Drogas por quem nunca usou

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Drogas por quem nunca usou

2ª Edição Revista e Atualizada



Wanderley Rebello filho

Drogas por quem nunca usou 2ª Edição


Copyright © Wanderley Rebello Filho, 2005 wrf@rebelloebernardo.com.br 2ª Edição, 2010 Editor João Baptista Pinto Capa Luiz Henrique Sales Editoração Eletrônica Francisco Macedo Revisão Henrique de Lima

CIP - BrasiL. Catalogação na Fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. O52d Oliveira Filho, Wanderley Rebello de Drogas: por quem nunca usou! / Wanderley Rebello. - Rio de Janeiro: Letra Capital, 2005 Inclui bibliografia ISBN 85-8656872-4 1. Drogas - Abuso. 2. Drogas - Abuso - Prevenção. 3. Drogas - Abuso Tratamento. I. Título. 05-1468

CDD 362.293 CDU 613.81

11.05.05 12.05.05 010124

Letra Capital Editora Telefax: (21) 2224-7071 / 2215-3781 www.letracapital.com.br


Dedicatória Dedico este livro ao meu pai, homem que nunca vi bebendo ou fumando, que nunca chegou em casa, sequer com cheiro de álcool; homem que nunca vi no balcão de um bar com um copo na mão, e homem cujo comportamento, sem dúvida, me influenciou; e eu o quis imitar. Do somatório de motivos que me levaram a jamais usar drogas, o exemplo que foi o meu pai, sem dúvida o primeiro motivo, serviu de base para que todos os demais vencessem, com mais facilidade, a luta contra o meu possível ingresso no mundo das drogas, um “deserto em que se fica estranho e só, e que nos deixa sempre longe de chegar mais perto de algum lugar”. E dedico este livro, também, aos meus três filhos menores, Lucas, Gabriel e Mateus – pois a filha Luana, maior de idade, já se livrou do perigo das drogas – esperando que eles imitem os exemplos do pai e do avô.


Não vai aqui nenhuma crítica às pessoas que bebem, nem às que ficam em bares bebendo, nem às que fumam. Não faço críticas a ninguém, até porque escrevo favorável ao direito de escolha e ao direito de qualquer um usar o que quiser, quando quiser. Respeito profundamente o direito de cada um de fazer o que quiser, desde que sem causar qualquer prejuízo a terceiros. Mas, sem dúvida, filhos que vêem pais fazendo uma ou outra coisa, rotineiramente, correm risco maior de fazerem as mesmas coisas. Isto, todos nós sabemos, é a imitação. Jamais critiquei as pessoas por beberem, fumarem ou usarem drogas, lícitas ou ilícitas, mas já fui criticado e discriminado por não usar drogas e, até hoje, ainda o sou às vezes por não beber. “Acredite... se quiser”!


Agradecimentos Agradeço a todos os meus amigos e amigas que partiram por causa das drogas, onde quer que eles estejam. Foram eles que, ao longo dos anos atribulados que agora eu vivo, me incentivaram espiritualmente e não me deixaram desistir deste trabalho. Foram eles que insistiram para que eu terminasse este livro, na esperança de que outros jovens possam ter acesso a importantes informações e não venham a ter o mesmo destino triste e sofrido que eles tiveram. Eles eram jovens e adolescentes que não sabiam o que faziam, ou que não tinham consciência dos danos que as drogas poderiam lhes causar. A euforia passageira foi argumento suficiente para justificar o ingresso no submundo das drogas, que acaba se transformando em um submundo de pensamentos e ações no qual tudo se perde, tudo se destrói. Eles me prometeram que, se eu conseguir salvar um jovem que seja com este livro, afastando-o do mundo das drogas, virão me visitar na Terra, como raios de luz, e me ajudarão a iluminar esta insana escuridão. Wanderley Rebello Filho



Sumário Sobre o autor

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Introdução 15 Capítulo I Palavras do autor

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Capítulo II O que são drogas? Quais as piores?

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Capítulo III O papel da família, da escola e das autoridades

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Capítulo IV As drogas nos esportes

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Capítulo V A nova Lei 11.343/2006

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Capítulo VI Como tratar usuários e onde buscar ajuda

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Capítulo VII Drogas. Casos Verdadeiros

142

Capítulo VIII Conclusões e lições finais

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Poesia 187 Centros de tratamento

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Bibliografia 190


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Sobre o autor Wanderley Rebello Filho é advogado criminalista, formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica/RJ, em julho de 1980. É Mestre em Direito pelo curso “Novos Direitos: Direito e Evolução Social”, da Universidade Estácio de Sá, Centro, Rio de Janeiro (2001/2003). Foi membro, por duas vezes, do Conselho Estadual de Entorpecentes do Estado do Rio de Janeiro, como representante da OAB/RJ. Idealizou, no ano 2000, a criação da Comissão de Combate às Drogas e à Dependência Química, da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Estado do Rio de Janeiro, que começou a funcionar em 2001. Levou a indicação pela criação da Comissão para o Conselho Pleno da OAB/RJ naquele ano, auxiliado pelo seu amigo, o advogado Rogério Rocco Filho, que foi aprovada em decisão unânime. O autor elaborou o regimento interno da Comissão e traçou as diretrizes para o seu funcionamento. É Secretário Geral Adjunto da OAB-RJ para o biênio 2010/2012, sendo também o atual Presidente da Comissão de Combate às Drogas. É presidente da Sociedade Brasileira de Vitimologia. Foi membro do Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro de 1991 a 1995 e de 1999 a 2003, ao qual foi recon-

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duzido em março de 2005, em razão do falecimento de seu amigo, o advogado Nilton França Júnior. Este último mandato se encerrou em agosto de 2007. Foi vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ, na qual atuou por mais de dez anos. É Procurador do Superior Tribunal da Justiça Desportiva de Futebol (CBF). É presidente da Comissão Disciplinar do Tribunal de Justiça Desportiva da Confederação Brasileira de Vôlei. Foi presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/ RJ de 1993 a 2006, indicado pelo então presidente da OAB/ RJ, Dr. Sérgio Zveiter. É presidente da Comissão de Esportes e Meio Ambiente do Comitê Olímpico Brasileiro desde 1997, indicado pelo presidente Carlos Arthur Nuzman. Atuou, de 1998 a julho de 2004, na CÁRITAS – Arquidiocesana do Estado do Rio de Janeiro, no atendimento e defesa de refugiados no estado do Rio de Janeiro, indicado pela OAB/RJ durante a gestão do presidente Celso Fontenelle, em convênio assinado entre a CÁRITAS, a OAB/RJ e o ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Foi conselheiro titular da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Estado do Rio de Janeiro, de 1990 a 2006. É membro do Instituto dos Advogados Brasileiros, IAB/RJ. É membro do Conselho Empresarial de Meio Ambiente da Associação Comercial do Rio de Janeiro. É presidente do Instituto de Estudos dos Direitos Humanos e do Meio Ambiente, IEDHMA. É autor, em parceria com a advogada Christianne Bernardo, do livro Guia prático do direito ambiental, já na 3ª edição, da editora Lumen Jures. É autor dos seguintes livros publicados pela Letra Capital

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Editora: “Mulheres em Jardim de Cristal”, – poesias, 2002; “O Verão das Latas de Maconha – O Processo”, 2006; “Bioética, Biodireito e Direitos Humanos”, 2007; “Injustiça por Encomenda”, 2009 e “Menos Leis, mais Justiça”, 2010.

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Introdução O que é o livro Este é um livro fundamentalmente de pesquisa, mas que contém, de igual modo, a opinião de vários jornalistas e escritores sobre o tema, e também a minha opinião! Nele, encontra-se a reprodução de muitas entrevistas extraídas de revistas e jornais. Entre outros, aqui falaram (foram reproduzidos) Cora Rónai, Artur da Távola, João Ubaldo Ribeiro, Arthur Dapieve, Ronaldo Fucs e até o jogador de futebol Romário. Aqui há contos baseados em fatos verdadeiros que testemunhei; há, ao final, uma poesia sobre o destino e a vida de uma usuária de drogas. Há, principalmente, um pedido: reflita e tire as suas próprias conclusões. Não sou o dono da verdade. Estou convidando a todos para debater.

Catedral Agora, peço autorização e licença poética a Tanita Tikaram para me utilizar de trechos de sua linda canção, Cathedral Song, cantada por vários artistas brasileiros, e a Zélia Duncam, por ter imortalizado esta canção entre nós. A canção foi modificada e utilizada como metáfora para o início de meu trabalho. Drogas: por quem nunca usou

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A letra da música se encaixa bem na idéia que eu tenho do cruel “mundo das drogas”, e de como sempre vi os que se envolveram neste mundo de ilusões e fantasias. Sempre vi o mundo das drogas como um deserto que o usuário tenta atravessar pensando que alguém o está admirando, mas, na realidade, ninguém o está, sequer, vendo passar. O usuário fica estranho e só. A gente tenta avisar que ele está cada vez mais longe de chegar mais perto de algum lugar, mas não adianta. E quando a gente se assusta, e se dá conta do perigo que é esta viagem do usuário pelo deserto das drogas, a gente insiste e tenta dizer, e tenta avisar. Lembro-me de que um dia olhei para mim e, apavorado, me imaginei assim, estranho e só, usando drogas, e longe de chegar perto de algum lugar. Pois o usuário está sempre em nenhum lugar. E ele pensa que é imortal. Mas tinha que existir, eu sabia que tinha que existir este lugar onde eu pudesse chegar e resistir às drogas. O meu lugar. Pois, depois que se chega a nenhum lugar com o uso das drogas, pelo que mais se implora é que alguém nos diga como voltar. Várias vezes tentei dizer, tentei avisar, mas, infelizmente, vi muitos amigos meus que usavam drogas cada vez mais longe de chegar mais perto de algum lugar. Alguns foram longe demais... mas, para nenhum lugar. Alguns voltaram, marcados para sempre; outros se foram, também para sempre. Mas existe um lugar onde você pode chegar e resistir às drogas. O seu lugar, onde só você pode chegar... dentro de você. Pois só depende de você!

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capítulo I

Palavras do autor

Se evito que um coração se parta, não terei vivido em vão; se suavizo a dor de uma vida, ou alivio um sofrimento, ou levo de volta ao ninho um filhote ferido, não terei vivido em vão. (Emyly Dickinson) “Enquanto não conseguirmos suprimir qualquer uma das causas do desespero humano, não teremos o direito de tentar a supressão dos meios pelos quais o homem tenta se livrar do desespero” (Antonin Artaud, 1896-1948, francês, escrito em um texto chamado Segurança pública: a liquidação do ópio). Vocês podem estar certos de que, no improvável dia em que as autoridades conseguirem acabar com a maconha, a cocaína e com todas as demais drogas ilícitas, o ser humano vai continuar se drogando com álcool (como já o faz, desde muito antes das outras drogas ficarem famosas), e/ou com drogas que por ele serão fabricadas em casa, em laboratórios clandestinos, ou em qualquer outro lugar. Ele irá cheirar colas, produzirá as mais letais misturas para beber ou para cheirar, vai beber perfume ou álcool puro, ele vai fazer o que estiver ao seu alcance para tentar sentir apenas um barato, ou o abençoado alívio que o permitirá fugir de seu particular desespero. Drogas: por quem nunca usou

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O pensamento de Antonin Artaud reflete uma verdade que me persegue há muitos anos: jamais deixarão de existir as drogas e os usuários de drogas, e jamais nos livraremos dos traficantes. Jamais! Podemos, quando muito, reduzir estes problemas. O problema do álcool e das outras drogas é mais antigo do que toda a guerra inútil que se desencadeou por todo o mundo, e que mandou para a cadeia milhares de indivíduos que nunca ofereceram qualquer perigo para a sociedade, que eram apenas usuários eventuais ou dependentes (doentes). Só que, quase todos, eram inocentes! Excluídos os traficantes, ninguém merece ir para a prisão porque consome drogas, sejam elas lícitas ou ilícitas. Depois de tudo o que vi ou ouvi sobre o tema drogas, afirmo que crime (pois ainda é) muito maior do que consumir drogas ilícitas – pois as lícitas podem ser consumidas – é mandar para a cadeia, ou condenar de qualquer forma, um usuário eventual ou um dependente de substância entorpecente. O pensamento de Antonin Artaud foi retirado de uma crônica publicada no jornal O Globo, dia 21 de dezembro de 2001, assinada por Arthur Dapieve. Ele resolveu escrever sobre drogas porque leu a declaração do general Paulo Roberto Uchoa ao tomar posse como secretário nacional antidrogas, em dezembro do ano 2001: “Fumar maconha não é crime. O usuário não é criminoso. Crime é vender. Quem usa maconha precisa de aconselhamento, de informação. (...) Lembrei-me, então, de outra declaração que, em agosto, havia causado igual polêmica. Seu autor foi o comandante da PM fluminense durante o primeiro dia de debates da I Conferência Executiva de Segurança Pública para a América do Sul: “Nós não precisamos de tecnologia. O Brasil precisa que as pessoas fumem menos, cheirem menos e

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injetem menos. É o nariz, o pulmão e as veias das pessoas que estão enriquecendo as contas bancárias dos traficantes”.

Quem disse algo semelhante foi o Ex-Presidente FHC, só que com um pouco mais de cautela, quando discursava em Nova Iorque sobre os atentados do dia 11 de setembro 2001. Ele pregava a necessidade do combate às drogas, pois estas estariam financiando o terrorismo. Sem problemas. Mas ele também afirmou que os “usuários de drogas são culpados, ainda que involuntariamente, pela existência do traficante”. Podemos depreender desta pérola que ser culpado involuntariamente é não ser culpado de nada. Este pensamento preconceituoso tem sido uma constante, pois sempre que algo de grave acontece, envolvendo traficantes, todos logo se lembram de culpar os usuários de drogas. É a velha história se repetindo: de um lado traficantes armados que recebem armas do exterior e até da própria polícia; e do outro policiais armados encarregados de evitar o tráfico de entorpecentes. Entre estes, desarmados e às vezes doentes, os usuários ou os dependentes, os maiores culpados segundo as autoridades (in)competentes! Caso esta moda pegue, os traficantes agradecerão, pois não serão tão importunados pela polícia quanto os usuários; e agradecerão os policiais, pois não serão mais os responsáveis pelas precárias prevenção e repressão. Apenas para a nossa reflexão: são os donos das fábricas de automóveis, involuntariamente, responsáveis pelos acidentes de trânsito? São os donos das fábricas de bebidas alcoólicas, também involuntariamente, responsáveis pelos acidentes de trânsito envolvendo pessoas alcoolizadas? E seriam eles também, involuntariamente, responsáveis pelas violências domésticas praticadas por indivíduos alcoolizados? E as armas de fogo? São os donos das fábricas, involuntariamente,

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co-responsáveis por tantos homicídios praticados com as armas que fabricam? “Ô... espera aí... mas quem atira é o homem!” Mas, se a arma não existisse ele não atirava. Se a droga não existisse, ele não cheirava, nem fumava, nem injetava, nem vendia. Se não fosse ilegal o usuário compraria nas farmácias credenciadas e não existiria o traficante. A culpa não é do usuário, mesmo porque não foi ele quem determinou que o uso de determinadas drogas seria ilegal. E a existência de drogas lícitas e de outras ilícitas, todas causando dependência física ou psíquica, é pura e inaceitável hipocrisia. Temos que avisar ao antigo Presidente e ao ex-comandante da PM fluminense que nós vivemos em um país com mais de 60 milhões de pessoas vivendo em estado de pobreza, e com outros muitos milhões de desempregados – e que o desemprego só tem aumentado. Nós temos que avisá-los de que, enquanto não conseguirmos suprimir as causas de tanto desespero do nosso povo – como a fome, a miséria, o analfabetismo, a violência, o desemprego, entre outras – jamais conseguiremos reduzir o consumo de drogas lícitas ou ilícitas, nem o tráfico de entorpecentes. O uso de drogas lícitas e/ou ilícitas é questão de educação, não de repressão. Alguém tem que ir correndo contar para aquelas autoridades que o álcool, droga lícita, mata milhares de pessoas todos os anos, por todo o Brasil, seja pelo consumo exagerado, seja pelos acidentes de trânsito causados pelos seus consumidores, seja pelo aumento da violência doméstica, ou não, em decorrência do seu abuso. A maconha, droga ilícita, não faz isto! Só nas festas de 2001/2002 (Natal e Ano-Novo), mais de 80% dos acidentes com mortes, nas ruas e estradas, foram causados por indivíduos que haviam bebido álcool em excesso (acima do nível permitido para dirigir). O Globo Repórter que foi ao ar no dia 16 de abril de 2004 exibiu uma matéria falando que em Diadema, cidade do

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interior de São Paulo, por causa dos alarmantes índices de violência – violência policial, principalmente – as autoridades adotaram procedimentos que fizeram diminuir drasticamente os números de homicídios e de casos de violência doméstica. Mas, tais medidas nada tiveram a ver com a repressão às drogas ilícitas. Desde 1999, depois das 23 horas, o comércio de bebidas alcoólicas fecha as portas. Logo, depois deste horário, todos vão para suas casas, ficando proibido o consumo de bebidas alcoólicas nas ruas. O álcool é muitas vezes mais perigoso e nocivo à sociedade do que qualquer cigarrinho de maconha. Ele, droga lícita criminosamente anunciada nas televisões, mata mais do que o uso e abuso de todas as drogas ilícita juntas! Outro dia passou no Fantástico a confissão de uma conhecida cantora popular de nosso estado: de todas as drogas que ela utilizou ao longo de toda a sua vida, a que mais a prejudicou, e da qual teve mais dificuldade em se livrar, foi o álcool. Foi uma entrevista corajosa, bastante esclarecedora e educativa. Mas, partindo de Rita Lee, de quem sou fã do trabalho, a verdade já era de se esperar, e sem hipocrisias. Que o usuário ajuda a alimentar o tráfico, involuntariamente, isto é óbvio. Mas, jogar a culpa nele, não! É inaceitável! Assim sendo, poderíamos também dizer que os usuários de bebidas alcoólicas, de carros e de armas alimentam, involuntariamente, a violência e os acidentes graves. Mas, colocar o usuário de drogas na cadeia por causa disto jamais resolverá o problema do tráfico, e isto é mais óbvio ainda! Nem do consumo. Até porque, depois de preso, o usuário ainda continua a receber, dentro da prisão, sua porção de maconha ou de cocaína. De maconha, para relaxar, com certeza, e isto acontece no Brasil inteiro. Desafio qualquer diretor de presídio, ao menos no Rio de Janeiro, a dizer que estou mentindo! Arthur Dapieve disse que, mesmo hoje, dificilmente haverá cidade mais doidona do

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que Londres. Todavia, o tráfico não é uma presença armada na vida dessa megalópole com baixos índices de criminalidade. Ora, se em nosso país os traficantes tomam conta dos morros (ao menos no Rio) e exercem um poder maior do que o da polícia, a culpa está na incompetência dos órgãos de segurança e da própria polícia. Não é por causa dos maconheiros que os traficantes compram AR-15 e praticam outros crimes. Eles agem assim porque encontram facilidades, e porque o combate ao contrabando de armas é tão falho quanto o combate ao tráfico de entorpecentes. Culpar (e combater) o usuário de drogas é apenas mais fácil, e menos arriscado... “Culpar o usuário de drogas pela violência na nossa cidade e no País é apenas um parapeito para se analisar o caso sob determinado ângulo, até se encontrar a causa. Se vivêssemos em uma sociedade onde o consumo de álcool e tabaco fosse expressamente proibido, assistiríamos todos às mesmas cenas de violência das quadrilhas pela disputa de pontos de venda de bebidas e cigarro. Veríamos, ainda, o secretário de segurança indo à TV para explicar o inexplicável: a sociedade em colapso! Enfim, nada que difira do que vimos presenciando ultimamente, por um motivo simples: o poder do crime, seja de que ramo for, reside justamente na ilegalidade da sua atividade, pois carrega consigo toda horda de corruptos que dele se abastece. Faz parte da natureza do ser humano o uso de substâncias psicoativas para saciar necessidades sociais ou espirituais. O não reconhecimento disto vem sendo o grande erro dos Estados modernos na análise da violência. Fazer do comércio de entorpecentes uma atividade legal, tributada e regulamentada sem dúvida representa um choque para uma sociedade como a nossa. Porém, é demagógica a idéia de que as pessoas, de um dia para o outro, iriam cair, todas, drogadas

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pelas esquinas só porque as drogas foram liberadas. É preciso dar um voto de confiança à capacidade de auto-regulamentação da sociedade, para que o Estado possa realocar, de maneira consciente e eficaz, este fundo perdido que é a verba para o combate ao crime, dando assim à população das cidades melhores hospitais, escolas, transportes, vias e, principalmente, mais tranqüilidade.” (O Globo, 26 de abril de 2004)

Além do mais, há poucos grandes traficantes presos. Os indivíduos que hoje cumprem pena por tráfico de entorpecentes são, em sua maioria, aqueles miseráveis que tentaram a sorte transportando pequenas quantidades de drogas para a venda no varejo. Ou são os “bois de piranha” que tentaram passar em rodoviárias, aeroportos e barreiras, com pequena quantidade de determinada droga, exatamente para serem presos e, assim, permitirem que um traficante passasse com mais tranqüilidade, logo em seguida, e com maior quantidade da droga. Há muita gente humilde na cadeia que pegou uns papelotes de cocaína, ou uns cigarros de maconha, e tentou vender nas ruas para dar o que comer aos seus filhos. Em um país com mais de 100 milhões de pobres e miseráveis isto não é difícil, e é o que já me revelou a minha experiência no Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro. E podem ter certeza de que a grande maioria dos traficantes presos em nosso sistema penal nunca pegou em armas. São as famosas mulas desarmadas e inconseqüentes. Os grandes traficantes a polícia sabe quem são, e os que pegam em AR-15 também. Convém não nos esquecermos das crianças e dos adolescentes que são usados pelos verdadeiros traficantes como soldados do tráfico; menores que muitas vezes não têm uma casa para voltar, uma escola para estudar, um tênis bonito para usar, nem uma família para conviver. E os juizes da infância e da juventude

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sabem quantos se venderam (e começaram suas carreiras no tráfico) por uma bicicleta ou por um par de tênis novos. Uma notícia do jornal O Globo, de 22 de abril de 2002, revelou que o tráfico reúne sete mil menores, segundo pesquisa de uma ONG, indicando a presença de jovens que trabalham 1 para, pelo menos, 337 bocas-de-fumo. A matéria é do jornalista Pedro Dantas e merece a reprodução de alguns trechos: “Um levantamento, que vem sendo feito há cerca de um ano, para descobrir o número de jovens envolvidos com o tráfico, revelou que 5.369 menores de 18 anos trabalham armados em 337 bocas-de-fumo, na Região Metropolitana. O trabalho aponta ainda que, de forma direta ou indireta, o número de jovens ligados ao tráfico pode chegar a sete mil. A iniciativa é do Instituto Brasileiro de Inovações em Saúde Social (IBISS) (...) O objetivo do levantamento é mostrar à Organização Internacional do Trabalho (OIT) que a utilização da mão de obra de menores pelo tráfico necessita de políticas sociais, por ser a forma mais perigosa de exploração do trabalho infantil. (...) Apenas 10% dos traficantes entrevistados disseram que usam jovens porque estão protegidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. A maioria deles afirmou que utiliza adolescentes porque questionam menos as ordens. Um gerente de boca-defumo chegou a dizer que contrata adolescentes pois, quando pede a um que jogue uma granada num carro de polícia, ele não hesita. Já um homem de 25 anos pensaria duas vezes. O Estado deveria investir em programas que beneficiassem as famílias, já que, muitas vezes, o envolvimento de jovens com o tráfico começa dentro da própria casa, nas comunidades carentes. (...) Mais de 80% dos traficantes entrevistados dizem 1

Infelizmente, de 2002 até agora, esses números já aumentaram assustadoramente.

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que são pressionados pelas famílias para aceitarem os jovens por necessidade de dinheiro ou segurança.”

Há um novo exército de traficantes se formando. A polícia mata um, e vários passam a disputar o seu lugar. Há, também, uma nova lei, e precisamos, com urgência, de uma nova mentalidade. O modelo repressivo não atingiu qualquer objetivo, nem o modelo de tolerância zero preconizado nos Estados Unidos e, até pouco tempo, adotado aqui. Necessitamos de uma política mais branda com relação ao consumo e à dependência de quaisquer drogas. Muitos casos já estão sendo tratados como casos de saúde pública e com a complacência da justiça. Temos que dar prioridade ao modelo preventivo, educativo e terapêutico. Nada disto significa dizer que a repressão ao tráfico cessará. De forma alguma. Apenas daremos mais ênfase à prevenção. Vale reproduzir alguns pensamentos do médico Jeronymo Buarque de Faria, professor da UERJ e assessor de projetos especiais do NEPAD/ UFRJ, publicados pelo jornal O Globo, em junho de 2001: “O fato de a Igreja Católica ter escolhido como mote da Campanha da Fraternidade de 2001 “Vida sim, drogas não”, certamente vem tendo resultados positivos, apesar de ser impossível avaliá-los. Cada padre, em cada missa, citando eventualmente, por todo o país, a necessidade de rejeição ao uso de drogas, na nação que tem o maior número de católicos no mundo, é um dado extremamente relevante. Nota-se também no jovem brasileiro, no dia-a-dia, em enquetes e resultados preliminares de pesquisas, que há uma maior preocupação com a saúde e também com a discussão do tema. A época da alienação total parece estar passando (...) há pontos importantes a serem resolvidos, sendo o principal, no entender dos especialistas, a aprovação da nova Lei Antidrogas,

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em substituição à arcaica Lei 6.368/76. O anteprojeto está pronto, mas vem sendo modif icado há anos, sofrendo avanços e retrocessos. Mas, em nenhuma dessas alterações modifica-se uma questão essencial: o usuário e o dependente não sofrerão pena privativa de liberdade (...) Somente no mês de abril de 2001, havia 873 condenados e presos por porte de entorpecentes no estado do Rio de Janeiro, segundo o Desipe. (...) O outro fato ocorreu após a ida de um inquieto pediatra a um pronto-socorro do interior, após acidente doméstico. Conversando com a colega socorrista, descobriu o que nunca tinha pensado. O índice de atendimento por intoxicação alcoólica era alto, mas o de intoxicação por drogas ilícitas era raro. E a média foi taxativa! Embora soubesse que o número de consumidores intoxicados por drogas ilícitas na região era grande, eles não iam ao atendimento médico com medo da polícia. Quem melhor faz o atendimento, por exemplo, de uma overdose de cocaína, do que um médico? Quantos estão morrendo, por este país afora, sem procurar atendimento adequado? (...) Com a entrada em vigor da nova lei, que tem efeito retroativo, milhares de presos ganharão a liberdade. (...) De qualquer forma, apesar do Brasil estar navegando em crises, a questão das drogas está acertando o passo. Para uma longa caminhada, sem dúvida.”

E o caminho é este: priorizar o modelo preventivo, educativo e terapêutico. Já estamos no ano 2010, entramos em um novo século e um novo milênio. O problema das drogas, em vez de perder velocidade, está aumentando em todo o mundo, não importa o combate ao tráfico com armas pesadas e até com o exército, nem a intervenção da mídia, nem as punições mais severas. Nada importa! Por mais que se faça, e sempre é pouco, as drogas seguem rompendo qualquer obstáculo ao seu

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consumo. E agora andam buscando as crianças nas ruas e nas escolas, seja para transformá-las em usuários ou em traficantes. Junto com a AIDS, as drogas se apresentam como o maior desafio deste século, porque seu vício é praticamente incurável, pelo menos até agora. Para a AIDS, já existem procedimentos terapêuticos, vacinas e coquetéis, mas contra as drogas não há nem vacina, nem coquetel, seja à vista ou em horizonte distante. Já se fala na erradicação da AIDS, mas a abolição definitiva das drogas ainda não acontece nem em sonhos. E, infelizmente, jamais acontecerá! O Brasil está no topo e nas manchetes internacionais com relação ao tratamento da AIDS; mas, com relação às drogas, as autoridades ainda não sabem o que querem, só quem sabe são os traficantes. O tema ainda está impregnado de moralismo e de preconceito, e tentar combater as drogas com balas e tanques, como fazem os Estados Unidos, em nada contribui para entender o fenômeno. O que se pretende é o impossível: exterminá-lo. Em vez de nos ocuparmos apenas com os traficantes, temos que voltar os olhos para os usuários: educação e prevenção para os novos, e tratamento para os dependentes. Também de nada adianta gritar para as crianças e os adolescente que as “drogas matam”, porque isso eles sabem, e é com o risco que os jovens gostam de conviver 24 horas por dia. Prevalece a atração ao medo. Importante é começar a entender as diferenças entre repressão e controle, doença e crime, uso e dependência, descriminar e legalizar; importante é dar opção, mostrando o que o futuro pode reservar para os usuários de entorpecentes. O mais importante é o debate. A dependência química é um processo longo e doloroso que se instala no organismo, cresce e domina a pessoa, sendo a internação obrigatória para a desintoxicação. Após este período, persistem as crises de abstinência, que ainda provocam

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febres, náuseas e dores; as necessidades vitais como alimentação e sono ficam comprometidas; as relações familiares e sociais se deterioram; a carreira entra em colapso; e a recaída é sempre iminente e provável. Pesquisas recentes relatam a eficácia de uma droga chamada de ibogaína em dependentes de heroína, cocaína, crack e álcool, e ela já é utilizada no tratamento de viciados no Centro Médico Paitilla, no Panamá, e no Healing Visions Institute for Addiction Recovery, no Caribe. Entretanto, já ocorreram mortes, e a substância ainda não foi aprovada nos EUA. Eis o relato de um engenheiro carioca, de 46 anos, submetido ao tratamento no Panamá: “Consumi cocaína diariamente durante anos. Fiz psicoterapia, mas não ajudou. Às vezes usava a droga no banheiro do consultório do meu médico, antes e depois da consulta. Informado por um amigo sobre a ibogaína, fiquei com medo de fazer o tratamento por ser um remédio experimental. Desesperado, achei que era melhor morrer tentando parar com meu vício. Arrisquei. Depois de tomar a cápsula comecei a ouvir um zumbido. Via uma tela, como se fosse um filme. Reconheci cenas do passado, algumas da infância, outras de poucos dias antes. Minha mente e o universo pareciam uma coisa só. Vomitava, sentia tontura. Imaginava estar correndo em um labirinto. Fiquei acordado por 24 horas. Depois dormi profundamente. Uma semana mais tarde estava recuperado. Nunca mais senti vontade de cheirar.” (Época, n.163, de 02 de julho de 2001)

O custo do tratamento, que pode variar de cinco dias a duas semanas, fica entre US$ 12 mil e US$ 20 mil. Enquanto a pobreza e a miséria aumentam, e a educação e o debate se mantêm afastados de milhares de crianças e

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adolescentes, a droga cada vez mais se espalha, como erva daninha, danificando mentes e corpos, destruindo famílias, levando o inferno aonde quer que ela vá. Nada disto importa para um mercado que já se estabilizou, e que conta, para o seu sucesso, com o infeliz usuário. E é apenas sobre este que eu vou escrever, o usuário que eu consegui, às duras penas, nunca ser. Vou escrever sobre o usuário que eu vi morrer como vítima da violência do traficante, pelo uso desesperado sem dinheiro para pagar; como vítima da loucura que o faz escapar pela janela mais alta, ou vítima de acidente de carro sob os efeitos de substâncias entorpecentes, principalmente o álcool, uma droga lícita; ou como vítima da “roleta russa”, da overdose, e de tantas outras formas... Usuários vítimas, como só as drogas sabem fazer. E muito bem! Vale lembrar, sem qualquer finalidade política, que o alto consumo de drogas psicoativas, como os medicamentos, os inalantes, o tabaco, a maconha, o álcool, a cocaína, entre outras, tem gerado grande prejuízo social, e devido à sua gravidade vem exigindo das lideranças governamentais uma política mais abrangente que objetive o seu equacionamento. No Brasil, surgiram os Conselhos de Entorpecentes, federal, estaduais e municipais. Nosso País, através de ações interinstitucionais agenciadas pelo Conselho Federal de Entorpecentes, órgão do Ministério da Justiça, vem, ao longo do tempo, buscando os meios apropriados para a elaboração de uma política de drogas compatível com a nossa realidade. Estes Conselhos, tanto o federal quanto alguns estaduais, desenvolvem bons trabalhos e significativas campanhas educativas, sempre voltadas, principalmente, para crianças e adolescentes. Grande parte deste livro está baseada em suas cartilhas e outras publicações. Hoje, aos 20 anos, depois de mais de trinta anos nas ruas

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convivendo com todos os tipos de usuários de drogas, quando adolescente e quando jovem, e principalmente depois de ter visto vários amigos morrerem ou adoecerem por causa de drogas, e de ter visto outros sendo presos também por causa delas, e depois de quase 30 anos de exercício exclusivo da advocacia criminal, já me convenci de que o que mais contribuiu para o meu afastamento das drogas, lícitas ou ilícitas, foram os ensinamentos que extraí dos exemplos e das experiências que testemunhei ao longo de toda a minha vida convivendo com seus usuários. Dizendo sempre uma pequena palavra: não! E o que eu mais precisei foi de muita resistência, um pouco de coragem e de muitos exemplos, os bons que segui e os maus que evitei (mas com estes também aprendi). Os bons exemplos têm que nos levar a imitar, e os maus, têm que nos levar a rejeitar, a dizer “não”. Este são os ensinamentos mais importantes que podemos passar às nossas crianças e aos nossos adolescentes: seguir os bons exemplos e ter coragem para dizer Não! Mas, será que é possível ensinar a uma criança, ou a um adolescente, a resistir, a dizer não e a ser corajoso? Talvez sim. Eu não estou escrevendo este livro por ter medo das drogas, ao menos com relação a mim. Mas, o pouco de medo das drogas que me resta é porque tenho quatro filhos: uma jovem de 31 anos e três meninos (um de 16, um de 18 e outro de 20 anos). A de 31 anos já escapou do mundo cruel das drogas (nunca usou, não vai usar agora), mas os meus três outros escaparão ou não! Talvez eu esteja escrevendo este livro para que eles o leiam mais tarde, e para que entendam tudo o que eu passei 2 sem me deixar envolver com o terrível mundo das drogas. Pretendo ensinar-lhes com muito diálogo, comentando sobre os bons e maus exemplos que testemunhei, talvez a melhor e 2

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Vejam as histórias, todas verídicas, no Capítulo VII deste livro.

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mais inteligente forma de ensinar: o bom exemplo que foi meu pai, pois talvez eu o tenha imitado me afastando de bares, do fumo e de bebidas alcoólicas; e os maus exemplos que foram muitos amigos, que bebiam e fumavam em excesso, e que depois se drogavam em busca de algo que eles nunca puderam encontrar. Disto eu tenho certeza: muitos se arrependeram, às vezes tarde demais. E foi vivendo e convivendo que eu aprendi, nas ruas e na vida sem fugir, enfrentando e dando sempre as costas às ofertas levianas dos que nunca foram verdadeiramente amigos. Às vezes o apelo para o uso de drogas vinha de uma linda mulher, usuária de algum tipo de substância entorpecente. Elas também nos provocam! Aprendi desde cedo a dizer não, sem medo dos comentários e das rejeições que eu pudesse sofrer. Temos que fazer os jovens entenderem que sempre há uma opção mais saudável e menos perigosa, e que nós podemos ser absolutamente nós mesmos sem usar drogas, e sem receio de desagradar a ninguém, nem de ser diferente da maioria em determinado momento; e temos que fazê-los entender que nós podemos fazer tudo o que quisermos sem usar qualquer tipo de droga para nos fortalecer ou estimular. No final, nós somos os mais respeitados. No fim, lá no recôndito da alma de qualquer usuário de entorpecentes, mais cedo ou mais tarde surge uma grande inveja daquele que um dia foi o careta, daquele que um dia foi o corta onda; surge uma grande inveja daquele que conseguiu dizer não, porque o careta e o corta onda ficaram sempre do lado de fora das grades, dos hospitais, dos narcóticos anônimos, das ruas fétidas e das mãos dos traficantes. No fim, o careta que disse não, e que sempre manteve a “cara limpa”, por ironia serve de exemplo para os filhos dos usuários de substâncias entorpecentes. Aos 12 anos, aproximadamente, meu pai me deu as chaves

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de casa e eu fui à luta. Era o homem da família! Ele nunca me disse para não beber e para não fumar, mas como eu não o via beber, nem fumar, talvez eu tenha me dado conta de que o melhor seria não fazer estas coisas. É óbvio que não foi só isto, mas isto contribuiu, sem dúvida. Depois foi a escola, onde ainda havia muita disciplina e muito esporte. E desde os 6 anos eu já praticava o Jiu-Jitsu, o que, com certeza, me ajudou a dizer não para os amigos mais fortes e atrevidos que me ofereciam drogas. Logo de imediato, ressalto a importância da família, da escola e dos esportes para que as crianças e os adolescentes fiquem afastados das drogas. E quando falo de mim eu recordo, imediatamente, de inúmeros outros amigos, e me dou conta de que a grande maioria dos que escaparam do mundo das drogas estava diretamente ligada aos estudos, aos esportes ou a ambos, e foram os que fizeram das ruas uma fonte temporária de prazer. Aqueles que encontravam nas ruas o melhor ambiente para ficar, às vezes, por mais de quinze horas por dia, sem nada para fazer ou pensar, estes foram os que abraçaram com mais força o mundo do cigarro e do álcool, e logo em seguida, às vezes, o mundo das drogas. Alguns sobreviveram, embora com seqüelas, outros morreram, outros estão presos, e outros se perderam neste “mundo, mundo, vasto mundo”, porque pequeninos eram os seus corações (parafraseando um poeta). Este pequeno livro formula algumas idéias para que os pais, os professores e as autoridades tentem ajudar não apenas os seus filhos, mas as crianças e os adolescentes em geral a entender e a escapar do mundo das drogas como eu escapei. Talvez, com um pouco de sorte e com a ajuda de todos nós, muitas crianças consigam dizer não para o mundo das drogas, e consigam entender, desde cedo, que há outras opções até para os momentos mais difíceis. Talvez este livro traduza uma visão

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nova, de alguém que conviveu com o consumo desenfreado de drogas ao seu lado e que conseguiu, a muito custo, escapar ileso, sem nunca ter usado qualquer substância entorpecente. As histórias contadas no Capítulo VII são todas verdadeiras, apenas os nomes foram omitidos, até para que eu não sofresse a justa represália daqueles que pudessem aqui se ver retratados. Quero tentar, junto à sociedade em geral, reacender e ampliar a discussão sobre o tema, da forma o mais esclarecedora possível. Temos que tentar estabelecer princípios sólidos para uma reflexão sobre as reais condições propiciadoras deste fenômeno social. Com este livro, minha intenção é fornecer mais uma singela fonte de informações que possa servir de base para ações voltadas à prevenção do uso e do abuso de drogas, e para o tratamento quando as drogas vencerem. Procurando, assim, a conscientização de pais, autoridades e educadores para tão delicada questão. Não se iluda. Enquanto você lê este livro, um jovem que você conhece está fumando maconha, cheirando cocaína ou ingerindo grande quantidade de bebida alcoólica, e talvez você não o veja nunca mais! Por isto, vou tratar o tema de forma honesta. Talvez alguns me condenem, mas se estiver errado me critiquem e corrijam, e aí então haverá começado o debate que pretendo promover “sem mentiras”. Porque, posso afirmar com segurança, todas as drogas fazem mal à saúde, tanto as lícitas quanto as ilícitas, mas, ainda assim devem dar prazer. Ou seja, a maconha e a cocaína fazem tão mal quanto cigarro e o álcool! Que as drogas fazem mal à saúde, acho que todos concordam, embora alguns insistam em afirmar que, consumidas em pequena quantidade, algumas drogas não façam tão mal assim: por exemplo, a maconha e o álcool. Mas, não posso dizer, nem para as crianças, nem para os adolescentes, que as drogas são ruins, ou seja, que têm gosto ruim e que não causam nenhum prazer. Não posso

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dizer que consumir droga não é bom, nem dá satisfação ou prazer. Primeiro porque não sei, pois nunca usei, e também porque não via nos rostos dos usuários qualquer sinal de insatisfação. Logo, qualquer campanha neste sentido – de que a droga é ruim – poderá ser uma grande mentira, e qualquer mentira deverá ficar afastada de qualquer campanha contra o uso de substâncias entorpecentes. Por isso, tratarei neste trabalho tanto das drogas lícitas quanto das ilícitas, tanto da maconha e da cocaína, quanto do cigarro e do álcool. Aliás, nunca vi qualquer campanha no sentido de que o uso do cigarro e do álcool é desagradável, pelo contrário, apesar de já existirem campanhas contra o uso do cigarro e contra o consumo excessivo de álcool. Esse trabalho contra as drogas precisa se basear na verdade. Até porque, a desgraça não alcança aqueles que apenas experimentam, nem aqueles que fazem uso muito esporádico de qualquer substância entorpecente, seja ela droga lícita, seja ilícita. Alcança apenas aqueles que se tornam viciados ou que fazem uso freqüente. Ninguém vai deixar de experimentar, nem viciado nenhum vai deixar de fazer uso de substância entorpecente, apenas em razão de campanhas mentirosas que desvinculam as drogas de qualquer prazer, pois as drogas não são capazes de fazer da vida do usuário, em curto tempo, um verdadeiro inferno. E todos sabem disto. Eu nunca vi conhecidos ou desconhecidos fazendo cara feia enquanto fumavam maconha na praia, assim como nunca vi ninguém sofrendo depois de cheirar cocaína (apenas nos casos de overdose vemos sofrimento). Já vi amigos fazendo viagens que, aos meus olhos e aos dos que estavam de fora, pareciam verdadeiros tormentos, pareciam viagens às profundezas do inferno, mas que no dia seguinte, ao voltarem, eles narravam aquelas viagens como algo prazeroso e alucinante. A nós, que

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estávamos assistindo, dava medo, mas para os que viajavam dava barato e prazer. É claro que um dia poderá haver muito sofrimento, profundo e desesperador, mas não nas primeiras experiências. Até porque, ao que parece, o uso de maconha, cocaína e de outras drogas deve provocar uma sensação muito boa. Entretanto, depois que o indivíduo se torna um viciado tudo fica diferente, porque não se busca mais apenas o prazer, mas também a satisfação de uma terrível necessidade orgânica. O seu organismo implora pela droga, e isto deve machucar. A falta da droga, neste caso, se torna um atroz sofrimento. E é quando não se procura mais o prazer, mas apenas o alívio, que se começa a viver no inferno. Logo, não vamos tratar de ignorar o prazer, pois um dia a criança e o jovem poderão verificar que mentimos, mas vamos tentar mostrar-lhes que a terrível armadilha está exatamente no prazer que as drogas inicialmente proporcionam. Vale reproduzir o que bem salientou o jornalista Ronaldo Fucs, em matéria publicada no jornal O Globo, de 22 de outubro de 2001: “Ao adolescente (e às crianças), sobretudo, é preciso não mentir: deve-se dizer a eles que (1) o tóxico, de fato, causa de início grande prazer; (2) depois de um período variável (dependendo da droga), o organismo se torna dependente; (3) a droga passa então a ser uma necessidade, e sua falta causa grande sofrimento; (4) e nesta fase, para sentir alívio, o viciado passa a necessitar de doses cada vez maiores, e é então que vem a degradação, e que ocorrem as mortes por overdose. É importante também deixar claro que não existe uma coisa única chamada droga: que existem muitas drogas, umas mais e outras menos perigosas, umas viciando mais do que outras. Complicado demais? Pode ser. Mas se a alternativa for continuar alertando apenas para o

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horror, o adolescente vai comparar com a propaganda da droga que lhe fazem alguns colegas. Se ceder à influência persuasiva da galera e fizer o teste prático, logo concluirá que os colegas falam a verdade e que a campanha mente. Um dia, é certo, acabará descobrindo que a mentira não era tão mentirosa assim, mas aí será tarde demais. Pode ser uma questão, até, de ensinar integridade. E integridade também se ensina com exemplos! Se os pais são coerentes em suas palavras e ações, os filhos aprendem a lição. Se as autoridades e as escolas também são coerentes em suas lições e em suas propagandas, talvez os alunos, e os jovens e adolescentes, acreditem mais neles e também aprendam a lição. Hoje não podemos ensinar às crianças e aos adolescentes apenas o que é certo e o que é errado, a base para a integridade, mas devemos ensinar-lhes, principalmente, a manifestarem oposição com relação a atitudes (bem freqüentes) que contrariam os princípios norteadores da sociedade, o que não é fácil nem para adultos. Conceitos como solidariedade, justiça e honestidade não podem ficar esquecidos. Mas a coragem e a personalidade também não! Opor-se ao grupo e fazer a escolha adequada demanda um forte grau de segurança, coragem e personalidade. Hoje eu sei disto! Criar um filho e tentar mantê-lo afastado das drogas depende da maneira que nós, pais, vivemos o dia-a-dia, e da confiança que temos nos valores que norteiam as nossas ações. Mas depende também de uma boa dose de coragem e personalidade, para que ele se oponha à tentação que lhe oferecem os maus exemplos. Quando as crianças percebem que os seus modelos mais próximos e fortes se comportam com segurança, retidão e honra, não importando o que estejam fazendo os outros, eles também, provavelmente, acreditarão. Acho até

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que o perigo maior para um jovem não são as drogas: é não acreditar nos pais, no futuro e na sociedade em que vive. A falta de esperança também pode levar às drogas! Muitas vezes a forma de viver dos pais é suficiente para que os filhos acreditem nos valores essenciais, pois eles vêem que os pais vivem de acordo com o que defendem.”

De nada adianta falar na defesa do meio ambiente para os filhos e desperdiçar água ou jogar lixo na praia: eles não vão acreditar e vão fazer as mesmas coisas. Não adianta dizer para os filhos que o álcool e o cigarro fazem mal, e beber e fumar todos os dias: eles não vão acreditar, e poderão acabar bebendo e fumando também. Logo, além da postura dos pais e responsáveis, também seria bom o respaldo das autoridades e das escolas neste caminho pelo exemplo e pela educação, mas sem que as autoridades se descuidem também da repressão ao tráfico. Apenas daremos mais ênfase à prevenção, ressaltando o exemplo, isto porque, sem dúvida nenhuma, o exemplo sempre fala mais alto.

O exemplo sempre fala mais alto... As sandálias do discípulo fizeram um barulho especial nos degraus da escada de pedra que levava aos porões do velho convento, onde vivia um homem muito sábio. O jovem empurrou a pesada porta de madeira, entrou e demorou um pouco para acostumar os olhos com a pouca luminosidade do local. Finalmente ele localizou o ancião sentando atrás de uma enorme escrivaninha, tendo um capuz a lhe cobrir parte do rosto. De forma estranha, apesar do escuro, ele fazia anotações num grande livro, tão velho quanto ele. O discípulo se aproximou com respeito e perguntou, ansioso pela resposta: “Mestre, qual o sentido da vida”?

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O idoso monge permaneceu em silêncio. Apenas apontou para um pedaço de pano, um trapo grosseiro no chão junto à parede. Depois apontou seu indicador magro para o alto, para o vidro da janela, que estava cheio de poeira e de teias de aranhas. Mais do que depressa o discípulo pegou o pano, e subiu em algumas prateleiras de uma pesada estante forrada de livros. Assim ele conseguiu alcançar a vidraça, e começou a esfregá-la com força, retirando a sujeira que impedia a transparência. O sol inundou o aposento e iluminou, com sua luz, estranhos objetos, instrumentos raros, dezenas de papiros e pergaminhos com misteriosas anotações. Cheio de alegria, o jovem declarou: “Entendi, Mestre! Devemos nos livrar de tudo aquilo que não permite o nosso aprendizado. Devemos retirar o pó dos preconceitos e as teias das opiniões que impedem que a luz do conhecimento nos atinja. Só então poderemos enxergar as coisas com mais nitidez”. Fez uma reverência e saiu do aposento, a fim de comunicar aos seus amigos o que aprendera. O velho e sábio monge, de rosto enrugado e ainda encoberto pelo largo capuz, sentiu os raios quentes do sol a invadir o quarto com uma claridade a que se desacostumara. Viu o discípulo se afastando, sorriu levemente e falou: “Mais importante do que aquilo que alguém mostra, é o que o outro enxerga! Afinal, eu só queria que ele colocasse o pano no lugar de onde caiu” (Anônimo). Logo, não pretendo ensinar! Você só vai assimilar, ou entender, aquilo que quiser. Você vai ver, apenas, o que quiser. Boa Sorte! Mas o seu futuro só depende de você.

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