COMO TUDO COMEÇOU COM MARIA DE NAZARÉ
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Lina Boff
COMO TUDO COMEÇOU COM MARIA DE NAZARÉ
Sumário
Prefácio.................................................................................7 Fr. Clodovis Maria Boff, OSM
Apresentação...................................................................21 Lúcia Pedrosa-Pádua
I Parte: Partindo das Fontes Bíblicas...............25
Como Marcos e Sua Comunidade Falam de Maria de Nazaré .....................................................32
Como Mateus e sua Comunidade .............................44 Apresentam Maria de Nazaré
Como Lucas e sua Comunidade Interpretam a Mulher da Fé ..............................................................54
Como nos Desafia o Magnificat de Lucas.............70
Quem são as Massas Excluídas ou Sobrantes do Magnificat.................................................................77
Como João e sua Comunidade Apresentam Maria de Nazaré............................................................86
Como Maria, as Mulheres e os Parentes de Jesus Participam da Igreja Nascente do Ressuscitado.............................................................98
II Parte: A Maria da Fé nos Padres da Igreja.............................................................................107
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III Parte: A Maria Histórica é a mesma Maria da Fé que Cultuamos na Tradição e nos Dogmas..................................................................125
A Maternidade Humana e Divina de Maria........133
A Virgindade Perpétua de Maria e o começo da nova humanidade...................................................152
A Imaculada Conceição e a Solidariedade Mariana..........................................................................162 A vitória de Maria: ressurreição e assunção ........................................................................177 Como Começou o estudo da Teologia Mariana..........................................................................198
A teologia Mariana é interdisciplinar...............201
Concluindo as três Partes do Livro...............205
pre fácio O Mistério de Maria
A mariologia da Ir. Lina põe o leitor e leitoras em contato direto e coloquial com a Mãe do Senhor. Nesse livro as coisas concernentes a Maria são ditas de modo vivo e claro. Cada um, simples ou estudado que seja, se sentirá à vontade junto à Mãe de Jesus e poderá até conversar com Ela. Mais: sentir-se-á estimulado a pôr-se em Sua companhia no seguimento de Jesus. Esse escrito, cujo prefácio tenho a honra de escrever, me dá oportunidade de pôr em destaque três aspectos do mistério da Virgem Mãe que não me parecem suficientemente valorizados: a grandeza espiritual da Mãe do Senhor sob o modo paradoxal da pequenez, a Imaculada conceição e suas incidências na visão que Maria teve da vida e, enfim, a Virgindade e sua influência na percepção que Ela teve da identidade e da missão do Filho. 1. Grandeza sob a forma da pequenez Para a consciência católica em geral, mas especialmente para o Povo de Deus, a grandeza de Maria está fora de discussão. A Igreja em sua liturgia não cansa de magnificar
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Aquela que, depois de Cristo, mais magnificou a Deus. Efetivamente, o mistério de Maria, como parte constitutiva do Mistério de Cristo, contém, como este, “riquezas insondáveis” (Ef 3,8). Maria mesma tinha profetizado: “O Todo-poderoso fez grandes coisas em meu favor... Doravante todas as gerações me proclamarão bem-aventurada”. Isabel, cheia do Espírito Santo, num grande grito, exclamou, por primeiro: “Bendita és tu entre as mulheres”. O Povo de Deus prossegue ininterruptamente essa louvação. Assim mesmo, a Igreja tem consciência de que nunca louvará suficientemente a SSma. Mãe de Deus. É como recita um responsório do Ofício Divino: “Ó santa e imaculada Virgindade, não sei com que louvores poderei louvar-te, pois Aquele que o céu e a terra não podem conter, o encerraste em teu seio.” Daí fazer a Igreja rezar: “Fazei-me digno de vos louvar, ó Virgem sacrossanta”. Em verdade, nem os anjos são dignos de enaltecê-la como merece. Só Deus sabe e pode glorificá-la com toda a verdade. E o fez, particularmente elevando-a em corpo e alma à gloria celeste, como sabe qualquer cristão católico. Em verdade, com todo o direito, Deus foi, em seu sentido melhor, “maximalista” para com Maria, escandalosamente maximalista. Ela mesmo o reconheceu de certa forma quando, no Magníficat, falou da “grandes coisas” que o Onipotente fizera em Seu favor. Ora, para o povo da primeira aliança, as “grandes coisas” por excelência eram o Êxodo do Egito, a Volta da Babilônia e a Vinda do Messias. Ora, foi justamente esta última e maior “grande coisa” que Maria trouxe ao mundo. Por isso Sto. Tomás coloca a SS. Virgem entre as criações máximas e insuperáveis de Deus, detentoras de “certa grandeza infinita”, ao lado da humanidade Jesus e da felicidade dos santos (ST I, 26, 6).
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Entre os “benditos” que o Povo de Deus recita depois da bênção do Santíssimo, há este: “Bendita seja a grande Mãe de Deus, Maria Santíssima”. Grande efetivamente, mas de uma grandeza que nada tem a ver com a de tantas rainhas, beldades e pensadoras deste mundo. Sim, Ela foi e continua sendo proclamada “bendita entre as mulheres”, não, porém, porque fosse mais poderosa que Catarina a grande ou mais bela que Helena de Tróia ou mais sábia que Hipácia de Alexandria, mas por causa uma grandeza, beleza e sabedoria de todo sobrenaturais com que o Altíssimo a cumulou. Como pude mostrar em Mariologia social (Ed. Paulus, 2006), a história dos homens fez jus, o quanto pôde, à grandeza da Mãe de Deus. Elevou-lhe catedrais, santuários e outros monumentos que fazem até hoje a admiração do mundo, cristão ou não. Dedicou-lhe pinturas, esculturas, poemas, músicas e hinos como não o fez por qualquer outra mulher. Mais, consagrou-lhe nações inteiras, cidades, tronos e, sobretudo, gentes. Além disso, a figura gigantesca de Mãe de Deus inspirou, na história dos povos, toda sorte de feitos épicos, assim como as mais fervorosas invocações contra todo o gênero de desgraças, pestes, guerras e invasões. E nem falemos de suas inúmeras e portentosas aparições, a cujos santuários acorrem milhões de fiéis, haurindo daí benefícios corporais e espirituais sem conta. Sem embargo, a verdadeira grandeza da Maria é essencialmente espiritual, interior, invisível. Essa grandeza radica no lugar central que Deus lhe designou no desígnio divino da salvação: o fato de ser Mãe do Filho de Deus. De fato, Ela foi a mulher mais intimamente associada ao Mistério do Deus revelado em Cristo. Por sua maternidade divina, a Virgem foi unida à Encarnação do Verbo do modo mais estreito que foi dado a viver a qualquer criatura. Isso se manifesta sobretudo no mistério pascal. Efetivamente, Ela se
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fez presente, mais que qualquer outra criatura, na morte de Cristo, no evento de Sua ressurreição e na descida do Paráclito. Ela, assim, pode ser chamada a sócia íntima e a companheira mais fiel que o Redentor jamais teve na obra de salvação. Ninguém mais do que Ela privou da familiaridade com Deus, que se fizera, na pessoa do Verbo, seu próprio Filho. Ninguém como Ela penetrou mais fundo na luz ofuscante do Mistério de Deus e de seu desígnio salvífico, nem Moisés na teofania do Sinai, nem Salomão na glória do novo Templo, nem os Profetas com todas as suas audições e visões, nem os salmistas e os sábios em suas inspirações divinas. Ela foi a maior confidente e ao mesmo tempo a maior colaboradora de Deus no plano da salvação, mais do que Pedro, João ou Paulo. Comparando-a com este último, declarou um dos grandes abades do século XII, S. Guerrico: “Louvo realmente em São Paulo o ministério da pregação, porém, admiro e venero muito mais em Maria o mistério da geração”, texto que a Igreja fez constar no “Ofício de Santa Maria no sábado”. Mas o paradoxo maior para nós, humanos, é saber que toda essa grandeza espiritual se escondeu sob os véus da mais extrema pequenez. No curso de sua vida terrena, Maria viveu não apenas à sombra da fé, mas mergulhada na maior obscuridade social. Essa mulher, que todas as gerações proclamariam bem-aventurada, viveu uma vida escondida, numa insignificância histórica semelhante àquela vivida pela maioria das mulheres do planeta, e até mais profunda. Ninguém mais estreitamente do que Ela participou do mistério da quenose do Filho. Foi mãe do messias, sim, mas mãe oculta do messias oculto, como o Evangelho de Marcos deixa entrever. Ninguém como Ela participou tão a fundo da humilhação do Verbo “feito carne”, do Filho de
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Deus “feito filho de mulher”, do três vezes santo “feito pecado”, do Bendito pelos séculos “feito maldição”. Que “sábios e entendidos” notaram, por ventura, a presença dessa Nazarena no cenário do mundo, Ela cujo filho iria mudar a figura da história e o destino espiritual da humanidade? Que “senhores desse mundo” deram por Ela? Todos os que a cercavam, inclusive seus familiares, à exclusão naturalmente de Jesus, não viram n’Ela nada de notável, até pelo contrário. Os próprios cristãos da primeira geração foi com dificuldade e muito lentamente que descobriram sua grandeza teológica. O evangelista Marcos, para começar, não se deu minimamente conta de sua identidade e de seu lugar na história da salvação. Igualmente o apóstolo Paulo, apesar de ser o primeiro a evocá-la (em Gl 4,4), não percebeu n’Ela sequer um raio do esplendor divino que se escondia naquela Serva do Senhor, cuja “pequenez” Ela mesma reconheceu em seu cântico. E existem até hoje cristãos que a tem por “uma mulher qualquer”. Assim, ainda que recebendo os devidos louvores do Povo fiel, Maria continua na história a participar da quenose do Filho e da contradição que marcou toda sua vida. A própria Virgem não entendeu, logo de entrada, a grandeza de sua vocação no Mistério da salvação. Foi somente de modo gradual e graças à meditação constante, como dá a entender Lucas, que Ela foi penetrando na missão central que Deus Lhe tinha confiado no evento de salvação operado por Seu Filho. Ela nunca deixou de meditar no seu coração no sentido do mistério salvífico que se desenrolava, primeiro em seu coração pela fé, depois no seu ventre materno e, por fim, diante de seus olhos entre temerosos e deslumbrados. Com o Filho e depois d’Ele, Ela foi testemunha da lógica da ação de Deus na história da salvação: a exaltação dos
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humilhados. Por isso, a mulher mais humilde da história se tornou a mulher mais gloriosa. Tal aparece, pois, a alma de Maria, em sua grandeza quase infinita, muito embora oculta sob espécies contrárias, tal como essa grandeza oculta pode-se depreender dos textos bíblicos relativos à Mãe de Jesus. Entre tais textos sobressaem os relatos da infância de Jesus, que podem ser justamente chamados “as memórias de Maria”, de tal modo refletem os eventos aí narrados segundo o modo como Ela os viveu, os meditou e em seguida, os comunicou aos Evangelistas. 2. Imaculada conceição de Maria e sua visão da vida A Igreja católica confessa que Maria foi concebida sem pecado. O teólogo crê nisso e o ensina. Mas, se quer levar a sério a verdade desse dogma, deveria tirar as lições que essa verdade implica no plano da consciência de Maria em relação à sua visão do mundo e da vida. Cedendo ao dialeto acadêmico, o teólogo precisaria se perguntar sobre as conseqüências epistemológicas que tem para Maria mesma o dogma de sua conceição imaculada. Que é, em suma, ver o mundo, este mundo de vida e morte, de pecado e graça, com os olhos puros de toda mancha, como eram os da Imaculada? A fé ensina que nós, o comum dos mortais, contemplamos as coisas com uma visão embaçada pela queda original. Esta afetou a luz de nossa razão, que já não emite mais raios puros, mas uma luz esfumaçada. Maria não: Ela é a mulher do paraíso. É Eva antes pecado, a mulher na plenitude de sua integridade espiritual, além de física. Contudo, a nova Eva viveu, na realidade dos fatos, não no paraíso, mas fora. Viveu, pois, como o Filho, num mundo marcado pelo sofrimento, o pecado e a morte.
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A pergunta agora é: Como essa Eva sem mancha, essa mulher totalmente íntegra de corpo e alma, viveu nossa condição humana, desintegrada por obra do pecado? Como aquela criatura andou ereta, pelas estradas poeirentas do mundo, no meio de uma multidão trôpega e claudicante? Seus passos tinham o prumo e a elegância dos de Eva passeando entre as árvores do paraíso. Que Virgílio teria adivinhado nessa Nazarena que se dirigia à fonte o incessu patuit dea? (pelo caminhar revelou-se a deusa)? Como via e sentia o mundo essa mulher inteira e plenamente humana, portanto, sensível ao menor frêmito da vida? Com que ritmo pulsava seu coração imaculado, um coração perfeitamente afinado com a verdade e a beleza das coisas? Como imaginar a música dessa harpa eólia que vibrava à menor vibração do ser? Com que viveza viveu as alegrias do cotidiano e com que acuidade sentiu o horror do mal, da dor e do pecado! Com que paixão íntima pensava em Deus e com que determinação e totalidade se entregava à Sua vontade santa e misteriosa! A experiência de vida de Maria foi singularíssima, a ponto de poder ser partilhada tão-somente com o Filho divino. A nós, tal experiência é inteiramente vedada, a nós cuja visão das coisas e cuja relação com elas foram obscurecidas pela queda primordial. O que nos resta a fazer é apenas evocar a pureza e limpidez daquele olhar virginal fazendo apelo à saudade estranha que nosso coração conserva do tempo de suas origens parasidíacas. Sim, nessa “mulher de verdade”, a dor era dor e a alegria, alegria. Cada coisa era vista e sentida em sua verdadeira dimensão, sem falsificações, sem sobreposições subjetivas , sem acréscimos ilusórios. Na Imaculada, a vida era verdade, e a verdade, vida. Ela não tinha receio algum de encarar
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a verdade e, por isso, não precisava proteger-se dela com quaisquer máscaras. A Imaculada, com seus olhos limpos da mancha original, via o mundo em sua transparência. Ela o via efetivamente diáfano de Deus. De modo algum Ela foi agraciada com a visão beatífica, como alguns mariólogos, no passado, chegaram a conjeturar. Nem Eva e seu companheiro foram dotados desse privilégio. Não, Ela, como todos os mortais, “avançou em peregrinação de fé”, segundo a bela expressão do Vaticano II (LG 58). Mas sua harmonia interior lhe permitia fazer ressoar, em todos os seus tons, a graça e a vontade do Criador presentes em sua obra e, mais ainda, na vida de Seu Filho. Pode-se imaginar que, sem mancha entre manchados, Maria sentisse uma solidão imensa, não fosse a companhia do Filho santíssimo, o único que tinha ouvidos e coração para compreender suas confidências e, ao mesmo tempo, encontrar n’Ela uma interlocutora sensível e dócil. E mesmo que quisesse, Ela não teria com quem abrir todo o seu coração a qualquer outro que seu Filho divino. Ninguém como Ele teria um sensor bastante fino para captar o que Ela poderia dizer e que trazia nos refolhos mais profundos de seu coração irreprochável. Maria foi, pois, uma mulher sem confidente à altura. Nem à sua mãe Ana podia Ela se abrir em plena confiança. Não porque não quisesse ou não pudesse, mas porque Ana não tinha como compreender o Mistério salvífico de que era portadora. Nem Isabel, sua prima, podia ser sua interlocutora adequada, inda que tenha vislumbrado sob o impulso do Espírito a luz celeste que irradiava de seu ventre. Quanto a José, o pobre José, ele precisou da revelação do anjo para entender algo do mistério que pulsava no ventre de sua Esposa, fulgurada que fora pelo Espírito. E as discí-
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pulas de Cristo, Madalena, Joana, Salomé, a mãe de Tiago e João, a mulher de Cléofas, sem falar de suas parentas e vizinhas de Nazaré, que podiam todas elas perceber do segredo que Maria carregava no coração e que dizia respeito, não a uma causa contingente, porquanto grande, mas, na expressão de S. Pedro Crisólogo, à “obra de todos os séculos”? Só Jesus podia compreendê-La. Era o único entre os filhos dos homens que estava à altura do que Ela vivia e sentia. Que diálogos não terão entretecido os dois nos dias de Nazaré, dias obscuros para o mundo, mas luminosos aos olhos de Deus? Eram, efetivamente, os diálogos da salvação, infinitamente mais elevados que todos os diálogos de Platão. Mesmo assim, Maria se sentia, a um tempo, provocada e superada pela majestade transcendente do mistério de Deus, que se ia desvelando na e pela vida do Filho. Afinal, Ela era e continuava sendo criatura. Em face do Absoluto, Ela só podia fazer a experiência da dependência mais absoluta. E embora condividisse com o Filho suas experiências profundas, à semelhança de Eva privando com o Senhor Deus à brisa da tarde, contudo, Deus é Deus e o ser humano é ser humano. E era isso que Ela era e permanecia sendo: um ser humano, uma simples mulher, conquanto fosse a mulher mais profundamente humana que pisou na terra. E se bem que só o Filho A compreendesse a contento, Ela mesma nem sempre O compreendia como desejava. Mas, porque discípula dócil como jamais o Mestre dos mestres teve, Ela crescia no conhecimento d’Aquele que, ao mesmo tempo em que era seu Filho querido, era também o “Eu sou” excelso do Êxodo, que viera habitar junto aos homens, armar sua tenda no meio deles e com eles conviver e conversar. Eis, pois, o que se pode aventar do dogma da Imaculada
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conceição no plano da visão que Maria tinha do mundo e das coisas, dos acontecimentos humanos e dos eventos da salvação, de si mesma e de Cristo seu Filho. E é justamente quanto à visão que Ela tinha de Cristo, especificamente em relação à sua identidade divina, que outro dogma mariano, o da virgindade, pode nos dar novas luzes. É o que veremos a seguir. 3. A Virgindade de Maria e Seu conhecimento da divindade do Filho A virgindade é um traço absolutamente especial que marcou a personalidade de Maria. Que significa, para sua visão acerca de Jesus, o fato de Ela ser e se saber virgem? Não se refletiu ainda sobre as implicações que tem para Maria esse dado dogmático relativamente ao conhecimento que Ela podia ter de Cristo e, mais largamente ainda, em relação à consciência que podia ter desses seres sexuados que chamamos de homens e mulheres. Nelson Rodrigues, obsedado como era de pureza, insiste em que, com a relação sexual algo se quebrou dentro da pessoa. Com a perda da integridade física, se perderia também a virgindade do olhar. A pessoa que se iniciou nos mistérios do sexo, fez a experiência de uma potência misteriosa, fascinante e ao mesmo tempo ameaçadora. Por isso, já não veria as pessoas e seus corpos com a simplicidade e mesmo candura de antes. E Maria, que é por excelência “a Virgem”, como a tradição da Igreja e o povo cristão em geral costuma nomeá-la, como era o “olhar virginal” que depositava sobre o mundo dos homens e das mulheres? Esse olhar não era só o das virgens em geral, olhar intocado como elas mesmas. Também não era apenas o olhar das virgens santas, como Inês e Cecília, olhar puro de coração. Era, antes, o olhar da virgem Eva no paraíso, olhar carnal, sim, mas isento de toda mancha,
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apenas com esta diferença: o olhar da Virgem nazarena se depunha agora sobre um mundo pós-lapsário, isto é, marcado pela queda primitiva. Como era esse olhar absolutamente virginal, isso é uma experiência exclusiva da jovem Nazarena, só inteiramente compreendido por Seu Filho, o “Santo de Deus”, e por mais ninguém. Nem as santas virgens, nem os anjos do céu poderiam compreendê-lo, as primeiras, por terem uma sexualidade marcada pela falta originária; e os segundos, por ignorarem totalmente a experiência do que é ser sexuado. Quanto a nós, “degradados filhos de Eva”, só podemos afirmar o fato dessa experiência, singularíssima na história das mulheres, nada mais. Talvez possamos imaginá-la. Mas descrevê-la seria temeridade, simplesmente por falta da necessária conaturalidade. Agora, quando Maria lançava seu olhar virginal, não mais sobre esses seres problemáticos que são os homens e as mulheres, mas sobre seu Filho divino, que via Ela? Ela, que o tinha concebido e gerado de maneira extraordinária, dava-se certamente conta de que se tratava de uma criatura igualmente extraordinária. Pois nunca antes se ouvira falar de um filho gerado sem concurso de varão, mas unicamente por obra da Potência do Alto. Quem é Ele, esse ser que veio ao mundo de modo tão carnal e ao mesmo tempo tão milagroso? Que será d’Ele? Eis as perguntas que Ela se faz sem cessar, toda a vez que para e contempla o Filho. E na meditação, que também não cessa, procura respostas. Fixando o olhar no Filho, pensa consigo mesma: Essa criatura única, obra direta do Onipotente, só pode ser o Messias prometido por Deus e esperado por todos, desde tempos imemoriais. De outro modo, como posso tê-lo concebido e gerado de modo tão incomum, absolutamente incomum?
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Ela fica perplexa: Como, pois, um ser tão extraordinário vive de modo tão ordinário? Como esse filho, nascido de modo tão incomum, vive uma vida tão comum, como se tivesse nascido como todo o mundo? Certo que ninguém fora d’Ela e de José sabe praticamente de sua origem, que era ao mesmo tempo humana e divina e que O marcou para um destino igualmente humano e divino. Lucas nos informa que o anjo Gabriel na Anunciação revelara a Maria a identidade e a missão do Filho. Diz também que Ela acreditou plenamente na mensagem divina. Isso, contudo, não impediu a Virgem de aprofundar aquela mensagem e pensar: Esse ser, nascido de modo tão fora do comum, como é que vive como todo o mundo: tem fome e sede, chora e ri, cansa-se e repousa, aprende a soletrar a Torá e se queima os dedos no fogo da lareira, trabalha como qualquer Galileu e vai aos sábados à sinagoga com Ela? Que messias estranho, esse, em confronto com o que dizem dele as Escrituras, tais como os escribas as explicam na sinagoga! Maria, sem dúvida, partilhava das ideias que circulavam em seu meio acerca do messias, que seria, por exemplo, um rei poderoso e santo. Como, porém, essa criatura, que está diante d’Ela e que sustenta a família com seu trabalho, seria esse messias santo e poderoso? Enquanto o Filho “cresce em sabedoria, idade e graça”, crescem também suas interrogações a respeito de Seu destino. Que será d’Ele? E “Maria não cessava de repassar em seu coração todas essas coisas” (Lc 2,19.51). E quanto mais sente esse Filho como seu, mais o sente como que fugindo-lhe das mãos. Ela lhe aparece, ora transparente e claro como o sol do meio-dia, ora estranho e enigmático como uma luz ofuscante. Exclama interiormente, perplexa: Como são imperscrutáveis os planos de Deus! E se pergunta ainda: Mas quando
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enfim se resolverá esse enigma? Haverá uma hora em que esse Filho se revelará pelo que é verdadeiramente? Já trinta anos, e nada de “se manifestar ao mundo”, como queriam seus parentes próximos (Jo 7,4). É verdade que às vezes, como no episódio dos doze anos no Templo, Ele deixara entrever seu destino único, seu papel decisivo nos planos de Deus, ao evocar as “coisas do Pai”. Ela pouco ou nada entendera do sentido que essas palavras encerravam; tão pouco José com quem partilhava as preocupações sobre o filho e seu futuro. Palavras assim e outras semelhantes deixavamna, apenas, mais atenta ao que iria suceder daí para frente, remoendo na mente cada sinal que emitia aquela criatura tão familiar e ao mesmo tempo tão estranha. E deste modo, de surpresa em surpresa Maria ia penetrando no mistério de Cristo, se despojando das ideias equivocadas que tinha a respeito d’Ele e sobretudo crescendo numa fé entregue à vontade misteriosa e exigente, mas também sábia e sempre misericordiosa, do Deus Altíssimo. A única certeza que crescia em sua mente era que o Onipotente devia ter um propósito extraordinário sobre um ser tão extraordinário. Efetivamente, Ela não podia de modo algum duvidar de que o Reino prometido nas Escrituras, com todos os seus dons, tinha tudo a ver com Ele. Deus, que desde o início agira tão claramente n’Ele, continuaria a agir n’Ele de modo crescente ao longo de toda a sua vida, até seu desfecho infalível, cujo tempo e modo continuavam mergulhados no abismo da sabedoria divina. De indagação a indagação, Maria crescia na consciência da fé na exata medida em que crescia a luz acerca da identidade e da missão do Filho. Ao termo, porém, de cada pergunta, Ela tranqüiliza seu coração, pensando: Sim, Ele é o Eleito. Mas quem é Ele realmente e o que fará concreta-
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mente, não há senão que se entregar a Deus, que sabe o que faz e age sempre pelo melhor. Tal era e sempre foi a derradeira e mais fundamental atitude de Maria, como foi, de modo supremo, a de Jesus na cruz e como será, à sua medida, a de todo o fiel na escuridão das provações. Como se vê, a virgindade de Maria não foi apenas, para Maria, a experiência da onipotência de Deus que pode tirar vida, e vida divina, de seio virginal, mas teve também uma específica virtude epistemológica: permitiu que a SS. Virgem penetrasse, mais profundamente que ninguém, no mistério cristológico, que somente mais tarde os Apóstolos iriam anunciar ao mundo e que mais tarde ainda os santos Padres iriam formular nos primeiros Concílios. É por isso que Ela é aclamada na Igreja como Sede da Sabedoria e como Rainha dos Profetas e dos Apóstolos. Digamos, para fechar, que tudo o que dissemos acima é apenas uma tentativa, entre arriscada e precária, de adivinhar o que se passou no fundo da alma de Maria a respeito dos eventos em que esteve envolvida e cujo sentido e ensinamento a Ir. Lina expressou nesta sua obra, ao mesmo tempo linear e substanciosa, e que são agora entregues aos leitores e às leitoras para a iluminação de sua fé e nutrimento de sua caridade. Curitiba, 4 de junho de 2016: festa do Imaculado Coração de Maria. Fr. Clodovis Maria Boff, OSM
apre se ntaç ão
O presente livro, da professora Lina Boff, testemunha a atualidade da teologia mariana e sua importância para a vida das comunidades cristãs. Ao falar de Maria, a reflexão teológica deseja voltar uma vez mais às fontes do dinamismo cristão e celebrar o amor de Deus que fez de uma mulher simples, de um povoado longínquo, uma inspiração singular para a vida fé de todas as gerações. O desenvolvimento teológico das últimas décadas ajudou muito a compreender a vida de Maria como um itinerário de santidade na humanidade, sustentado pela graça e vivido em amor e fidelidade, sem resistências. Mas, sempre, humano, com sua fragilidade e momentos ora mais claros, ora mais escuros. É no interior desta humanidade, com sua alegria e sua dor, sua força e sua miséria, suas descobertas e sua obscuridade, suas potencialidades e seus condicionamentos socioculturais que é possível experimentar a ação de Deus. A partir de dentro de sua humanidade, Maria foi toda amor e fidelidade, um ser humano para Deus, a “cheia de graça”. A existência de Maria, configurada pelo Espírito, motiva processos de renovação pessoal e eclesial, de fortalecimento da fé e da esperança em tempos difíceis. A vida de Maria, ao mesmo tempo humana e de Deus, brilha, na imagem de
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Santo Agostinho, como “uma estrela na noite”. Na vida de Maria podemos ver a todos. De maneira especial, a Igreja é animada a não temer as fragilidades, a se adentrar nas feridas e sofrimentos do mundo e testemunhar que, sob tudo isto, está a graça de Deus que, em Cristo e pelo Espírito, chama a uma vida nova, pacientemente, mas como luz forte e irradiante, esperança e amor. É neste contexto que pode ser compreendido o livro da professora Lina Boff. A autora busca unir esta Maria-mulher que, na fé, respondeu aos apelos de Deus e enfrentou os desafios do seu tempo, à Maria cultuada na religiosidade popular, na liturgia e nos dogmas marianos. Nesta perspectiva, apresenta-se como um compêndio acessível de teologia mariana. Na primeira parte, encontramos o estudo de Maria no NT: em Paulo, nos Evangelhos e nos Atos dos Apóstolos. Maria é apresentada como mulher que peregrina na fé, que se aproxima e se deixa interpelar pelo filho. Mulher do povo, esposa e mãe. Mulher que acolhe radicalmente a convocação para o serviço e assim contribui, hoje, com a caminhada de fé do povo. Mulher orante e reflexiva, e mesmo uma teóloga. Mulher missionária. Solidária com Jesus, com os pobres e com a mulher de hoje. A professora Lina apresenta o tema de forma sincrônica: em cada tema abordado encontramos diálogo entre os Evangelhos, propostas de interpretação atualizada para as comunidades e ecos do texto bíblico na Liturgia, nos Padres da Igreja, no Magistério conciliar e pósconciliar. Assim, o texto surge de forma próxima e coloquial e a figura de Maria sobressai como uma sinfonia de sentidos variados que atravessa os tempos. A ênfase é na Maria-mulher, que a professora denomina “Maria histórica”. Na segunda parte, a professora Lina passa ao desenvolvimento da figura de Maria na reflexão de alguns Padres.
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De especial interesse é o estudo dos enunciados marianos de Inácio de Antioquia, Justino Mártir, Irineu de Lião e, como representante mais tardio, Ildefonso de Toledo. Vemos como a figura de Maria vai sendo cada vez mais valorizada e vai se aprofundando o papel de Maria no mistério da salvação da humanidade trazida por Jesus Cristo. Na terceira e última parte, temos a apresentação da figura de Maria a partir dos dogmas marianos, ou a “Maria da fé”, na expressão da professora Lina. A perspectiva, desde o início, é afirmar a unidade desta com a “Maria histórica”, apresentada na primeira parte do livro. A apresentação é detalhada, passando pela história de cada dogma e sua interpretação para as comunidades hoje. Além destas três partes, o/a leitor/a pode encontrar uma síntese teológico-pastoral nas conclusões de cada parte. Estamos diante de um livro especial, pois é fruto dos mais de quinze anos de docência em Mariologia da professora Lina Boff, na PUC do Rio de Janeiro. Ao longo deste tempo, inúmeros alunos leram seus livros, passaram por suas aulas instigantes, por seu acompanhamento acadêmico e por seu coração de mulher. Pessoalmente, embora não tenha sido sua aluna, sinto-me honrada em apresenta-Io, na certeza de que será uma importante fonte de pesquisa mariológica e uma inspiração para a vida de mulheres e homens, grupos e comunidades. Lúcia Pedrosa-Pádua
Professora de Mariologia - PUC-Rio
I PA RT E Partindo das Fontes Bíblicas
A grande visão que temos de Nossa Senhora como a Maria histórica do Novo Testamento é a primeira fonte bíblica que nos fornece os fundamentos da teologia que hoje chamamos de mariologia, ou melhor, teologia mariana. Por isso começamos com o texto considerado o mais antigo, que é o texto de Paulo numa Carta que escreve aos gálatas. Nem todos os teólogos concordam que seja mariológico esse texto. Mas, sobretudo, muitas teólogas o consideram sim, um texto que nomeia a mulher que trouxe a plenitude dos tempos, a mãe de Jesus, o Filho de Deus e o filho de Maria. Na plenitude dos tempos Jesus nasceu Para sabermos sobre o culto prestado a Maria, precisamos consultar e conhecer cada evangelista e também Paulo que a menciona em sua Carta aos gálatas. Paulo não a chama pelo nome, mas reconhece que Jesus, o Filho de Deus, nasceu de uma mulher, na plenitude dos tempos, quer dizer, quando o tempo de espera do povo de Israel pelo Salvador, havia se esgotado com a presença do Espírito em Maria de
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Nazaré, que ficou grávida do Filho de Deus, pela força do Espírito Santo. Comecemos então pelo apóstolo Paulo para incluir no nosso estudo o conhecimento de Maria através do texto apresentado por Paulo. As mulheres que fazem teologia comentam e interpretam, à luz da fé, essa frase tão importante da Carta aos gálatas. Paulo escreveu essa Carta aos gálatas algumas décadas após a Ascensão de Jesus ao céu. Vamos conhecer alguma coisa do contexto em que os gálatas viviam e porque resistiam tanto em aceitar a condição humana de Jesus como Paulo lhes falava. O apóstolo insistia na filiação divina. Talvez, fosse esta a dificuldade da nascente comunidade de fé. Junto com a filiação divina, a citação que os incomodava muito e os levava a resistirem à teologia de Paulo era também esta afirmação: ... Deus enviou o seu Filho nascido de uma mulher.... Traços da comunidade da Galácia Em primeiro lugar, a comunidade dos gálatas se encontrava em crise porque colocava em risco a verdade do único Evangelho - o anúncio da Boa Nova -, com a questão dos circuncisos e dos incircuncisos (At 9,15). Paulo visita as comunidades da Galácia mais vezes por motivo de estarem em crise de fé. Na sua primeira viagem missionária evangeliza as regiões situadas ao sul da Província Romana da Galácia (cf. At 13-14). Depois disso, Paulo passa duas vezes pela Galácia do Norte, região compreendida entre a Capadócia e o Mar Negro, povoada por habitantes de origem céltica, os únicos habitantes que podem ser chamados de gálatas no sentido próprio do termo. Segundo um estudioso chamado Wilfrid
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Harrington, ele afirma que os celtas, isto é, os gálatas, eram um povo que havia emigrado no séc. IV a. C., da Gália para a Ásia Menor, fixando-se em Ancara. O último rei gálata, Amintas (+25 a.C.), legou, quer dizer, deu de presente, o seu reino aos romanos. Com a morte do rei Amintas, o reino tornou-se Província Romana. Os gálatas eram uma raça continental e também insular porque moravam em ilhas, daí a palavra insular. Nessa parte geográfica da Ásia Menor, os povos celtas já se encontravam bastante integrados ao mundo grego e viviam as mesmas condições dos camponeses pobres. Conservavam a estrutura familiar forte de sua cultura e viviam a experiência da escravidão social, pois, eram Colônia romana. Frente às forças da natureza, das quais dependem para o cultivo dos latifúndios, extraíam o que precisavam para viver. Desse modo eles se tornam um povo destemido e até certo ponto racional e rude com profundo desejo libertário. Daí ser a pregação de Paulo uma proposta concreta de libertação em Cristo e por Cristo e não pelas próprias forças deles. Esta luta dava-lhes uma certa característica humana, acentuadamente, um tanto áspera. Paulo aceita essa rudeza de vida que eles levavam, mas não deixa de anunciar-lhes a Boa Nova trazida por Jesus Cristo. É nesse contexto que Paulo prega a atuação do Espírito sobre a carne e define a escolha fundamental através da fé no Cristo ressuscitado e não através da lei. O argumento de Paulo Não obstante a dificuldade dos membros dessa comunidade não se convencerem da doutrina de Paulo, este volta muitas vezes a explicar-lhes sempre a mesma
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coisa com métodos diferentes. O argumento do apóstolo continua o mesmo: ... quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher e sujeito à lei, para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção filial (Gl 4,4-5). Todo o capítulo 4 desta Carta procura nos fazer entender que a nossa filiação divina passa por uma mulher que se chama Maria de Nazaré. Nesse sentido deve-se evidenciar que Maria abre seu ventre para trazer a libertação da qual Paulo fala. Ela é a primeira a receber o Espírito Santo, na história, o Espírito que tudo recria e pervade a vida por inteiro. Na ação do Espírito nenhuma pessoa é excluída, nem a mulher daquele tempo que era submetida a uma cultura que a excluía de tudo, menos a de ter filhos. A Nova Criação entra no mundo por meio da carne de uma mulher que dá de sua carne e de seu sangue ao Filho de Deus. A modo de uma mulher, a História da salvação encontra a sua plenitude. Jesus vem através de uma mulher que se encontra fora da estrutura da Aliança, Ele vem na contra-mão de tudo aquilo que os homens haviam programado e estavam esperando, ansiosamente. No entanto, a mulher a que a pregação de Paulo se refere, é o espaço onde se dá a revelação da Comunidade divina. O Pai envia o Filho que nasce de uma mulher - Maria - por meio do Espírito Santo. Maria acreditou na revelação da palavra única do Pai, e por isso é a mulher bem-aventurada (cf. Lc 1,45). Maria acolhe a Trindade em seu seio: o Pai, Criador de todas as coisas, envia o Filho para salvar a humanidade e reconciliar tudo o que estava dividido e o Espírito Santo
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para santificar e restaurar toda a carne e o cosmo criados pelo Pai. Toda essa fundamentação é celebrada, sobretudo, na Liturgia do Advento, tempo forte mariano em que se evoca a esperança do povo de Israel pela chegada do Salvador. A confirmação da celebração litúrgica A liturgia romana que se inspira no mesmo texto acima celebra as duas vindas do Senhor: uma na humildade, quando, na plenitude dos tempos (cf. Gl 4,4), o Filho de Deus, assumindo a carne no seio da Virgem Maria, veio ao mundo para salvar a humanidade. A segunda vinda, na glória, quando, no fim dos tempos, Ele virá para julgar os vivos e os mortos e conduzir os justos a casa do Pai, onde a Santa Virgem Maria os precedeu gloriosa1. Em duas leituras do tempo do Advento e Natal, a de Santa Maria, Mãe de Deus e a de Santa Maria de Nazaré, o Lecionário dedica a primeira leitura tirada do texto de Paulo aos gálatas em 4, 4-7, começando com a citação que já transcrevemos acima: Irmãos: Quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher e sujeito à lei, para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção filial (Gl 4,4-5). A leitura que prepara a celebração eucarística da Santa Maria, Mãe de Deus celebra “o mistério admirável e o sacramento indizível”, solenemente, proclamado no PrefáCf. CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO, Lecionário para Missas de Nossa Senhora, vol. II, S. Paulo, Paulinas, 1987, p. 15. 1
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cio, considerado pelos estudiosos um dos mais antigos, pelo qual o Pai enviou seu Filho ao seio de Maria. O texto dessa missa é extraído dos sermões dos Santos Padres e das expressões utilizadas pela antiga liturgia. Dentre esses Padres, destacam-se as homilias de Santo Agostinho (+ 431) e São Bernardo (+ 1153)2. A missa dedicada a Santa Maria de Nazaré lembra o mistério da vida escondida que Jesus levou na aldeia de Nazaré como mistério de salvação e expressão de vida santa. Nessa missa celebram-se o mistério da encarnação do Verbo, proclamado no Prefácio e seu aniquilamento. Em tal proclamação outra vez é tomado o texto paulino: Quando chegou a plenitude dos tempos, enviou Deus seu Filho nascido de uma mulher. Celebra-se a vida santa da Mãe com o Filho, a ponto de se tornar discípula do filho que gerou. Celebra-se por fim, o Reino de Deus já presente e operante na terra que se constrói não só pela pregação e pelos gestos, mas também pelo trabalho silencioso e pela vida escondida em Deus3. Concluindo o argumento de Paulo Vimos, brevemente, os argumentos de Paulo à comunidade da Galácia e como este tais argumentos são confirmados nas celebrações das leituras e celebrações eucarísticas das missas dedicadas a Nossa Senhora, de modo especial no tempo do Advento e Natal. Paulo parece ter dificuldade de se fazer entender por muitos dos membros da comunidade da Galácia pelo fato que muitos gálatas que haviam aderido à fé na ressurreição estavam ainda, demasiadamente, atrelados à lei de Moisés. Cf. Ibidem, p. 31-32. Cf. CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO, Coletânea de missas de Nossa Senhora, Vol. I, S. Paulo, Paulinas, 1987, p. 53-55. 2 3
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A interpretação que Paulo dá à filiação divina traz a colaboração de uma mulher no mistério da encarnação para que Deus tomasse a nossa condição humana e nos reconciliasse com o Pai. Esse é o Projeto que o Filho Jesus realiza para toda a humanidade com sua pregação do Reino e a doação total de sua vida. Nesse contexto a Carta Encíclica de João Paulo II, Redemptoris Mater, Mãe do Redentor, nos impulsiona a proclamar a antiga antífona mariana que nos apresenta uma concepção muito feminina da citação que acabamos de aprofundar de maneira sucinta, quer no texto bíblico como nas celebrações litúrgicas de Nossa Senhora. Essa antífona traz presente o argumento de Paulo aos gálatas; argumento que busca assimilar a nossa filiação divina a uma mulher e não a um patriarca, segundo a cultura judaica. O Criador chega até nós, rebaixando-se a ponto de nascer de uma criatura que é mulher, pois, Ele é o Criador de todas as coisas. Essa criatura é uma mulher que marca seu tempo, Maria de Nazaré, a Mãe do Redentor. Ó Mãe do Redentor, do céu ó porta, ao povo que caiu, socorre e exorta, pois busca levantar-se, Virgem pura, nascendo o Criador da criatura: tem piedade de nós e ouve, suave, o anjo te saudando com seu Ave!
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Como Marcos e sua Comunidade falam de Maria de Nazaré Notas introdutivas Encontramos neste Evangelho as primeiras notícias em que se fala de Maria e outras pessoas de sua família. Os textos do evangelista Marcos são narrativos com um viés bastante direto que impede de demonstrar aquela atenção que todos esperam no trato com as pessoas da família mais próxima. Na cultura judaica o forte senso de pertença familiar marca a vida da pessoa que se define antes de tudo, como membro de uma família bem determinada. Jesus sabe e sente sobre si mesmo a pressão da família que tenta controlar o que faz e o que diz por aí. Por isso os seus vão procurá-lo e os escribas o acusam. Mas por que tudo isso? Primeiro, porque Jesus quer fazer-se entender a partir de um novo conceito de família: um conceito que abrange a profundidade e a amplidão da mesma. A família da qual Jesus fala ultrapassa aquela ligada pelos laços do sangue, pois a verdadeira família d’Ele, de Jesus, é a família gerada de Deus a família da fé. João explica melhor. Ele escreve: Todas as pessoas que acreditam em Jesus como Filho de Deus e o acolhem em sua vida, essas pessoas não são geradas nem do sangue, nem da vontade da carne e nem da vontade humana, mas de Deus (cf. Jo 1,13). Em segundo lugar, Jesus quer anunciar o Reino de Deus através da sua vida e das suas obras. O que Ele opera vem de Deus manifestado na sua vida, na sua pregação e na inclusão de todas as pessoas na Família do Pai. O que Jesus quer