Exercícios de Crítica Literária
Conselho Editorial Série Letra Capital Acadêmica Beatriz Anselmo Olinto (Unicentro-PR) Carlos Roberto dos Anjos Candeiro (UFTM) João Medeiros Filho (UCL) Leonardo Santana da Silva (UFRJ) Luciana Marino do Nascimento (UFRJ) Maria Luiza Bustamante Pereira de Sá (UERJ) Michela Rosa di Candia (UFRJ) Olavo Luppi Silva (UFABC) Orlando Alves dos Santos Junior (UFRJ) Pierre Alves Costa (Unicentro-PR) Rafael Soares Gonçalves (PUC-RIO) Robert Segal (UFRJ) Sandro Ornellas (UFBA) Sergio Azevedo (UENF) Sérgio Tadeu Gonçalves Muniz (UTFPR) William Batista (Bennet - RJ)
Rita Barbosa de Oliveira Matthews Carvalho Rocha Cirne Kenedi Santos Azevedo Organizadores
Exercícios de Crítica Literária
Copyright © Rita Barbosa de Oliveira, Matthews Carvalho Rocha Cirne, Kenedi Santos Azevedo (org.), 2015 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610, de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem a autorização prévia e expressa do autor.
Editor João Baptista Pinto
Capa Átila de Paula Fonseca
Projeto Gráfico e Editoração Luiz Guimarães Revisão Dos Autores
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
E96 Exercícios de crítica literária / organização Rita Barbosa de Oliveira, Matthews Carvalho Rocha Cirne, Kenedi Santos Azevedo. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Letra Capital, 2015. 198 p. : il. ; 15,5x23 cm.
Inclui bibliografia ISBN 978-85-7785-413-4
1. Literatura brasileira - História e crítica. I. Oliveira, Rita Barbosa de. II. Cirne, Matthews Carvalho Rocha. III. Azevedo, Kenedi Santos.
15-27269 CDD: 809 CDU: 82.09 15/10/2015
15/10/2015
Letra Capital Editora Telefax: (21) 3553-2236/2215-3781 letracapital@letracapital.com.br
Sumário
Apresentação...............................................................................7 Identidade Nacional em Macunaíma............................................. 9 Catarina Lemes Pereira
Por uma Cartografia de Prazeres: Realismo e Estética na Geografia da Prosa de Moscovich.........................................25 Elaine Pereira Andreatta
Azul Geral e A Medida do Azul: A Cor e a Medida da Poesia de Ernesto Penafort......................................................43 Hervelyn Tatyane dos Santos Ferreira Rita do Perpétuo Socorro Barbosa de Oliveira
Poesia na Estética Andreseniana.................................................57 Isadora Santos Fonseca Rita do Perpétuo Socorro Barbosa de Oliveira
A Tradição nas Memórias Póstumas de Brás Cubas...............74 João Paulo Cardoso Alves
A presença do Imaginário Africano em Um Rio Chamado Tempo, uma Casa Chamada Terra, romance de Mia Couto....................................................................................90 José Benedito dos Santos Rita do Perpétuo Socorro Barbosa de Oliveira
Al Berto: Fogo e Sexualidade.....................................................113 Kenedi Santos Azevedo
Um Governo sem Destino: A Expediação de Francisco Orellana e a História da Colonização.......................................133 Kigenes Simas
Maibi e a Alegorização da Morte...............................................150 Maria da Luz Soares da Silva Felipe José Ferreira da Silva
A Poesia da Saudade.....................................................................168 Maria Sebastiana de Morais Guedes
O Processo Plagiotrópico em Rilkeana, de Ana Hatherly...180 Matthews Carvalho Rocha Cirne Rita do Perpétuo Socorro Barbosa de Oliveira
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Apresentação
Os
artigos deste livro organizam-se em torno de temas variados concernentes aos estudos nos campos da história, teoria, crítica e interpretação literárias resultantes de pesquisas em projetos de iniciação científica, de mestrado e doutorado, com discussões que abrangem desde as questões canônicas às relativas à experimentação poética. Desse modo, o leitor encontra reflexões sobre obras clássicas, tais como um dos primeiros relatos de viagem pelo Rio Amazonas, escrito por Gaspar Carvajal durante a expedição de Francisco Orellana, Canção do exílio em comparação com O desterrado, do poeta português Francisco Gomes de Amorim, Inferno Verde, Macunaíma e Memórias Póstumas de Brás Cubas, bem como aprecia as interpretações das obras de alguns autores da segunda metade do século XX até o início do XXI, as quais têm despertado o interesse da crítica produzida nas universidades, a saber, Cíntia Moscovich, Mia Couto, Sophia de Mello Breyner Andresen, Al Berto, Ana Hatherly e Ernesto Penafort. Os temas e as bases teóricas constituem-se de complexa gama, partindo da discussão sobre a identidade do homem brasileiro, respaldada pelos pensamentos de Renato Ortiz, Octavio Ianni e Maria Veloso Santos; influência e originalidade na narrativa pósmoderna a partir das ideias de Harold Bloom, Liana Feldman e Linda Hutcheon; a poesia de Ernesto Penafort pelo viés teórico de Gaston Bachelard, Wolfgang Goethe e Alfredo Bosi; considerações sobre a ideia de arte poética de Sophia Andresen configurada em seus ensaios e em estudos sobre a obra dessa poetisa; a tradição literária na literatura brasileira tendo como corpus a obra de Machado de Assis segundo a discussão de Antonio Candido; a reinvenção do imaginário africano na obra de Mia Couto, tendo como suporte as ideias de Maria Heloísa Salum e Francisco Noa; imagens do homoerotismo na obra de Al Berto a partir de Gaston Bachelard, Henri Bergson e Michel Foucault; o problema da posse jurídica da Amazônia pelo viés de Wille Bolle e Marilene Corrêa; o feminino como alegoria da exploração e destruição da terra, com base nas ideias de Michel Pêcheux e Jean-Jacques Rousseau; o diálogo ufanista
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A presentação
e romântico, orientado por José Guilherme Merquior e Mário Ypiranga Monteiro; e, por fim, a plagiotropia como experimento poético a partir de ensaios de Ana Hatherly, João Barrento e E. de Mello e Castro. Tal variedade decorre das finalidades acadêmicas e científicas diferentes para as quais os textos foram escritos e lhes conferem o caráter de exercícios de crítica literária, uma exigência das atividades de ensino e pesquisa e de extensão do magistério superior. Isso motivou o título da presente publicação. Os textos que possuem mais de um autor correspondem a pesquisas envolvendo orientando e orientador de iniciação científica ou de mestrado. Outros foram escritos para comunicações no I e no II Ciclo de Palestras do GEPELIP – Grupo de Estudos e Pesquisas em Literaturas de Língua Portuguesa, no I, II e III SELIT – Seminário de Literatura, eventos que mobilizaram o público da graduação e da pós-graduação para discutir e divulgar resultados parciais ou finais de investigações e que foram promovidos pelo anteriormente citado grupo de pesquisas, pelo Centro Acadêmico de Letras e pelo Departamento de Língua e Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Amazonas. Outros resultaram de trabalhos desenvolvidos a partir de disciplinas que seus autores frequentaram no mestrado ou doutorado em diferentes universidades, como aqueles escritos por Kigenes Simas e Kenedi Azevedo, na Universidade Federal Fluminense e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, respectivamente. Ressalte-se que este livro se constitui na grata apresentação de parte das atividades dos pesquisadores e orientandos do GEPELIP Grupo de Estudos e Pesquisas em Literaturas de Língua Portuguesa.
Os Organizadores
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Identidade Nacional em Macunaíma C ata rina L emes P ereir a 1
Resumo: Este artigo é parte integrante do relatório final de Projeto de Iniciação Científica, Intitulado Identidade Nacional em Macunaíma. Projeto este, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas – FAPEAM, por meio do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC. A proposta desta pesquisa é pensar o caráter nacional do brasileiro a partir da leitura crítica de Macunaíma, cujos maiores objetivos são os de associar os elementos da obra às inúmeras problemáticas sociais que se arrastam pelo Brasil há décadas sem resolução, como por exemplo, a identidade multifacetada do brasileiro, característica de um País com Estados muito diferentes culturalmente e com ausência de um planejamento político unificador. Por tratar-se de obra literária, a investigação da narrativa é realizada a partir das teorias literárias que absorvem as passagens do texto por meio da alegoria e da carnavalização literária, no entanto, a principal abordagem é sustentada por autores que pensaram a sociedade brasileira na década de XX e que desenvolveram estudos deflagrantes de um Brasil ávido por mudanças não só na estrutura social, mas principalmente no pensamento desta. É parte também deste projeto um olhar investigativo ao autor de Macunaíma, Mário de Andrade que busca demonstrar como ele conseguiu desenvolver seu projeto estético e sua importância dentro da Escola Modernista, assim como retomar os impactos da Semana de Arte Moderna. Palavras-Chave: Identidade; Nacional; Macunaíma. Abstract: This article is part of the final report of Scientific Initiation Project, Entitled National Identity in Macunaíma . This project , funded by the Foundation for Research Support of the State of Amazonas - FAPEAM through the Scholarship Program for Scientific Initiation - PIBIC . The purpose of this research is to think of the Brazilian national character from the critical reading of Macunaíma , whose major objectives are to associate the elements of the work to the many social problems that creep in Brazil for decades without resolution , for example , the identity Brazilian multifaceted characteristic of a country with very different culturally States and the absence of a unifying political planning. Because it is a Graduanda do Curso de Letras – Língua e Literatura Portuguesa, na Universidade Federal do Amazonas. 1
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literary work , investigation of the narrative is carried from the literary theories that absorb passages of text by means of allegory and literary carnivalization , however , the main approach is supported by authors who thought the Brazilian society decade of the twentieth explosionproof studies and developed an avid Brazil not only by changes in the social structure, but mainly in thinking this . It is also part of this project an investigative look at the author of Macunaíma , Mário de Andrade, who tries to demonstrate how he managed to develop his aesthetic project and its importance within the Modernist School , as well as resume the impacts of the Week of Modern Art. Keywords: Identity; National; Macunaíma.
Introdução ao pensamento de Macunaíma “A literatura é a expressão da sociedade, como a palavra é a expressão do homem.”2
O axioma do filósofo francês Louis Bonald, apresenta um pensamento unânime que insere a literatura diretamente numa esfera social como agente transformador que encontra na palavra, o meio para externar reflexões, denúncias ou registros cotidianos sem desabrigar-se do escudo da arte. A literatura brasileira, naturalmente inserida nessa perspectiva, está amarrada desde os seus primórdios às questões sociais do País. Isso porque a experiência esmagadora da colonização, de tão intensa, encontrou na literatura o meio para fazer ecoar a voz, tantas vezes reprimida, do pensamento brasileiro. É Antonio Candido que confirma: A sociedade colonial brasileira não foi, portanto (como teria preferido que fosse certa imaginação romântica nacionalista), um prolongamento das culturas locais, mais ou menos destruídas. Foi transposição das leis, dos costumes, do equipamento espiritual das metrópoles. A partir dessa diferença de ritmos de vida e de modalidades culturais formou-se a sociedade brasileira, que viveu desde cedo a difícil situação de contacto entre formas primitivas e formas avançadas, vida rude e vida requintada. Assim, a literatura não “nasceu” aqui: veio pronta de fora para 2
pt.wikiquote.org/wiki/Literatura.
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transformar-se à medida que se formava uma sociedade nova. ( CANDIDO, 2000, p.167 )
A fala de Antonio Candido quebra muitos paradigmas, no entanto, é uma verdade compartilhada pelos grandes estudiosos deste País como Darcy Ribeiro, Sergio Buarque de Holanda e outros. Logo, a literatura brasileira, ao contrário de outras literaturas não é uma arte nascida a partir das manifestações culturais de seu povo, pois tem como primeiras manifestações artísticas não só a influencia estrangeira, mas a própria atuação desta. Provavelmente por isso, as questões relacionadas à Identidade Nacional brasileira tornaram-se constantes no discurso literário, pois uma vez que o comum é um povo que se desenvolva tendo posse de suas raízes, de que forma deve pensar um povo e, por conseguinte sua literatura, que ao que consta, cresceu a partir de uma aculturação de seus valores e a forte intervenção de agentes externos? Pela condição de país colonizado, o Brasil fez ecoar por séculos a força e o discurso da voz do dominador, num espaço de repressão e acomodação, no entanto, a inserção do País em patamares mais modernos, exigia ações que acompanhassem este novo pensamento dentro de uma esfera social, agora consciente de si e enfim ganhando ares de nação independente. Várias foram as razões que contribuíram para a inquietação social e influenciaram os intelectuais da época, inclusive Mário de Andrade. A postura submissa brasileira e o descaso para com as suas tradições. Os preconceitos raciais e linguísticos além da própria ignorância do potencial social e econômico do País, tudo isso aliado a uma admiração exagerada ao ideário estrangeiro, confluíam a uma só conclusão: o brasileiro carecia urgentemente de uma identidade, um caráter que justificasse a grandeza de sua nação. A questão da identidade, no entanto, é complexa, posto que se desdobra em diversos conceitos e depende de determinados contextos sociais e até mesmo globais. Renato Ortiz, pesquisador da Cultura e Identidade Nacional, alerta em seus estudos, que o Brasil tem muito ainda a alcançar em termos de valorização social. Várias são as críticas que o autor nos apresenta sobre a questão da nacionalização, e será a sua máxima que norteará todo a nossa pesquisa. Ortiz declara que “Não existe uma identidade autêntica, mas uma pluralidade de identidades,
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construídas por diferentes grupos sociais em diferentes momentos históricos.” (Ortiz, p. 8). Restringindo a problemática da identidade a este pensamento do autor, pensamos num Brasil dinamizado e por tanto detentor não de uma, mas de várias Identidades, cada uma transitando em momentos específicos da história. Por isso Macunaíma apresentase como uma colcha de retalhos, sendo muitos e ao mesmo tempo sendo um. Mário de Andrade foi buscar no artesanato do interior, na música do seu povo, as cores e o ritmo desprezados em seu próprio solo, mas foi no resgate da linguagem que o autor encontrou a autenticidade necessária para uma cultura que se queria autônoma. Na concretização da sua narrativa, o autor utilizou-se bastante da crítica social, às vezes sutil, camuflada nas brincadeiras do Imperador do mato virgem, às vezes crua, no seu olhar que tudo captava. Para tanto Macunaíma precisou muitas vezes se metamorfosear e se revestir de poderes sobrenaturais para conseguir seguir em sua caminhada. A um olhar mais atento, Macunaíma revela-se um compêndio cultural, porque consegue reunir em um único personagem muito da multiplicidade cultural espalhada pelo Brasil a fora. Por isso este livro de Mário de Andrade é de suma importância para pensar o caráter nacional do brasileiro, uma vez que permite olhá-lo sob uma perspectiva diferenciada, uma demonstração ainda que metafórica de como é possível homogeneizar a heterogeneidade brasileira, dando conta de como seria um país que mesmo múltiplo, vivesse em unidade. A obra também demonstra que a construção de uma identidade nacional só é possível se ao invés de alimentar as diferenças regionais, essas sejam somadas e celebradas em união, porque independentes de região, todas são brasileiras. Em diversos textos, Mário imprime a sua revolta quanto a isso e essa é uma das questões substanciais na criação de Macunaíma, daí a razão de tê-lo construído deslocado geograficamente. Mário apontava em sua obra que o Brasil do Norte em nada se parecia ou aproximava do Brasil do Sul e este em nada dialogava com o Brasil do Nordeste, Centro Oeste e outros, enfatizando inclusive o personagem principal tanto da história do livro, quanto do nosso país: o índio. A esse respeito, Orlandi diz na Obra Terra à vista ( 1990, p. 56):
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Esse processo de apagamento do índio da identidade cultural nacional tem sido escrupulosamente mantido durante séculos. E se produz pelos mecanismos mais variados, dos quais a linguagem, com a violência simbólica que ela representa, é um dos mais eficazes. (...) São, desde o começo, o alvo de um apagamento, não constituem nada em si. Esse é o seu estatuto histórico “transparente”: não constam. Há uma ruptura brasileira pela qual passam do índio para brasileiro através de um salto.
Essa fala retoma o pensamento de outros grandes autores como Antonio Candido e Darcy Ribeiro, que nos dão conta do doloroso processo histórico a que o índio foi submetido com a chegada dos portugueses nessas terras e transposição de hábitos e costumes. Mário então, para criar um ser que reunisse toda a essência do ser brasileiro, dispôs em sua base, naquilo que tinha de mais espontâneo e natural, a feição do índio e sua própria natureza nada rebuscada. Ao contrário de outros autores com o mesmo projeto “nacionalizante” Mário não pincelou com leves tons de bronze o seu herói- personagem, e atribuiu-lhe as feições de “preto retinto filho da noite”, demonstrando ao longo do texto um herói preguiçoso, lascivo, mentiroso, mas também perseverante, bem humorado e crítico. Macunaíma então é apresentação alegórica que apresenta em si, uma porção de personagens reais, vivos aos montes pelo Brasil a fora. Há no personagem, uma pluralidade cultural que cria caboclos, sertanejos, cafuzos, e tantos outros, que se perdem dentro da impossibilidade de se registrar tantas misturas. O objetivo do autor, nesse sentido é buscar diminuir a distancia entre os vários Brasis aqui existentes. Assim: Faz sentido chamar de História Nacional, a história do sul, sudeste e nordeste, e as outras histórias serem história regional. Faz sentido termos vários representantes da identidade nacional nos livros didáticos e teóricos, assim como em campanhas publicitárias, e esquecermos sempre que indígenas e caboclos – é certo, com suas características físicas materializando essa identidade – permanecem ausentes desse caleidoscópio identitário. Ignoramos e fazemos ignorar quem produz conhecimento, música, cinema, literatura ou qualquer outra forma de expressão fora desse recorte que se elegeu como Brasil.” Porque de lá não
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há o que exprimir. Apenas o que comprimir, silenciar, desqualificar e assim, ignorar. (MARTINS, p. 219).
Esse trecho apresenta claramente os pensamentos de Mário de Andrade, ao criar, com toda a extravagância um ser carnavalizado, que apenas mantém preto retinto nos recônditos de seu habitat natural. Quanto mais Macunaíma se afasta de sua tribo, vai embranquecendo, justamente para responder aos anseios urbanos que apenas reconhece como seus, os “caras pálidas” de terno e gravata. Apesar de ser do conhecimento de todos que os verdadeiros donos dessa terra eram os índios e estes foram massacrados pela força do dominador, a população insiste em seguir os modelos estrangeiros dentro de um conceito de beleza que estigmatiza o ser pelo estereótipo “padrão” e ignora suas raízes – a sua essência. Mário defendia o discurso de nacionalizar para internacionalizar, e observava os pontos vitais que pudessem fazer vibrar essa proposta. Para o autor, mais que uma mudança da urbis, fazia-se urgente uma mudança na inteligência brasileira, e muitas de suas reflexões são valiosíssimas no estudo das concepções sociológicas que pensaram a nossa sociedade. No ensaio A literatura Nacional, que consta da Obra “o empalhador de passarinhos”, reflete; A literatura de uma civilização importada como a do Brasil, só tem um período real. Que é o da conquista do seu caráter específico, daquele caráter em que ela é original, daquilo enfim em que ela representa uma contribuição insoluvelmente nacional à história da inteligência humana. Mutações de sensibilidade histórica, transformações estilísticas e ideológicas das escolas, não importam nada enquanto essa literatura não adquire um caráter psicológico próprio, original e fatal. (ANDRADE, 1996, p. 167)
É no início do século XX que o Brasil deixa de lado o plantio do café e dá lugar à força das máquinas, recebendo a um só tempo todas as novidades inseridas nesse processo. Automóveis, luz elétrica, tudo fascinante. No entanto, mais que a aquisição de maquinários que pudessem inserir o Brasil em um panorama econômico tal qual o das metrópoles, o País precisava avançar também em educação, conscientização coletiva e principalmente afirmar-se enquanto terra autônoma que alcançara sua sonhada independência já há
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alguns anos. Por tratar-se de País subdesenvolvido os desafios, no entanto, eram vários: Os prenúncios do Brasil moderno esbarravam em pesadas heranças de escravismo, autoritarismo, coronelismo, clientelismo. As linhas de castas, demarcando relações sociais e de trabalho, modos de ser e pensar subsistiam por dentro e por fora das linhas e das classes em formação. O povo, enquanto coletividade de cidadãos, continuava a ser uma ficção política. Ao mesmo tempo, setores do pensamento brasileiro vacilavam em face de inclinações um tanto exóticas e demoravam-se para encontrar-se com a realidade social brasileira. (IANII, 2004, p.33)
O Brasil, como se pode constatar, permanecia, até então escondido atrás das austeras construções urbanas que imitavam cidades européias. Apesar do clima mais tropical, a parte da sociedade que se situava num patamar mais elevado, agia de modo a se abastecer na cópia do modelo de vida da gente estrangeira, desde a roupa que vestia, aos costumes que mantinha. O índio, nessa terra de pseudo-europeus, era um ser extremamente exótico sendo analisado de forma “curiosa” não só pelos estrangeiros, mas pelos próprios brasileiros, que estabeleciam uma relação de alteridade com as suas origens. Nesse momento, todo o contexto da eclosão industrial movimentava a sociedade paulistana, nicho da produção artística atuante no Brasil, e a chegada das máquinas agia como uma promessa de inserir o país essencialmente subdesenvolvido nos patamares da alta corte. No entanto, o Brasil não se resumia em São Paulo, ao contrário, estendia-se em diversos outros Estados, cada um construindo suas identidades a sua maneira, de maneira fragmentada, em contato com suas influências diretas, que muitas vezes eram heranças coloniais de um povo majoritário em determinados estados. A fim de caminharmos para uma reflexão mais profunda sobre a obra, torna-se indispensável salientar que Mário foi, absolutamente, um homem de seu tempo. Escreveu, articulou, modificou. Em seu projeto estético, aponta para a “fusão de três princípios fundamentais”: O direito à pesquisa estética, a atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização de uma consciência criadora nacional. Mário de Andrade pesquisou na cidade e na floresta, nas