Manaus de dois rios, gentes e matas: Literatura e geografia dos sentimentos

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Francisca de Lourdes Souza Louro José Aldemir de Oliveira

MANAUS DE DOIS RIOS, GENTES E MATAS: literatura e geografia dos sentimentos


Conselho Editorial Série Letra Capital Acadêmica Beatriz Anselmo Olinto (Unicentro-PR) Carlos Roberto dos Anjos Candeiro (UFTM) Claudio Cezar Henriques (UERJ) João Medeiros Filho (UCL) Leonardo Santana da Silva (UFRJ) Luciana Marino do Nascimento (UFRJ) Maria Luiza Bustamante Pereira de Sá (UERJ) Michela Rosa di Candia (UFRJ) Olavo Luppi Silva (UFABC) Orlando Alves dos Santos Junior (UFRJ) Pierre Alves Costa (Unicentro-PR) Rafael Soares Gonçalves (PUC-RIO) Robert Segal (UFRJ) Roberto Acízelo Quelhas de Souza (UERJ) Sandro Ornellas (UFBA) Sergio Azevedo (UENF) Sérgio Tadeu Gonçalves Muniz (UTFPR)


Agradeço aos professores doutores Marilene Corrêa da Silva Freitas (UFAM) e Antônio Carlos Magalhães Guedelha (UFAM), por definirem com mais clareza os rumos da minha pesquisa, contribuindo, assim, na elaboração da tese de pós-doutorado que originou o primeiro capítulo deste livro. Com gratidão e amizade sempre renovadas, ao professor José Aldemir de Oliveira, que me orientou no pós-doutorado, com apoio lúcido e sempre generoso. Ao caríssimo professor Marcos Frederico Krüger Aleixo pelas leituras iniciais do texto. À professora Rita Barbosa de Oliveira pela nossa amizade, desde o Curso de Letras – Língua e Literatura Portuguesa na Universidade Federal do Amazonas, que ao apresentar, em sala de aula, uma leitura e interpretação pontual do romance Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano. Nunca imaginei que um texto literário pudesse oferecer tantas e diversas possibilidades interpretativas e, a partir daí tudo foi clareando em minhas leituras. O papel da professora Rita Barbosa de Oliveira foi como o de Platão, ela abriu a caverna, onde eu estava escondida e me pôs diante da luz. É hora de dizer obrigada. Ao ilustre professor Mestre José Benedito dos Santos pela paciência de reler o texto e pontuar as verdades da língua portuguesa. Aos meus filhos e netos, pelas minhas constantes ausências do convívio familiar. Francisca de Lourdes Souza Louro


Copyright © Francisca de Lourdes Souza Louro e José Aldemir de Oliveira, 2019 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida por meio impresso ou eletrônico, sem a autorização prévia por escrito da Editora/Autor.

Editor: João Baptista Pinto

Capa: Otoni Mesquita

Editoração: Luiz Guimarães

Revisão: Dos Autores

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

M235 Manaus de dois rios, gentes e matas: literatura e geografia dos sentimentos / organização Francisca de Lourdes Souza Louro, José Aldemir de Oliveira. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Letra Capital, 2019. 120 p. ; 15,5x23 cm.

Inclui bibliografia ISBN 978-85-7785-660-2

1. Hatoum, Milton, 1952- - Crítica e interpretação. 2. Manaus (AM) - História - Ficção. 3. Manaus (AM) - Condições sociais - Ficção. 4. Literatura comparada. I. Louro, Francisca de Lourdes Souza. II. Oliveira, José Aldemir de. 19-56499 CDD: 809.93598113 CDU: 82.09(811.3) Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária CRB-7/6439

Letra Capital Editora Telefone (21) 22153781 / 35532236 www. letracapital.com.br


Sumário Prefácio............................................................................................... 7 Apresentação ................................................................................... 11 Capítulo I - Geografando a cidade de Manaus em três romances de Milton Hatoum ............................................... 13 Francisca de Lourdes Souza Louro

1.1 Um lugar possível chamado Manaus............................... 15

1.2 o (re)começo de uma cidade............................................ 18

1.3 Manaus: trágico esplendor urbano.................................. 28

1.4 Cidade flutuante: contida e banida de Manaus ............. 30

1.5 A riqueza abortada para a minoria................................. 34

1.6 A cartografia da memória em Dois Irmãos...................... 41

1.7 O cotidiano possível e o mundo vivido........................... 53

1.8 A euforia que chega ao Brasil profundo......................... 59

1.9 Tardes cinzas de um certo norte..................................... 62

1.10 “A Ilusão do Fausto” e o novo mito do crescimento..... 67

1.11 As sementes da ilusão..................................................... 71

Capítulo II - A literatura como geografia de uma cidade: Manaus.................................................................................... 88 José Aldemir de Oliveira

1. Do forte à cidade................................................................. 92

2. A cidade da borracha......................................................... 92

3. A divina decadência............................................................ 96

4. Manaus: a cidade da Zona Franca contradições e possibilidades .................................................................... 106

À guisa de conclusão.............................................................114



P r e fá c i o1

Geografia e Literatura: sentimentos e conhecimento em conexão Marilene Corrêa da Silva Freitas

O

texto envolve níveis distintos de literariedade como fenômenos da escrita e da leitura postas em conexão com o discurso científico da geografia e o discurso ficcional da literatura sobre a cidade, sobre o espaço vivido (real e imaginário). A leitura do trabalho supõe que o texto lida com padrões de imaginação diferentes, a científica e a artística, mas ambas, provenientes do pensamento social e, portanto, perfeitamente compatíveis com as pesquisas do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura da Amazônia (PPGSCA). Ambas, a imaginação artística e a imaginação científica são submetidas ao exame também envoltas no debate teórico da fenomenologia da memória, sobre a função alucinatória da imaginação, sobre a fragilidade, descrédito e perda de confiança na memória, e do debate de seu uso na reconstrução histórica. Paul Ricoeur lembra Michelet no qual “a ressurreição do passado tende a se revestir ela também de formas quase alucinatórias. A escritura da história partilha de certo modo as aventuras de pôr imagens das lembranças sob a égide da função ostensiva da imaginação” (p. 66). Outro debate que o texto em exame provoca pode ser resumido nas questões de pesquisa que orienta Paul Ricoeur, sobre o leque de atitudes de um leitor diante de um texto: o que é compreender um discurso, quando tal discurso é um texto ou uma obra literária? Como deciframos o discurso escrito? A dialética 1 O presente texto resulta da apreciação realizada pela professora doutora Marilene Corrêa da Silva Freitas na apresentação final do trabalho de pós-doutorado em dezembro de 2017, no Programa de Pós-graduação Sociedade e Cultura da Universidade Federal do Amazonas.

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Prefácio

da explicação e da compreensão apresenta-se a Ricoeur como a fonte de sua teoria da interpretação. A análise da escrita é a contrapartida do texto enquanto obra do discurso. Ler é contrapartida do ato de escrever que constitui a dimensão da dialética do evento e da significação com a que lhe é correlata, a dialética entre compreensão e significação. Assim, em Ricoeur (p. 102), pode-se dizer que a compreensão é para leitura, o que o evento do discurso é para a enunciação do discurso, e que a explicação é para a leitura o que a autonomia verbal e textual é para o sentido objetivo do discurso. Entendemos que estas questões de pesquisa orientaram também, discretamente, o texto em exame, ao expor aproximações e distanciamentos em padrões de discursos distintos, no caso o literário e o científico. Marco inicial do texto é a pluralidade de escolhas praticadas pela autora, os dilemas da crítica literária (o autor e a obra x escrita leitura) são apenas indicativos de como a literatura de ficção lida com o espaço e o tempo na construção literária interna e com a representação científica que produz a morfologia e o sentido da cidade. O espaço geografado é a cidade de Manaus lembrada pelo imaginário ficcional, no qual se desenvolve a performance das personagens dos romances Relato de um certo Oriente, Dois Irmãos e Cinzas do Norte, de Milton Hatoum. De imediato, emerge do texto o foco realizado sobre a atividade mimética que toma atividade científica como recurso ao pensamento literário; concorre com este foco a sugestão que as personagens empreendem um roteiro sentimental de Manaus que se apresenta, como auxiliar à compreensão do leitor da urbe imaginada literariamente, e produz a identificação do leitor pela narrativa ficcional da cidade construída com o recurso da narrativa científica. O texto mesmo aproxima a análise de um mergulho entre mimese e conceito, comparando pela escrita e a leitura duas expressões distintas de representação social e de registro da imaginação da memória: a científica e a artística. A descrição geográfica objetiva, a interpretação do constituído urbano, e a obra que dá contraponto ao texto é Manaus de 1920-1967: a cidade doce e dura em excesso (2003), de José Aldemir 8


Prefácio

de Oliveira, que, ao lado de outros autores, como Isabel Gil Paisagens e Ruínas (2009), A cidade das letras (2015), de Ángel Rama, compõem o quadro teórico que apoia o estudo. Ou seja, além do encontro entre a Geografia e a Literatura explícito no texto, a autora produz um encontro entre a imaginação científica e a imaginação artística no qual a cultura do registro privilegia, sublinho eu, a escrita e a leitura, como força condutora do artigo relacionada às escolhas da ação de geografar Manaus, mais do que os autores e as obras que, por certo, serviram ao estímulo inicial para este estudo. Há uma opção metodológica dessa abordagem característica: nesse espaço produzido pela narrativa romanesca, o ato de geografar é do leitor, é do sujeito que interpreta a obra e que se integra ao espaço geografado dos personagens da ficção, guiados pela construção da narrativa literária que, por sua vez, integra o discurso científico, nesta construção discursiva. O processo de trânsito interno entre explicação e compreensão, neste estudo, dá-se desde a escolha das obras de Milton Hatoum e de José Aldemir de Oliveira, marcadamente enfatizam este diálogo entre os diferentes discursos disciplinares, assim como as alusões ao tempo histórico da apresentação das obras, o tempo da memória das personagens, na observação de Manaus, que estão em conexão de sentido e integradas aos esforços da compreensão e da explicação com a interpretação. Por outro lado, as fases da construção, da decadência e da reconstrução histórica da cidade pela trama literária apresentam diferentes recursos à compreensão do leitor que, apoiado ou não na descrição científica realiza o processo interpretativo, para concretizar a sua apreensão do discurso. No entanto, a força interpretativa do texto e o ponto culminante da análise da escrita e da leitura é a parte que concerne às tardes cinzas de um certo Norte, a ilusão do fausto e o novo mito do crescimento, as sementes da ilusão, nos quais a autora privilegia mais a dimensão analítica das duas instâncias de apreensão da cidade, do cotidiano, das contradições sociais, dos dramas humanos, dos fracassos históricos, das relações de 9


Prefácio

poder político, patriarcais e patrimoniais, dos dilemas morais das tragédias públicas e íntimas do destino da cidade e dos homens representados na ficção (pela distopia) e no conceito (pela descrição estrutural e crítica e pela abordagem fenomênica do espaço contraditório da sociedade que se materializa na “cidade doce e dura em excesso”. Igualmente importante, mesmo que sugerido com menor ênfase, é o tratamento dado pela autora ao tempo da cidade ficcional, à reconstrução histórica que se realiza por meio da lembrança, da ação e dos sentimentos manifestos no drama romanesco. Mesmo que o tempo seja indicado na forma diferente, em que a cidade da ficção se apresenta e do roteiro empreendido pelas personagens, percebe-se o tangenciamento da temática em privilégio do foco adotado, o que não invalida de modo algum a escolha praticada, mas que sugere que o estudo e o aperfeiçoamento dos instrumentos analíticos utilizados não deram ainda um ponto final a este esforço. Marilene Corrêa da Silva Freitas Professora Doutora e Titular do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas

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Apresentação

O

primeiro capítulo do livro que ora se publica intitulado Geografando a cidade de Manaus em três romances de Milton Hatoum, de Francisca de Lourdes Souza Louro, tem como perspectiva o olhar geográfico a partir da Literatura, tendo como pano de fundo a cidade de Manaus, cartografada nos romances Relato de um certo Oriente, Dois Irmãos e Cinzas do Norte, do escritor Milton Hatoum. Para isso, a autora discorre sobre a cidade de Manaus como um lugar possível, para recomeçar a vida, especialmente, para os imigrantes. Entretanto, desvela que a cidade, após a estagnação econômica tornou-se um trágico esplendor urbano, mas também, denuncia que a Cidade flutuante foi contida e banida, além de evidenciar que a riqueza produzida pelo ciclo da borracha, desde a segunda metade do século XIX até a década de 40 do século XX, foi usufruída por uma minoria. A cartografia da memória, nos romances Relato de um certo Oriente, Dois Irmãos e Cinzas do Norte evidencia um cotidiano possível e o mundo vivido, a euforia que chega ao Brasil profundo, posteriormente, gerando as tardes cinzas de um certo Norte, por conta da ilusão do fausto e do novo mito do crescimento, ou seja, a implantação da Zona Franca de Manaus, em 1967, que passam a ser as novas sementes da ilusão. O segundo capítulo intitulado “A literatura como geografia de uma cidade: Manaus” escrito pelo professor e geógrafo José Aldemir de Oliveira que seria inicialmente apresentado como prefácio ao livro Manaus de dois rios, gentes e matas: literatura e geografia dos sentimentos, que traz os resultados do estágio de pós-doutorado por ele coordenado, e desenvolvido pela professora Francisca de Lourdes Souza Louro, em 2017, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas, por ser um texto que traça um panorana histórico e econômico da ascensão e decadência do ciclo gomífero até a implantação e desenvolvimento da Zona Franca, mostrando suas con11


Apresentação

tradições e possibilidades, transformou-se em mais um capítulo do livro que ora apresentamos. Assim sendo, os autores buscam “na realização textual a paisagem da cidade presente na memória e de fato, nos três romances de Hatoum, a Cidade Flutuante que reconfigura a Manaus revisitada nas leituras, constatadas pelas muitas inferências nominativas estilhaçadas, os lugares, os monumentos visualizados e (re)visitados, do esplendor às ruínas, apresentando, na decadência progressiva, a marca do capitalismo no processo de urbanização” da cidade de Manaus. Além da consistência do prefácio, prevalência da linguagem do geógrafo, pelas perspectivas engendradas pela crítica literária, eis que surge a genialidade do artista plástico Otoni Moreira de Mesquita, ao pensar a capa desse livro, a partir das temáticas desenvolvidas pelos autores, criando assim uma imagem da cidade em três perspectivas díspares: ao fundo observa-se a opulência da cúpula do Teatro Amazonas e da Torre da Igreja de São Sebastião, marcos arquitetônicos da fase áurea do ciclo da borracha. Ao lado, aparecem os prédios de apartamentos símbolo da modernidade manauara. Por fim, a terceira imagem sugere ser a Cidade Flutuante, em que algumas personagens hatounianas circulam com desenvoltura, com suas águas poluídas, tendo em seu entorno as palafitas, onde residem os deserdados do ciclo da borracha iniciado na Amazônia na metade do século XIX até a década de 1940 do século XX. Assim sendo, nesse livro escrito a quatro mãos, temos quatro diferentes olhares para Manaus: o olhar da socióloga, do geógrafo, o da crítica literária, e, por fim, o olhar da obra de arte (imagem da capa) engendrada por Otoni Moreira de Mesquita, que registra o apogeu e decadência econômica do ciclo da borracha em Manaus, a eterna Paris dos Trópicos. José Benedito dos Santos

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Ca pí t ulo I

Geografando a cidade de Manaus em três romances de Milton Hatoum Francisca de Lourdes Souza Louro

E

ste livro analisa as três primeiras obras do escritor brasileiro Milton Hatoum: Relato de um certo Oriente (1989), Dois Irmãos (2000) e Cinzas do Norte (2005). O percurso da cidade está alicerçado no livro Manaus de 1920 – 1967: a cidade doce e dura em excesso (OLIVEIRA, 2003), em que se visualiza a doçura e a dureza numa perspectiva dialética, em que se cotejará a construção “distópica” que os textos hatounianos oferecem, na qual o pano de fundo ou de frente é a cidade de Manaus. O texto ficcional dramatiza o momento a que faz referência e, a parte da história e da geografia, a ficção investe na desrealização, porém, com zelo ao ultrapassar os lugares sobre os quais as personagens vagueiam. O objetivo é contribuir e ampliar o conhecimento sobre a espacialidade produzida nos romances estudados e que poderá ser ampliada, em outras perspectivas, ainda pouco investigada. Esta obra dialoga com os artifícios da Literatura com a ciência da Geografia Humana que estuda a relação dos seres humanos e o ambiente em que vivem, já que a Literatura redesenha o espaço, o lugar, a cidade nos arquivos da memória para ficcionalizar o universo social dos personagens como se verifica na biblioteca imaginária do autor Milton Hatoum. Trata-se de um trabalho bibliográfico baseado em três romances do autor e nas discussões teóricas sobre a cidade na literatura, bem como sobre o diálogo entre a Literatura e a Geografia. O ponto de partida deste livro consistiu na discussão de Isabel Capaleoa Gil sobre a distopia na paisagem da modernidade, para observar no texto a cidade se destruindo, se construindo e se reconstruindo, a partir da dimensão do não acabado. A cidade nunca está pronta, é a paisagem em movimento que Milton Hatoum retoma como memória literária e, na Geografia, aparece como memória coletiva, afigurando-se como “projeção privilegiada de uma modernidade que se define pela desconstrução distópica, pela tensão 13


Francisca de Lourdes Souza Louro

dialética entre pulsão natural para a destruição, porém, sempre no impulso de renovar e preservar a cultura” (GIL, 2009, p. 247). Este livro nasceu de um projeto sonhado em 2006, quando o professor José Aldemir de Oliveira me perguntou se faria gosto estudar a geografia nos romances de Milton Hatoum, pois ele ouvia minhas conversas com a esposa dele, sobre Literatura. Fiquei surpresa, com o convite que eu jamais ousaria pensar em fazer. Do susto à conversa e à relação de livros para ler, foi rápido. A contrapartida foi mostrar o projeto aos alunos em sala de aula. Tremendo muito, consegui ir até o final, na minha apresentação, com direito a palmas. Porém, no outro dia fugi. Viajei para estudar na Universidade de Coimbra e de lá comuniquei ao ilustre professor José Aldemir de Oliveira a minha fuga. Após a conclusão do doutorado, retornei a Manaus, outra surpresa, a professora Rita Barbosa de Oliveira me convidou a fazer parte do Grupo de Pesquisas e Estudos das Literaturas de Língua Portuguesa (GEPELIP), sob sua coordenação e ligado à Universidade Federal do Amazonas. Quanto ao projeto com o professor José Aldemir de Oliveira ficou guardado na memória. Em 2016, vi a possibilidade de fazer sair do papel do passado, para o papel do presente, e ousei. Pedi à professora Rita Barbosa de Oliveira (mais uma vez em cena, agora, lembrando ao professor José Aldemir de Oliveira a possibilidade de retomar o projeto) intermediar sobre a ideia idealizada, mas não concretizada. O convite feito foi aceito. A surpresa foi minha, pois, o professor José Aldemir aceitou, e dessa conversa resultaram outras conversas, em dezoito meses de acertos e muitas idas e vindas à Universidade Federal do Amazonas, desenvolvi o projeto de pesquisa de pós-doutoramento sobre “A cidade na memória dos narradores de Milton Hatoum, nos romances Relato de um certo Oriente, Dois Irmãos e Cinzas do Norte”, assim, por meio da articulação da análise literária com a Geografia visitada nos painéis desenhados nos citados textos, o qual resultou no primeiro capítulo do livro que ora se publica intitulado Manaus de dois rios, gentes e matas: literatura e geografia dos sentimentos. Aprendi mais uma vez que se pode fazer ciência nesse campo minado de vidas e saberes, e foi a oportunidade que encontrei de desviar o foco de pesquisa, assustar-me com outros saberes, e comecei a passear na cidade do texto e encontrar os vestígios do “aqui onde estou foi e já não é mais”. O geógrafo José Aldemir de Oliveira apresentou-me outra faceta no texto e vivi o prazer que dá 14


Capítulo I - Geografando a cidade de Manaus em três romances de Milton Hatoum

sentido nas duas Ciências: Geografia e Literatura. Confesso que partilhamos do mesmo entusiasmo pela Literatura. Fui outra vez à sala de aula, na condição de aluna do professor José Aldemir de Oliveira. Ainda tremendo, fiz nova apresentação do livro Dois irmãos, foi mágico ser inserida nesse contexto estudando a geografia nos escritos literários. Fazer parte desse seleto mundo de pesquisa deu-me prazer e confiança. Então, o resultado obtido por esse projeto foi mérito de três pessoas. Reli infinidades de vezes os três romances de Milton Hatoum, pelo prazer de descobrir, identificar, analisar a geografia da cidade de Manaus desenhada por esse escritor. E pude entender que, em Hatoum, o espaço configura-se sempre como aprisionamento de seres enclausurados por uma lógica objetual aniquilante, respira-se a desconstrução da vida destruída em seus textos, e perguntava-me, como pode ser tão bonita a vida mostrada sob esse viés da dura/distópica cidade? Afirmo, a beleza está no sentido de dizer, de reviver o sonho do passado de olho no projeto de reconstruir o futuro, cabe a nós leitores, termos o desejo de realizar. “Manaus é a cidade doce e dura em excesso; portanto, devese considerar que a paisagem está para além da aparência e por isso sua discussão enquanto urbano tem de ser vista a partir do encadeamento das ações sociais que resultaram em espacialidades”, para usar os termos do geógrafo José Aldemir de Oliveira.

1.1 Um lugar possível chamado Manaus Em As cidades invisíveis de Ítalo Calvino, um livro bastante estudado por apresentar as suas cidades-memória, constata-se que a memória transparece nas referências de pessoas nos espaços, lugares, e a imagem dos lugares se fragmenta com as pessoas da época narrada. Diante das faces que a cidade de Manaus apresenta ao longo das narrativas, surgiu a ideia de estudar a cidade nos três romances acima citados de Milton Hatom, articulando duas áreas de conhecimento: Literatura e Geografia imbricadas no mesmo estudo de observação para validar o pensamento de “que há, sem dúvida, uma especificidade na paisagem urbana da cidade de Manaus que deve ser considerada”, como evidencia José Aldemir de Oliveira (2003, p. 35), que pode ser expressa no texto literário. A cidade destruída como Milton Hatoum acentua, em suas narrativas, apresenta a realidade sublinhada e repetida na imaginação do autor, tem como traço definidor a reconciliação com o passado grandioso que a cidade viveu, isto é, está nos traços marcantes do momento, em que a história 15


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