Cultura da paz

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CULTURA DA PAZ num mundo em conflito Cultura da paz num mundo em conflito

Dom Joel Portella Amado Pe. Leonardo Agostini Fernandes Organizadores


Reitor Pe. Josafá Carlos de Siqueira SJ Vice-Reitor Pe. Francisco Ivern Simó SJ Vice-Reitor para Assuntos Acadêmicos Prof. José Ricardo Bergmann Vice-Reitor para Assuntos Administrativos Prof. Luiz Carlos Scavarda do Carmo Vice-Reitor para Assuntos Comunitários Prof. Augusto Luiz Duarte Lopes Sampaio Vice-Reitor para Assuntos de Desenvolvimento Prof. Sergio Bruni Decanos Prof. Júlio Cesar Valladão Diniz (CTCH) Prof. Luiz Roberto A. Cunha (CCS) Prof. Luiz Alencar Reis da Silva Mello (CTC) Prof. Hilton Augusto Koch (CCBS)


Cultura da paz num mundo em conflito

Dom Joel Portella Amado Pe. Leonardo Agostini Fernandes Organizadores


Copyright © Dom Joel Portella Amado e Pe. Leonardo Agostini Fernandes, 2017. Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem a autorização prévia por escrito das Editoras, poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados. Editor Letra Capital João Baptista Pinto Conselho Gestor Editora PUC-Rio Augusto Sampaio, Danilo Marcondes, Fernando Sá, José Ricardo Bergmann, Júlio Diniz, Luiz Alencar Reis da Silva Mello, Luiz Roberto Cunha, Miguel Pereira e Sergio Bruni. Projeto gráfico de miolo e capa José Antonio de Oliveira Revisão Ivone Teixeira e Cristina da Costa Pereira Cultura de paz num mundo em conflito / Joel Portella Amado, Leonardo Agostini Fernandes, organizadores. – Rio de Janeiro : Ed. PUC-Rio, 2017. 256 p. ; 23 cm ISBN (PUC-Rio): 978-85-8006-224-3 ISBN (Letra Capital): 978-85-7785-524-7 1. Paz – Aspectos religiosos. 2. Guerra – Aspectos religiosos. 3. Movimentos de paz. I. Amado, Joel Portella. II. Fernandes, Leonardo Agostini. CDD: 261.873

Letra Capital Editora Telefax: (21) 3353-2236 / 2215-3781 vendas@letracapital.com.br www.letracapital.com.br Editora PUC-Rio Rua Marquês de S. Vicente, 225 – Gávea Rio de Janeiro, RJ – CEP 22451-900 (Casa Editora PUC-Rio/Comunicar) Tel.: (21) 3527-1760/1838 edpucrio@puc-rio.br www.puc-rio.br/editorapucrio


Sumário

7 Apresentação Cardeal Orani João Tempesta O. Cist. 11 Prefácio Pe. Josafá Carlos de Siqueira SJ 13 Introdução Dom Joel Portella Amado e Pe. Leonardo Agostini Fernandes 17 Elementos constitutivos para uma sociedade mais justa e pacífica Cardeal Peter K. A. Turkson 39 A transfiguração da violência: o poder da linguagem e a cultura da paz Pe. João J. Vila-Chã SJ 69 “Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou” (Jo 14,27): testemunhos e desafios das Escrituras Luísa Maria Varela Almendra 89 Desagregar e reintegrar: a guerra como punição em Os 10,9-15 Maria de Lourdes Corrêa Lima 121 O tema da paz na Gaudium et spes à luz de Mt 5,9 Pe. Leonardo Agostini Fernandes


145 A missão da Igreja na construção de uma cultura de paz Dom Joel Portella Amado 157 Por uma leitura bíblico-mistagógica do rito da paz na celebração da eucaristia Pe. Luiz Fernando Ribeiro Santana e Pe. Vitor Gino Finelon 185 Paz: dom messiânico e bem comum Ana Maria Tepedino 197 O conflito entre Israel e Palestina: o papel de tradições judaicas e cristãs Pe. Luís Corrêa Lima SJ 211 A cultura da paz no islamismo Lina Boff 217 Nos caminhos ecumênicos e inter-religiosos para a paz Maria Teresa de Freitas Cardoso 229 Pólemos × Eirene: guerra e paz em uma perspectiva filosófica Danilo Marcondes 237 Processo comunicativo: construtor do medo ou da esperança? Miguel Pereira 247 Sobre os autores


Apresentação Cardeal Orani João Tempesta O. Cist. Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro Grão-chanceler da PUC-Rio

“Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la dou como o mundo a dá. Não se perturbe o vosso coração nem se atemorize” (Jo 14,27). Esta palavra de Jesus, tão conhecida e sempre muito citada, é, por um lado, uma afirmação incisiva e que tem força de promessa a se cumprir em todos os tempos; mas, por outro lado, devido às situações difíceis que nos cercam, são palavras que correm o risco de não serem levadas em consideração. Como grão-chanceler desta universidade, cabe-me abrir este Simpósio Internacional sobre a Promoção da Cultura da Paz num mundo em conflito, e eu o faço com alegria e esperança. Certamente as reflexões irão levantar questões sobre o tema da paz sob diversos enfoques. Preocupam-nos os conflitos armados dispersos pelo mundo, com suas nefastas consequências, como mortes, rupturas sociais, migrações forçadas. Mas também são muito graves as disputas econômicas, que promovem a competição acirrada entre os mercados e o domínio de grupos poderosos sobre os mais pobres. Voltando o olhar para a nossa própria realidade, vemos que as situações de violência se repetem e até mesmo se agravam, colocando em risco a segurança das pessoas e a própria estabilidade social. A cada momento vemos o agravamento da violência no mundo e em nossas cidades, penso em particular no Rio de Janeiro, com suas próprias características. Refletir sobre o tema da paz torna-se cada vez mais premente. Afinal, quais os caminhos para a humanidade se reencontrar sem fanatismo, sem violência e no respeito mútuo? O Santo Padre, o Papa Francisco, em sua encíclica Evangelii Gaudium, nos interpela na medida em que nos convida, governados e governantes, a construirmos juntos uma pátria sem diferenças sociais tão 7


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agudas, uma pátria onde a corrupção não se sinta segura para agir livremente e onde ninguém se canse de acreditar que isso é possível. Neste mundo frequentemente dilacerado por discórdias, divisões e violência, todas as pessoas de boa vontade, nos variados contextos socioeconômicos, políticos e religiosos, são urgentemente chamadas a colaborar na defesa dos ideais de paz e justiça, no empenho pelo bem comum das nações em geral e de cada indivíduo em particular. É um diálogo difícil em meio à ambivalência que caracteriza as cidades, com suas contradições, na convivência de variadas formas culturais e, ao mesmo tempo, práticas de segregação e violência, tráfico de drogas, abuso de pessoas em vários níveis, corrupção e crimes. A proclamação do Evangelho nesses contextos é uma base para restabelecer a dignidade da vida humana e remédio para os males urbanos, desde que a evangelização consiga se inserir no coração dos desafios. Abordar o tema da paz de maneira acadêmica vem ao encontro dos necessários aprofundamentos sobre a pastoral nas grandes cidades. A Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, de acordo com seu Plano de Pastoral, procura viver a prática da virtude da esperança. Ao vivê-la, une-se a todos que, de algum modo, se inquietam com as ameaças cada vez mais graves à paz e à vida, ameaças que, num mundo globalizado, atingem a todos nós. Como bem sabemos, a paz é ameaçada pela pobreza, fome, ausência de emprego e de moradia. A paz é violentamente agredida pela corrupção e pela insensibilidade diante dos que sofrem. Não há como permanecer indiferente em face das crescentes perseguições religiosas, trazendo, novamente, muitos irmãos e irmãs ao martírio. O mesmo pecado que destrói vidas humanas destrói igualmente o planeta, nossa casa comum, como nos disse o Santo Padre em sua encíclica Laudato Si’: “Estas situações provocam os gemidos da irmã Terra, que se unem aos gemidos dos abandonados do mundo, com um lamento que reclama de nós outro rumo” (n. 53). Tantas dores pedem um mundo diferente! Entretanto, estamos diante de um mundo que, apesar dos gritos por socorro, mais vislumbra a construção de cercas e muros para afastar refugiados, a distância do poder público para não perceber as dores, e a inércia diante do comércio de armas, drogas e até mesmo seres humanos, traficados de um lugar para outro como se fossem a pior das mercadorias. São exemplos que todos conhecemos. Como, pois, não ouvir esses gritos? 8


Apresentação

Para mim, tratar do tema da cultura da paz num mundo em conflito é, antes de tudo, assumir uma postura: ouvido aberto, atento, compassivo, misericordioso diante de tantos e tantos clamores. É a academia que se une em seus diversos setores e especializações. São academias diferentes que se encontram para partilhar os estudos em prol da cultura da paz num mundo onde o conflito quer se impor como regra. É aqui, pois, onde eu vejo a esperança. Nas mentes e nos corações que se unem para pensar, refletir e impulsionar um novo agir rumo à paz, tão desejada, porém, algumas vezes, tão distanciada. Maior ainda é minha alegria ao poder contar com a palavra de Sua Eminência, o Cardeal Peter Turkson, presidente do Pontifício Conselho para a Justiça e a Paz. Se cada organismo da Igreja tem em suas finalidades a busca e a construção da paz, mais ainda o organismo presidido pelo Cardeal Turkson. É exatamente em seu dicastério que a Sé Apostólica acolhe os clamores de milhares de pessoas do mundo todo e se empenha para que a paz e a justiça se abracem e se fortaleçam. A experiência pessoal de um sacerdote oriundo da tão sofrida irmã África é somada à experiência de vários anos à frente do Pontifício Conselho para a Justiça e a Paz. Esse organismo da Santa Sé existe para ajudar a superar as dores daqueles que nosso querido Papa Francisco tem em seu coração: os pobres, os aflitos, os que vivem em situação de periferia existencial. Gostaria de concluir com um texto do Papa Francisco, parte da mensagem que ele dirigiu ao corpo diplomático acreditado na Santa Sé, por ocasião do ano novo de 2014: O egoísmo e o isolamento criam sempre uma atmosfera asfixiante e pesada, que mais cedo ou mais tarde acaba por estiolar e sufocar. Ao contrário, serve um compromisso comum de todos para favorecer uma cultura do encontro, porque só quem consegue ir ao encontro dos outros é capaz de dar fruto, criar vínculos de comunhão, irradiar alegria, construir a paz. Que estas reflexões fortaleçam nosso compromisso comum com a cultura do encontro e da paz, e possam trazer frutos onde quer que se façam necessários.

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Prefácio Pe. Josafá Carlos de Siqueira SJ Reitor da PUC-Rio

A história da humanidade nos mostra que a paz é um atributo fundamental de todas as sociedades, pois a mesma expressa um desejo de integração entre as três dimensões da pluralidade da liberdade humana, ou seja, a relação com Deus, com o próximo e com toda a criação. Na perspectiva da fé, a paz supõe a vivência da bem-aventurança, “Felizes os que promovem a paz, porque se chamarão filhos de Deus” (Mt 5,9), mas também o compromisso com a Aliança entre o Criador e todas as criaturas (cf. Gn 9). Certamente, este desejo profundo de viver e testemunhar a paz só pode ser almejado se este imperativo estiver relacionado com uma profunda experiência de Deus, com a encarnação ética dos princípios sociorreligiosos, e com um processo de mediação de conflitos entre as diferenças sociais e políticas de povos, nações e culturas. Quanto mais aumentam as violências e os conflitos, mais somos desafiados a buscar a paz, quebrando o nosso comodismo e omissão, e fazendo-nos agentes portadores e mediadores da paz. Há 48 anos, a Encíclica Populorum Progressio do Papa Paulo VI, nos falava que o desenvolvimento seria o novo nome da paz, fundada numa ordem mundial mais justa, fraterna e solidária, envolvendo dimensões materiais, culturais, espirituais e religiosas. Infelizmente, o desenvolvimento que enfatizou a dimensão econômica valorizou mais o lucro dos que as pessoas, fez crescer as exclusões sociais, destruiu de maneira irresponsável o meio ambiente, colocou os valores religiosos na periferia da existência, e intensificou os conflitos, mostrando-se, desta forma, vulnerável e insustentável, sendo hoje questionado como um elemento mediador da paz. O Papa Francisco, na Evangelii Gaudium (n. 219), nos lembra que uma paz que não surja como fruto 11


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do desenvolvimento integral de todos não terá futuro e será sempre semente de novos conflitos e variadas formas de violência. A temática do presente livro é atual no âmbito da sociedade e da Igreja, onde a construção de uma cultura de paz se dá no diálogo permanente entre as diferenças. Somente na pluralidade de ideias, opções e convicções é que conseguiremos encontrar mediações que levem à paz, seja ela pelo consenso entre os humanos, ou pela via de uma espiritualidade enraizada nos princípios e valores da Palavra de Deus. Se a palavra paz (shalôm/eirénē) aparece mais de 350 vezes no Antigo e Novo Testamentos, é porque, segundo São Paulo, ela é um dos frutos do Espírito (cf. Gl 5,22), constituindo assim um dom a ser buscado e galgado, tanto nos consensos como nos dissensos entre povos e nações. Nos últimos anos a experiência internacional tem nos mostrado que as religiões, e de modo particular o catolicismo, são instâncias imprescindíveis na construção e mediação da paz, seja pela capacidade de manter a unidade na pluralidade, pelo testemunho de pessoas e lideranças que, motivadas pelo Evangelho de Jesus Cristo, se dedicam em prol de uma sociedade mais fraterna e solidária, onde a paz deixa de ser uma utopia para ser uma realidade vivida no cotidiano da existência. Na Universidade Católica, onde segundo a Ex Corde Ecclesiae (n. 26), convivem pessoas de outras Igrejas, religiões e colegas que não professam nenhum credo religioso, temos uma missão comum de construir estruturas de paz entre as diferenças, contribuindo para criar sementes de paz na sociedade. Neste sentido, é louvável a iniciativa do presente livro e merece todo o apoio da direção da PUC-Rio. Auguramos que ajude a superar os desafios da construção da paz num mundo em conflito.

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Introdução

Nunca se falou tanto ou se escreveu tanto sobre a paz. Nunca ela foi tão almejada e tida como tão distante de ser alcançada. O tema da paz tornou-se até motivo de premiação internacional, passando a ocupar amplo espaço nos debates públicos. Isso já é suficiente para compreender a paz como um bem necessário, sem o qual os outros bens não conseguem ser desfrutados. Em primeiro lugar, esse amplo espaço dedicado à paz tem uma razão antropológica, pois deriva dos anseios profundos do ser humano (somem-se aos anseios de paz: os de justiça, de igualdade, de liberdade etc). Em segundo lugar deve-se ao volume das notícias que circulam com grande velocidade, visto que as fronteiras geopolíticas foram encurtadas pelos avanços obtidos nos meios de comunicação de massa, em particular pelas mídias digitais. Esse amplo espaço dedicado à paz, após o término da Segunda Guerra Mundial, deve-se, ainda, às diversas formas de conflitos, de violência, de guerras ou guerrilhas locais e, em particular, ao terrorismo, que estão em grande ascensão, recrudescendo em vários níveis sociais, sobre os quais se assiste, com perplexa impotência, a uma falta de solução. As causas das violências urbanas são mais complexas e camufladas do que as causas que desencadeiam as guerras e os terrorismos. Ideologias, cobiças, paixões desordenadas, rancores, intolerâncias, fundamentalismos e, principalmente, o nefasto egoísmo, que cria e perpetra as várias formas de desníveis sociais, culturais e econômicos, tornam o ser humano um dileto agente do mal. Um fato parece-nos evidente: as gerações que vivenciaram, na própria carne, os horrores das duas últimas grandes guerras, a elas sobreviveram e se empenharam por reconstruir o que por elas veio abaixo, 13


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praticamente já deixaram o convívio dos vivos e espera-se que tenham encontrado, pelo menos, a “paz da morte”, pois é comum se dizer diante de quem morreu: “Descanse em paz!”. Ao lado disso, as gerações sucessivas estão testemunhando o advento acelerado de grandes, numerosas e avançadas tecnologias, dentre as quais, lamentavelmente, grande volume de pesquisas que acontece no campo bélico. Os temores de novas guerras, com armas cada vez mais potentes e sofisticadas, aumentaram e continuam a angustiar a família humana. É deplorável, mas o progresso científico e as tecnologias mais avançadas, responsáveis por movimentar cifras bilionárias no mundo, parece que não conseguem fazer o ser humano progredir como ser humano. Além disso, é preciso lembrar que a indústria dos games que mais cresce no mundo é a dos jogos de combate. Isso não é difícil de constatar, por exemplo, nos desenhos animados. Desde pequenas, as crianças são incitadas à violência, aos conflitos e à guerra. A proposta é que o outro é um inimigo que precisa ser combatido e eliminado. Então, quase naturalmente, surgem questões dos tipos: Que leitura deve ser feita dessa realidade? Que valores precisam ser evidenciados e repropostos à sociedade? Que critérios devem ser usados na avaliação do que está acontecendo no mundo? Por que, apesar de tantos progressos científicos e tecnológicos, os problemas da sociedade não diminuíram, mas, ao contrário, aumentaram não só de volume, também em complexidade? Que ações eficazes devem ser tomadas para responder aos novos desafios? Qual o papel dos cristãos na busca e promoção de uma cultura da paz num mundo em conflito? Além dessas, gostaríamos de colocar mais uma: seria possível “restabelecer a paz” onde ela foi violada, criando e mantendo programas sociais e educacionais eficazes e que realmente sejam capazes de elevar o nível cultural do ser humano, em particular dos mais necessitados, de modo a diminuir a desigualdade social no mundo, fonte de várias formas de violência? A resposta, por certo, seria: sim! Mas sem o empenho capaz de levar à inanição, à ambição e ao egoísmo, que tornam o ser humano cada vez mais violento e perverso, as chances desse “sim” não são tão promissoras. O que realmente pesa nas decisões a serem tomadas, em qualquer situação que comprometa a paz, para quem tem fé em Deus, foi, é e sempre será a mesma: a luta pelo valor inestimável da vida e a intransferível tarefa cultural e educadora da família no seio da sociedade. Sem a família, dom de Deus e esperança da humanidade, o ser humano não recebe os valores, os fundamentos psicológicos e éticos 14


Prefácio

essenciais para crescer e se desenvolver, de modo íntegro e integralmente, como agente proativo do bem, da justiça e da verdade, geradores da paz que, por sua vez, gera a segurança para a vida. Acreditamos que cada uma das reflexões contidas neste livro pode ajudar a desencadear um processo de reversão da violência, a protagonizar um renovado ardor a serviço da paz e a gerar nas pessoas o conhecimento capaz de reorientar as ações em prol da vida. Que a mensagem do amor, da fraternidade, da justiça e da paz seja a principal opção e a prioridade mais alta de nossa vida. Ótima leitura! Dom Joel Portella Amado e Pe. Leonardo Agostini Fernandes Organizadores

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Elementos constitutivos para uma sociedade mais justa e pacífica Cardeal Peter K. A. Turkson

Introdução Com profunda gratidão pela acolhida hospitaleira, eu trago saudações calorosas do Pontifício Conselho para a Justiça e Paz a este importante simpósio internacional, que procura promover uma cultura de paz em um mundo tragicamente conflituoso. Estou especialmente honrado em contribuir para o impressionante esforço interdisciplinar e para a cooperação internacional empreendida pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, pela Universidade Católica de Lisboa e pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Que Deus abençoe generosamente todas as reflexões e intercâmbios com grande êxito e, na verdade, ainda mais: com a graça transformadora da justiça e paz para todo o povo de Deus em todos os lugares. Nesta reflexão, desejo sugerir e explorar alguns componentes para a construção da paz e de uma sociedade mais justa. Esses componentes derivam da doutrina social da Igreja, que é dever de nosso Pontifício Conselho “aprofundar” e “se empenhar para que seja amplamente difundida e posta em prática”1. Esperamos que as nossas discussões deem origem a questões novas e profundas, que possam ser propostas para as ricas contribuições bíblicas, filosóficas e teológicas que serão feitas pelos demais docentes. Vou mergulhar direto na minha conferência, recorrendo não só aos meus estudos na Sagrada Escritura, mas também aos 18 anos de experiência como Arcebispo de Gana. A paz tem uma irmã, e o nome dessa irmã é justiça. Paz é o fruto da justiça, e justiça é um termo relacional. Atribuída a Deus e ao homem, a justiça denota, principalmente, “respeito pelas exigências da relação em que se estabelece”. Portanto, 17


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a pessoa justa ou reta das Escrituras é aquela que respeita as exigências da relação em que se estabelece, sejam exigências de relação com o Deus das alianças, sejam exigências de relações com irmãos e irmãs da comunidade de aliança e até mesmo com o estrangeiro. O justo e reto das Escrituras (tsadiq) é aquele que respeita as exigências de relações e constrói comunhão, harmonia e paz. É assim que “justiça e paz se abraçarão, beijarão” nas palavras do Salmo 85,11. O oposto do justo é o perverso (rasha’), é aquele que desconsidera as exigências de relações e assim arruína relacionamentos, comunhão e paz. Já que a paz é inconcebível sem a justiça, uma cultura de paz requer uma cultura de justiça; e ambas devem começar com o compromisso de respeitar radicalmente as exigências básicas de todas as relações em que vivemos, para viver sem violência no mundo e para cuidar da Terra. Tal conduta é reforçada quando diferentes grupos na sociedade resolvem conflitos e diferenças com essa abordagem. Essas são as conclusões do Segundo Sínodo sobre a Igreja na África a serviço da reconciliação, da justiça e da paz (outubro de 2009)2. O compromisso com a justiça e a não violência está intrinsecamente conectado à conversão. Para alguns, ela é motivada por compreensão de que soluções violentas não restauram ou facilitam a integração pacífica duradoura nas sociedades, mas muitas vezes servem para aumentar a violência. Outros tornam-se defensores de soluções pacíficas e não violentas quando são expostos ao sofrimento humano causado pela violência. Pacificadores tendem a emergir de situações de sofrimento e não de ambientes acadêmicos. Aqueles que promovem uma transformação pacífica do mundo normalmente trabalham primeiro para transformar tendências violentas e opressivas em si mesmos e se tornam advogados para aqueles que sofrem as consequências violentas de estruturas injustas. A vida inteira baseia-se em relações ou em sua ausência ou distorção. Quando vivemos de modo a respeitar as exigências de relações, somos justos, e agimos com justiça3. E o fruto da justiça é a paz. A paz está diretamente relacionada com a qualidade das relações pessoais e comunitárias. Para construir um mundo mais pacífico, necessitamos de relações justas em nível pessoal, entre indivíduos, comunidades e nações, com a criação e, enfim, com Deus. Todos nós contribuímos para uma sociedade mais justa e menos violenta cultivando relações retas e justas em todos os níveis de nossa vida. Se não estamos ativamente contribuindo para a solução, então certamente somos parte do 18


Elementos constitutivos para uma sociedade mais justa e pacífica

problema. A questão é simples: estamos indo na direção de relações mais justas ou na direção oposta? Meio século atrás, a questão era muito dramática e quase trágica: parecíamos estar indo inexoravelmente na direção da primeira (e última!) guerra nuclear mundial. Em outubro de 1962, durante o pontificado de S. João XXIII, a crise dos mísseis de Cuba trouxe o mundo perigosamente ao confronto nuclear. As tensões da guerra fria entre Estados Unidos e URSS se aproximaram da ruptura. A paz do mundo estava severamente ameaçada, e o compromisso com a paz gravemente afetado. Foi na sequência tensa da crise que o Santo Papa João XXIII escreveu sua carta encíclica, Pacem in Terris4, com sua frase de abertura: “A paz na Terra, anseio profundo de todos os homens de todos os tempos, não se pode estabelecer nem consolidar senão no pleno respeito da ordem instituída por Deus.” Nesses momentos de escuridão e desespero, o Papa à beira da morte deu esperança tangível para o mundo, enquanto gentil, mas persuasivamente, propôs a solução de uma política prática da mediação, justiça e amizade política. Essa foi a primeira encíclica dirigida não só aos católicos, mas também “a todos os homens de boa vontade” que são chamados para uma grande tarefa: “Estabelecer com a verdade, justiça, amor e liberdade novos métodos de relações na sociedade humana.” Pois amizade política entre as diferenças é uma prática fundamental para a justiça social e a paz5. Assim, São João XXIII fornece dois padrões impecáveis para qualquer trabalho de construção da paz justa: profundo respeito pela “ordem estabelecida por Deus” e a disposição corajosa para arriscar “amizade política entre as diferenças”. Essas são referências para agora chegarmos ao nosso próprio tempo e enfrentar seus desafios. É nossa esperança reunir elementos constitutivos de confiança para uma paz mais justa e duradoura. Para isso, agora vamos encontrar recursos extraordinariamente úteis e complementares no ensinamento do Papa Emérito Bento XVI e do Papa Francisco. A construção da paz Vejamos, primeiramente, Caritas in veritate, do Papa Bento XVI6. Publicada há mais de oito anos, essa grande encíclica social aplica os profundos recursos da tradição social católica às questões sociais cruciais do início do século XXI. Na Laudato si’, o Papa Francisco cita Caritas in 19


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veritate mais de uma dúzia de vezes. Ela articula — e situa devidamente — nossa preocupação pelos elementos constitutivos de uma sociedade justa e pacífica do seguinte modo: como podemos “dar forma de unidade e paz à cidade do homem e torná-la em certa medida antecipação que prefigura a cidade de Deus sem barreiras”? (CiV § 7). Deixe-me clarificar, caso alguém tome essa expressão de uma forma sectária estreita: a construção da “cidade do homem” é uma tarefa para todas as pessoas de todas as religiões que trabalham juntas em respeito mútuo. Como, então, homens e mulheres, como cidadãos do aqui e agora, contribuem para a construção de uma “cidade do homem” que seja mais reflexo da cidade celestial? Para essa grande questão, Caritas in veritate fornece uma resposta sumária: “A cidade do homem não se move apenas por relações feitas de direitos e de deveres, mas antes e sobretudo por relações de gratuidade (gratuidade = caridade), misericórdia e comunhão” (CiV § 6). Construir a cidade é uma questão de curar relações quebradas por violações e violência, e de promover relações construtivas saudáveis de justiça, amor e paz. Em um breve parágrafo, apenas cerca de 130 palavras, o Santo Padre emérito detalha as qualidades e virtudes necessárias para esse trabalho de construção: A complexidade e gravidade da situação econômica atual preocupa-nos, com toda a justiça, mas devemos assumir com realismo, confiança e esperança as novas responsabilidades a que nos chama o cenário de um mundo que tem necessidade duma renovação cultural profunda e da redescoberta de valores fundamentais para construir sobre eles um futuro melhor. A crise obriga-nos a projetar de novo o nosso caminho, a impor-nos regras novas e encontrar novas formas de se empenhar, a apostar em experiências positivas e rejeitar as negativas. Assim, a crise torna-se ocasião de discernimento e elaboração de nova planificação. Com esta chave, feita mais de confiança que resignação, convém enfrentar as dificuldades da hora atual. (CiV § 21)

Olhando atentamente para esse parágrafo ricamente sugestivo, nós podemos destilar cinco maneiras sugeridas pelo Papa Emérito para construir a cidade do homem com qualidades mais próximas da cidade sem barreiras de Deus: 1) Começar com uma atitude realista, se aproximando das dificuldades do tempo presente com discernimento. 20


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