Conselho Editorial Série Letra Capital Acadêmica Beatriz Anselmo Olinto (Unicentro-PR) Carlos Roberto dos Anjos Candeiro (UFTM) João Medeiros Filho (UCL) Maria Luiza Bustamante Pereira de Sá (UERJ) Michela Rosa di Candia (UFRJ) Olavo Luppi Silva (USP) Orlando Alvez dos Santos Junior (UFRJ) Pierre Alves Costa (Unicentro-PR) Robert Lee Segal (UFRJ) Sandro Ornellas (UFBA) Sergio Azevedo (UENF) Sérgio Tadeu Gonçalves Muniz (UTFPR) William Batista (Bennet - RJ)
Luciana Marino do Nascimento Simone de Souza Lima Organizadoras
Caleidosc贸pios da Cultura Brasileira
Copyright © Luciana Marino do Nascimento Simone de Souza Lima (Orgs.), 2013 Esta obra não pode ser reproduzida total ou parcialmente sem a autorização por escrito do editor. Os textos são de inteira responsabilidade de seus autores.
Editor João Baptista Pinto
Capa Luiz Guimarães
Projeto Gráfico e Editoração Luiz Guimarães Revisão Dos Autores CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
C153 Caleidoscópios da cultura brasileira / organização Luciana Marino do Nascimento, Simone de Souza Lima. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Letra Capital, 2014. 168 p. : il. ; 15,5x23 cm. Inclui bibliografia ISBN 978-85-7785-256-7 1. Literatura brasileira - História e crítica. 2. Literatura e história. 3. Literatura e sociedade. I. Nascimento, Luciana Marino do, 1971-. II. Lima, Simone de Souza, 1953-.
14-10658 CDD: 869.909 CDU: 821.134.3(81).09 25/03/2014
31/03/2014
Letra Capital Editora Telefax: (21) 3553-2236/2215-3781 letracapital@letracapital.com.br
Apresentação
É
com grande alegria que entregamos à comunidade acadêmica e ao público, de modo geral, a publicação Caleidoscópios da Cultura Brasileira. Sabemos que a produção científica institucionalizada ganhou relevo nos últimos anos, caracterizando-se pela reflexão e questionamento permanente do conhecimento produzido na academia. A produção do conhecimento gerado nas Universidades, Institutos Federais e instituições de pesquisas é divulgado em diferentes canais, sejam eles livros ou periódicos, conforme o caso. Sem dúvida, a divulgação científica torna-se força motriz, impulsiona o desenvolvimento intelectual e, ao mesmo tempo, realimenta o círculo da geração dos saberes. Fruto da união de esforços de pesquisadores de Universidades das mais variadas regiões do país, este livro tem como eixo norteador os debates acerca do lugar da literatura na cultura brasileira, a partir dos mais diversos olhares.
Profa. Dra. Luciana Marino do Nascimento Profa. Dra. Simone de Souza Lima Organizadoras
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Prefácio
Eis uma bela obra que se oferece ao leitor.
Luciana Marino do Nascimento e Simone de Souza Lima organizam uma obra em que, precisamente, o trabalho do olhar está em foco. Um olhar atento e inquieto. Em termos mais específicos, trata-se de uma aventura do olhar, a partir das lentes da literatura, sobre a intrincada, descontínua e inusitada cultura brasileira. Aqui, a literatura converte-se em fonte documental da história e o literato, em testemunha ocular dos acontecimentos em tela. Não se trata, contudo, de um olhar contemplativo, mas, antes, perscrutador. E o caleidoscópio, longe de figurar como metáfora, constitui-se em um instigante procedimento analítico. Um gesto do pensamento, se se quiser. À moda da engenhosidade do artefato óptico que intitula o livro, o gesto em questão implica apropriar-se dos acontecimentos culturais como matéria em movimento, os quais, em determinada disposição a contrapelo das apreensões habituais que deles temos, vão resultando em imagens múltiplas e cambiantes. O princípio de ação é precisamente o da reflexão. Os raios de luz incidem sobre a matéria à deriva que, por sua vez, é refletida por espelhos, produzindo uma combinação infinita e vertiginosa de imagens jamais antes vistas. Daí que o efeito, para aquele que olha, é uma sucessão de deslocamentos que mais se parecem com as rotações incessantes do próprio mundo que habitamos. Nada permanece no mesmo lugar; tudo está a se mover o tempo todo; a surpresa e o insólito são as invariantes da cultura. O caleidoscópio torna-se verbo, pois. Eis, então, uma bela convocação que se oferece ao leitor. Prof. Dr. Julio Groppa Aquino Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo Janeiro/2014 7
Sumário
I - Leituras e jeitos do Brasil Movimentos de festa no espaço da cena do casamento da roça: um jogo de espetacularidade......... 13 Andréa Maria Favilla Lobo, Ana Paula Alab de Oliveira, Ariana Gomes Bezerra de Melo O legado tupi na flora e na fauna acreanas: contribuição para o ensino da língua portuguesa.............. 26 Jane de Castro Nogueira Povos da floresta do juruá: uma história de resistências e lutas............................................................ 38 Teresa Almeida Cruz Nalguma cenografia espiritual exata...: o encontro de Ika Muru Huni Kuin com Stéphane Mallarmé.............. 54 Maria Inês de Almeida O romance O Minossauro (1975) de Benedito Monteiro e a Ditadura Militar: fragmentação e montagem................ 63 Maria de Fatima do Nascimento A poesia dentro da vida: a reinvenção de si pela palavra Guarani.................................................... 76 Ana Lúcia Liberatto Tetamanzy, Carla Lucilene Uhlmann, Sofia Robin Ávila da Silva
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II - Leituras da Literatura A narrativa fragmentada em ‘Os Algozes do Sono’ de Fernando Cesário............................................................ 93 Maria José Ladeira Garcia O Brasil em transição sob o olhar múltiplo de Lima Barreto ................................................................. 102 Francis Paulina Lopes da Silva Ditadura e resistência: a poética de Thiago de Mello...... 118 Maysa Cristina Dourado Cartografias urbanas em mosaico na Amazônia.............. 128 Luciana Marino do Nascimento Amazônia misteriosa – cidade & monstruosidades.......... 140 Simone de Souza Lima O retrato de uma narrativa (re) produzida na voz de um narrador................................................................... 157 Maria Georgina dos Santos Pinho e Silva, Carla Monteiro de Souza
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Leituras e Jeitos do Brasil
Movimentos de festa no espaço da cena do casamento da roça: um jogo de espetacularidade Andréa Maria Favilla Lobo1 Ana Paula Alab de Oliveira2 Ariana Gomes Bezerra de Melo3
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ste texto apresenta algumas reflexões elaboradas a partir dos resultados de pesquisa realizada em 2012 com o apoio da Universidade Federal do Acre – UFAC. Trata-se de um estudo desenvolvido no campo das práticas culturais de comunidades que participavam da “quadrilha” como manifestação espetacular, ou seja, como prática interativa organizada e extracotidiana, tais experiências tornaram-se visíveis por meio das práticas culturais dos sujeitos sociais em suas manifestações populares. Serão discutidos no decorrer deste trabalho os aspectos fundamentais que nortearam nossas reflexões sobre o objeto investigado, isto é, a constituição do casamento da roça no interior das quadrilhas acrianas, tanto em sua dimensão espacial cênica, como na dimensão das práticas sociais espetaculares que definem a cena por meio do jogo entre os brincantes4.
Espaço de pesquisa, festa e comunhão O espaço social se configura como um cenário em que os sujeitos se movimentam e se organizam em função do outro, as trajetórias subjetivas são dependentes das interações sociais que Universidade Federal do Acre (UFAC) – Professora Adjunta do Curso de Licenciatura em Artes Cênicas: teatro. Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. 1
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Secretaria Estadual de Educação do Acre (SEE/AC) – Professora de Artes
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Universidade Federal do Acre (UFAC) – Bolsista PIBIC
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Brincantes é o nome dado a todos que integram a quadrilha. 13
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ocorrem nesse espaço. Grupos e situações surgem historicamente construindo saberes em suas histórias de vida. São várias as manifestações que se formam e transformam no seio desse movimento. Algumas manifestações culturais, como as quadrilhas, por exemplo, entram neste fluxo criativo. Compreender e refletir sobre esses movimentos que se manifestaram como expressões artísticas foi tarefa que exigiu olhares atentos, considerando os atravessamentos de impressões que afetaram a pesquisa e demandaram um exercício de leitura dessas práticas culturais para além do que estava ali manifesto. Em outras palavras, o que nos impulsionou foi a construção de olhares vibrantes e produtivos em torno do objeto de investigação, ou seja, as interações sociais ocorridas nas encenações presentes nas quadrilhas juninas em Rio Branco/AC. A construção de um olhar diz respeito às perspectivas as quais tomamos como referência para a compreensão de um fenômeno social. Pois nesse campo, os percursos necessitam ser cuidadosamente construídos. As reflexões sobre a manifestação espetacular da quadrilha tomou como ponto de partida a perspectiva teórica da etnocenologia a partir de dois conceitos, a saber: teatralidade e espetacularidade: teatralidade são interações humanas, as mais cotidianas, em que as pessoas envolvidas agem, simultaneamente, como atores e espectadores da interação, já espetacularidade são interações humanas organizadas e extracotidianas, inerentes a cada cultura, (Bião, 2009, p.35). Utilizamos esses termos, como mola propulsora, para iniciarmos os primeiros passos de nossa trajetória em direção à construção do que nomeamos de olhares generosos e vibrantes em torno da construção de nosso objeto de investigação. A teatralidade, inerente a toda interação humana, ocorre desde as ações mais cotidianas e imprime nas organizações dos sujeitos um movimento voltado para o olhar do outro, sem nesse momento ocorrer a distinção entre atores ou espectadores, age simultaneamente, são manifestações que ocorrem no cenário de cada cultura, consistindo em espaços de sobrevivência de suas crenças e hábitos, muitas vezes obscuros ou evidentes, mas, “praticado pela maioria absoluta dos indivíduos de uma sociedade” (Bião,2009,p.35). Nesse contexto, os olhares necessitam de um deslocamento considerável capaz de despertar processos e atravessamentos, produzindo movimentos de fuga, (e fuga entenda-se aqui não como alienação ou escape, ou medo da contaminação do 14
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objeto, conforme prega certa ciência etnocêntrica repleta de uma racionalidade instrumental) E sim, a fuga como movimento estético, ético e político, ou seja, segundo o dicionário a fuga no campo musical seria a: “composição polifônica baseada na imitação, e que explora sistematicamente os recursos de um tema principal (sujeito) e de temas secundários (contra-sujeitos), apresentados em contraponto com o sujeito” (Ferreira, 1988, p. 335). Seria a diversidade de sons, melodias produzidas a partir desta relação entre o tema principal ou vários temas principais e o contraponto, entre pesquisadores e objeto de estudo. (Lobo, 2009, p.3) A possibilidade deste encontro no cenário da teatralidade, diz respeito às trocas que ocorrem no campo social, entre as pessoas que em nosso caso são os artistas, brincantes, mas que também podem ser reconhecidos por outros nomes, tais como: cidadãos, pais, mães, amigos, irmãos, alunos, professores, gays, marginais, militantes, etc. Interessa-nos menos o nome do que o movimento de ruptura com estes espaços, e nesse sentido o artista, ou aquele que se envolve com manifestações espetaculares em suas várias dimensões, possui sim um lócus social distinto. A distinção se dá pela maleabilidade de perspectivas de produção de subjetividades múltiplas, de metamorfoses, de práticas que contribuem para a impossibilidade de qualquer tentativa de classificação dessas subjetividades em gavetas fechadas ou identidades coladas. São homens, mulheres, jovens ou velhos que, após um dia inteiro de trabalho se dirigem às praças ou escolas da comunidade para mais uma noite de ensaio da quadrilha. O movimento do olhar neste contexto de estudo são os processos de deslocamento entre o brincante e o artista e nas estratégias de intervenção e de invenção de espaços de espetáculos, de formas de realização da cena que não se encaixam em conceitos fechados de teatro, mas que constroem saberes que atravessam a edificação de espaços cênicos tradicionais, de atores e atrizes tradicionais, deslocando os rótulos de identidade para além dos campos de saber institucionalizado sobre teatro e formação de atores. Consideramos na quadrilha, mais especificamente, o casamento da roça, deslocado da dança. Com esse recorte investigamos, não só os processos de elaboração da cena do casamento no interior de quadrilhas acrianas, mas também a forma de organização dessa cena em sua dimensão espacial. Nesse sentido, 15
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nosso campo de investigação foram duas quadrilhas localizadas na região urbana de Rio Branco e os sujeitos dessa pesquisa foram “brincantes” e o coordenador da quadrilha.
O jogo na construção da cena do casamento da roça Nos processos de aprendizagem de atuação no teatro, o jogo dramático é uma das estratégias utilizadas por coordenadores de oficinas e diretores de teatro como prática significativa para desencadear a contracenação ou jogo cênico entre os atores. “As situações de jogo favorecem sobremaneira a construção de cenas por parte dos atores” (Ryngaert, 2009, p.10). No entanto, o autor alerta para o caráter flexível do teatro em relação à transposição exclusiva e direta de certo modo de se aprender teatro em detrimento de outro. Nesse sentido, a partir desse autor francês, podemos inferir que existem outras formas de se aprender teatro que, embora não sistematizadas, podem ser consideradas como saberes que são construídos a partir da experiência do fazer teatral. Tais experiências tornam-se visíveis por meio das práticas culturais dos sujeitos sociais em suas manifestações populares, pois: “A transposição demasiado exclusiva de um modelo artístico no domínio pedagógico só serviria para empobrecê-lo ou caricaturá-lo. Além disso, o teatro se submete cada vez menos a regras imutáveis” (Ryngaert, 2009, p.30). Nosso foco de análise se referiu, sobretudo, à forma com que os sujeitos que participavam como brincantes/atores da montagem cênica “do casamento” na quadrilha, aprenderam a atuar por meio da experiência do fazer artístico. O saber fazer tornou-se manifestação espetacular pautada em vivências do senso comum e a linguagem teatral foi repassada informalmente com o objetivo de mostrar um produto final, ou seja, a cena “do casamento” no dia da apresentação da quadrilha. Nesse contexto de estudo evidenciaram-se os processos de deslocamento entre o brincante e o ator e as proposições para a realização da encenação que afetaram a interpretação dos personagens por parte dos atores/ brincantes, assim como a identificação de situações de jogo cênico presentes tanto nos ensaios como na apresentação final da encenação. 16
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O jogo teatral, também apresenta contribuições significativas para a elaboração de cenas e de forma implícita está presente na constituição da encenação do casamento da roça. Tal estratégia de aprendizagem teatral tem como estrutura dramática: “o onde, o quem, o quê e o foco”, (Koudela, 2002, p. 43). O onde vai identificar o lugar, que poderá ser uma igreja ou um arraial incluído no contexto da quadrilha, o quem, são os personagens, isto é, o padre, o noivo, a noiva, etc. O quê vai caracterizar a ação. O jogo teatral nada mais é do que um exercício que auxilia na construção da cena, trabalhando assim com o personagem, o espaço em que ocorre a ação e o conflito que será desencadeado a partir das situações apresentadas no casamento, construindo assim a cena. Todo o ano, ao término das apresentações do festival de quadrilhas, após os meses de junho e julho, uma equipe, junto com o coordenador geral da quadrilha, se reúne e define as diretrizes para o ano seguinte, ou seja, escolhe qual será o tema, quem irá confeccionar o figurino, elaborar as coreografias, e decidem também como obterão recursos para financiar tudo. Quem dirige a quadrilha é o coordenador geral, que decide junto com sua equipe de coordenadores como serão os ensaios. Cada coordenador tem uma função, assim como uma grande empresa que é dividida por setores, também a quadrilha é dividida. Para participar do Casamento da Roça é necessário vontade e experiência em teatro. Alguns dos componentes trazem essa experiência teatral para os ensaios. Esse saber- fazer teatral acaba contribuindo com o processo de encenação do casamento. Como diz o coordenador geral: Quando ele participa a gente tenta pegar ele de primeira, mas aí a escolha é feita de quem pode. A gente não tem muita escolha. Aquele que levanta a mão e diz que quer, participa, a gente começa a trabalhar. É como se fosse uma formação de ator dentro do próprio grupo. Tem gente que é muito fritado digamos assim, quem é muito exaltado, Mas não consegue se expressar. Então a gente começa a lapidar, tem pessoas que não sabem de nada, e pra ajudar o grupo, findam, é como posso dizer, se comprometendo, fritam tentando fazer algo para melhorar. Por exemplo, a nossa noiva desse ano, ela nunca teve nenhuma atividade de teatro na vida. Há muito tempo fez 17
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teatro de escola, muito aquela coisa de, eu sou a flor e fico ali parada entendeu. E nesse ano ela foi a noiva, após um trabalho que a gente fez com ela. Não foi ótimo, mas ela fez o melhor e isso é o que a gente trabalha, pensando fazer o melhor de cada um, o que pode. (Coordenador da quadrilha)
Durante a semana os ensaios do casamento da roça são realizados na praça ou na residência de um dos atores/brincantes. Os ensaios que ocorrem na praça utilizam o espaço da quadra onde também se ensaia a dança. O coordenador é quem dirige, mas, em certos momentos, ele convida algumas pessoas que tenham experiência teatral, a fim de que possam assistir, dando algumas sugestões para que a encenação do casamento da roça possa melhorar. O “Casamento da Roça” no Festival Estadual de Quadrilhas é um requisito julgado e vale uma nota que vai de 5 a 10 pontos. Então, para que possam alcançar a maior nota, isto é, 10, é preciso que o casamento cumpra os critérios definidos previamente pela comissão julgadora. Durante as observações de campo percebemos que o processo de criação é coletivo, mas cabe ao coordenador geral a direção do trabalho. Nos primeiros ensaios, ocorre a leitura do texto, havendo algumas vezes uma leitura dramatizada 5, em que é feita já algumas marcações (posicionamento dos atores no espaço em que será apresentado o casamento). Nos primeiros ensaios observados foram feitos exercícios de voz e trabalhos com criação de cena partindo de uma música infantil de roda, (atirei o pau no gato), enquanto os brincantes cantavam a música eles faziam vários gestos exagerados com objetivo de aquecer a voz mudando de tom na medida em que se expressavam corporalmente. O uso da música infantil não é novidade nos exercícios de Improvisação Teatral, usado frequentemente, as músicas infantis têm como função também a integração entre os participantes da brincadeira e ensinam sobre diversos ritmos e aquecimento da voz. No exercício que foi observado, um dos brincantes que possuía mais experiência, propõe um exercício de Leitura do texto teatral realizada com intenção e deslocamento na cena, o texto não é decorado e sim lido. 5
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jogo teatral com um coordenador, que dita instruções e focaliza o objetivo do jogo e depois avalia como foi o desempenho de cada brincante/ator que nesse momento são simplesmente jogadores. O jogo nunca é jogado simplesmente por jogar, sempre tem um objetivo. Principalmente quando é usado para trabalhar a construção da cena, pois: “[...] a realidade da cena é a maneira com a qual se trabalha; o ato de experimentar a arte do teatro, nesses moldes é encarado como formador.” (Pupo, 2005, p. 219). O casamento da roça é um dos principais requisitos para a quadrilha participar dos festivais. Junto com a dança o casamento contribui para a somatória das notas no festival. Na encenação do casamento a história é contada muitas vezes, sendo sempre os mesmos personagens, ou seja, o noivo, a noiva, a mãe ou pai do noivo e da noiva e o padre para realizar o casamento, os personagens são fixos com poucas mudanças a cada ano. Sendo a encenação antes da dança, na quadrilha a dança é o festejo do casamento. O tema que é escolhido e desenvolvido pela quadrilha está presente em tudo o que a quadrilha for apresentar, tanto no casamento como na dança, sempre integrando o caipira, tanto na fala como na maneira de se expressar. O texto é encenado e escrito pelo próprio coordenador geral da quadrilha. O trabalho de construção dessa festa é coletivo, no Acre, o casamento da roça é também usina de atores populares e resistência de uma espetacularidade comunitária. No ano de realização da pesquisa, por exemplo, decidiu-se que não haveria cenário, eles argumentaram sobre a dificuldade de locomoção dos cenários de um local para o outro, já os figurinos foram elaborados por um dos brincantes/atores. A confecção dos figurinos foi coletiva, sempre com ideias de todo o grupo. Nos trabalhos de cena, em alguns momentos, foram observadas muitas lacunas, não havendo o preenchimento do espaço em que era desenvolvida a encenação. A quadrilha apresentou uma característica muito similar com o teatro de rua, isto é, um espaço amplo ao ar livre rodeado por pessoas que observam ao redor. A perspectiva se diferencia bastante de um teatro formal, de um palco italiano, por exemplo, que é frontal, já o espaço em que a quadrilha encena é ao ar livre, semi- arena, que é dividido com músicas, ruídos e outros sons populares, um grande espaço de jogo em que todos participam em diferentes momentos e em di19
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ferentes papéis, seja como brincante, ator do casamento, público ou jurado. O jogo social da cena da quadrilha se configura como um espaço significativo de produção de saberes sobre o jogo e o teatro.
O espaço da quadrilha como lugar teatral As concepções teóricas sobre espaço adotadas em nossa pesquisa dialogaram tanto com o teatro quanto com a geografia. No que tange ao espaço cênico, ele compreende todos os elementos provenientes do lugar cênico e também todo o aparato teatral, isto é, a luz, o cenário, a sonoplastia, etc. O lugar cênico diz respeito ao local em que se dá o jogo, a encenação dos atores, e, portanto é uma zona em que ocorrem constantes modificações a cada espetáculo. Dessa forma, o lugar cênico faz parte do espaço cênico, (Almeida Junior, 2007, p. 50). Já na Geografia, tomamos como referência os estudos sobre o espaço geográfico, sobretudo na relação entre as práticas sociais dos sujeitos e a constituição desse espaço. Para esse autor, as práticas transformam o espaço geográfico assim como o espaço interfere nas práticas sociais. Em outras palavras, o espaço físico geográfico é compreendido não como um espaço vazio, mas, determinado pelas práticas sociais dos sujeitos, pois: Os movimentos da sociedade, atribuindo novas funções às formas geográficas, transformam a organização do espaço, criam novas situações de equilíbrio e ao mesmo tempo novos pontos de partida para um novo movimento. Por adquirirem uma vida, sempre renovada pelo movimento social, as formas - tornadas assim formas-conteúdo - podem participar de uma dialética com a própria sociedade e assim fazer parte da própria evolução do espaço. (Santos, 2006, p. 69)
Consideramos não só o espaço de representação do “casamento da roça” como lugar teatral e como lugar cênico no interior de uma quadrilha acriana, mas também a forma de organização da quadrilha na comunidade, ou seja, a quadrilha como espaço social. 20
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A abordagem utilizada na pesquisa contou com elementos da etnografia e, portanto procedimentos de observação de campo foram aplicados, todavia a aplicação de entrevistas com os sujeitos estudados também foi necessária a fim de possibilitar um maior rigor ao trabalho. Foram realizadas as seguintes etapas, a saber: o primeiro passo foi o de selecionar a quadrilha, em seguida foi feita uma entrevista semi-estruturada com o coordenador e brincantes e por fim as observações, tanto dos ensaios como das apresentações no período de março a junho, da quadrilha Matutos Malucos 6 que faz parte da Liga de quadrilhas do Estado do Acre, a qual promove todo ano no mês de junho/julho um festival, em que a quadrilha vencedora irá representar o Estado no Festival Nacional de Quadrilhas. A Matutos Malucos representa um dos bairros localizados no município de Rio Branco e conta com um total de 23 brincantes distribuídos entre dançarinos, atores, coordenador, animador. O objetivo foi o de compreender como se organiza esse espaço da quadrilha, como um lugar teatral. O espaço no contexto do teatro é definido como: espaço teatral; espaço cênico e espaço dramático. O espaço teatral é compreendido pela relação ator e plateia, o espaço cênico é o espaço do próprio ator delimitado pelo palco e o espaço dramático é a relação ator, espaço e texto, portanto não é tangível, assim: E, neste sentido, para a compreensão do espaço como uma representação social, Ubersfeld desenvolve uma taxonomia analítica baseadas em três tipos de espaço: teatral, cênico e dramático. Sendo que duas delas se articulam com outras categorias internas: a) o espaço teatral como lugar teatral e b) o espaço cênico como lugar cênico. (Almeida Junior, 2007, p. 50).
Sendo assim, se compreende que todo e qualquer local pode ser um lugar cênico? Partindo do ponto de vista que lugar cênico é o espaço materialmente definido, em que o ator realiza a cena seja ensaiando ou apresentando para uma plateia, então sim. E com isso infere-se que tudo que se é apresentado nesse lugar, quando há a presença de público é teatro e, portanto denominamos de lugar teatral. Afirma o autor: “Assim, a utilização do termo lugar teatral deve ser empregada, no sentido geográfico, para 6
Matutos Malucos é um nome fictício usado para a quadrilha que foi observada.
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todos os lugares nos quais ocorram eventos teatrais”. (Almeida Junior, 2007, p.72.) E mais: [...] é o lugar teatral compreendido como um agente (mediador) de comunicação da atividade teatro na sociedade. O espaço, com efeito, não deve ser entendido como um depósito ou uma estrutura edificada na qual se colocam cenários, adereços, mas sim como um elemento que condiciona, transforma e é transformado durante o conjunto de ações que são produzidas pelo fazer teatral.” (Almeida Junior, 2007, pág.5/6).
Com base nesses dados utilizaremos a cena do casamento da roça como ensejo para tal fundamento. Mas o que é o casamento da roça na quadrilha? Primeiramente, a quadrilha é uma manifestação espetacular cultural que acontece normalmente nas regiões nordeste e norte do país, ela é originaria da França e foi incorporada ao Brasil durante o Império. Era a dança que abria os bailes da corte, com o tempo saiu para as ruas ganhando um toque do povo, como novos passos, um colorido e a inclusão da cena do casamento que, é a representação da instituição matrimonial, sempre contornada de elementos cômicos com o intuito de se fazer uma crítica, e logo depois a dança vem como a celebração do casamento, pois: [...] a representação onde os jovens debocham com malícia da instituição do casamento, da severidade dos pais, do sexo pré-nupcial e suas consequências, do machismo. O enredo é quase sempre o mesmo com poucas variantes: a noiva fica grávida antes do casamento e os pais obrigam a noiva a casar. Este se recusa, sendo necessária a intervenção da polícia. O casamento é realizado com o padre e o juiz, sob as garantias do delegado e até de soldados. A quadrilha é o baile em comemoração ao casamento. O enredo é desenvolvido em linguagem alegórica, satirizando a situação com humor e carregando no sotaque do interior. (Gaspar, 2013, p.1).
Então que espaço seria esse da quadrilha? Pelo olhar da espetacularidade a quadrilha é um espaço teatral, visto que é um espaço organizado dentro de um espaço social em que ocorrem as 22
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ações extracotidianas, ou seja, ações que não são vistas/executadas no dia a dia. Essas ações são realizadas com o intuito de serem vistas, criando uma relação observador e observado, sendo mais especifica, uma relação plateia e ator. Na espetacularidade o espaço teatral é mais definido como um espaço onde ocorrem ações extracotidianas; a relação entre o ator e o espectador é mais definida, mas essas ações não se resumem somente ao teatro tradicional, estendendo-se a outras formas de espetacularidades, tais como: folguedos, danças, circo, ritos religiosos, ópera, etc. (Lobo, 2010, p.86).
Um aspecto que merece bastante reflexão é de que a quadrilha, antes de tudo, ocorre num espaço social organizado, e que além de ocorrer num local de espetáculo, ela também é enquadrada como um campo social. Percebemos que se refere a um lugar em que os agentes sociais se encontram. Num olhar para o interior da quadrilha, esses agentes sociais, como já foi dito, seriam os brincantes, porém, os mesmos se diferenciam através de categorias, tais como: os dançarinos, o coordenador, o coreógrafo, os atores, as costureiras, os que assistem aos ensaios, já que a estrutura utilizada para os ensaios e apresentações, na maioria das vezes, é um local aberto, como as praças ou quadras do bairro, pois: “os agentes e grupos de agentes são assim definidos pelas suas posições relativas neste espaço. Cada um deles está acantonado numa posição ou numa classe precisa de posições vizinhas”, (Bourdieu, 1983, p.134). Na região de Rio Branco os grupos que constituem a quadrilha pertencem, geralmente, à periferia, seus agentes (os brincantes) são moradores dessa área, pessoas comuns, que trabalham, estudam, nos horários comercias e que por simpatizar com a prática passam a fazer parte desse movimento. Dificuldades também são encontradas nesse âmbito, como o próprio lugar de ensaio, que na maior parte do tempo é realizado em condições físicas precárias, são normalmente as praças e quadras do bairro. Além disso, a distribuição dos integrantes entre atores e dançarinos favorece uma dicotomia entre a cena da dança e do teatro produzindo uma especialização que contribui para a resignificação da cena do casamento da roça como fenômeno 23
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efetivamente apartado da dança, pois na maioria das quadrilhas esses integrantes são divididos, os que dançam, não interpretam e vice-versa. Quando não é possível essa organização, devido ao número insuficiente de brincantes para tal distribuição, os integrantes serão atores/ dançarinos/brincantes, engendrando uma forma híbrida de atuação na cena da festa/espetáculo. As apresentações do festival de quadrilhas ocorrem no estacionamento do estádio Arena da Floresta, o local é determinado pela Secretária de Cultura do Estado e é criado um espaço específico para as apresentações. O espaço de apresentação é sempre uma arena, nas laterais há arquibancadas e frontalmente localiza-se um palco, lugar da banda e dos jurados. A cena do casamento é apresentada próximo ao palco e no meio da arena, há exceções, mas na grande maioria é esse o deslocamento que as quadrilhas escolhem para a cena, e logo após ocorre à dança utilizando todo o espaço da arena. Sendo assim, inferimos que as possibilidades de diálogo entre os espaços da quadrilha e os espaços teatrais passam pela compreensão do casamento da roça como uma manifestação espetacular e, portanto uma ação extracotidiana em que ocorre a relação ator e espectador, portanto, é criado um lugar, no qual será o espaço teatral, devido à relação existente entre os brincantes e plateia, havendo também um espaço cênico, já que o espaço em que ocorrem as apresentações é delimitado somente aos que ali estarão participando da cena e teremos por fim o espaço dramático, a relação ator (brincantes), plateia e o texto.
Considerações finais Torna-se urgente a construção de pontos de encontro entre a Universidade e os grupos pertencentes ao campo das tradições populares, compreendidas como patrimônio cultural e como práticas espetaculares, principalmente nos Cursos de Licenciatura em Artes Cênicas que trabalham com a formação do artista-docente: professor de teatro. Acreditamos que a realização deste estudo, com o aporte da etnocenologia, da pedagogia do teatro e da geografia poderá trazer contribuições para a discussão em torno de tais manifestações 24
Movimentos de festa no espaço do casamento da roça: um jogo de espetacularidade
espetaculares também como campo de educação estética, possibilitando diálogos significativos entre as práticas acadêmicas e artísticas, discutindo os elementos dessas manifestações presentes no contexto social amazônico. Tendo em vista que, muitos dos ingressantes no Curso de Licenciatura em Artes Cênicas: teatro na Universidade Federal do Acre são brincantes ou ex- brincantes das quadrilhas do Estado, consideramos tais práticas como dispositivos que participam na construção das subjetividades e reafirmamos a relevância dessas ações nos processos de promoção da integração social e da formação estética dos sujeitos em diálogo com os espaços de educação formal, isto é, tanto a escola quanto a Universidade. Referências ALMEIDA JUNIOR, J.S. Cartografia política dos lugares teatrais da cidade de São Paulo: 1999 a 2004. 2007. Tese (Doutorado em Artes) Programa de Pós – Graduação em Artes. Área de concentração. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. BIÃO, A. Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos. Salvador: P&A Gráfica e Editora, 2009. BOURDIEU, P. Gostos de classe e estilos de vida. In: ORTIZ, R. (Org.). Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo: Ática, 1983. Cap. 3, p. 83-121. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. Gaspar, Lúcia. Quadrilha Junina. Pesquisa Escolar Online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em: <http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/>. Acesso em: 01de abril de 2013. LOBO, A.M.F. Experiência e formação: o fazer teatral nas trajetórias docentes: 2007 a 2010. Tese (Doutorado em Educação) Programa de Pós- Graduação em Educação e Inclusão Social. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010. LOBO, A.M.F. Deslocamentos do olhar: o brincante e o ator no contexto da quadrilha acriana. V Reunião científica de pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas. ABRACE São Paulo, 2009. Disponível em: <http:// www.portalabrace.org/vreuniao/etnocenologia. html>. PUPO, M.L.S.B. Para desembaraçar os fios. Educação & Realidade, Porto Alegre v.30 n.2 p.5-307 jul./dez.2005. SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2006. 25
O legado tupi na flora e na fauna acreanas: contribuição para o ensino da língua portuguesa Jane de Castro Nogueira1
Introdução O presente estudo constitui um recorte de nossa Dissertação de Mestrado, intitulada O legado tupi na flora e na fauna acreanas: contribuição para o ensino da língua portuguesa. Este nasceu do interesse crescente da autora em descrever a linguagem dos povos indígenas do Acre, especificamente nos campos da flora e da fauna. E, para esse propósito, a pesquisa se divide em duas etapas: a primeira, consta a pesquisa preliminar, efetivada a partir do levantamento dos títulos sobre a temática delimitada e, em seguida, processada a seleção da literatura específica e a coleta de dados; em parte realizada no acervo do Centro de Estudos Dialectológicos do Acre - CEDAC e na pesquisa complementar de campo, por meio de questionário; na segunda etapa, procurou-se descrever as denominações e o significado das palavras de origem tupi da flora e da fauna, com verbetes abonados em quatro dicionários, com fragmentos colhidos no uso corrente e dispostos por campos semânticos ou idéias afins: flora alimentícia, medicinal, madeireira, artesanal e silvestre; fauna terrestre, aérea e aquática. Assim, investigou-se o legado tupi no português, procurando responder às seguintes indagações: a) Que fatores contribuem para o distanciamento ou perda do legado indígena, na feição regional da língua portuguesa? b) Serão as palavras da flora e da fauna do Acre, na maior parte, um legado tupi? c) Qual a contribuição do legado tupi para o ensino da língua portuguesa no Acre? Docente da área de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Acre. Centro de Educação, Letras e Artes. Doutoranda em Educação na Universidade do Porto - Portugal. 1
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