PALAVRA DE DEUS E EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS
Conselho Editorial Série Letra Capital Acadêmica Beatriz Anselmo Olinto (Unicentro-PR)
Carlos Roberto dos Anjos Candeiro (UFG) Claudio Cezar Henriques (UERJ) Ezilda Maciel da Silva (FAAO) João Medeiros Filho (UCL)
Leonardo Santana da Silva (UFRJ)
Luciana Marino do Nascimento (UFRJ)
Maria Luiza Bustamante Pereira de Sá (UERJ) Michela Rosa di Candia (UFRJ) Olavo Luppi Silva (UFABC)
Orlando Alves dos Santos Junior (UFRJ) Pierre Alves Costa (Unicentro-PR)
Rafael Soares Gonçalves (PUC-RIO) Robert Segal (UFRJ)
Roberto Acízelo Quelhas de Souza (UERJ) Sandro Ornellas (UFBA) Sergio Azevedo (UENF)
Sérgio Tadeu Gonçalves Muniz (UTFPR)
Leonardo Agostini Fernandes
PALAVRA DE DEUS E EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS
“No mundo tereis tribulações, mas tende confiança: Eu venci o mundo!” (Jo 16,33)
A docilidade e a disponibilidade dadas ao Espírito Santo são as armas mais importantes nos Exercícios Espirituais.
Ao clero, aos religiosos e religiosas, aos consagrados e consagradas.
Copyright © Leonardo Agostini Fernandes, 2019
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610, de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem a autorização prévia e expressa do autor. Editor João Baptista Pinto
Capa Rian Narcizo Mariano
Foto: Mosteiro de Alcobaça - Claustro do Silêncio (wikimedia.org)
Projeto Gráfico e Editoração Luiz Guimarães Revisão Do Autor
F399p
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
Fernandes, Leonardo Agostini, 1966 Palavra de Deus e exercícios espirituais. "No mundo tereis tribulações, mas tende confiança: Eu venci o mundo!" (Jo 16,33) / Leonardo Agostini Fernandes. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Letra Capital, 2019. 192 p. ; 15,5x23 cm.
Inclui bibliografia ISBN 978-85-7785-658-9
1. Bíblia. 2. Palavra de Deus (Teologia cristã). 3. Exercícios espirituais. I. Título.
19-57031
CDD: 231.74 CDU: 2-14
Leandra Felix da Cruz - Bibliotecária - CRB-7/6135
Letra Capital Editora Telefax: (21) 3553-2236/2215-3781 letracapital@letracapital.com.br
Sumário Prefácio Dom Orani João Tempesta, O.Cist....................................................................9 A Palavra de Deus é fonte inexaurível de vida................................ 11 O dom dos Exercícios Espirituais........................................................... 13 A experiência da fé bíblica e a mudança de época....................... 17 1. O tempo e o sabor do silêncio............................................................ 21
Leitura Orante de Rm 12,1-2.................................................................. 30 Texto bíblico para reflexão...................................................................... 35
2. As marcas características da época atual................................... 36
Leitura Orante de 1Pd 3,8-17 com 1Jo............................................... 43 Texto bíblico para reflexão...................................................................... 54
3. A pedagogia de Jesus Cristo e o mundo contemporâneo........ 55
Leitura Orante de Lc 8,16-18.................................................................. 63 Texto bíblico para reflexão...................................................................... 68
4. Unidade, Fraternidade e Santidade................................................ 69
Celebração Penitencial.............................................................................. 77 Texto bíblico para reflexão...................................................................... 83
5. A Palavra de Deus e a formação permanente........................... 84
Leitura Orante de Ct 3,1-5........................................................................ 95
Texto bíblico para reflexão................................................................... 104
6. O discipulado à luz de Mt 28,16-20............................................. 105
Adoração ao Santíssimo Sacramento............................................... 115 Texto bíblico para reflexão................................................................... 126
7. Liturgia, caminho de pacificação e de reconciliação......... 127
Leitura Orante de Mt 6,7-15................................................................. 134 Texto bíblico para reflexão................................................................... 143
8. A Palavra de Deus e a postura de Maria.................................... 144
Maria, modelo de resposta à vocação.............................................. 152 Texto bíblico para reflexão................................................................... 159
Conversão Pastoral na Pastoral da Conversão
à luz do Documento de Aparecida...................................................... 161 Posfácio
Pe. Josafá Carlos de Siqueira, SJ – Reitor da PUC-Rio......................... 183 Referências bibliográficas...................................................................... 185 Obras do autor............................................................................................... 187
Prefácio Cardeal Orani João Tempesta, O.Cist.
Arcebispo de São Sebastião do Rio de Janeiro
A
Igreja, para o bom desenvolvimento da sua missão no mundo, atualmente marcado por uma profunda mudança de época, convoca os seus filhos e filhas, em particular os clérigos, religiosos e religiosas, a um momento de retiro anual – renovado também de forma mensal –, a fim de que façam uma verdadeira revisão de vida e que esta seja continuamente retomada pela renovação da fé, da esperança e da caridade em Jesus Cristo. Uma preocupação que está no coração do Papa Francisco que, como Jesuíta, tem insistido muito na prática dos exercícios espirituais. Ao longo de alguns dias, reflexões, celebrações litúrgicas e atos de piedade se intercalam, propiciando a experiência de um tempo renovador e de graça. Um tempo favorável e oportuno, um kairós restaurador que redimensiona a vida e a orienta totalmente para o Senhor Jesus Cristo: vivo, presente e atuante em sua Igreja e, por ela, no mundo tanto amado por Deus (Jo 3,16). Por certo, cada pregador(a) tem o seu jeito próprio e pessoal para conduzir as reflexões ao longo do retiro. Sabedor(a), porém, de que o verdadeiro condutor é o Espírito Santo que, derramado sobre a Igreja, tem a missão de conduzi-la à plena configuração a Jesus Cristo, mediante o qual, Deus Pai é glorificado na vida de cada batizado, chamado a ser santo porque Deus é Santo (Lv 19,2), em particular na vida dos seus ministros ordenados. Nesse sentido, é com alegria que acolhemos e prefaciamos o presente livro do Pe. Leonardo Agostini Fernandes, professor de Sagrada Escritura do ISTARJ e do Departamento de Teologia da PUC-Rio, dedicado à Palavra de Deus e aos Exercícios Espirituais, e que, prontamente, acolheu o convite que fizemos para orientar, 9
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neste ano de 2019, as cinco turmas do retiro do clero de nossa Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro. Acreditamos que as reflexões oferecidas, neste livro, em forma de temas, leituras orantes e celebrações, muito colaborarão na revisão da vida e na formação permanente em nível humano, bíblico, teológico, pastoral e espiritual dos participantes de cada turma de retiro. Esperamos, ainda, que, nesse Ano Vocacional Arquidiocesano, o conteúdo não seja apenas assimilado, mas divulgado e, igualmente, possa ser transmitido e aplicado no apostolado que cada comunidade eclesial busca realizar, suscitando novas e santas vocações, e trazendo, justamente, a renovação necessária na vida dos agentes de pastoral, a fim de que a ação evangelizadora da Igreja seja cada vez mais eficaz e conforme a vontade do Senhor Jesus que deu aos seus discípulos a missão de ser sal da terra, luz do mundo (cf. Mt 5,13-16), e fermento na massa (Mt 13,33). Sobre todos e todas, invoco bênçãos copiosas, augurando uma frutuosa e proveitosa leitura e meditação dessas páginas ricas em conteúdo bíblico, teológico e pastoral, fontes que formam e transformam o ser humano que se abre, docilmente, à ação do Espírito Santo.
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A palavra de Deus é fonte inexaurível de vida Dos “Comentários sobre o Diatéssaron” de Santo Éfrem, diácono (1,18-19; SCh 121,52-53)
Q
“
uem é capaz de compreender, Senhor, toda a riqueza de uma só das tuas palavras? É muito mais o que nos foge de quanto conseguimos compreender. Somos como os sedentos que bebem a uma fonte. A tua palavra oferece muitos aspectos diversos, como numerosas são as prospectivas daqueles que a estudam. O Senhor coloriu a sua palavra de beleza variada, a fim de que, aqueles que a perscrutam possam contemplar o que preferem. Escondeu na sua palavra todos os tesouros, a fim de que, cada um de nós encontre uma riqueza naquilo que contempla. A sua palavra é uma árvore de vida que, de cada parte, te concede frutos benditos. Essa é como aquela rocha aberta no deserto, que se tornou, para cada homem, de cada lugar, uma bebida espiritual. Eles comeram, diz o Apóstolo, um alimento espiritual e beberam uma bebida espiritual (cf. 1Cor 10,2). Aquele ao qual percebe uma destas riquezas, não acredite que não exista outra na palavra de Deus além da que ele encontrou. Renda-se conta, antes de tudo, que foi capaz de descobrir senão uma só coisa entre muitas outras. Depois de ser enriquecido pela palavra, não creia que esta venha por isto empobrecida. Incapaz de exaurir a riqueza, agradeça pela sua imensidade. Alegre-se porque foi saciado, mas não se entristeça pelo fato que a riqueza da palavra te supere. Aquele que tem sede é feliz por beber, mas não se entristece porque não consegue esgotar a fonte. É melhor que a fonte satisfaça a tua sede, do que a sede exaurir a fonte. Se a tua sede termina sem que a fonte seja exaurida, poderás beber nela de novo toda vez que terás 11
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necessidade. Se, ao contrário, saciando-se secasse a fonte, a tua vitória seria a tua chaga. Agradece por quanto recebeste e não murmurar por aquilo que permanece inutilizado. O que pegaste ou levaste te pertence, mas aquilo que resta é ainda tua herança. Aquilo que não pudeste receber de imediato, por causa da tua fraqueza, recebe-o em outro momento com a tua perseverança. Não tenhas a imprudência de querer tomar em um só gole tudo aquilo que não pode ser tomado, senão, em mais vezes, e não te distancies daquilo que poderás receber só um pouco de cada vez”.
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O dom dos Exercícios Espirituais Premissa
Existem diversos modos de se propor um retiro e de se viver um retiro. Entram em jogo muitas situações e vicissitudes: cansaços, expectativas, fracassos, disposições, indiferenças, desejos de renovação etc; mas, igualmente, nos acompanha uma certeza: ninguém está, ou age, sozinho no retiro; Deus é o maior interessado em provocar, no que se dispõe a fazer o retiro, a possibilidade de renovação da fé, da esperança e da caridade, mediante a vocação e a missão recebidas como puro dom e que são capazes de nos realizar em plenitude. Então, para iniciar, é apropriado recordar do convite que Jesus fez aos seus discípulos e hoje nos faz em Mt 11,28-29: Vinde a mim todos vós que estais cansados e oprimidos, e eu vos restaurarei. 29 Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração, e encontrareis restauração para vossas almas, pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve. 28
Retiro e Exercícios Espirituais
Comparar o retiro aos exercícios espirituais permite compreender melhor ESTE TEMPO como oportuno e restaurador (kairós). Retiro, portanto, não é uma pausa no sentido de ausência de atividades, mas é uma mudança nas atividades. A proposta é entrar na academia de Deus Pai que, de antemão, colocou Jesus Cristo como MODELO e designou o Espírito Santo como PERSONAL TRAINER (imagem usada pelo Cardeal G. Ravasi). Cada um(a) receberá a sua série de exercícios e esta deverá ser realizada corretamente. Antes, porém, é preciso passar por uma avaliação das próprias condições espirituais para que a série seja ade13
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quada e possa produzir os resultados esperados e desejados. Esta avaliação segue dez enfrentamentos que considero necessários:
1. Tenho sido honesto(a) comigo mesmo(a) e com os demais? 2. Tenho reconhecido as minhas próprias limitações? 3. Procuro não fingir ou fugir da autocrítica e da autoavaliação? 4. Procuro não dar passos mais largos que as próprias condições? 5. Procuro não invejar a condição alheia, seja física ou espiritual? 6. Tenho evitado o mal e procurado praticar o bem? 7. Admito o cansaço, as frustrações e os fracassos? 8. Não temo a necessidade de pedir ajuda? 9. Estou disposto a ajudar a quem pede ajuda? 10. Sei aguardar, no tempo de Deus, a minha vez? Motivação: Por que fazer um retiro? Esta pergunta se desdobra em outras três: 1) Como entrar no retiro? 2) Como permanecer no retiro? 3) Como sair do retiro?
Para uma resposta adequada, é fundamental identificar com atenção os elementos: a) Os elementos positivos e favoráveis que me motivam a fazer um retiro; b) Os elementos negativos e desfavoráveis que me desmotivam a fazer um retiro;
Sobre esses elementos, dou uma sugestão: Em um retiro, ninguém pode percorrer o caminho alheio. Cada um(a) deve percorrer o próprio caminho, sabedor(a) de que muitos pontos positivos e negativos surgirão a partir das reflexões e deverão ser valorizados com a devida atenção e como uma ocasião de transformação. 14
Palavra de Deus e Exercícios Espirituais
Contudo, cremos, e somos sabedores, que Deus é o maior interessado na nossa felicidade e na nossa realização em nível pessoal e comunitário. Por isso, devemos ficar atentos(as) à presença e à voz de Deus, de modo particular nos momentos litúrgicos que vamos celebrar. Estes são os momentos mais importantes do retiro, pois Deus preparou, neles, todo o necessário para nos acompanhar e nos revelar a sua graça restauradora. Então, proponho que sigamos o conselho de Santo Agostinho: “Temo a graça de Deus que passa e eu não a percebo!” O primeiro passo a ser dado é definir e seguir objetivos: Objetivos primários: 1.
2.
3.
Abrir-se para Deus e deixar-se conduzir por sua presença e ação salvífica; Abrir-se para o próximo e reconhecer, nele, a presença de Deus e da sua ação salvífica. Silenciar a mente e o coração para perceber o caminho que conduz a essa dupla abertura.
Objetivos secundários: 1.
2.
3. 4.
Desarmar-se, isto é, não colocar condições ou obstáculos para viver esse retiro; Acolher, com gratidão, esse momento como uma ocasião favorável para descansar, para se alimentar melhor, para aprender algo novo e para intensificar a vida de oração, a fim de que aconteça uma renovada motivação no exercício da vocação e da missão; Ser pontual aos momentos do retiro; Procurar vencer as várias distrações que podem desviar do foco do retiro e, assim, não perceber a graça de Deus.
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Que o Senhor nos conceda as boas disposições presentes no Sl 131 (130): Senhor, o meu coração não é orgulhoso, nem se eleva arrogante o meu olhar; não ando à procura de grandezas, nem tenho pretensões ambiciosas. 2 Fiz calar e sossegar a minha alma, ela está em grande paz dentro de mim, como criança bem tranquila, amamentada no regaço acolhedor de sua mãe. 3 Confia no Senhor, ó Israel, desde agora e por toda a eternidade. 1
Portanto, viver a fé em Deus é uma disposição a se sacrificar e a tudo sacrificar por amor a Ele e ao seu plano de amor. A fé exige renúncias e doação incondicional, aceitando arriscar tudo por Deus que não poupou o seu próprio Filho para nos salvar (Rm 8,32). Por isso, a fé em Deus equivale à prova de amor a Deus e aos seus planos a exemplo de Jesus Cristo: Se observardes os meus mandamentos, permanecerei no meu amor, como eu observei os mandamentos do meu Pai e permaneço no seu amor (Jo 15,10).
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A experiência de fé bíblica e a mudança de época Introdução
O Ano Litúrgico 2012-2013 foi proclamado pelo Papa Bento XVI como o Ano da Fé, e foi desejado como um momento de graça e de renovação para toda a Igreja Católica. Assim, ele se expressou na Carta Apostólica Porta Fidei, n. 1, apoiado em At 14,27:
“A PORTA DA FÉ, que introduz na vida de comunhão com Deus e permite a entrada na sua Igreja, está sempre aberta para nós. É possível cruzar este limiar, quando a Palavra de Deus é anunciada e o coração se deixa plasmar pela graça que transforma”.
Por isso, cada um, no seu próprio estado de vida, de acordo com a vocação à qual foi chamado e a missão que assumiu, pode passar por essa porta a fim de:
Conhecer melhor, e mais profundamente, o conteúdo da fé que professa; Deixar-se interpelar pela fé que dá vigor e sentido à vida; Se preparar, devidamente, para transmitir, por palavras e ações, o conteúdo da fé; Apresentar, com convicção e amor, as razões da própria esperança (1Pd 3,15), em um mundo marcado por uma profunda mudança de época.
Somos particularmente encorajados a não desanimar diante dos novos desafios. Por isso, vale a pena, no momento inicial do retiro, ouvir o que afirma o DAp, n. 44: “Vivemos uma mudança de época, e seu nível mais profundo é o cultural. Dissolve-se a concepção integral do ser humano, sua relação com o mundo e com Deus; ‘aqui está precisamente o grande erro das tendências dominantes do último sécu17
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lo... Quem exclui Deus de seu horizonte, falsifica o conceito da realidade e só pode terminar em caminhos equivocados e com receitas destrutivas’. Surge hoje, com grande força, uma sobrevalorização da subjetividade individual. Independentemente de sua forma, a liberdade e a dignidade da pessoa são reconhecidas. O individualismo enfraquece os vínculos comunitários e propõe uma radical transformação do tempo e do espaço, dando papel primordial à imaginação. Os fenômenos sociais, econômicos e tecnológicos estão na base da profunda vivência do tempo, o qual se concebe fixado no próprio presente, trazendo concepções de inconsistência e instabilidade. Deixa-se de lado a preocupação pelo bem comum para dar lugar à realização imediata dos desejos dos indivíduos, à criação de novos e muitas vezes arbitrários direitos individuais, aos problemas da sexualidade, da família, das enfermidades e da morte”.
Neste contexto desafiador, a Palavra de Deus, contida nas Sagradas Escrituras, torna-se o critério orientador da nossa vida sacerdotal e religiosa, porque fundamenta a formação permanente dos que, na Igreja, assumiram e possuem a primordial missão evangelizadora. A experiência da fé bíblica, que se transmitiu de geração em geração aos filhos de Israel, passando pelos patriarcas, por Moisés, pelos sábios e profetas, culminando no Mistério da Encarnação do Verbo Divino no seio de Maria Virgem, manifesta-se como obediência, paciência, esperança e recomeço, porque Deus não é só o criador, mas é, acima de tudo, uma presença providente e salvífica na história da humanidade. Por detrás de cada texto bíblico existe uma situação sócio-pastoral, com suas exigências e características. Não se narra um episódio só por narrar e não se promulga uma lei só por promulgar, mas cada autor sagrado quis transmitir, numa situação concreta da sua vida e da existência do seu povo, uma intenção antropológica (Quem é o ser humano?) e teológica (Quem é Deus). Admitir este contexto vital torna-se critério para se buscar, na leitura e na reflexão, a compreensão e, na interpretação de cada texto, a possibilidade de atualização da mensagem. 18
Palavra de Deus e Exercícios Espirituais
Que devo fazer nesse retiro?
Deixar-me conduzir pelos textos bíblicos que serão propostos, a fim de perceber, refletir, assimilar, compreender e transmitir, pelo testemunho coerente de vida, o verdadeiro significado e as justas atribuições da fé. Experimentar a fé como presença e ação de Deus que se revelou na História da Salvação, por fatos e palavras conexos entre si (DV, n. 2) e agiu através de mediadores, aos quais vocacionou e comissionou, até que chegasse, na plenitude dos tempos, o momento da plena revelação e mediação em seu Unigênito Filho, Jesus Cristo. Interagir com os irmãos, respeitando e promovendo um clima de adequado silêncio. Assim, a partir da partilha do conteúdo, pautado em alguns textos bíblicos e na voz do Magistério, desejamos que o retiro proporcione uma renovada experiência da Leitura Orante da Bíblia, capaz de trazer, para o cotidiano, a continuidade das motivações que poderão ser renovadas ao longo desse tempo favorável. Comecemos, então, deixando que três palavras provocadoras, provenientes dos Salmos, nos interpelem: Sl 18,29 – Te Deum real: “Pois tu, Senhor, trarás luz para a minha lâmpada; meu Deus iluminará minhas trevas.” Sl 119,105 – Elogio à Torah “Lâmpada para meus pés é tua palavra, e uma luz para meus caminhos.”
Sl 132,13-17 – Na comemoração do translado da Arca “Pois o Senhor preferiu estar em Sião, desejou-a por sua habitação. Esta será meu repouso de geração em geração, aqui habitarei porque a desejei. Sua provisão abençoarei, seus pobres saciarei de pão. Seus sacerdotes revestirei de salvação, seus justos, certamente, se regozijarão. 19
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Lá farei germinar uma potência para Davi, prepararei uma lâmpada para meu ungido.”
Diante de cada um(a), desejo expressar, com simplicidade, um pedido: espero encontrar e receber a sua fraterna condescendência. Num retiro, assim aprendemos, o pregador não é a pessoa central. O protagonismo deve ser deixado ao Digitus Dei, que agiu e age em todas as coisas que foram feitas e subsistem em razão da obra prima de toda a criação: a Encarnação do Verbo no seio da Bem-Aventurada Virgem Maria para a glória de Deus Pai. Portanto, o êxito do retiro dependerá do espaço e da abertura que cada um(a) estiver disposto a dar ao Espírito Santo. Que Ele se digne agitar, com força, nossa consciência, como fez com as águas primordiais (Gn 1,1), se digne iluminar nossa vida e aquecer o nosso coração, como fez com aqueles que vocacionou e comissionou na História da salvação para recapitular e plenificar todas as coisas em Cristo Jesus (Ef 1,3-10; Cl 1,15-20). Renovo para todos(as) os votos de um bom e santo retiro!
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1. O tempo e o sabor do silêncio
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nquanto definição, o tempo é um problema não resolvido; mas, enquanto utilização, ele é uma condição que nunca nos parece suficiente. Por isso, é comum, entre nós, a afirmação: “não tenho tempo”. Contudo, facilmente, percebemos que não empregamos bem o tempo, para não dizer o quanto o desperdiçamos; e o pior: o tempo, nem sempre, é usado com fins sublimes e edificantes, pois comumente prevalecerem as nossas opções indevidas. O prazer das compensações ocupa-nos muito mais o tempo do que os ofícios aos quais estamos vinculados por vocação e missão. Em não raros casos, nossas tarefas são realizadas mais por obrigação, ou pela força do hábito, do que pela firme convicção da ação ministerial. No fim, fica uma sensação de fastio, ou insatisfação, que atormenta nossa consciência, porque o passado não existe mais, o futuro ainda não existe e o presente é um instante fugaz que se nos escapa. Este, porém, é o tempo que deve ser determinante na nossa vida ministerial e religiosa, no qual existimos e agimos para testemunhar a nossa consagração batismal. Nos estudos filosófico-teológicos, aprendemos diferentes concepções sobre o tempo. Para o mundo greco-romano, o tempo é cíclico, representado por uma cobra que morde a própria cauda. Esta é a imagem do chronos que aprisiona a realidade e é usada para fundamentar o eterno retorno de tudo o que existe. Parece que Qohelet foi influenciado por essa concepção: O que foi, será, o que se fez, se tornará a fazer: nada há de novo debaixo do sol! (Ecl 1,9); ou como afirma Pr 26,11: Como o cão que volta ao seu vômito é o insensato que repete a sua tolice. E Pedro acrescenta: A porca lavada voltou a rolar na lama (2Pd 2,22). 21
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O tempo, do qual dispomos, pode ser caracterizado como “breve” ou “longo”, mas será sempre suficiente para “conceber” e “dar à luz” o que nele está gerado por Deus, por nós mesmos, ou pelo inimigo, interessado em nos desvirtuar do bem, da justiça e da verdade. Nesta dinâmica temporal, a morte é o único acontecimento que não se repete no chronos de uma pessoa e que, certamente, não precisa ser apressada (cf. Ecl 7,18), pois cada um deve morrer no seu tempo e, segundo o autor da homilia aos hebreus, se morre uma única vez (cf. Hb 9,27). Apesar disso, deveríamos fazer morrer em nós tudo o que tem sido ocasião de morte em nossa vida e tem eliminado as oportunidades que o kairós a todo instante nos oferece. Além dessa visão, existem outras formas de percepção e compreensão bíblicas do tempo. A primeira percebe o tempo como uma linha reta que possui um começo e um fim. Sobre essa linha transcorrem os fatos em sucessão. Não há, no antigo Israel, uma ideia abstrata do tempo, mas concreta, pois cada fato está ligado ao seu tempo e cada tempo está grávido do seu fato. Por isso, o célebre poema de Qohelet (Ecl 3,1-8), contendo catorze pares em oposição, está ritmado por um rígido esquema que ilustra o sentido concreto da existência, porque está pautado por um tempo determinado segundo um propósito (v. 1): Para cada coisa existe o seu tempo e um tempo para todo propósito sob o céu. 2 Tempo para nascer e tempo para morrer; tempo para plantar e tempo para arrancar o que se plantou; 3 Tempo para matar e tempo para curar; tempo para demolir e tempo para construir; 4 Tempo para chorar e tempo para rir; tempo para gemer e tempo para dançar; 5 Tempo para atirar pedras e tempo para ajuntar pedras; tempo para abraçar e tempo para se afastar; 6 Tempo para buscar e tempo para perder; tempo para guardar e tempo para por para fora; 1
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