Conselho Editorial Série Letra Capital Acadêmica Beatriz Anselmo Olinto (Unicentro-PR) Carlos Roberto dos Anjos Candeiro (UFTM) João Medeiros Filho (UCL) Luciana Marino do Nascimento (UFRJ) Maria Luiza Bustamante Pereira de Sá (UERJ) Michela Rosa di Candia (UFRJ) Olavo Luppi Silva (USP) Orlando Alvez dos Santos Junior (UFRJ) Pierre Alves Costa (Unicentro-PR) Robert Segal (UFRJ) Sandro Ornellas (UFBA) Sergio Azevedo (UENF) Sérgio Tadeu Gonçalves Muniz (UTFPR) William Batista (Bennet - RJ)
Helio de Araujo Evangelista
Aspectos hist贸ricos da geografia brasileira
Copyright © Helio de Araujo Evangelista, 2014
Editor João Baptista Pinto Capa Rian Narcizo Mariano Diagramação Luiz Guimarães Revisão Rita Luppi CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ E92a Evangelista, Helio de Araujo Aspectos históricos da geografia brasileira / Helio de Araujo Evangelista. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Letra Capital, 2014. 354 p. ; 15,5x23 cm. Apêndice Inclui bibliografia ISBN 978-85-7785-294-9 1. Geografia. 2. Geografia - Brasil. 3. Geografia - História. I. Título. 14-14937 CDD: 918.1 CDU: 913(81)
11/08/2014
14/08/2014
Letra Capital Editora Tels: 21. 2224-7071 | 2215-3781 www.letracapital.com.br
Para Heloisa
Sumário
Período Colonial................................................................................. 9 Sociedade e meio ambiente no tempo colonial brasileiro. A geografia dos índios!................................................................ 11 Território e oração. A geografia da Igreja Católica brasileira. Um olhar para a cidade do Rio de Janeiro.............. 21 Território e poder. A geografia dos fortes militares do Brasil colonial. Um olhar para o Rio de Janeiro.................. 39 Território e festa. A geografia da festa no Brasil. Um olhar para a cidade do Rio de Janeiro................................ 49
Período Imperial............................................................................... 65 A geografia brasileira começa onde? Seria no Colégio Pedro II?......................................................................... 67 Onde começa a geografia brasileira? Seria no Instituto Histórico Geográfico Brasileiro? A geografia brasileira começa no IHGB!....................................................... 78 Duarte da Ponte Ribeiro: o diplomata-geógrafo no tempo do Império Brasileiro. Um exemplo de como a Geografia também serve para fazer a paz!.............. 88 A Sociedade de Geographia do Rio de Janeiro......................... 101
Período Republicano..................................................................... 123 Congressos Brasileiros de Geografia....................................... 125 Delgado de Carvalho e a geografia brasileira......................... 158 O Serviço Geográfico do Exército........................................... 167 Onde está a geografia na Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística?........................................................ 186 O XVIII Congresso Internacional da União Geográfica Internacional (UGI) – Rio de Janeiro, 1956............................. 198
Conselho Nacional de Geografia.............................................. 218 A Geografia na universidade brasileira.................................... 229 Trabalho de campo.................................................................... 248 Geografia tradicional no Brasil. Uma geografia tão mal-afamada quanto malconhecida!................................... 264 Geografia teorética, um registro............................................... 291 A Geografia Crítica no Brasil................................................... 314 Cultura e Geografia................................................................... 335
PerĂodo Colonial
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Sociedade e meio ambiente no tempo colonial brasileiro. A geografia dos índios!1 Introdução A geografia brasileira é coisa de índio. A geografia brasileira, enquanto território e enquanto relato, tem uma nítida marca indígena. Este é o pressuposto deste artigo que inicia uma série voltada para a geografia brasileira no tempo colonial. Esta é a ideia que percorre a nova linha de investigação tendo em conta os primórdios da mesma, seja enquanto uma realidade transposta em mapas, seja uma grafia que atinge a forma de relatos, relatórios, livros etc. No entanto, é uma empreitada árida, difícil, porque a base documental é precária; nossos índios carecem de acervos que acusem a sua passagem em nossas terras (ou seria na terra deles?). O índio brasileiro não deixa nada escrito; o índio brasileiro não deixa monumentos, como ainda hoje podemos verificar dos maias, astecas etc. O índio brasileiro não deixa... Nada disso o índio brasileiro deixa. Só que sua presença é muito mais impressa do que expressa. A presença indígena está na nossa carne, na nossa língua, na toponímia dos lugares, na destreza com que os portugueses chegaram a conquistar mundo, um mundo chamado Brasil. Os portugueses, com os índios, aprenderam a andar, a aproveitar o que comer, e usar plantas para se curar. Mas, de qualquer forma, há uma notória dificuldade para se analisar a geografia à luz da questão indígena. Assim, vários serão os meios que lançaremos mãos para adentrar na questão. Obviamente, para o autor destas linhas, é um percurso que assume um aspecto pioneiro, pioneiro por não ser um especialista em índio; mas é guiado pela intuição de que não é possível falar em geografia brasileira sem pesar com maior intensidade a presença indígena. No Brasil, a chamada geografia histórica, nos cursos de graduação, não alcança o reconhecimento que deveria ter, quando muito há toda uma digressão sobre Ratzel, Vidal de La Blache etc., mas não se olha para dentro do país. Afinal, quem fez a geografia brasileira, enquanto mapa e relato? Respondo: foram os índios! Naturalmente que não Originalmente publicado na Revista Geo-paisagem, ano 7, n. 14, 2008, julho/dezembro de 2008. 1
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foram os únicos, mas cabe destacar sua participação que é tão desconsiderada.
Desenvolvimento Em que pese todo o ideário existente de que os índios brasileiros foram dizimados, convém ter um melhor discernimento quanto a este propalado extermínio. Arrisco-me afirmar que os índios brasileiros foram muito mais assimilados do que extintos. Ocorreu mais miscigenação do que uma lenta destruição2. Nós brasileiros somos indígenas; devemos o que somos aos índios. E a geografia também! Sobre este aspecto segue abaixo uma luminosa passagem da obra de Jaime Cortesão (1958, p. 134): Em São Paulo dera-se, com a fusão das raças, a assimilação da cultura aborígine, essencial na formação do mito da Ilha-Brasil. O índio, nas suas migrações através do território, prenunciara aquela vasta formação insular. Conhecia e praticava as rotas fluviais que insulavam o território, e os varadouros, por onde arrastavam as canoas dum rio para o outro. Ao unir-se com o português transmitia-lhe um direito elementar, mas fundamental, nesse mundo de vagas e abstratas soberanias: a herança dos caminhos e das grandes linhas que delimitavam o meio geográfico, a economia e a cultura. Ao nomadismo da cultura o português trouxe a consciência e a diretriz política. Lapidou, por assim dizer, essa enorme força de expansão, que estava em bruto. Os fatos patenteiam que ao contrário do que se tem afirmado, lusos e luso-brasileiros não escravizaram ou não escravizaram totalmente o tupi, propriamente dito. Aliaram-se a eles. Das bandeiras participavam entre 5% a 10% de brancos. Os 90% ou 95% restantes eram índios, e maiormente os tupi. Estes últimos participaram da missão desbravadora ou preadora das Bandeiras, por inclinação e Cabe menção ao número publicado pela revista História, promovida pela Biblioteca Nacional (RJ), dedicada exclusivamente à figura do bandeirante (ano 3, nº 34, julho de 2008). Embora os artigos repisem a dimensão da matança, não podemos concordar que havia um branco que matava um índio; de forma alguma, eram, a rigor, índios contra índios. Não raro os chamados bandeirantes nem falavam português, mas tupi. Não raro os assim chamados portugueses guiavam milhares de índios e só conseguiam tal proeza porque os índios assim queriam, porque estavam dispostos a guerrear. O português usava, mas também os índios usavam os portugueses para dirimir antigas diferenças entre tribos indígenas. Na bibliografia constam diferentes trabalhos que versam sobre o tema, tais como, Monteiro, Kok, Neves e Miranda. 2
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gosto próprio. As cartas dos jesuítas referem-se, com frequência, a expedições formadas exclusivamente por índios tupi, que partiam para o Guaira e voltavam a São Paulo com suas presas. Tivemos também ocasião de referir-nos atrás a um documento português em que são citados vários nomes de paulistas que usavam dos tupi como intermediários para trazer outros índios do sertão. A própria documentação espanhola prova que, muitas vezes, esses índios não eram trazidos por violência
Inicio a investigação da relação entre geografia e a questão indígena através de uma biografia, a do primeiro beato brasileiro, assim consagrado pelo então papa João Paulo II, em 22/6/1980. Tal atalho decorre de certa dificuldade em considerar material produzido na época e que tenha chegado até nossos dias. O recurso à biografia de José Anchieta (19/3/1534 a 9/6/1597) nos ajuda a inferir alguns aspectos da herança indígena. Quem foi José de Anchieta? Nasceu em 19/3/1534 em Laguna (Canária) tendo ascendência judaica; estudou na Espanha. Ingressou na Companhia de Jesus em 1/5/1551, fundada por Ignácio de Loyola, um parente distante da família Anchieta. Chegou a trabalhar 16 horas por dia e a celebrar dez missas por dia. Passou a ter problemas de coluna e veio para o Brasil. Em 1553 saiu do Tejo (Lisboa) em direção ao Brasil onde havia o Segundo Governo Geral do Brasil, Duarte da Costa. Ensinou latim na escola fundada por Manuel da Nóbrega, escola de Piratininga. Catequizou índios e viveu com eles. Em 1563 viveu refém dos tamoios. Foi ordenado sacerdote no Brasil em 1566. Aprendeu as primeiras palavras em abanheenge, língua geral dos tupis e guaranis3. Foi superior na Capitania de São Vicente (das duas casas, a de S.Vicente e a de S. Paulo) e do Espírito Santo e províncias. Em 25/1/1554 fundou com Manuel da Nóbrega o Colégio de Piratininga. Entre 1577 e 1588 chegou a ocupar o cargo de provincial da Companhia de Jesus para a Província do Brasil. Morreu em 9/6/1597, numa aldeia. Em 1617 ocorreu o primeiro passo para a canonização; em 1736 foi declarado o caráter heróico das virtudes. Em 22/6/1980 foi beatificado (dia 9/6 passou a ser seu dia). Segundo Lavínia Cavalcanti Martini Teixeira dos Santos, que elaboSobre o tema produziu a clássica obra:Arte da gramática da língua mais usada na costa do Brasil. 3
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ra um alentado trabalho sobre a forma como José Anchieta concebia o índio brasileiro, observa que os índios que serão objeto de atenção do jesuíta, os tapuias, também tratados como tupinambás, membros da família tupi-guarani, encontravam-se em plena expansão no território brasileiro, particularmente na costa (1997, p. 32). Embora com diferenças internas, os europeus recém-chegados observaram uma homogeneidade entre os grupos indígenas na costa brasileira. Este aspecto, tendo o tupi como língua geral, destaca a importância da ação de José Anchieta por ter sido o primeiro a constituir a primeira gramática desta língua. A obra Arte da Gramática mais usada na costa do Brasilveio a ser um poderoso instrumento na compreensão do mundo que os europeus passavam a se avizinhar. Uma situação bem diferente da encontrada pelos portugueses quando no século XVII adentraram a região amazônica, que apresentou uma enorme diversidade étnica e linguística da população indígena. O padre Antonio Vieira chegou a tratar esta última região como região do rio Babel (ibidem, p. 33). O índio brasileiro, tendo sido melhor compreendido pelos jesuítas, foi grande portão de entrada aos portugueses que até então ficavam aferrados em suas feitorias centradas no litoral, afeitos à troca de produtos e comércio. O índio ensinava o português a caminhar, a escolher as plantas para alimentação e cura de doenças, a evitar tais animais etc. O índio brasileiro fez com que o português deixasse de ser português e passasse a falar tupi. Foram os índios que forneceram a chave da relação com o meio ambiente em favor dos portugueses. O que significam os índios na formação social brasileira? Tendo em conta uma entrevista do jornalista/historiador Jorge Caldeira, autor do clássicoMauá – empresário do Império, registrado nos programas Conexão Roberto D’Ávila dos dias 22 e 29 de abril de 20074. O jornalista/historiador Jorge Caldeira observa que os europeus que chegaram ao Brasil, embora pobres, estavam voltados a uma busca de mudanças para suas vidas, que, por sua vez, foram recebidos por índios tupi-guaranis que tinham especial pendor para receber estrangeiros5. Os casamentos com pessoas de fora eram vistos de forma positiva Programa televisivo transmitido na Tv Brasil. A nação portuguesa, à época, ainda era fortemente marcada pela era medieval, na qual, onde se nascia, morria. A mobilidade social era praticamente nula. Logo, o ideário era fazer a América. 4 5
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pelos índios. Pela visão mítica dos tupis o estrangeiro traz coisas novas e positivas. Assim, além da receptividade, os europeus precisavam dos índios para se adaptar ao novo local6. Em sua recente obra já lançada, Banqueiro do Sertão, consta a vida de um padre que vira banqueiro. O padre Guilherme Pompeu de Almeida, nascido em 1656 e falecido em 1713, exemplifica o quanto no chamado sertão brasileiro havia toda uma produção industrial que nos é pouco valorizada pelos estudos de história brasileira. A riqueza do pai foi sediada em Santana do Parnaíba (SP) quando produziu uma espécie de metalurgia que gerava espingardas, cadeados, selas, facas, foices, anzóis etc. E o que tornou possível esta proeza foi uma outra quando ele conseguiu que uma população de 5.000 pessoas que estavam em Vila Rica do Espírito Santo (atualmente ficaria próximo de Corumbá, Estado de Mato Grosso) se transferisse para São Paulo, guiada por 80 portugueses, usando canoas e andado a pé. Era já uma população afeita a trato com minerais porque a sua Vila era um entroncamento entre São Paulo e Potosi, onde ficava a rica mina peruana responsável pela metade da produção da prata no planeta à época. Cabe observar que, à época, Potosi era, em 1680, a segunda maior aglomeração urbana no mundo com 160 mil habitantes, dos quais 6.000 eram portugueses (ora, à época, a cidade de São Paulo não chegava a 2.000 pessoas)7. A história do padre/banqueiro não deixa de ser interessante. O pai dele era rico e para ter o filho com educação este foi enviado para o colégio dos jesuítas em Salvador e chegou a ser aprovado para ter doutorado em Teologia (algo raro, só um ou dois o conseguiam a cada ano). Porém, ele abandonou os estudos, voltou para o Rio de Janeiro e passou a ser padre secular, tipo um funcionário que não chegava a receber salário. A mudança pode ser explicada pelo nascimento de uma filha com uma índia. À época, a questão do celibato para os sacerdotes estava em vias de consolidação, mas não era incomum padre com filhos. Inclusive, no caso em pauta, a filha, Inês de Lima, foi reconhecida anos depois e veio a receber herança. Mas o que chama a atenção do entrevistado é que o código que o banqueiro utilizou para realizar negócios foi o código indígena. Numa época em que não havia tabelião, rede jurídica, como as transações se faziam? Eram realizadas segundo um modusoperandi indígena pelo Situação diferente daquela encontrada nos Estados Unidos, segundo Jorge Caldeira. Lá os índios não tinham esta índole, assim como os migrantes europeus não dependiam tanto da população indígena para sua sobrevivência. 7 A maior aglomeração urbana à época era a de Paris. 6
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qual o circuito prioritário na realização dos negócios era de índole feminina; ou seja, privilegiava-se a ascendência e descendência da mulher na hora de escolher sócios e estabelecer relações de troca. Na própria genealogia que veio a ser escrita pelo padre/banqueiro constava nomes de homens, porém os anelos, a estrutura, era toda ela pautada nas mães que cada um tinha. Em resumo, é da herança indígena tupi-guarani que temos a boa recepção ao que vem de fora (isto não é próprio dos portugueses; estes, em Portugal, apresentam uma baixa miscigenação com o estrangeiro); há uma índole empreendedora (o que temos ainda hoje no Brasil; qualquer um é empreendedor, até manicure, ambulante etc.) e um forte caráter adaptável, ou seja, não há rigidez. Estes valores não são encontrados na educação formal; ela é incutida pela informalidade das relações. Ele (Jorge Caldeira) entende que o sistema escravocrata no Brasil trouxe sérios prejuízos para este aspecto empreendedor brasileiro; pelo contrário, a escravatura reforçou o aspecto mais tradicional na sociedade brasileira, o que gerou uma nítida ambiguidade. Há o Brasil do sertão, do sertanejo, do pioneiro; mas há o da escravidão que é a negação da vida livre, do progresso e do empreendedorismo. Na sociedade escravocrata o ócio é símbolo de distinção (trabalho é coisa de negro); na sociedade escravocrata, a luta do escravo é o de trabalhar o menos possível, porque isto significa ser menos explorado. Na sociedade escravocrata há o estigma da fatalidade no qual o escravo não tem outra esperança a não ser morrer mais cedo. Na sociedade escravocrata é fundamental a ordem; o progresso desperta medo. Sobre este aspecto é interessante o título nobiliárquico conferido a Ireneu Evangelista por D. Pedro II, a saber, barão de Mauá, ou seja, Mal há! Temos muita coisa no Brasil que não está na cultura escrita.Numa entrevista com o antropólogo Darci Ribeiro a Jorge Caldeira, Darci chamava a atenção que a cultura escrita brasileira é muito lenta na absorção deste Brasil informal, inclusive, por exemplo, a primeira grande obra literária brasileira que introduz um monólogo interior cujo sujeito é um analfabeto é o romance de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, que veio a lume em 1963! Até então ninguém tinha reproduzido um pobre pensando, reproduzindo suas indagações8. A Realmente, o personagem Riobaldo no romance de Guimarães Rosa é ímpar na literatura brasileira; porém, não podemos esquecer Graciliano Ramos e sua obra Vidas Secas, a cadela Baleia e seu dono perfazem uma dupla onde as distâncias entre ambos se veem anuladas pelo drama da seca. Nesta última obra há um espasmo de monólogo interior, mas que não chega à altura de nosso filósofo roseano. 8
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cultura escrita brasileira padece para acompanhar esta dinâmica comunicativa brasileira. Jorge Caldeira cita o curioso estudo que fez sobre o jogador de futebol Ronaldo Fenômeno, que também virou livro. Um rapaz pobre, com parcos recursos, com a ajuda de um dono de posto de gasolina confecciona um tipo de contrato sofisticado que leva em conta direito de imagem mesmo quando não tinha alcançado 18 anos. É um jogador que fala pouco, tem vocabulário limitado, mas que sobreviveu a uma rede de interesses, de contatos; assim, a questão é: qual o aparato intelectual que o sustenta numa situação como essa? Certamente não foi dada pela educação formal. Há algo nos valores que passam mesmo com poucas palavras; no comportamento geral do brasileiro. Valores estes que não estamos muito conscientes de sua existência. A cultura escrita não consegue traduzir os mecanismos que levam os brasileiros a raciocinar, pensar e agir. Infelizmente, no Brasil, não se dá valor ao que dá certo. Por exemplo, a recuperação do jogador para a Copa do Mundo de 2002 foi algo notável, chegava a fazer 800 a 900 flexões por dia para recuperar a massa muscular. Em outro estudo, também, livro, sobre a criação do samba, ele acentua que a criação do gênero samba surgiu numa época de inovação tecnológica dada pelo fonógrafo diante do qual um grupo de analfabetos se adaptou perfeitamente ao processo! Ou seja, são dois casos que exemplificam que há uma formação do brasileiro que, embora não passando pela estrutura formal de ensino, aliás extremamente precária, faz com que ocorram certas adaptações a princípios imprevisíveis. O que nos diz Darcy Ribeiro? O programa de tv Expedições, tendo como âncora a jornalista Paula Saldanha, reprisou em 24/3/08 uma entrevista com o antropólogo Darcy Ribeiro realizada no ano de 1996, que versou sobre a sua mais recente obra, O Povo Brasileiro. No ano seguinte o senador viria a falecer, com 75 anos. O livro foi escrito em três meses, porém demorou 40 anos para a sua elaboração. Já tinha tentado escrevê-lo em 1964, mas entendeu que faltava teoria, e isto ele a construiu produzindo O Processo Civilizatório (que estuda 10 mil anos de história humana), As Américas e a Civilização (indagando porque alguns países deram certo, como Canadá, Estados Unidos e outros ainda não), Os Índios e a Civilização, Dilema da América Latina. Depois dessa produção ele entendeu que estaria apto a escrever a obra. Período Colonial 17
Segundo ele, escreveu o livro porque temia morrer! Enfrentando um câncer, literalmente fugiu da Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) e se recuperou do tratamento que o matava para escrever o trabalho. E conseguiu! Ele interpreta que veio ao mundo para escrever esse livro – O Povo Brasileiro. Ele entende que o Brasil foi formado por poucos europeus, embora degredados, de pouca importância para o seu país de origem, que chegaram ao Brasil e passaram a formar a nossa civilização. Uma civilização de mameluco, alguém que não é nem índio, nem europeu: é brasileiro. Aqueles desventurados iniciam uma aventura nos trópicos, uma aventura com pleno apoio dos índios. Os índios tinham aqueles europeus em baixa conta: eram cabeludos, fediam, mas tinham bugigangas, mais particularmente instrumentos. Depois de usar um machado de ferro não tinha mais sentido continuar usando um de pedra. E a maneira de realizar seus interesses, os índios usavam suas índias; os portugueses no início da colonização foram pródigos em acasalamentos. João Ramalho, por exemplo, tido por herói sertanista, não passava de um homem rústico que chegou a ter 30 mulheres. Em suma, em poucas dezenas de anos tivemos no Brasil um verdadeiro criatório de gente, gente brasileira. O Brasil poderia ser vários países. A Amazônia é um país, o Nordeste outro; São Paulo com Minas Gerais (que dispõem de um barroco mais bonito que o do europeu) um terceiro; a região Sul, com os gaúchos, um quarto país. Mas esta divisão não aconteceu. A vinda da família real ao Brasil trouxe o que havia de melhor em termos de quadros capacitados, habilidosos, curtidos por mil anos de luta contra os espanhóis em favor de sua autonomia. Dezoito mil pessoas, com nível superior ao existente no Brasil, lutaram e conseguiram a unidade brasileira. Lutaram com uma das mãos contra os movimentos emancipacionistas, mas tendo em outra mão uma anistia e uma encomenda (ou seja, vencia para então constituir um aliado). Assim, o Brasil constituiu em seu processo de formação uma diversidade étnica, cultural e ecológica. O Brasil tem tudo para ter seu esplendor; carece de uma elite mais qualificada. Esta que aí está permite ao povo se expressar em dois campos: o futebol e a música. Justamente setores que não se exige escola. A ausência de sofisticação na população brasileira, a ausência de uma formação formal, qualificada, é que impede essa imensa população ter maneiras mais diversificadas de expressão de sua capacidade. Os vários países como Coreia, Japão etc. criaram suas crianças com 18
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educação em tempo integral. No Brasil há este absurdo de escola diurna. Está errado isto. Mandar uma criança pobre fazer dever de casa? Como? Se não tem casa!? Não tem quem a apoie nos deveres escolares. Escola não integral serve para gente com posses, que à tarde vai estudar piano ou francês. Um povo que foi capaz de elaborar Iemanjá, a deusa do amor, que se justifica não para oferecer coisas, mas que proporcione que o marido não bata mais, ou que consiga um namorado melhor, o que não é capaz de elaborar se contar com educação formal mais qualificada? Darcy Ribeiro, visivelmente empolgado ao falar do povo brasileiro, acredita que dará certo e termina assim a sua entrevista para Paula Saldanha: Eu saúdo daqui, com esse livro, aqueles que virão, que continuarão fazendo o Brasil para ser essa grande civilização que nós podemos ser. Que nós havemos de ser.
Conclusão Como já observado, com este texto inicio uma análise de geografia brasileira profunda, ou seja, uma geografia que passo a encontrá-la no início da colonização brasileira. Tenho como hipótese que a geografia brasileira, o seu êmulo, é maior que seus intérpretes. Geralmente se procuram os pensadores, as escolas; no caso brasileiro o que falta é um reconhecimento de como esta geografia fatual tal qual se fez, para então ter uma interpretação do que seja geografia brasileira enquanto disciplina. Esta, não raro, é buscada na mente das pessoas, nas suas ideias, nos seus conceitos; no entanto, o que procuro é uma compreensão da disciplina à luz do processamento histórico brasileiro. Naturalmente que assim procedendo, ao fim e ao cabo estou compreendendo melhor este país, e não só uma disciplina. Um país que se expressa por uma geografia, geografia enquanto relato, carta, monografia e mapa. Deste modo, apresento o presente texto relacionando geografia e índio. Devemos muito aos índios. Muito do que somos. Temos a dimensão territorial brasileira, que vem da forma como interagiram com os índios, e como estes conformaram um grau de relacionamento e recepção aos queaqui chegaram. Naturalmente que aqui foi exposto um breve desenho do assunto,e ele está a exigir que outros geógrafos adentrem no tema. Não deixePeríodo Colonial 19
mos este assunto restrito aos historiadores, antropólogos e arqueólogos. Convém olhar a geografia brasileira com o olhar dos índios, pelos costumes dos índios, pela sua fala, enfim, há toda uma exploração a ser desenvolvida pelos geógrafos. Referências bibliográficas Anchieta S. J., Pe. Joseph de. Arte da gramática da língua mais usada na costa do Brasil. Edição fac-similar. Obras completas,Monumentae Anchietana, 11º vol. Apresentação: professor doutor Carlos Drumond; aditamento: Pe. Armando Cardoso, S.J. São Paulo: Ed. Loyola, 1990. Caldeira, Jorge.Mauá, empresário do Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. ______. Ronaldo: glória e drama no futebol globalizado. São Paulo: Editora 34, 2002. ______.O banqueiro do sertão. São Paulo: Ed. Mameluco, 2006. ______.A construção do samba. São Paulo: Ed. Mameluco, 2007. Chaves, Dagmar A. O bem aventurado José de Anchieta, S. J. Vida e obra. Cia. Brasileira de Artes Gráficas. Rio de Janeiro, 1996. Cortesão, Jaime. Raposo Tavares e a formação territorial do Brasil. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, Serviço de Documentação, 1958. Instituto de Estudios Canarios. La Laguna – Tenerife (Islas Canarias), 1997. Kok, Glória. No mato sem cachorro. In:Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 3, nº 34, julho de 2008, pp. 22-4. Miranda, Reginaldo. Caldeirão de mestiços. In:Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 3, nº 34, julho de 2008, p. 36. Monteiro, John. Sangue Nativo. In:Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 3, nº 34, julho de 2008, pp. 16-21. Neves, Erivaldo Fagundes. Duros de matar. In:Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 3, nº 34, julho de 2008, p. 35. Pereira, Paulo Roberto (org.).Anchieta. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Departamento Nacional do Livro, 1991. Ribeiro, Darcy. O processo civilizatório – etapas da evolução sócio-cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. ______.As Américas e a civilização – processo de formação e causas de desenvolvimento desigual dos povos americanos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. ______.Os índios e a civilização – a integração das populações indígenas no Brasil Moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970 a. ______.El dilema da América Latina –estructuras de poder y fuerzas insurgentes. México: Siglo XXI, 1971. Santos, Lavínia Cavalcanti Martini Teixeira. Guerreros antropófagos. La visión europea del indígena brasileño y la obra del jesuita José de Anchieta (1534-1597). La Laguna – Tenerife (Islas Canarias): Instituto de Estudios Canarios, 1997.
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