Comunidades judaicas nos subúrbios da central do brasil

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COMUNIDADES JUDAICAS nos Subúrbios da Central do Brasil


Museu Judaico do Rio de Janeiro Presidente: Max Nahmias Diretores: Ana Antabi Heliete Vaitsman Márcio André Koatz Sukman Miriam Halfim Sani Gutman Rachel Niskier Genni Blank

Museu Judaico do Rio de Janeiro Rua México 90 - 1º andar - Centro CEP 20031-141 - Rio de Janeiro, RJ - Brasil Tels: 21 2524-6451 | 2240-1598


Ana Antabi Rachel Niskier Organização

COMUNIDADES JUDAICAS nos Subúrbios da Central do Brasil


Copyright © Museu Judaico do Rio de Janeiro, 2014. Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9. 610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem a autorização prévia por escrito da Editora/Autor, poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados.

Editor: João Baptista Pinto Projeto gráfico e capa: Rian Narcizo Mariano Revisão: Julia Kubrusly

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ C739 Comunidades judaicas nos subúrbios da Central do Brasil / organização Ana Antabi, Rachel Niskier. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Letra Capital, 2014. 210 p. : il. ; 23 cm. ISBN 9788577852802 1. Judeus - Brasil - História. 2. Refugiados judeus - Brasil - História. 3. Imigrantes - Brasil - História. I. Antabi, Ana. II. Niskier, Rachel. 14-13814

CDD: 305.8924081 CDU: 316.347(=411.16)(81)

Letra Capital Editora Tels: 21. 3553-2236 | 2215-3781 www.letracapital.com.br


Este livro é dedicado aos imigrantes que se instalaram nos subúrbios da Central do Brasil, cuja trajetória é um legado a ser preservado por seus descendentes e pelas futuras gerações.



Sumário 9

Apresentação

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Memória e educação

16

Identidade e memória: a inserção do imigrante judeu na sociedade brasileira

23

Da memória

24

A escolha do tema

28

O sonho da América

30

Estrada de Ferro Central do Brasil

32

Relação de depoentes

34

1 - A partida

46

2 - Adaptação à nova pátria

58

3 - Cultura / Lazer

67

4 - Mulheres

74

5 - Preconceito

83

6 - Tradição


107

7 - Pais e filhos

113

8 - Ideologia política / Movimentos juvenis

130

9 - Segunda Guerra Mundial / Uma nova imigração

142

10 - Educando a nova geração

158

11 - Grêmios / Jovens

170

12 - Aspectos da vida suburbana

187 191 195

13 - Opiniões Glossário Bibliografia


Apresentação

O

Museu Judaico ao ser criado, em abril de 1977, teve como finalidade precípua a preservação da memória da imigração judaica no Rio de Janeiro, com suas primeiras levas de imigrantes aqui chegados a partir das primeiras décadas do século XX. Cônscio desta honrosa missão o Museu vem realizando estudos, com base em história oral, a respeito das diversas comunidades do Rio de Janeiro, tais como: a dos judeus da antiga Praça Onze, dos judeus alemães do Méier, e também dos judeus da Leopoldina, cuja história já foi publicada em livro “Judeus da Leopoldina”, pelo Museu Judaico, no ano de 2006. Estimulados pela ótima repercussão alcançada por estes trabalhos, resolvemos, também, realizar uma pesquisa a respeito da antiga e numerosa comunidade dos judeus da Central do Brasil. Este novo estudo foi realizado com muito empenho e dedicação por nossas diretoras, Ana Antabi, Rachel Niskier e Isabela Waga (em memória), responsáveis também pelo texto e edição deste livro. Ao longo do trabalho, foram feitas 70 entrevistas com antigos moradores dos bairros de Madureira, Méier, Todos os Santos, Engenho de Dentro, Marechal Hermes, Sampaio, Rocha, Engenho Novo, Pilares, Cascadura, Lins de Vasconcelos bem como do município de Nilópolis. A íntegra desses depoimentos se encontra à disposição, para consulta, nos arquivos do Museu Judaico do Rio de Janeiro, instituição de utilidade pública que vem se dedicando, desde sua fundação, a manter viva a cultura e tradição judaicas, bem como sua trajetória futura através do compromisso com a Memória em seu pleno significado e abrangência. É importante ainda frisar que o testemunho dos entrevistados é de grande valor para que se compreenda melhor o extraordinário movimento imigratório do velho para o novo continente levando em conta os fatores de expulsão e recepção. As pesquisas nos Comunidades judaicas nos subúrbios da Central do Brasil  9


evidenciam que as migrações têm início a partir do momento em que os indivíduos se dão conta de que não há mais possibilidades de sobrevivência com base em seus recursos normais, colocando para si mesmos a necessidade e conveniência de buscar melhores condições. Ainda que as condições econômicas constituam o principal fator de migração, quantitativamente falando, não podemos deixar de registrar o movimento daqueles que sofrem com a perseguição religiosa. Não foi fácil, durante os primeiros anos, a vida do imigrante judeu que aqui chegou vindo da Europa Oriental. Parecia um homem solitário e esquecido, sobre quem a vida pesava, não lhe deixando um minuto sequer de repouso, trabalhando de doze a quatorze horas diárias, via de regra como klientelshik, como ficou conhecido entre os judeus o prestamista que percorria, na primeira metade do século XX, as ruas das grandes cidades brasileiras batendo de porta em porta vendendo mercadorias à prestação. Esbanjava, contudo, estranha alegria, paz interior e confiança no futuro, pois havia deixado para trás sua terra natal que se tornara um inferno. Sabia que agora seria capaz de vencer, já podia novamente ostentar seus hábitos, costumes e viver de fato sua religião, respeitando seus ícones sagrados. O senso de humor, apanágio do judeu asquenazi, brotava do próprio contato com a vida na cidade. Geralmente inteligente e perspicaz, não foi difícil para esse imigrante se ajustar às características de seus novos vizinhos, os cariocas, habitantes da capital da república da época, cuja sociedade parecia demonstrar as vantagens da malandragem. Embora existisse no Rio de Janeiro uma questão judaica, cuja forma alterava-se de tempos em tempos, esta jamais se apresentou com as características daquilo que ocorreu na Europa. Em suma, acreditamos que as pesquisas a respeito das comunidades judaicas realizadas pelo Museu Judaico, além de salvaguardar a memória dos imigrantes que se radicaram no Rio de Janeiro, se constituem em um elemento precioso para a discussão dessa identidade em espaço urbano brasileiro. Antes de concluir gostaria de citar um trecho do livro The King of Memory (O Rei da Memória), escrito por Elie Wiesel:

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A memória dos judeus ganha força na memória do seu povo e, para além dela, da humanidade. Porque a memória é um bem: cria laços ao invés de os destruir. Laços entre o presente e o passado, entre indivíduos e grupos. É por me lembrar do nosso princípio comum que me aproximo dos meus semelhantes, de todos os seres humanos. É por me recusar esquecer que o seu futuro é tão importante quanto o meu. Que seria o futuro da humanidade se fosse desprovido de memória?

Max Nahmias Presidente do Museu Judaico do Rio de Janeiro

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Memória e educação

J

á sentindo o cheiro e os efeitos da crise econômica de 1929, o meu pai Marcos deixou a Polônia, onde era um comerciante relativamente bem sucedido, e veio aventurar por essas bandas. Aportou primeiro no Uruguai, não gostou e veio para o Brasil, onde já tinha diversos parentes, inclusive seu irmão mais velho, Jacob. Logo que pode, trouxe a mulher e os três filhos deixados na Europa para cá, indo morar no subúrbio de Pilares, onde eu e a minha irmã Rachel nascemos, na rua Fernão Cardim. Tenho, pois, autoridade para escrever algumas palavras sobre os judeus que vieram para o Rio, localizando-se ao longo das estações da Central do Brasil. Tem-se escrito a respeito disso, guardando memória preciosa da instalação da nossa comunidade em terras cariocas. Lembro do livro sobre Nilópolis, um rico documentário, que me foi apresentado por Maurício Sherman, que é de Niterói. Naquele município morou, nos primórdios, a atriz Tereza Rachel. Nomes que hoje são consagrados no teatro e na televisão do nosso país. Eram namorados. Antes de prosseguir, uma palavra de louvor ao nosso Museu Judaico, fundado em 1977, e que tem prestado relevantes serviços à cultura do Rio de Janeiro. Max Nahmias é o seu eficiente e dedicado presidente, a ele se devendo muitas iniciativas de conferências, seminários e publicações de grande valor histórico e literário. Agora, ele nos brinda com mais uma preciosidade: a edição deste livro com 70 depoimentos sobre 12 bairros situados ao longo da linha da Central do Brasil. É uma obra de três abnegadas e competentes pesquisadoras, Ana Antabi, Rachel Niskier (minha querida tia) e Isabela Waga (in memoriam). É um documentário de grande riqueza histórica e indispensável à melhor compreensão dos que para aqui vieram, em geral fugidos da perseguição nazista. Pode-se perceber,

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na leitura do trabalho, não só o alívio trazido pela liberdade de que antes não desfrutavam, como a mobilidade, resultado de muito trabalho e a melhoria das condições socioeconômicas de vida. O que é notável, no trabalho, além do registro preciso, é a convicção de que se deveria manter viva a memória, mas também preservar as nossas convicções religiosas. Manter o judaísmo com todos os seus imensos valores, o que só seria possível com a construção de escolas e sinagogas, nessa ordem, como se estabelece no Talmud. E assim fizemos, a que devemos agregar os movimentos juvenis judaicos, como se refere o depoimento de Sara Neuman. Fruto dessa mobilidade judaica, transitei de Pilares para o bairro de Riachuelo, depois São Paulo, Tijuca (16 anos), Flamengo (10 anos) e Ipanema. Convivi com muitos amigos na Tijuca do Dror e da Hashomer Hatzair (por influência do primo José Marcos Fisz), chegamos ao amadurecimento no Clube dos Macabeus, onde fiz amizades que perduram por toda a vida. No Flamengo, a frequência foi na Sociedade Hebraica, de cujo Conselho Deliberativo fiz parte. Assim conheci Laranjeiras. Casei com Ruth Dain Buchman no Grande Templo, com muita alegria. Essa visão panorâmica, em que devo incluir, por sua extraordinária atividade comunitária o meu tio Moisés Niskier, faço para que o testemunho do Museu Judaico, ora impresso, tenha o devido reconhecimento. O dr. Moisés deu boa parte da sua vida ao Colégio Sholem Aleichem, a que dedicava todas as manhãs, durante mais de 50 anos. Por isso é perfeitamente compreensível entender o elogio que a minha tia Rachel faz, no livro, à valorização que os imigrantes deram à educação. Os depoimentos são muitos ricos e jornalisticamente atraentes. Vejam o que disse a Sarita Fischberg: “Papai sofreu um desastre de trem (dois trens se chocaram) e ficou um ano de cama. Para ajudar a sustentar a casa, mamãe aprendeu a fazer modeladores, que colocava numa mala e ia para Deodoro, vender para as esposas dos militares.”. Vamos acompanhar Feiga Sara Lewckowicz: “Em 1952, saímos de Cascadura e fomos para o Méier. Foi no Méier que comecei a participar das atividades culturais. Conheci senhoras que eram chaverot da Wizo e senhoras do grupo de mães da Escola Biátik:”. Aqui é preciso enfatizar a

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importância das nossas escolas de todos os tempos, na preservação da cultura judaica, o que hoje continua com o Eliezer-Max, a Escola A. Liessin e o Barilan, principalmente. Vale ainda uma palavra sobre a imprensa judaica, seus jornais e revistas, de tanta importância: Diário Israelita, Jornal Israelita, Nossa Voz, além das revistas Aonde Vamos? (de Aron Neuman) e Menorah, que ajudei a criar há mais de 50 anos. São documentos de grande expressão, inclusive na preservação do iídiche como forma de expressão de um povo. Nos meios modernos, o destaque é para a Rua Judaica (Osias Wurman) e o Alef (Mauro Wainstok). Devemos felicitar vivamente o Museu Judaico pela iniciativa. Este livro sobre as Comunidades Judaicas nos Subúrbios da Central do Brasil é de um valor inestimável. Merece todo o nosso carinho e reconhecimento. Arnaldo Niskier, Academia Brasileira de Letras (Cadeira nº 18).

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Identidade e memória: a inserção do imigrante judeu na sociedade brasileira.

O

Museu Judaico do Rio de Janeiro, ao apresentar os resultados de sua ampla pesquisa sobre “Comunidades Judaicas no subúrbio da Central do Brasil”, aporta uma significativa contribuição para os estudos no âmbito da História Oral, tendo como sujeito as comunidades judaicas à época da intensa imigração que ocorreu na primeira metade do século XX. Os depoimentos extraídos das setenta entrevistas realizadas com filhos de imigrantes judeus, na maioria, registram os sentimentos emocionados de seus moradores, a vivência cotidiana, suas percepções, olhares e visões sobre seu passado judaico nos bairros atendidos pela expansão da ferrovia e, como decorrência, da reforma urbana realizada pelo Prefeito Pereira Passos, entre 1903/06. Estas mudanças converteram-se em símbolo da modernidade em resposta às exigências da reconstrução de uma cidade republicana livre de sua anterior marca escravocrata. A destruição dos cortiços como proposta de saúde pública e de higienização da cidade, projeto de Oswaldo Cruz, visava livrá-la das pestes e das epidemias, tendo influenciado o movimento de tomada dos morros como moradia popular, as favelas, empurrando para o subúrbio, parte da população que habitava o centro da cidade. Esta pesquisa apresenta diferenciadas vertentes temáticas, todas elas interligadas entre si, constituindo uma totalidade social de características definidoras da vida dos judeus imigrantes que dela participaram. A apresentação de seus resultados está distribuída em uma coleção de doze subtemas, sendo cada qual precedida de uma breve análise das autoras da pesquisa, Ana Antabi e Rachel Niskier, seguida das entrevistas realizadas com seus protagonistas diretos. Essa modalidade de apresentação enriquecida a partir da comparação analítica entre o texto elaborado pela intervenção do ator institucionalizado, o coordenador da pesquisa, e a massa

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de informações em estado de simplicidade literária, as falas das testemunhas, proporcionaram a comparação entre esses dois tipos de discurso, ampliando a compreensão das falas, dos fatos e do olhar prospectivo sobre a realidade estudada. Tomando para análise o período republicano, observamos que entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, as políticas imigratórias adotaram práticas denominadas de portas abertas e desenharam o perfil desejado de sua população – o homem livre na condição de agricultor para se converter em povoador dos grandes espaços vazios à espera de serem habitadas produtivamente e concorrendo como mão de obra na expansão do café, participando da acumulação de capital como meta prioritária da nova elite agrária contra a anterior exploração escravista. No limiar dos anos 30, um intenso debate se instala quanto ao tipo de imigrante que deveria ser atraído visando a reconfiguração da etnia brasileira ou a regeneração racial da população brasileira. Getúlio Vargas, ainda candidato em 1930, afirmava que “durante muitos anos, encaramos a imigração exclusivamente sob seus aspectos econômicos imediatos. É oportuno obedecer o critério étnico submetendo a solução do problema do povoamento às conveniências fundamentais da nacionalidade”, reiterando em 1932, “pelo aperfeiçoamento eugênico da raça vamos apressar o progresso do pais” e continuando afirmara que “a política da livre imigração do passado causou o fenômeno da desfiguração além do enquistamento de minorias nacionais ou étnicas redundando em grande perigo à unidade nacional...”1. A Constituição de 1934, trouxe as primeiras manifestações expressas de restrição à entrada de estrangeiros, introduzindo o sistema de cotas por nacionalidade, que não poderia exceder de 2% sobre o total do respectivo grupo. Os japoneses foram proibidos de imigrar para o Brasil. O contingente judeu foi prejudicado numericamente devido à imputação de serem poucos suscetíveis à fusão, mantendo-se à parte sem promover a assimilação e sua incapacidade de fusibilidade o converteu em indesejável para participar da construção do novo homem brasileiro. Fato que o tempo se encarregou de desmentir! Analisando a performance do imigrante judeu no Brasil, podemos afirmar que este e seus descendentes brasileiros 1

Pinto, Roquette – Seixos Rolados ( Estudos Brasileiros) RJ:1927 Comunidades judaicas nos subúrbios da Central do Brasil  17


conseguiram elaborar uma bela síntese entre identidade judaica e cidadania brasileira, ou seja, mantiveram seus princípios éticos, culturais e religiosos sem abdicar deles, embora relativizados, e se perfilavam como cidadãos autênticos de sua brasilidade. Os depoimentos reunidos nesta pesquisa demonstram as grandes dificuldades em enfrentar a escassez econômica dos primeiros tempos associada à exigência das chamadas cartas de chamada que impossibilitavam a vinda de suas famílias devido ao atraso em obter vistos de entrada e mencionando as proibições contidas nas várias circulares secretas que o governo brasileiro emitia e remetia a seus cônsules sediados na Europa, a partir de 1939. É nesta difícil conjuntura política brasileira que estes entrevistados vivenciaram sua inserção ao novo país de adoção, confirmando o antissemitismo sofrido, porém muito mais referido ao gringo que ao judeu, a dura sobrevivência econômica através da venda à prestação – o clienteltik – com pouco retorno e muito sacrifício! Seu capital era um mero cartão onde registrava a sua contabilidade, mas que poderia se esvair tão logo não houvesse pagamento de sua freguesia. Esse viver no subúrbio era, também e, sobretudo, uma questão de sobrevivência! O clienteltik, em geral, era um homem partido entre o subúrbio – espaço de sua atividade econômica – e o centro da cidade, onde estavam instalados os negócios que lhes dava o crédito em mercadorias – condição indispensável para sua atividade econômica! Porém havia aqueles que, com o passar dos anos, ascendiam socialmente e deixavam os suburbios. Deste modo, coube ao clientellik a proeza de redistribuir a concentração urbana vigente que a cidade promovia e transformar esses espaços suburbanos em locuas ou cópia do anterior urbano por meio da instalação de novas lojas de comércio, de atividades comunitárias, diversificando as ofertas, estendendo as novidades que se espalhavam como apelo ao consumo e, assim, criando polos de atração comercial, como Nilópolis, Madureira e Méier, com influência direta sobre seus espaços contíguos – os bairros adjacentes. O Rio de Janeiro foi o mais importante centro de absorção de imigrantes judeus no Brasil entre os anos de 1920 e 1940. Nesta cidade, instalou-se a Sociedade Beneficente Israelita – Hilf’s Faraim, o Relief, que estabeleceu uma infraestrutura comunitária especialmente dedicada a cuidar dos recém-chegados ao país, desde assistência médica e acomodações até encaminhamento 18  Ana Antabi e Rachel Niskier


ao trabalho. Exerceu importante tarefa social na questão da prostituição de moças judias ao exercer vigilância sobre aquelas que aportavam desacompanhadas e recepcionadas por tipos suspeitos de exploradores do lenocínio. A chegada de grande contingente de imigrantes da Europa oriental, majoritariamente russos e poloneses, e de judeus alemães e de outros países da Europa ocidental, após 1933, caracterizou o perfil askenazita da comunidade judaica brasileira em contraposição à anterior dominância sefaradita dos períodos colonial e imperial. Este deslocamento de dominância étnico-demográfica alterou a composição cultural e política da comunidade, implantando e valorizando novas formas de relacionamento social e de construção ampliada de seu edifício infraestrutural, criando associações voluntárias de vários matizes. Esses imigrantes judeus suburbanos foram protagonistas de uma silenciosa revolução: a redistribuição espacial da atividade econômica, incorporando o subúrbio no novo mapa econômico do Rio de Janeiro, possivelmente sem se dar conta do processo em realização. As comunidades judaicas sediadas nestes subúrbios atendidas pela EFCB, apresentavam grande dinamismo apesar de suas dificuldades econômicas. Os jovens criavam seus grêmios, havia entre eles um relacionamento cultural e esportivo, conferências e debates eram programados, e várias atividades de lazer, como dança, teatro, envolviam membros de bairros vizinhos. Segundo as entrevistas, o papel das mulheres era altamente significativo, principalmente apoiando tarefas que colaboravam para a melhoria do orçamento doméstico. Além dessa contribuição, derivada de uma diferenciada gama de atividades, sua presença era muito importante na transmissão dos costumes e tradições judaicas, bem como do cuidado da casa e das importantes relações de vizinhança que, em situações de fragilidade econômica, preenchem a função de apoio àqueles que necessitam atenção, sem contar com os elogios dos depoentes em relação à deliciosa comida da idishe mame. Várias depoimentos apontam para o conflito entre os judeus comunistas e sionistas. A comunidade judaica, durante os anos 30, encontrava-se polarizada entre dois movimentos de visão ideológica e filosófica distintos e, em certo momentos, antagônicos e conflitantes. De um lado, o segmento auto-intitulado de judeus progressistas que continha em seu interior diferenciações substanciais: comunistas, Comunidades judaicas nos subúrbios da Central do Brasil  19


socialistas, anarquistas, troskistas e bundistas. De outro lado, um segmento que ainda apresentava uma débil organização interna na medida em que se encontrava em estruturação e em disputa para determinar seus limites de atuação singular. Tratava-se do grupo sionista, que também englobava várias denominações partidárias, o que determinava sua urgente unificação em um órgão coordenados para que pudesse obter maior visibilidade interna e externa. Entre um e outro segmento, encontravam-se os judeus religiosos que praticavam um modelo de comportamento moderado, quase que exclusivamente debruçados sobre suas instituições, ficando à margem das grandes discussões públicas que se travavam à época. Cada um desses segmentos e suas facções constitutivas criaram instituições próprias, através das quais expressavam suas mensagens e seus discursos ideológicos. A partir de algumas clivagens significativas, a organização institucional comunitária se apresentou segundo: origem étnicogeográfica – associações judaicas preferentemente ashkenazim e sefaradim; orientação religiosa – homogeneamente tradicional ortodoxa no início da construção comunitária e, posteriormente, instalou-se uma subdivisão – os liberais/reformistas decorrentes da imigração alemã e da influência norte americana; proposta de realização do estado judaico – Sion e Birobidzhan, entre sionistas e comunistas; preferências linguísticas – idishistas e hebraístas determinando a diferenciação do sistema educacional. Como mencionado, grandes disputas ocorriam entre sionistas e comunistas, polarizadas em torno da questão referente à realização judaica como povo e como nação. Este tema constituía-se em foco crucial de dissensão interna entre as duas facções, tendo pendurado até o final da década de 50, mesmo após a criação do Estado de Israel. A defesa apaixonada de Birobidzhan resolvia a questão do universalismo pleiteado pelos comunistas sem descartar sua condição judaica, consignando uma possível igualdade com as demais nacionalidades abrigadas no interior da União Soviética. E assim, Birobidzhan constituía a alternativa ideológica à ideia sionista. Um dos grupos judaicos intensamente acompanhado pelo DOPS foi a esquerda judaica e suas instituições. Isso porque havia uma associação espúria entre a origem russa-polonesa dos imigrantes, e sua inevitável vinculação com o comunismo internacional. O controle exercido e a monitorização constante se processavam 20  Ana Antabi e Rachel Niskier


através dos relatos, orais e escritos, produzidos por detetives, agentes e informantes especialmente designados para tal fim. Os entrevistados, em sua grande maioria, descendentes dos imigrantes judeus que se estabeleceram no Brasil suburbano carioca, relataram os sonhos que embalaram o destino de seus pais e a dureza de seu ganha pão; a maneira como observaram e aprendiam a nova realidade social na qual se encontravam inseridos; a dificuldade de se expressar em uma língua estranha – estrangeira para eles; decodificando as práticas culturais nativas e, sobretudo, sofrendo pacientemente as decepções, as saudades que os torturavam em relação ao antigo lar europeu a de sua família que, coletivamente integrados, enfrentavam as dificuldades de se manterem judeus em contextos radicalmente agressivos. Mas, apesar dos percalços, esses judeus imigrantes em sua precária economia, conseguiram erguer comunidades que possibilitaram a continuidade judaica, quer religiosa ou laica. Esta era sua missão, por ninguém delegada, mas tomada para si como algo que palpitava em seus corações e mentes, seu dever judaico do qual não se eximiam e, com orgulho, permitiam sentir-se realizados. É necessário afirmar que os imigrantes tiveram coragem de romper com suas raízes, fecundadas durante séculos em seus países de origem e o fizeram com determinação. Porém, não abandonando suas orientações culturais e espirituais, replantandoas com muito sacrifício, reestruturando suas vidas e comunidades como forma de reinscrever e assegurar sua identidade. A questão da identidade judaica sempre repousou sobre a herança cultural e religiosa. O processo de construção de uma memória coletiva sustenta-se em dois movimentos que supõem um campo de forças antagônicas entre manter e mudar, entre continuar e aculturar-se; relações que refletem tensões e pressões exercidas sobre os judeus, como minorias que são, em seus países hospedeiros. As forças que se opõem entre o centrípeto e o centrífugo, no interior da vida judaica diaspórica, predispõem o judeu a lutar por construir seu equipamento comunitário para que dê conta de atender as demandas judaicas coletivas e individuais, servindo para criar paredes invisíveis de proteção de seu legado próprio e diferenciado do resto da sociedade em que vivem. Desse modo, procurando garantir, com maior ou menor probabilidade, sua responsabilidade pela conservação do histórico acervo de valores, normas, ética, cultura, tradição e mística, o caminho para a continuidade judaica Comunidades judaicas nos subúrbios da Central do Brasil  21


se fortalece e a manutenção da memória estará presente em todas as gerações, como uma nova construção no qual se preservam os fundamentos básicos. Finalizando, é possível afirmar que a questão da continuidade judaica não foi uma tarefa fácil, frente às forças centrífugas da moderna sociedade brasileira que acenava ao imigrante com sua assimilação. Evidentemente, esses imigrantes sofreram um processo de aculturação brasileira, sem o qual não poderiam ter sobrevivido. Mas o mandato judaico de permanecer fiel às suas raízes e as seus fundamentos/mandamentos fortaleceram suas ações na busca de impregnar sua descendência com os princípios da identidade judaica. Helena Lewin Programa de Estudos Judaicos Universidade do Estado do Rio de Janeiro

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