos grandes críticos da geração anterior e assumem o encargo de selecionar os novos pretendentes.”3 . Na vida profissional Humberto de Campos foi, acima de tudo, um jornalista. Em razão de sua atuação na imprensa do Pará, é convidado para Secretário da Prefeitura de Belém, com apenas 21 anos. A cadeira na Academia Brasileira de letras, em 1920, veio-lhe em decorrência da conquista dos milhares de leitores, da disputa de sua colaboração como cronista, contista e comentarista político, pelos jornais de várias capitais e, por que não dizer, em razão do enorme sucesso do Conselheiro XX. A partir desta data, publica de dois a três livros por ano. Tem já o seu público leitor assegurado. Contudo, esse público continua, primordialmente, a ser arrebanhado pelo jornalista: os seus livros são uma reunião das suas colaborações em jornais e se compõem, principalmente, do Conselheiro XX e de suas crônicas diárias publicadas na imprensa. A sua ascensão política foi também uma derivação da fama jornalístico-literária. Endeusado em sua terra natal, é, insistentemente, convidado a participar da política maranhense. Ainda, segundo Maria de Lourdes Lebert : “ Em 1926, Magalhães de Almeida vence a resistência de Humberto de Campos e fá-lo Deputado Federal pelo Maranhão.”4 . Em 1929 é reeleito deputado, e, em 1930, tem os seus direitos políticos cassados por cinco anos pelo Governo Provisório.

1 MICELI, Sérgio. Poder, Sexo e Letras na República Velha p. 62 2 LEBERT, Maria de Lourdes. Humberto de Campos, p.39 3 MICELI, Sérgio, Id.Ibid. p.75 4 LEBERT, Maria de Lourdes. Humberto de Campos, p 4

Consagrada a sua fama e, já na ABL, sua produção fescenina é violentamente combatida por Carlos de Laet, Eloy Pontes e Jackson de Figueiredo, entre outros críticos católicos e moralistas da época. HC considera filtrar os seus textos e abandona o Conselheiro XX e escritos que não se coadunassem com a sua importância literária e seu recente ingresso na política.

Apesar de duas vezes deputado, nunca se integrou totalmente na política. Sentia-se deslocado no meio parlamentar para o qual não tinha inclinação. Pouco participante das disputas da Câmara, ele se realiza nas discussões literárias da Academia Brasileira de Letras, onde participa de inúmeras comissões e da Reforma Ortográfica de 1933, da qual foi um dos signatários. É sintomática sua referência, em Reminiscências, ao período parlamentar: “andei fantasiado de deputado três anos”. Até a sua obra máxima, Memórias, a única que não foi escrita para o consumo imediato em periódicos, não escapa à influência do jornalista que foi. Humberto. Alcides Maia, em comentário da obra, revela: As próprias Memórias, cujo êxito nacionalizou definitivamente o nome do autor, lícito será ao periodismo brasileiro reivindicá-las como um trabalho influenciado pelos seus processos de composição, diário interno que bem podemos considerar como uma epopeia jornalística”5

Cassado o seu mandato de deputado com a Revolução de 30, Humberto de Campos volta a depender exclusivamente de sua pena para sobreviver. Contando com a simpatia de membros do governo revolucionário, é nomeado Inspetor de Ensino e, mais a frente, Diretor da Casa de Rui Barbosa. Famoso, mas endividado com as suas enfermidades e a numerosa família, volta às colaborações diárias como jornalista.

A BUSCA DA PERMANÊNCIA – A exemplaridade Passada a fase de produzir para se tornar conhecido e consolidar-se como escritor, Humberto de Campos, consciente da perecibilidade do gênero ligeiro de que se compunha sua obra literária, construída, na sua maior parte, de apólogos, anedotas, crônicas extraídas do cotidiano, preocupa-se com a transitoriedade de suas criações. Escritas para consumo imediato – às vezes publicava seis crônicas em um só dia –, obviamente padeciam de imperfeições de estilo e superficialidade de assunto. As crônicas, sabemos, são o gênero literário (ou paraliterário), que mais perde a sua atualidade. Honrando o nome, são escritas com base em acontecimentos ou estados de espírito próprios de um determinado espaço de tempo sociocultural, para serem apreciadas e entendidas nele. Facilmente assimiláveis, são, da mesma forma, descartáveis, se considerarmos que podem se tornar desinteressantes ou até ininteligíveis para aqueles que as leem fora do contexto temporal em que foram escritas. Podemos entender a preocupação do autor, se considerarmos que a maior parte de sua obra é composta de crônicas diárias, ligeiras, publicadas na imprensa de todo o Brasil. Humberto de Campos se sente obrigado a escrever uma obra definitiva, que lhe sobrevivesse, talvez um romance. Outra forma de pressão, no mesmo sentido, surge através do novo momento político que atravessa o país, após o meado da década de 20 do século passado. Os sucessivos movimentos militares de 22 e 24 vão aumentar, progressivamente, a decadência das oligarquias dominantes e abrir caminho para a vitoriosa Revolução de 30. É uma época de decisões. O clima é de efervescência política, a frivolidade e o cosmopolitismo da sociedade vão dando lugar a uma consciência mais nacionalista, para o que muito contribuiu a Semana de Arte Moderna de 22 e as polêmicas travadas entre os modernistas e tradicionalistas. Há uma necessidade de tomada de posições, seja na política, na literatura ou nas artes. A grande responsabilidade de ser um autor ungido pelo público leva HC ao impasse do posicionamento frente ao novo contexto que emerge.

5 MAIA, Alcides. Duas crônicas póstumas. Correio do Povo, Rio de Janeiro, 9/12/1934

É uma situação difícil. A sua prosa, desataviada de preciosismos, atenta aos temas do cotidiano, de estilo simples quase coloquial, o afasta do parnasianismo, escola de sua formação poética. Com esta escola e com a literatura de Coelho Neto, “o último dos helenos”, de quem se considerava discípulo, o único ponto de contato é o uso excessivo de topos mitológicos. Tampouco lhe agrada o Modernismo, com o qual não reconhece afinidades. Por outro lado, a falta de um maior respaldo cultural, proveniente de sua formação autodidata, para incursionar pelos meios da filosofia e de outras ciências, o faz desistir de se posicionar polemicamente contra o mesmo. E continua explorando o filão do aconselhamento, o contato mais íntimo com a alma humana, o uso do sentimentalismo e da exemplaridade como recursos constantes. A constante preocupação com a notoriedade, tornar-se conhecido e colocar- se como modelo para futuras gerações, é parte da obsessão de Humberto na busca da glória. E ele a declara, ainda em Parnaíba, quando, adolescente, se encantava com os livros de Samuel Smiles : Smiles foi o melhor amigo que encontrei na adolescência. Os seus livros ricos de exemplos, coloridos com a vida de homens eminentes que haviam, pelo próprio esforço e pela tenacidade, subido do anonimato mais escuro aos esplendores da glória mais límpida, constituíram o maior incentivo do meu espírito e da minha vontade. Ao ler a história daqueles inventores, daqueles poetas, daqueles homens de Estado que haviam marchado para a notoriedade como os Reis Magos marcharam para Belém de Judá, isto é, com os olhos fixos em uma estrela, eu me enchia de coragem, e uma alegria intensa e nova se apossava de mim. O dever, O poder da vontade, O caráter, Ajuda-te a ti mesmo, A vida e o trabalho, tornaram-se a minha Bíblia. (Memórias inacabadas, p 158-0)

Sergio Miceli, no seu livro Poder, sexo e letras na República Velha, p 79, enfatizando a cultura folhetinesca do autor, à lista acima acrescenta apenas a leitura dos evolucionistas Haeckel e Buchner, omitindo Laplace, com quem Humberto diz compreender a harmonia das esferas e, sobretudo, Augusto Comte – cujo primeiro contato é tomado por intermédio de Teixeira Bastos – que vai transformar as convicções religiosas do adolescente Humberto e torná-lo positivista. De resto, mais tarde, Humberto de Campos vai percorrer o caminho de todos os rapazes intelectualizados da época, cultuando Taine, Comte, Renan, Darwin, abundantemente referidos por ele ao longo de sua obra. O constante emprego de ideias e citações de filósofos, críticos e literatos em seus escritos, nos leva a crer que, contrariando Miceli, a cultura de Humberto de Campos não foi adquirida nos “almanaques”. Ressalvamos apenas o modo de aquisição desse conhecimento, feito de modo desordenado, esparso, e que deixou, por certo, lacunas indeléveis na cultura do autor. Trabalho e tenacidade o levam a tornar-se o escritor mais lido do Brasil, quando da vascularização de sua obra por todo o país. A permanência desse status, obtido com o sacrifício da sua saúde, da vida familiar e de uma obra mais cuidada e menos superficial, vai ser buscada, entre outros recursos, com a exemplaridade. O objetivo declarado pelo autor de construir uma obra de exemplo, vamos encontrá-lo logo no prefácio de Memórias, quando expõe as razões da obra: A confissão pública das faltas particulares, numa penitência de possíveis pecados de egoísmo e orgulho, e a demonstração de como pode um homem, pela simples força de vontade, desajudado de todos os atributos físicos e morais para a vitória, libertar-se da ignorância absoluta e de defeitos aparentemente incorrigíveis, desviando-se dos caminhos que o levariam ao crime e à prisão para outros que o poderão conduzir a uma poltrona de academia ou a uma cadeira de Parlamento (Memórias, p 8).

E mais adiante, ainda no prefácio: Escrevo a história da minha vida não porque se trate de mim, mas porque ela constitui uma lição de coragem aos tímidos, de audácia aos pobres, de esperança aos desenganados, e, dessa maneira, um roteiro útil à mocidade que o manuseie. .Os vícios que a afeiam, os erros que a singularizam e que proclamo com inteira tranquilidade de alma, os rochedos, em suma, em que bati, mesmos esses me foram proveitosos, e sê-lo-ão, talvez, aos que me lerem. (Memórias, 8).

Na busca da consagração, e do seu selo, a exemplaridade se estende ao estilo literário. As crônicas e os capítulos da obra memorialista, na sua quase totalidade, possuem estrutura fabular, com a indefectível moral, implícita ou explícita, à guisa de fechamento. Suprir a lacuna da cultura autorizada, utilizando um prétexto tirado da tradição, inserido no corpo de seu próprio texto, demonstra isso. Esse pré-texto pode aparecer em forma de citações, historietas ou provérbios. Para tanto, usa o artifício de interpor uma narrativa à outra. A primeira narrativa, a da tradição, respaldando a criada pelo autor. A exemplaridade é conseguida através da contraposição paradigmática da história herdada com a nova história apresentada. Dentre inúmeros modelos podemos citar a crônica em que, querendo colocar o exemplo de vida de dois velhinhos do Asilo São Luís, visitado por ele, narra primeiro a lenda de Filemon e Baucis, retirada da mitologia grega, contrapondo as duas histórias para dar maior respaldo á lição tirada da narrativa contemporânea. (Os párias, p. 102-106 ).

Humberto de Campos é seu próprio modelo

Obtido o selo da autoridade, de modo particular, nas Memórias e Memórias inacabadas, o processo evolui e o exemplo dado passa a vir unicamente da experiência vivida pelo autor. Sem ter lido Walter Benjamin, ele é o protótipo do narrador clássico benjaminiano: “O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada dos outros. E incorpora as coisas narradas às experiências de seus ouvintes”[..]. “Ela [a narrativa] tem sempre em si, às vezes, de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou uma norma de vida, de qualquer maneira o narrador é um homem que sabe dar conselhos.”6

Enfim, Humberto de Campos é o seu próprio modelo. Para nos transmitir essa exemplaridade, HC não abandona os artifícios estilísticos anteriores, ele os transforma. Mesmo em uma obra de fôlego como as Memórias, as pequenas histórias, contidas no livro sob a forma de capítulos, preservam a apreciada estrutura fabular. Ressaltamos em Memórias, três capítulos que se prestam para ilustrar, com propriedade o que dizemos. São eles, “O Brinquedo Roubado”, “Um Amigo de Infância” e “Nossa Casinha”. Qualquer deles, se excluído do contexto do livro, não implica na quebra da narrativa e se constitui um conto de exemplo completo em si mesmo (todos os mencionados aqui foram fartamente publicados, isoladamente em livros didáticos). Há uma troca sutil de modelo. Nesses capítulos, o autor se utiliza da comparação dos sujeitos inanimados da narrativa, no caso o brinquedo, o cajueiro e a casa, contrapostos a ele próprio, à sua experiência de vida: Nesse estágio, já tendo adquirido a autoridade total, abandona o texto da tradição. Por que não tivera eu, também raízes como ele (o cajueiro), para não me afastar nunca, jamais do quintal em que havíamos crescido juntos, da terra em que eu, ignorando que o era.” (“Um

6 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. vol. 1 pp 200-1

Amigo de Infância”, Memórias, p 24)). Ou: “E que tem sido para mim, pelo resto da vida, a felicidade, senão um brinquedo roubado, que eu escondo, que dissimulo, assustadamente no coração, e que, no entanto, descobrem, e me tomam, quando custaria tão pouco me deixarem com ele?” (“O Brinquedo Roubado”, Memórias, p 169).

Ou ainda, utilizando também as comparações, à moda de apólogo machadiano: E lá vou eu outra vez e para sempre pelo mundo largo, onde eu vivo, como ele [ o cajueiro] com os pés na lama, dando, às vezes, sombra aos porcos, mas, também, às vezes doirado ao sol, lá em cima, oferecendo frutos aos pássaros e pólen ao vento, e, no milagre divino do meu sonho, sangrando resina cheirosa, com o espírito enfeitado de flores que o vento leva, e o coração, aqui dentro, cheio de mel, e todo ressoante de abelhas...”(“Um Amigo de Infância”, Memórias).

A autopiedade e a autoridade da morte

E é, talvez, em busca de mais crédito que, ao escrever os seus últimos volumes de crônica, e, sobretudo, ao se preparar para redigir as suas memórias, anotadas desde a juventude, ele se confessa doente incurável e mostra, sem dó, os seus males ao público. Humberto de Campos é acusado por alguns escritores e jornalistas, seus contemporâneos, de expor suas enfermidades e a indigência financeira com o propósito de tirar proveito dos seus leitores. A respeito, mostra-se implacável Eduardo Frieiro, um desses críticos, quando nos diz: [...] mesmo doente, e às portas da morte não renuncia a aparecer interessante. Sabe como exibir as suas chagas ao sol, provocando a compaixão dos leitores sentimentais. Sua desgraça nada teve de excepcional...7

Esse é, sem dúvida, um comentário maldoso e exagerado, minimizando o sofrimento da longa e dolorosa doença que o acometeu. Humberto de Campos irritava seus críticos, quando, em suas crônicas, referia-se a si próprio como o “deserdado da sorte”, mesmo após ter conquistado “uma poltrona na Academia e uma cadeira no Parlamento.” Doente, quase cego, Humberto de Campos, acentua a gravidade do seu mal e a predestinação trágica do seu fado, atraindo poderosamente a simpatia e identificação do público leitor, que mais e mais lhe escreve, compartilhando seus males e pedindo-lhe conselhos. A inexorabilidade da aproximação da morte dá novo peso a cada palavra do autor. Esse fenômeno, vivenciado por Humberto de Campos é, também, arrolado por Walter Benjamin. : Ora é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo sua existência vivida – e é dessa substância que são feitas as histórias – assumem pela primeira vez uma forma transmissível.[...] A morte é a sanção de tudo o que o narrador pode contar. É da morte que deriva a sua autoridade. Em outras palavras suas histórias remetem à história natural. 88

E Humberto de Campos, que não leu O Narrador, publicado pela primeira vez, dois anos após sua morte, nem Philippe Ariès, em O Homem diante da morte ( 1977), tinha perfeita consciência da autoridade que emana do homem que fala do alto de sua experiência final. Ao se dispor a escrever suas Memórias – aos 46 anos de idade – não o faz apenas como um escritor que, tendo atingido a maturidade, sente a necessidade

7 FRIEIRO, Eduardo. Páginas de crítica. p 283. 8 BENJAMIN,Walter. Obras escolhidas.vol 1 pp200-1.

de recompor sua infância sofrida e suas lutas para galgar uma posição na sociedade dos homens, mas também para se oferecer como exemplo de vida para as novas gerações. E para a consecução desses objetivos pretende que suas palavras tenham o selo e a veracidade do discurso do homem que vai morrer. O prefácio de Memórias confirma essa intenção Chego aos quarenta e seis anos ao fim da minha vida. Chego vencido, e fatigado, quando outros se encontram no apogeu da saúde e da força. [...] E, chegando onde me encontro, faço como aqueles gregos antigos, que cansados de peregrinar pelo mundo, sentavam-se um dia, para morrer, à porta dos templos, oferecendo aos deuses, uma última benção à vida, as suas sandálias, o seu cinto e o seu bordão. (Memórias, p 10).

Embora opte por esse conteúdo, próprio de uma forma artesanal de expressão, HC continua a escrevê-lo sob a forma de comunicação jornalística. Não se trata, como parece, de paradoxo literário, mas de necessidade financeira.

Apesar de sonhar cada vez mais com a obra definitiva, ele volta, após a Revolução. de 1930 – ocasião em que perde o mandato de deputado –já quase cego, a escrever matéria para sobreviver. Justo “quando sentia o espírito melhor provido para a realização de uma obra que me sobrevivesse” (fragmentos de um diário). Memórias e Memórias inacabadas não são ainda essa obra, embora não sendo escritas com o objetivo do consumo diário nos jornais, elas sofrem por outro lado, mais uma vez, da premência editorial decorrente da indigência financeira de HC, necessitado de sua rápida publicação. Em que pesem essas considerações, Memórias e Memórias inacabadas são, em tudo, superiores às outras obras do autor. E embora seu processo de composição básica seja ainda jornalístico, elas se constituem obras de um autêntico mestre da narrativa. Sabe como tocar fundo a corda da emotividade, com leveza de estilo, simplicidade e despojamento da linguagem. A substituição do pré-texto da tradição pela vida real torna o texto mais vivo e mais dinâmico.

O público, pouco preocupado com o excesso de produções ligeiras que foi passado aos seus livros sem o cuidado da triagem; com a obsessão de Humberto pela exemplaridade e a luta insana pela glória ou a exposição de suas “chagas ao sol”, queria mais e mais Humberto perto dele, compartilhando seus sofrimentos e identificando-se com suas desventuras. Humberto de Campos, pois, a despeito de todas as correntes vanguardistas, surgidas até 1934, data de sua morte, continua a ser muito lido nos anos que a seguem, e permanece assim até por volta dos anos 50, quando as edições de suas obras completas pela Jackson Editores ainda alcançavam grande sucesso. Quem afastou Humberto de Campos de seus leitores não foram os críticos literários, aqueles que dizem quais os autores devem ou não permanecer; quais deverão constar das antologias, participar das seleções de títulos a serem estudados nas escolas, ou serem incluídos nas listas de vestibular. Estes afastaram Humberto de Campos dos manuais de literatura, do reconhecimento das academias. O leitor foi minguando gradualmente por conta do excesso de envolvimento com as mídias, a começar da televisão, a partir dos anos 60 até chegar à Internet e suas filhas, as redes sociais. Esse processo, de resto, chegou para todos os grandes e médios escritores. Os campeões de “leitores”, ou melhor, de “seguidores”, são, hoje, os ”blogueiros”. Espanta-nos o olvido de Humberto de Campos, só não percebemos que outros campeões de vendas de livros estão, mais rapidamente que ele, caminhando para o esquecimento. Quantas coleções estão sendo lançadas no mercado editorial, falo de coleções, não de livros esparsos, Para falar apenas dos campeões de vendas que morreram há pouco tempo. Quem manterá acesa a chama

O que lemos agora? Ser escritor é, talvez, a mais ingrata das profissões. Quem é o autor, de hoje, que arrasta multidões? Qual é aquele que a critica aplaude e o público lê? Quantas novas coleções de grandes escritores, ungidos pela crítica, são publicadas a cada ano? O assunto mereceria um longo e complexo ensaio. E quanto a Humberto de Campos? Salvo alguns laivos de pieguice e o excesso de exemplaridade, muitas de suas obras são obras que ainda se leem com prazer. Trouxe o grande público leitor para crônica, hoje o gênero mais disseminado no Brasil, tornando-se o elo entre José de Alencar, Machado de Assis e cronistas modernos tais como Rubem Braga, João Ubaldo, por via jornalística também. As Memórias e Memórias inacabadas dão-nos uma segura amostra do que poderia ter escrito Humberto de Campos, não fosse ele um autor de tanto sucesso..

BIBLIOGRAFIA

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