Trajetória histórico-social da Engenharia Brasileira Tomo II

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Trajetรณria histรณrico-social da Engenharia Brasileira Tomo II


Copyright© Edson Monteiro, 2019 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem a autorização prévia por escrito do autor, poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados.

Editor João Baptista Pinto

R evisão Pedro Paulo Duran

Projeto Gráfico e capa Rian Narcizo Mariano

Nota Introdutória ao Tomo II O Autor

Prefácio (do Tomo I, geral) Francis Bogossian

Ilustrações Conforme créditos

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ M775t Monteiro, Edson, 1940Trajetória histórico-social da engenharia brasileira : tomo II : do quase final do século XIX ao final da segunda república (1930) / Edson Monteiro. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Letra Capital, 2019. 200 p. : il. ; 23 cm. Inclui bibliografia ISBN 9788577855865 1. Engenharia - Brasil - História. 2. Engenharia Brasileira - Final do Século XIX. I. Título. 18-48458 CDD: 624.0981 CDU: 624(81)(091) Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária CRB-7/6439

E-mail do autor profedsonmonteiro@gmail.com Letra Capital Editora Tel: (21) 2224-7071 / 2215-3781 vendas@letracapital.com.br


Edson Monteiro

Trajetória histórico-social da Engenharia Brasileira A essencialidade dessa atividade profissional no progresso ordeiro da Terra Brasilis Tomo II Do quase-final do Século XIX ao final da Segunda República



ร memรณria de DANTON VOLTAIRE DE SOUZA, engenheiro e professor.



Agradeço ao Clube de Engenharia pelo prestígio dedicado à obra.

Meu agradecimento aos colegas que se cotizaram para tornar possível a publicação deste Tomo II do trabalho. A eles minha eterna gratidão.



Prefácio do Tomo I Francis Bogossian*

A engenharia brasileira viveu fases extremamente difíceis nos últimos cinquenta anos. Disso sou testemunha viva, já que militei efetivamente durante todo esse período, simultaneamente no ensino, como professor e pró-reitor em universidade, como também na prática da engenharia, inicialmente como funcionário da iniciativa privada e, a partir de 1972, como empresário. Considero-me um dos poucos sobreviventes dos diversos terremotos que sacudiram a economia brasileira e sacrificaram nossa engenharia neste meio século. Acontece que recentemente, após 2015, a nação como um todo, especialmente seus engenheiros, foram surpreendidos por uma crise sem precedentes. Além da carência de projetos e de obras, a falta de ética e a corrupção sistemática põem em cheque o mercado da engenharia de obras públicas no Brasil. Neste outono de 2017 em que me dedico à leitura e a consequentes reflexões sobre esta valiosa obra de Edson Monteiro que, no Tomo I, aborda o desempenho da engenharia no Brasil do século XVI até o ano de 1880, constato que as desesperanças da classe se potencializaram de forma assustadora. O fim do túnel está totalmente escuro e, pior, sua escavação foi interrompida. Há, portanto, que se louvar o espírito de preservação e o pujante respeito do caríssimo professor Edson pela cultura da engenharia nacional, quando analisa, sob o ponto de vista sociológico, a história desta atividade-mãe impulsionadora dos destinos da nação. Na leitura do texto, bem como na visualização das didáticas ilustrações, fica evidente a paixão do autor pelo tema e 9


Prefácio

seu amor incondicional pela sofrida Terra Brasilis. É também delicioso acompanhar a sua trajetória pelos meandros da vasta documentação histórica e poder absorver tantas sábias análises sobre as muitas dificuldades para se construir do zero um país de dimensões continentais. A viagem pela engenharia brasileira através do tempo, do Brasil colônia até o final do século XIX, nove anos antes de ser proclamada a república, apresenta e analisa o que há disponível sobre a engenharia desde o início da colonização. Destaca a importância da engenharia com a presença marcante da família real portuguesa no país após 1808 e navega quase seis décadas pelo período pós-independência. Trata-se de brilhante perspectiva histórica que certamente despertará o interesse não apenas dos engenheiros, mas de todos os que sabem o valor do passado como semente do porvir. *

Professor, engenheiro civil, fundador da empresa Geomecânica. Integrou a pró-reitoria da Universidade Veiga de Almeida, e presidiu a Associação das Empresas de Engenharia do Rio de Janeiro e o Clube de Engenharia. É membro das Academias Nacional de Educação e Pan-Americana de Engenharia. É presidente da Academia Nacional de Engenharia e primeiro vice-presidente do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio de Janeiro.

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Introdução (pelo autor)

Prezado leitor, prezada leitora, A leitura do Tomo I deste ensaio permitiu-me demonstrar que o Brasil conviveu com dois paradigmas que influenciaram o exercício de sua engenharia, ao longo de três séculos. O primeiro paradigma, na fase inicial da colônia, foi a consciência portuguesa de que teria que privilegiar a defesa de seu imenso território, uma extensa costa atlântica disponibilizada aos conquistadores então contemporâneos. Não havia engenharia preparada na colônia. Era uma atividade especializada no estrangeiro. O segundo paradigma decorreu da vinda de D. João VI, fugido é verdade, mas um realizador que anteviu a necessidadae de prover a colônia de condições mínimas de sobrevivência para a Corte, dando a ela uma fisionomia então inédita — no contexto dos esforços portugueses — nas preocupações com as artes e com as ciências. Agora, nesse Tomo II do ensaio, destaco a visão do império da nova nação, o Brasil, ao lutar pela soberania do país e nele implantar, principalmente com o imperador Pedro II, a consciênca de que progredir era uma ação fortemente dependente do desenvolvimento científico. Foi o terceiro paradigma e o verdadeiro início da engenharia brasileira. Todos verão neste Tomo II a transformação da forma de condução do Brasil a partir da abolição da escravatura e da queda do império. Na medida do possível, tracei um caminho no qual os fatos políticos e econômicos foram paralelizados com o crescimento das atividades de engenharia, cujos agentes foram gente da terra. 11


Introdução

Ocorre que influências internas e externas, principalmente a grande velocidade dessas últimas, evidenciaram um país injusto com as suas grandes massas, onde a distância entre ricos e pobres manteve-se e, em certo sentido, ampliou-se. Era como se as medidas que envolviam a engenharia e seus sucedâneos profissionais, nada trouxessem de efeitos benéficos para a maioria dos integrantes da sociedade. Não era isto um problema de engenharia. Era, sim, um problema de Estado que a impedia de ser mais distributiva nos seus resultados. Faltava uma visão de mais equilíbrio no contexto social, essência da busca de soberania para qualquer povo. Este Tomo II se encerra numa quarta mudança paradigmática: a tentativa de implantação de uma sociodemocracia, um modelo político capaz de assistir todas as camadas da sociedade, propósito do Tomo III deste ensaio, onde o desenvolvimento e o progresso deixarão a pecha de itens exclusivos do interesse das oligarquias para se tornarem, também, algo do interesse dos trabalhadores. Renovo meu agradecimento pela sua presença nesta leitura, o que muito me honra, Sinceramente.

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Sumário

Capítulo 1 Retomando o ensaio histórico-social, destacando agora o contexto econômico dos anos finais do século XIX e a presença ativa dos engenheiros nas questões nacionais ............15 Capítulo 2 A Engenharia Brasileira na transição Império-República................35 Capítulo 3 Enfoques puntuais, ainda do Século XIX para o Brasil e sua engenharia...........................................................................................65 Capítulo 4 Registros da Primeira Década do Século XX....................................94 Capítulo 5 A Engenharia Brasileira no complemento da segunda e quase início da terceira década do século XX...............................139 Capítulo 6 A Terceira Década do Século XX e a pré-alvorada dos novos tempos sociais no país e na sua engenharia....................157



C apítulo 1

Retomando o ensaio histórico-social, destacando agora o contexto econômico dos anos finais do século XIX e a presença ativa dos engenheiros nas questões nacionais

1.1 Introdução O leitor e a leitora retornam agora ao ensaio histórico-social sobre a trajetória da engenharia brasileira, já tendo lido o período que abrangeu desde a Colônia “Terra Brasilis” até quase ao final do século XIX, ocasião na qual emergiu o Governo Republicano Brasileiro. É possível que o caráter ensaístico atribuído ao trabalho — que deve primar pela análise sociocrítica isenta — não tenha evitado a revelação de certa tendência ideológica deste autor. Esclarecemos, por oportuno, que procuramos ter rigoroso cuidado em não trazer propositadamente nuances dessa tendência aos nossos comentários e avaliações. Mas, cabe ao leitor e à leitora esse julgamento. De nossa parte, nessa retomada do assunto-fim do ensaio, o agradecimento à sua companhia e as desculpas pela eventual ênfase a aspectos da história nacional brasileira que tenham denotado nossas preferências de ordem filosófica ou sociopolítica. Em certo trecho de nossa obra “O Sorriso da Razão - uma quase-elegia à verdade”1, no qual o prefaciador Leon Rousseau2 identificou uma espécie de terceiro livro na obra — “a ficção” 1 MONTEIRO, Edson: “O Sorriso da Razão”, Letra Capital Editora, Rio de Janeiro, (2004), p. 174-177. 2 Idem, p. 11-18

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Capítulo 1

— determinado narrador apresenta, por escrito, a diferentes destinatários, uma imagem do mundo verdadeiro dos seres humanos, iniciativa acompanhada de um convite para que cada um deles se dirija a um encontro, a fim de que revelem o que pensam do comportamento ético na realidade civilizatória. Esse episódio (a ficção) teria ocorrido, conforme o livro, em meados de 2001. Há no citado texto algo interessante para reflexão, principalmente ao considerarmos que nós, na condição de ensaísta, revelamos o nosso cuidado de não trazer ao presente ensaio influências ideológicas na apreciação sociocrítica a que nos propusemos. E como não há como ignorar o fato de que o narrador daquele mencionado texto é o próprio ensaísta daquela redação (narrador fictíco e escritor real do ensaio), não nos custa mencionar esse texto na íntegra, porque entendemos que a trajetória da engenharia brasileira, desde as mais tenras idades até os primeiros anos do século XXI — que agora atravessamos —, vem sendo fortemente marcada pela essência do que nele é considerado. Pedimos, assim, licença ao leitor e à leitora para reproduzir a íntegra do que foi dissertado por aquele virtual narrador aos seus destinatários. Após isso, retornaremos à engenharia brasileira a partir do final do século XIX. Vejamos o que foi dito pelo narrador a cada um deles: Prezado Amigo, Despreocupe-se em saber quem sou e de onde venho, pois eu me identificarei, suficentemente, mais adiante. Peço-lhe apenas que dê atenção ao relato que segue. Houve uma época na qual conviviam o rei, o clero e os camponeses. O clero manteve-se fechado, cuidando de preservar o seu poder e o seu conhecimento. O rei mantinha-se, materialmente, pelo produto do trabalho dos camponeses. Se lhe sobrasse algum recurso, lançava-se a novas conquistas, levando consigo o clero — sua proteção divina — e expandindo assim os seus domínios. Ganhava certas batalhas e perdia outras. Mas o clero ganhava sempre, desse lado ou do outro, e mantinha-se fechado na preservação de seu poder e conhecimento. 16


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De repente, nos rompantes oportunos da história, alguns sábios e espertos que viviam ao redor do rei sentiram-se incentivados a uma aventura, a da liberdade ensinada — ainda que bastante tempo depois — pelos elétrons de Rutherford. Procuraram furtar ao rei ou transacionar com ele certas vantagens em cada uma das facilidades que eles propiciavam ao soberano na exploração física a que expunham os camponeses. Eram, assim, fiéis aos ditames do deus Mercúrio (Hermes), uma divindade simultânea “do comércio” e “dos ladrões”. Em cada camponês, uma barriga. Por todo o campo daquele rei, muitas barrigas e muitas igrejas. Barrigas vazias e clero fechado em seu poder. Barrigas vazias e cabeças ocas. Dogmas e fome, ignorância e pestes. Fim do primeiro milênio... Houve um outro tempo em que os reis perceberam certo abalo nos seus poderes. Camponeses e comerciantes tornaram-se numerosos e ambiciosos. A violência e a barbárie assumiram dimensões incontroláveis. E o clero, que até então se mantinha fechado em seu poder, já não mais pôde segurar-se no seu claustro e veio a público condenar bruxos e bruxas, alguns notáveis por sua ciência e herança memorial, gênios do conhecimento, seres intuitivos e de grande inteligência, destituídos de qualquer sinal de preconceito. Impuros, ao ver do clero... E as fogueiras tornaram-se a imagem da purificação. E os homens quedaram-se diferentes, por não terem, alguns, o direito de defender-se das acusações levianas e criminosas dos donos da verdade que lhes impunham a mentira como princípio e, pior, em nome de Deus. E o clero conseguiu assim manter o seu poder e retornar ao fechamento que lhe garantira a primazia de deter o verdadeiro. E este, para sempre — pensava-se — não chegaria à mente do campo nem tampouco a do comércio. Esse tempo foi passando e as barrigas camponesas aumentando — em número, é claro! E a fome trouxe a tragédia da falta de braços. E um escritor notável, de imensa fé na ciência e de grande sensibilidade humana, escreveu-nos uma memorável história a que denominou “Germinal”, em 1885, mostrando-nos a fisionomia da gênese revolucionária de uma classe trabalhadora industrial espoliada pela insensatez da burguesia dominadora. Esse escritor foi Émile Zola (1840-1902), uma marca literária de decência ética que honrou o século XIX. Poucos leram Zola, àquela época e nos dias de hoje, infelizmente. Mas se muitos pudessem tê-lo feito (mal sabiam ler, os camponeses!), talvez 17


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Capítulo 1

tivessem sido evitadas as tragédias fratricidas que marcaram legítimas tentativas de liberdade dos seres excluídos ou aquelas outras interpostas pelos seus dominadores. O indiscutível é que, em ambas as situações, foi no seio dos excluídos que a morte resultou computada em maior número. Principalmente mulheres, crianças e jovens. De uma ilha do ocidente cujo império até hoje subsiste, partiram ideias notáveis de modelagem comercial e industrial que se transformaram em modelos econômicos. A grande base de todos eles é a submissão do trabalho ao capital. Por seus princípios, consolidando uma concepção antiga, “é pelo trabalho que se alcança o capital e, pelo capital, a liberdade”. Ledo engano que atravessa os tempos, pois como a remuneração do trabalho, historicamente falando, resulta sempre menor que a do capital, é matematicamente impossível alcançar este através daquele. A característica divergente dos dois exige que sejam mantidos afastados para garantia do equilíbrio do sistema de poder que depende dela. Somente nas concepções de “lucro-solidário”, base conceitual de sistemas justos de distribuição dos resultados da atividade humana, poderiam soçobrar os aspectos de poder feudal do soberano absoluto ou, mais recentemente, do poder do “grande capital”. Essas evidências, por mais dolorosas que tenham sido para com o povo, não impediram que o mundo das respectivas épocas fosse frio e desinteressado nos seus estudos. Poucos, bem poucos, preocuparam-se em desenvolver as ideias de um “lucro solidário”. Pelo contrário, mesmo dispondo de mensagens básicas essenciais a um novo caminho de convivência universal, supostos revolucionários entregaram-se a um tipo de engodo e dominação que acabou por abalar as teorias e as previsões daqueles que sofreram e morreram no propósito de dar ao homem a consciência de sua igualdade entre os mortais. Não uma igualdade paradisíaca — e tola — , mas a da oportunidade, a do direito de saber, a do direito de viver digna e racionalmente. Aqueles cruéis impostores traíram a consciência do social e contribuíram com a concepção de que o mundo é um canto fatalmente perdido — e em pecado —, cuja salvação e reencontro depende do lucro, como se este instrumento guardasse compromisso com a verdade e com os ditames humanitários, como se ele não fosse o verdadeiro agente da insensatez da ganância e o incentivador das discriminações de toda espécie. 18


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O clero, enquanto isto, permaneceu firme e foi conivente ou autor, com e de práticas de espoliação e fascismo explícito, mas com o tempo percebeu que o seu futuro exigia-lhe novos arrojos, que a salvação eterna — como promessa — já não resultava suficiente como atrativo para os fiéis, que o fechamento do seu poder nos templos e mosteiros teria que ser substituído por uma ida crescente às bolsas de valores e aos mundos dissidentes, que o seu conhecimento — mantido hermético por tantos séculos — já não lhe era exclusivo, e que embora a ignorância continuasse instaurada como estratégia de dominação, o rei da época — ainda que personificado num plebeu de qualquer república — já não mais ignorava as coisas. Pelo contrário, havia sido feito deus, o deusmercado, aquele deus fatal da nova teologia para quem as necessidades dos dominados impõe-lhes a submissão e garantem para ele o domínio por todos os séculos: o rei-deus do castelo planetário do neoliberalismo. Fim do segundo milênio...

Leitor e leitora, nós, daqui de nosso canto das escritas e leituras, pensamos, quantas vezes — e muitas — foi possível identificar no texto transcrito semelhanças com momentos da trajetória da engenharia brasileira que abordamos no Tomo I desse ensaio, embora — e desde já antecipamos — bem mais suaves que os da contemporaneidade do século XXI que ora vivemos. Seria deselegante forçar a cada um e a cada uma dos que nos leem, essas identificações. A reflexão que sugerimos — o máximo que nos concedemos de relativa intimidade — é algo que sinalizamos como instrumento útil à compreensão dos fatos ocorridos — aqui contados e analisados pela nossa subjetividade. Apenas como exemplo, bem consistente com as primeiras abordagens feitas no Tomo I, e sem o propósito de impor conclusões ao leitor e à leitora, lembremo-nos que Portugal tivera condições de dotar a Colônia de um saber científico coerente com aquele de além-mar, e por meio do mesmo instrumento, a Companhia de Jesus dos jesuítas. Ao contrário, deixou a Colônia, por mais de dois séculos, entregue às traças, no que tange ao cultural e científico. Foi preciso que a Corte corresse dos franceses no início do século XIX para que Portugal — que éramos todos nós, na época — entendesse o 19


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absurdo de apenas prover sua colônia com cuidados exclusivos de defesa territorial, para garantir-se dos resultados de sua prodigalidade de tesouros. Não é este um caso bem familiar — para os brasileiros — de parte do conteúdo das linhas e entrelinhas do texto recém-reproduzido? Sem dúvida, para este ensaísta, o colonialismo português — no afã de priorizar a propriedade territorial, bloqueou o desenvolvimento da Terra Brasilis por cerca de 200 anos — não incluído nessa contagem o incipiente século XVI —, deixando para o século XIX um ambiente mais propício a discussões e mudanças, a tentativas de influência sobre as decisões reais absolutistas e, quem sabe, ao surgimento de uma nação que sonhasse ser independente. Vejamos se o leitor e a leitora acabarão por concordar com o nosso pensar a respeito...

1.2 O novo episódio que trouxe uma euforia ao industrialismo e ensejou a expectativa de uma engenharia brasileira nacionalista e democrática Os que viveram no Brasil durante os últimos 50 anos do século XIX experimentaram uma alteração drástica nas relações entre o povo e os poderes. A engenharia essencialmente brasileira, ainda que discretamente, não ficou alheia a essa alteração. Pelo contrário, foi nesses anos finais de século que ela se robusteceu, consciente de seu papel excedente ao tecnológico estrito. Ela não podia ser apenas técnica. Ela precisava se envolver com os interesses maiores da Pátria. Transcender ao âmbito do conhecimento físico e matemático, sob pena de perder a oportunidade de contribuir com o desenvolvimento da sociedade e, a partir daí, tornar-se um agente do progresso que incluiria os conceitos humanos e sociais enraizados nos movimentos mundiais de libertação e verdadeira independência. Ora, o Brasil, como sabemos, atravessou quase noventa anos 20


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do século XIX amargando a mancha vergonhosa da escravidão perante o mundo chamado civilizado. Economicamente falando, o trabalho servil explícito fazia parte do modelo adotado no país. Contudo, moral e humanitariamente, ele representava um câncro, como ficou demonstrado no entusiasmado acolhimento da sociedade — cabendo-nos excetuar aqueles cujos lucros de seus negócios dependiam do modelo —, que prenunciava uma era nova e bem diferente, onde a Nação precisava desenvolver-se segundo parâmetros compatíveis com o que já se observava em outros cantos do mundo. O pensador brasileiro Caio Prado Júnior, em clássica obra3, enuncia a aparente falta de razão de Alberto Torres que, na condição de sociólogo, embora não apologista escravocrata, disse que “a escravidão foi uma das poucas coisas com visos de organização que este país jamais possuiu... Social e economicamente, a escravidão deu-nos, por longos anos, todo o esforço de toda a ordem que então possuímos, e fundou toda a produção material que ainda temos”4.

Na verdade, os interesses econômicos de uma minoria impunham o modelo. Alberto Torres, apenas sublinha esse indiscutível episódio histórico, deixando patente o reboliço que viria a ser provocado com a mudança de paradigma estabelecido pela abolição. A engenharia brasileira, agregada à simbologia do progresso que prenunciava novas relações entre as classes, não se colocou inerte ou desinteressada perante as discussões que levaram

Foto de Caio Prado Junior e de seu livro tradicional.

PRADO Júnior, Caio: “Formação do Brasil Contemporâneo”, Editora Brasiliense (1945), em licença para Folha de São Paulo (2000), p.354 4 Idem, p.386. 3

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Capítulo 1

à libertação formal da gente negra, naquele triunfal 13 de maio de 1888. Uma associação tão recente como o Clube de Engenharia não se eximiu de trazer ao conhecimento nacional e às autoridades do império, o seu posicionamento favorável à abolição da escravatura. Uma das primeiras lutas nas quais se envolveu como entidade brasileira cujo destino marcava-se pelo civismo foi esta, a da abolição, democraticamente, primando por sua sensibilidade de Alberto Torres justiça e racionalidade, deixando patente o interesse de se fazer ouvir e de ser respeitada nos atos e fatos de importância para o povo miscigenado gerado no país. A engenharia fazia-se respeitar como uma atividade profissional comprometida com o nacionalismo, segura de que somente pela prevalência de tal propósito, chegaria a influir positivamente nos destinos da grande terra, numa luta permanente — repetimos — através dos ditames da democracia — como instrumento pétreo — em prol da verdadeira liberdade do povo e da soberania nacional. No curso do texto demonstraremos — com fatos — essa postura dos engenheiros brasileiros, mormente daqueles que gravitavam no entorno do Clube de Engenharia idealizado por Conrado Jacob de Niemeyer. Por ora, concentremo-nos nos episódios imediatamente decorrentes do paradigma da extinção da escravidão. É, mais uma vez, a nossa apelação aos registros dos fatos, a fim de que o contexto apareça claramente ao leitor e à leitora, secundado pela respectiva crítica. Vejamos: (a) com o advento da Abolição, o fator de produção humano — isto é, a mão de obra antes escrava — transformou-se em massa assalariada, contada aos milhares; (b) os ex-proprietários dos escravos demandaram, 22


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consequentemente, amparo — por via de créditos — o que levou o governo imperial a uma política de liberação facilitada de recursos e, por consequência, ao aumento do meio circulante; (c) a enorme safra cafeeira verificada no biênio 18881889 favoreceu essa política, incentivando o crescimento dos negócios, ao que se somou também o afluxo de capitais do exterior5, chegados aos solicitantes sob a forma de empréstimos governamentais (títulos da dívida brasileira colocados no exterior, mormente em Londres); (d) o clima econômico favorável trouxe como resultado — na dinâmica dos fatos — o surgimento de muitas empresas comerciais e, também, industriais, caracterizando uma espécie metafórica de eflorescência na economia brasileira — uma quase-emancipação —, atribuída principalmente à supressão do cativeiro servil, ao ânimo do povo já não envergonhado com aquela antiga mancha e ao restabelecimento da confiança por parte dos detentores de capitais até então retraídos6. (e) a magnitude dos citados capitais adentrados no Brasil pode ser avaliada numa simples comparação: em 1888, os empréstimos alcançaram 6.297.300 libras esterlinas, ao passo que em 1889, 19.837.000 libras esterlinas, conforme o “Retrospecto Comercial do Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 1893, p. 31”; (f) entre 13 de maio de 1888 e 15 de novembro de 1889 (um ano e meio) foram criadas Companhias que somavam um capital geral de 402.610 contos, enquanto que as empresas criadas nos 64 anos anteriores totalizavam 410.879 contos, fato revelado por Rui Barbosa na condição de Ministro da Fazenda do Governo Provisório do Brasil, em Relatório de janeiro de 1891, p. 102-103; (g) a verdade é que o entusiasmo que se apossara do país afetou o então relativo conservadorismo do governo imperial, fazendo com que as restrições que ele impunha a um desenfreado crescimento se fragilizassem, o que se consolidou em definitivo LUZ, Nícia Vilela: “A Luta pela Industrialização do Brasil”, Editora Alfa-Omega, São Paulo, (1978), p. 104. 6 Ibidem 5

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Capítulo 1

às vésperas do episódio da Proclamação da República. Esta foi, de fato, uma alteração econômica paradigmática ampla, provocada fortemente — se não preponderantemente — pela “abolição”. Não é fantasioso encarar o episódio como um fortalecedor da confiança nacional, não importando aqui considerarmos o seu mérito. Naquela altura do contexto temporal Rui Barbosa, Ministro da Fazenda já havia um forte sentimento nativista do Governo Provisório 1ª República não circunscrito à gente natural dos séculos XVII e XVIII. Já existia — e tinha a oportunidade de atuar mais efetivamente nos caminhos do país — uma gente brasileira desejosa de mudanças, não apenas no regulamentar da sociedade, mas na participação dos resultados da atividade econômica com nuances de relativa democracia. A abolição fora um fato transformador alimentado durante, pelo menos, meio século, por movimentos de base moral, de base social e técnico-econômicos. Definitivamente, traduziu-se como um “novo abrir de janelas” disposto ao futuro nacional, particularmente aos defensores do modelo industrialista.

1.3 O advento da República no rastro da Abolição da Escravatura Em 17 de janeiro de 1890 — já proclamada a República desde 15 de novembro de 1889 — o Decreto nº 164 outorgou plena liberdade às sociedades anônimas, fato econômico relevante e simultâneo a uma vertiginosa emissão de moeda; (a) o resultado veio rápido: entre 15 de novembro de 1889 e 20 de outubro de 1890, segundo o Ministro da Fazenda de então, Barão de Lucena, foram criadas sociedades anônimas num alcance de capital de quase 1 milhão e 170 mil contos, 24


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fantasticamente superior aos 410.879 contos do período pré-República (conforme item “f” do subtítulo 1.2)7; (b) é a essa realidade especulativa que a história denomina encilhamento8, numa alusão metafórica aos últimos preparativos feitos sobre os animais dos esportes equestres, de fato uma euforia inflacionária que fazia surgirem companhias insustentáveis, salvo se recebessem do governo o apoio sem riscos, caracterizado por subvenções, concessões e outros privilégios; (c) o apoio do governo era franco, sempre inclinado ao favorecimento — Henrique Pereira de Lucena, o Barão de Lucena. pretexto, de fato — pelo desenvolvimento e pelo progresso do país; (d) é que havia muito engano e muita ficção nos negócios favorecidos pelo governo, aí incluídas empresas industriais, de navegação, de colonização e de exploração agrícola, tudo deixando na berlinda a industrialização, paginada como o caminho do progresso que livraria o país do acanhamento e do atraso, somente ela capaz de nivelar o Brasil com as nações civilizadas9 ; (e) bem oportuno e completo é o trabalho do Visconde Taunay, publicado em 1923, sobre o encilhamento, onde o autor descreve ricamente o que foi tal episódio, seus desdobramentos junto aos eufóricos bancos de emissão e a pecha de progressista exclusivo ao fenômeno da industrialização10. Os destaques acima nos revelam, resumidamente, os efeitos imediatos de uma transformação sócio-moral-econômica — a abolição dos escravos — sobre o povo, sobre os negócios e sobre RIBEIRO DE ANDRADE, Antonio Carlos: “Bancos de Emissão do Brasil”, RJ, (1923), p. 245-246. LEVY, Maria Barbara - in “O Encilhamento”, Economia Brasileira: Uma visão histórica”, Editora Campus, RJ, (1980), sob Coordenação de NEUHAUS, Paulo, ISBN 85-7001-003-6. 9 LUZ, Nícia Vilela: obra já citada (ref. 5), p. 106. 10 TAUNAY, Visconde de: “O Encilhamento”, RJ, 2ª ed., (1923), p.5. 7

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Capítulo 1

o governo. Neste último caso, seguramente o mais acentuado, o país passou pouco depois ao regime republicano, em meio a uma recente euforia de crescimento e prosperidade aparente, pois o lastro dos investimentos era enganoso, porque decorria fortemente de emissões de moeda.

Ainda que as indústrias novas e antigas reformadas se justificassem como empreendimentos progressistas, os dados básicos referentes ao consumo interno — que balizam as projeções de produção — e os tempos exigidos às implementações físicas — equipamentos, instalações, energia e construções — estavam pouco levados em consideração, do que resultou a convicção de que se vivia uma falsa riqueza; a euforia de dinheiro fácil sem competente lastro e sem análise conveniente e realista de natureza mercadológica teria que resultar em crise. Os acionistas das empresas não se animavam às chamadas de aumento de capital, preferindo perder o que já haviam empregado a ter que acrescentar novas somas... Abruptamente, conquanto lógica, ressoava uma questão na cabeça daqueles que tomados pela euforia do fim da escravidão se perguntavam, um pouco tardiamente, 26


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