Exercícios de crítica literária II

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Exercícios de Crítica Literária II


Conselho Editorial Série Letra Capital Acadêmica

Beatriz Anselmo Olinto (Unicentro-PR) Carlos Roberto dos Anjos Candeiro (UFTM) Claudio Cezar Henriques (UERJ) João Medeiros Filho (UCL) Leonardo Santana da Silva (UFRJ) Luciana Marino do Nascimento (UFRJ) Maria Luiza Bustamante Pereira de Sá (UERJ) Michela Rosa di Candia (UFRJ) Olavo Luppi Silva (UFABC) Orlando Alves dos Santos Junior (UFRJ) Pierre Alves Costa (Unicentro-PR) Rafael Soares Gonçalves (PUC-RIO) Robert Segal (UFRJ) Roberto Acízelo Quelhas de Souza (UERJ) Sandro Ornellas (UFBA) Sergio Azevedo (UENF) Sérgio Tadeu Gonçalves Muniz (UTFPR)


Fadul Moura Maria Luiza Germano de Souza Rita do Perpétuo Socorro Barbosa de Oliveira Organizadores

Exercícios de Crítica Literária II


Copyright © Fadul Moura, Maria Luiza Germano de Souza, Rita do Perpétuo Socorro Barbosa de Oliveira (org.), 2017 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610, de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem a autorização prévia e expressa do autor.

Editor João Baptista Pinto

Capa Rodrigo Verçosa

Projeto Gráfico e Editoração Luiz Guimarães Revisão Fadul Moura Maria Luiza Germano de Souza

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

E96 Exercícios de Crítica Literária II / organização Fadul Moura, Maria Luiza Germano de Souza, Rita do Perpétuo Socorro Barbosa de Oliveira. -- 1. ed. -- Rio de Janeiro: Letra Capital, 2017. 112 p. ; 15,5x23 cm. Inclui bibliografia ISBN: 978-85-778-5509-4 1. Ciência - Metodologia. 2. Teoria crítica. 3. Pensamento crítico. I. Moura, Fadul. II. Souza, Maria Luiza Germano de . III. Oliveira, Rita do Perpétuo Socorro Barbosa de. 17-39096 CDD: 001.42 CDU: 001.891

Letra Capital Editora Telefax: (21) 3553-2236/2215-3781 letracapital@letracapital.com.br


Sumário

Apresentação...............................................................................7 Paradoxos do Feminino em Triste Fim de Policarpo Quaresma.......................................................................9 Enderson de Souza Sampaio Maria Luiza Germano de Souza

A Poesia Insubmissa sob o Olhar de Sophia Andresen.........29 Kallel Alves Machado Rita do Perpétuo Socorro Barbosa de Oliveira

A Condição da Mulher nas Cantigas de Amigo.....................48 Neivana Rolim de Lima Rita do Perpétuo Socorro Barbosa de Oliveira

A Imagem Narcísica e Especular Nos Mitos: Édipo, Narciso e Medeia..........................................................64 Monike Rabelo da Silva Maria Sebastiana de Morais Guedes

A Literatura de Farias de Carvalho e Aspectos de Democratização da Arte......................................................81 Raissa Floriano Batista

Sobre Organizadores e Autores............................................ 110



Apresentação

O

livro que aqui se apresenta é um resultado do trabalho articulado entre membros do Grupo de Estudos e Pesquisas de Literaturas de Língua Portuguesa (GEPELIP), da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Com este segundo volume do livro Exercícios de crítica literária, objetiva-se apresentar uma série de trabalhos com alunos de graduação, os quais foram orientados por professores pesquisadores em Iniciação Científica e Monitoria Acadêmica em disciplinas específicas. Nota-se, por parte dos alunos, um esforço para produzir um material que seja projetável sobre estudos futuros, com temáticas que se estendem dos mitos da Antiguidade Clássica, atravessando um caminho por um Portugal de produção trovadoresca, seguido de reflexões sobre a posição do poeta no século XX até se pensar a respeito da democratização da arte no Amazonas. A variedade dos temas abordados ilustra a abrangência das linhas de pesquisa do grupo: 1) Interfaces da literatura; 2) Poesia em língua portuguesa; 3) Poesia novilatina e medieval; e 4) Prosa de ficção. Dessa forma, procura-se oferecer ao público um retrato das pesquisas mais recentes. Em Paradoxos do feminino em Triste fim de Policarpo Quaresma, verifica-se como a escrita de autores do sexo masculino tem um olhar que estigmatiza o papel da mulher em determinado momento social. Esse é um dos vieses assumidos e/ou percebidos na leitura do livro de Lima Barreto: o olhar masculino determina o percurso das personagens, levando-as a reproduzirem um modelo de sociedade que as excluem da escolha do centro de cena representado. Nesse capítulo, observa-se a trajetória de personagens de Lima Barreto sob o prisma apontado. Em A poesia insubmissa sob o olhar de Sophia Andresen, elabora-se um diálogo entre política e literatura, acreditando que a poesia de Sophia Andresen pode ser aproximada ao conceito de Roberto Pontes. Tem-se como foco de análise o papel do poeta em momentos de crise social: a ditadura salazarista, por exemplo, é o momento português sobre o qual se rebela Sophia em suas produções. Nesse contexto, questionar o posicionamento do poeta é revelar sua função política insubmissa no mundo.


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Em A condição da mulher nas cantigas de amigo encontra-se uma revisitação ao tema trovadoresco, recuperando o posicionamento feminino no interior da tradição da lírica-amorosa portuguesa. Percorrendo as palavras de teóricos como Spina, Le Goff e Ana Maria Mendes, revela-se a contextualização sobre a literatura portuguesa medieval, lançando luz ao papel social que foi atribuído à mulher por uma voz masculina, a fim de que, em seguida, haja um destaque à própria voz feminina. Dizer o seu amor é uma forma de dizer a si mesma, posicionando-se frente à lógica do patriarcado. Em A imagem narcísica e especular nos mitos: Édipo, Narciso e Medeia faz-se uma incursão nos mitos universais presentes nas tragédias gregas Édipo Rei, de Sófocles, Medeia, de Eurípides, e o drama de Narciso, com o intuito de investigar as imagens especulares e as representações sociais já pensadas por vários teóricos, entre eles os estudos de Sigmund Freud. Na finalização do percurso trilhado pela autora, chega-se à conclusão de que tais mitos em suas imagens e representações sobrevivem em situações recorrentes no cotidiano: no culto à beleza (Narciso), nos incestos e nas negações de pais e de mães (Édipo) e quando mães subjugam os filhos em função dos esposos e/ou companheiros somente para punir esses últimos quando as relações são destruídas e o que sobra é tão somente o ódio (Medeia). Em A literatura de Farias de Carvalho e aspectos de democratização da arte, verifica-se a apresentação da literatura como uma forma de visualização da política vigente. Com base nos livros do poeta brasileiro, procura-se evidenciar o papel do Clube da Madrugada e a democratização da arte no Amazonas: da análise de poemas ao fato social, a extrapolação do texto atinge outras áreas do conhecimento, com o objetivo de se fazer ver o papel da literatura no âmbito do contexto social e político do Clube. Ao fim, acredita-se que essas pesquisas contribuam não só para a divulgação das atividades do Grupo, mas, sobretudo, para a difusão dos estudos literários no Amazonas. O GEPELIP vem, por meio desse II Exercício, continuar um projeto de articulação constante entre professores e alunos dedicados, antes de tudo, ao trabalho da Literatura. Os organizadores


Paradoxos do Feminino em Triste Fim de Policarpo Quaresma Enderson de Souza Sampaio Maria Luiza Germano de Souza

As representações do feminino no discurso literário têm sua constituição calcada em apreciações de ordem moral e valorativa e em modelos de comportamentos presos ao espírito da nossa cultura, sendo, indubitavelmente, regidas pela lógica patriarcal. No mundo possível, apresentado na narrativa literária e sustentado por laços mantidos com o mundo real, ocorre a seleção dos fragmentos da vida utilizados na construção de um sentido de realidade, em que se misturam processos ideológicos, dos quais surge a legitimação de um fato social: a condição feminina. (Níncia Cecília Ribas Borges Teixeira)

Considerações Iniciais Este estudo visa promover uma leitura da obra Pré-modernista de Lima Barreto, Triste fim de Policarpo Quaresma, publicada inicialmente em folhetins no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, entre 11 de agosto a 19 de outubro de 1911, e em 1915 sai a primeira edição em formato de livro. O foco de análise será para as personagens femininas construídas a partir do olhar masculino sobre elas. Para trilhar esse caminho, propomos as seguintes questões: a) o casamento; b) a educação feminina na sociedade patriarcal brasileira; c) os papéis femininos, entendendo estes como sinônimos de funções de esposa, mãe e dona de casa; e d) algumas considerações sobre a obra limiana¹ e o contexto do pré-modernismo. O quadro teórico que tomaremos como escopo é baseado nas obras de Maria Rita Kehl, em Deslocamentos do feminino (2008); Flora


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Süssekind em Tal Brasil, Qual Romance (1984); Relações de Gênero, Masculinidades, Violência e Literatura, de Tânia Regia Zimmermann (2013). Além de Estudos de Literatura Brasileira (2008), de Alcmeno Bastos [et. al.]; Questões de Literatura e Estética – a teoria do romance (2002), de Mikhail Bakhtin; A personagem de ficção (1998), de Antonio Candido [et. al.]; Ruth Silviano Brandão, em Mulher ao pé da letra: a personagem feminina na literatura (2006) entre outros autores considerados importantes para a análise aqui proposta.

A Prosa Limabarretiana e o Contexto Pré-Modernista O movimento pré-modernista é marcado por ser um período de transição que corroborou significativamente para o estabelecimento da estética Modernista na Literatura Brasileira. No entanto, o que se tem no pré-modernismo são autores e obras que ainda carregam elementos da tradição literária de escolas precedentes, porém já apresentam elementos de inovação/ruptura do modelo tradicional. Isso é importante porque faz com que essas obras sejam híbridas, pois mesclam tradição e inovação, por tal razão não se considera o pré-modernismo como sendo escola literária. No tocante ao referido período, Marcos Rogério Cordeiro, em Desconstruindo o pré-modernismo: o estilo híbrido na obra de Euclides da Cunha (2008), diz que “noventa e ‘nove por cento’ dos livros de história da Literatura Brasileira resumem o quadro assim: o pré-modernismo inicia-se em 1902 e finda em 1922 com a explosão da Semana de Arte Moderna” (CORDEIRO, 2008, p. 95). O movimento modernista reuniu autores descontentes com outras escolas literárias precedentes: o Simbolismo, o Parnasianismo e o Realismo. Em relação a esses autores, citamos Euclides da Cunha, autor de Os sertões e Graça Aranha, escritor de Canaã. Os referidos autores viram no pré-modernismo uma forma de desenvolver novas aspirações estéticas. Antes de nos atermos à análise das personagens femininas construídas sob a ótica do masculino, apresentaremos algumas considerações sobre a obra em foco. Sobre esse aspecto, Alcmeno Bastos em O romance político brasileiro e os “anos de chumbo” (2008) traz o seguinte comentário:


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Já nos anos XX, nos anos imediatamente anteriores ao Modernismo, será na obra de Lima Barreto que a preocupação com a realidade social se parecerá mais evidente. E nenhum outro dos seus romances será demonstrativo dessa preocupação quanto Triste fim de Policarpo Quaresma (1915), centrado na personagem que dá título à obra, um patriota ingênuo e exaltado cujo duro aprendizado expõe à consideração do leitor a abissal distância entre sua integridade moral e os mesquinhos interesses dos que se servem do Brasil para interesses próprios. O narrador, por sua vez, longe de assumir um distanciamento flaubertiano, não deixa dúvidas quanto seu posicionamento político: é visceralmente avesso à República recém-fundada, e desenha um arrasador retrato do marechal Floriano Peixoto, avançando até a desqualificação do ideário positivista que formou a nação republicana (BASTOS, 2008, p. 166-167).

O mesmo teórico traça um panorama entre a literatura e a política. Ao falar sobre a ficção de Lima Barreto, Bastos advoga que o romance faz severas críticas ao marechal Floriano Peixoto, personagem que representa, de forma mais contundente, o viés político da obra. Aqui vale trazer à reflexão o que lembra Antonio Candido em seu ensaio A personagem do romance (1998). O crítico revela que “o autor parece convidar o leitor a permanecer na camada imaginária que se sobrepõe a realidade histórica” (CANDIDO, 1998, p. 21). Ainda sobre o traço político e histórico em Triste fim de Policarpo Quaresma, Candido acrescenta que “o Homo fictius é e não é equivalente ao Homo sapiens, pois vive segundo as mesmas linhas de ação e sensibilidade, mas numa proporção diferente e conforme avaliação também diferente” (CANDIDO, p. 63, grifo do autor), mas este é apenas um dos polos ficcionalizados no texto. No presente estudo, objetivamos fazer uma análise da representação das personagens femininas no imaginário masculino desenhado pelo narrador. Desse modo, entendemos ‘a personagem feminina’, conforme Ruth Silviano Brandão, em Mulher ao pé da letra: a personagem feminina da literatura (2006), da seguinte forma: [...] se não há inscrição de um significante feminino no inconsciente, em contrapartida, há múltiplas representações ou encenações da mulher na literatura. A representação, buscando reduplicar a realidade, acaba por denunciar, como nos textos da


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modernidade, a impossibilidade de uma verdade que preexista à linguagem. (BRANDÃO, 2006, p. 201).

Brandão ressalta que há diferentes perspectivas de representação da mulher na literatura. Logo, propomos analisar as várias encenações do significante feminino no quadro romanesco de Lima Barreto. No tocante a isso, tomamos como referência as personagens: Ismênia, Olga, D. Maricota e D. Adelaide, porque entendemos que elas são “construções discursivas de autoria masculina” (STEVENS, 2012, p. 11-12), mais precisamente essas personagens são fruto do olhar de Lima Barreto, posto ser ele o criador delas em seu romance Triste fim de Policarpo Quaresma. Dessa forma “ao representar a figura feminina, constrói-se, projeta-se e estabiliza-se a identidade social, em processos definidos histórica e culturalmente” (TEIXEIRA, 2009, p. 85). As personagens femininas são levadas a ocupar um lugar construído pelo homem. Esse espaço relegado às mulheres burguesas geralmente é o ambiente doméstico e as suas atribuições são eminentemente concebidas pelo olhar masculino que ora aparece moderno, como no caso de Olga, ora conservador no caso de Ismênia. Vale ressaltar que a burguesia retratada no romance é aquela cujo extrato social refere-se à “classe média” do Rio de Janeiro do início do século XX. Danusa da Matta Duarte Fattori, em A modernidade e a mulher em Triste fim de Policarpo Quaresma (2012), diz que “há, no entanto, em Triste fim de Policarpo Quaresma (TFPQ), uma importante contraposição de comportamentos femininos, capaz de suscitar instigantes considerações a respeito do modo como Lima Barreto tratou a mulher na sua obra” (FATTORI, 2012, p. 25). Seguindo este roteiro, começamos a apresentação das personagens femininas de mais relevo na narrativa. Iniciamos por Ismênia, aquela que merecerá mais destaque neste estudo pelo modo como foi pensada, bem como pelo seu desenrolar na trama e, consequentemente, por seu fatídico e trágico desfecho. Olga será a próxima personagem, ela também é moldada de forma que o leitor/a perceba sua posição de insatisfação/conformação em relação à sociedade burguesa e o “comércio” do casamento. D. Adelaide será a terceira a ser apresentada aos leitores. Ela optou por não se casar, apesar de ter tido a oportunidade de enve-


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redar por esse caminho. D. Adelaide é irmã do personagem que dá título à obra, o Major Quaresma, ela se dedicou a cuidar do irmão e dos afazeres domésticos. Por fim, D. Maricota será a última a quem nos ateremos. Ela é uma personagem caricaturada, mulher de humor excessivo e que só pensava em coisas banais, tais como festas, que eram feitas com o intuito de apresentar as filhas a pretensos maridos. Era também responsável pela educação destas, que, desde a tenra idade, foram sendo acostumadas/condicionadas para verem o casamento como única possibilidade para a mulher. Nesse sentido, as questões tencionadas neste estudo são: 1) o casamento; 2) o comportamento das mulheres; 3) a morte e a (in) sanidade como válvula de escape para as mulheres abandonadas, aqui especificamente, o caso de Ismênia.

Insanidade e Morte na Ficção Limabarretiana: o Caso de Ismênia As personagens femininas criadas por Lima Barreto apresentam personalidades distintas, logo suas atitudes são impulsionadas por elementos de suas respectivas características psicológicas. Tendo isso em mente, percebe-se que: [...] na literatura, as figuras humanas que tecem teias cotidianas da narrativa estão marcadas pelos espaços sociais conflitantes. Muitas vezes, as personagens femininas são sofredoras das ações masculinizantes e raramente personagens ativas, nas quais as leitoras reconheçam fios de esperança nas afetividades, sonhos, desejos e profissionalizações. Muitas destas obras literárias representam a visão androcêntrica do narrador, alheio ao contexto no qual brotavam reivindicações de mudanças entre os gêneros, cujas raízes desdobravam-se em ação de diferentes mulheres (ZIMMERMAN, 2013, p. 27).

Se pegarmos a argumentação de Zimmerman e a contrapusermos à leitura das personagens femininas de Lima Barreto, veremos que essas personagens se encontram em um espaço social conflitante. Assim, diz-se que Ismênia é perfeitamente condicionada pelas ações do narrador que a concebe como uma mulher ingênua, passiva e sofredora. Já Olga é posta como personagem ativa, cujos sonhos/aspirações beiram à idealização da mulher emancipada.


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Nesse sentido, evidenciamos que Ismênia fora educada para o casamento, ou seja, “a menina foi se convencendo de que toda a existência só tendia para o casamento. A instrução, as satisfações íntimas, a alegria, tudo isso era inútil; a vida se resumia numa coisa: casar.” (BARRETO, 2012 p. 29, grifo nosso). Nada mais importava: a instrução, as satisfações pessoais, a alegria, nada tinha razão caso não fosse desaguadouro para o casamento. Em se tratando de Ismênia, o casamento foi aos poucos sendo introduzido como meta a ser alcançada, pois as mulheres eram educadas conforme os dogmas sociais vigentes à época. Leia-se o excerto A vida, o mundo, a variedade intensa de sentimentos, das ideias, o nosso próprio direito à felicidade, foram parecendo ninharias para aquele cerebrozinho; e, de tal forma casar-se lhe representou coisa importante, uma espécie de dever, que não se casar, ficar solteira, tia, parecia-lhe, um crime, uma vergonha (BARRETO, 2012 p. 29, grifo nosso).

Nesse fragmento, o narrador faz, sem nenhum pudor, severas críticas ao modo de pensar da personagem, veja-se, a título de exemplificação, o uso do qualificativo “cerebrozinho”, no diminutivo, que atribui à personagem uma personalidade fraca, muito influenciável, além de que Ismênia acreditava piamente que as mulheres não poderiam optar por não se casarem e que isso constituiria uma espécie de crime, sendo uma vergonha para elas ficarem solteiras ou para a “titia”. A personagem mostra-se inteiramente engessada pelos dogmas sociais e isso fica evidente em seu posicionamento conservador/negativo. Tomando Ismênia como exemplo, podemos afirmar que se constitui como objetivo das mulheres burguesas do início do século XX o casamento, sendo esse o objetivo primeiro na educação de mulheres que, desde muito cedo, eram condicionadas para este momento, cabendo a elas, quando não conseguiam se casar, apenas três opções: enlouquecer, morrer, ou, em último caso, quando elas não se casavam, ficavam incumbidas de cuidar de um parente. Dessa forma, cabe mencionar, apoiados nos postulados de Brandão (2006), que: [...] o papel das mulheres nas culturas é contraditório e ambíguo, como sabemos pelos estudos antropológicos, e, se por um lado


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elas aí se incluem, conforme a regra do casamento e da reprodução, daí também se excluem, pelas regras que as associam aos ciclos e às perturbações da natureza (BRANDÃO, 2006, p. 115).

Tanto é assim que, aos poucos, Ismênia vai enlouquecendo e definhando até a morte, pois o noivo havia sumido, abandonando-a e, com ele, foi-se a razão de viver: o casamento. Ao analisar a decadência e/ou declínio da personagem Ismênia, vemos que tal fato se dá após a impossibilidade do casamento. Observa-se que, ao não conseguir casar-se, Ismênia vê-se às voltas com problemas físicos e mentais e estes acabam por contribuir para a sua morte. Ao relatar sobre a personagem Ismênia e sua vida, Idilva Maria Pires Germano em Imagens da brasilidade em Triste fim de Policarpo Quaresma (2000, p. 26) diz o seguinte: “a vida insossa de Ismênia que se esvai com o fim de uma promessa de casamento”. Diante do que problematiza a autora acima mencionada, vê-se que a mulher burguesa tinha uma vida pouco ou nada motivada por objetivos concretos fora o casamento. Ademais, é importante salientar, conforme a assertiva de Alfredo Bosi, em História concisa da literatura brasileira (1999), que “a grandeza de Lima Barreto reside justamente em ter fixado o desencontro entre “um” ideal e “o” real, sem reduzi-lo a símbolo imóvel de um só comportamento” (p. 320, grifo do autor). Se pegarmos a profícua contribuição de Bosi e compararmos às personagens do romance, podemos ver que esse desencontro fixado pelo romancista entre o real e o ideal se intensifica com a perspectiva limiana do modo de ver e conceber a vertente psíquica e social das personagens, aqui, em especial, o Major Quaresma e Ismênia, pois ambos se inserem nessa dinâmica do real e do social, bem como na linha social e psíquica. Em livro intitulado Questões de Literatura e de Estética – A Teoria do Romance, Mikhail Bakhtin diz que: No romance, o homem que fala e sua palavra são objeto tanto de representação verbal como literária. O discurso do sujeito falante no romance não é apenas transmitido ou reproduzido, mas representado artisticamente e, à diferença do drama, representado pelo próprio discurso (do autor). (BAKHTIN, 2002, p. 72).

Conforme o discurso bakhtiniano, a palavra do homem no ro-


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mance torna-se representação verbal e literária, assim temos as personagens da prosa limiana, porque tanto o Major Quaresma quanto as personagens femininas são representações verbais e literárias de Lima Barreto. Assim, [...] no Major Policarpo Quaresma afloram tanto as revoltas do brasileiro marginalizado em uma sociedade na qual o capital já não tem pátria, quanto a própria consciência do romancista de que o caminho ufanista é veleitário e impotente (BOSI, 1999, p. 318).

Ainda sobre esse aspecto, o crítico acrescenta que: É verdade que se apontam contradições na ideologia de Lima Barreto: o iconoclasta de tabus detestava algumas formas típicas de modernização que o Rio de Janeiro conheceu nos primeiros decênios do século: o cinema, o futebol, o arranha céu e, o que parece grave, a própria ascensão profissional da mulher! (BOSI, 1999, p. 317, grifo nosso).

Diante desse quadro, percebe-se que a contradição na produção limiana se intensifica quando o autor opõe os perfis femininos, ora concedendo a mulher uma perspectiva mais moderna, como no caso de Olga e D. Adelaide, ora deixando estas personagens no padrão conservador – Ismênia e D. Maricota. Por essas e outras razões, o autor é constantemente acusado de xenofobia, apesar de que essa acusação é passível de questionamentos, porque há que se atentar para a questão de que essa categoria ser usada no contexto da contemporaneidade. No momento da escritura da obra, lidávamos com outras categorias histórico-sociais. Ainda no tocante à ascensão profissional da mulher, Olga e Ismênia são paradoxais. A primeira é uma mulher moderna cuja educação a fez escolher o próprio noivo; já a segunda, abandonada pelo noivo e sem perspectiva de casamento, definha gradativamente no percurso da narrativa, chegando ao ápice com a morte. Assim, diz-se que: [...] o episódio da morte de Ismênia, o contato e desilusão de Quaresma com Floriano e sua “falange sagrada” de cadetes (descritos em páginas ontológicas), as desventuras e experiências junto a terra e, sobretudo, as páginas finais de solidão voltam a colorir com a tinta da melancolia a prosa limabarretiana (BOSI, 199, p. 320).


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Todos esses aspectos corroboram para que o texto de Lima Barreto apresente uma das cenas mais plenas de lirismo da prosa brasileira: a morte de Ismênia, narrada no capítulo III da segunda parte. Ela é encontrada, no quarto, já morta, vestida com partes da indumentária de noiva e, inusitadamente, o narrador descreve-a com “a coroa na cabeça e um seio, muito branco e redondo, saltava-lhe do corpinho.” (BARRETO, 2012, p. 138). Passaremos a narrar sobre como se deu a trajetória de Ismênia cujo desfecho foi a morte. Leia-se o excerto a seguir no qual aparece o diálogo entre o Major Quaresma e o general Albernaz, pai de Ismênia: “O pudor de pai tinha-o impedido de dizer toda a verdade. A filha enlouquecera de uma loucura mansa e infantil”. (BARRETO, 2012, p. 115). Nesse fragmento, apresenta-se ao leitor a figura de um pai preocupado com a filha que se entrega lentamente à cova após o sumiço do noivo, Cavalcânti. Continuando o percurso que nos fará perceber o declínio de Ismênia, leia-se o trecho abaixo em que há outro diálogo entre as personagens acima referidas. Nessa conversa, as personagens abordam a situação degradante a qual Ismênia se encontrava. Vejamos: – Por que não a recolhe a uma casa de saúde, general? – Meu médico já me aconselhou a isso... A mulher não quer e agora mesmo, no estado em que a menina está, não vale a pena... Falava da filha, da Ismênia que, naqueles últimos meses, piorava sensivelmente, não tanto da sua moléstia mental, mais da saúde comum, vivendo de cama, sempre febril, enlanguescendo, definhando, marchando a passos largos para o abraço frio da morte (BARRETO, 2012, p. 130).

Posteriormente, Olga e o Major Quaresma também conversam sobre a situação de Ismênia: [...] Via bem o que fazia o desespero da moça, mas via melhor a causa, naquela obrigação que incrustam no espírito das meninas, que elas se devem casar a qualquer custo, fazendo do casamento o polo e fim da vida, a ponto de parecer uma desonra, uma injúria, ficar solteira (BARRETO, 2012, p. 135). O casamento já não é mais amor, não é maternidade, não é nada disso: é simplesmente casamento, uma coisa vazia, sem fundamento nem na nossa natureza nem nas necessidades (BARRETO, 2012, p. 135).


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[...]. A moça continuou a definhar e, se a mania parecia um pouco atenuada, o seu organismo caía. Estava magra e fraca, a ponto de quase não poder sentar-se na cama. Era sua mãe quem mais junto a ela vivia; as irmãs se desinteressavam um pouco, pois exigências de sua mocidade levavam-nas para outros lados (BARRETO, 2012, p. 137). [...]. A moléstia tinha posto mais firmeza nos traços de Ismênia, tinha-lhe diminuído a lassidão, tirado o mortiço dos olhos e os seus lindos cabelos castanhos, com reflexos de ouro, mais belos se faziam quando cercavam a palidez de sua face (BARRETO, 2012, p. 137).

Os fragmentos acima traçam um panorama do processo de definhamento da personagem Ismênia. É importante frisar que o fato de o casamento não ter sido concretizado corroborou significativamente para o agravamento do estado físico e mental esboçado pela personagem, pois ela (Ismênia) não via outra solução para sua existência. Nesse sentido, diante da possibilidade iminente de não se casar, logo a moça se entrega de corpo e alma às enfermidades que culminam em seu desfecho. Sobre essa prerrogativa, torna-se premente pontuar que: [...] ao observar as ambições da mulher brasileira na virada do século, verificamos que o matrimônio constituía o objetivo primeiro, ou talvez único de sua vida. Desde a infância, era socializada para tomar-se dependente. Para integrar a sociedade, precisava ostentar o título de Senhora Fulana de Tal. Só assim adquiria status. O casamento lhe era proposto como o único assunto sobre o que deveria pensar, a via pela qual desempenhava sua função social mais importante: a de esposa e de mãe (VASCONCELLOS, 1992, p. 71)

Nesse sentido, faz-se necessário enfatizar que a ficção limiana faz um diagnóstico da banalização do casamento na sociedade carioca do início do século XX, porque, ao contrapor perfis femininos, o narrador retrata o contraste das personalidades femininas de Olga e Ismênia, ora de uma maneira bastante sutil, ora nem tanto. Ambas as moças se encontram em idade propícia ao casamento, entretanto, a segunda faz desse o móvel da sua vida, ao


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passo que a primeira, se não chega a se opor ao mesmo, também não o supervaloriza. Nenhuma das duas ama o noivo, mas Olga, embora não soubesse exatamente por que se casava, mantém, mesmo após o enlace, sua personalidade, sua independência de pensamento em relação ao marido (FATTORI, 2012, p. 26)

Essa polarização ora positiva e moderna, ora negativa e conservadora do narrador para com as personagens Ismênia e Olga é percebida por Fattori da seguinte forma: Ismênia, entretanto, uma moça frágil, limitada, praticamente não tem discurso, ou melhor, o seu discurso restringe-se às respostas a respeito do seu casamento que nunca chega a se realizar. Para essa personagem, o narrador guarda somente críticas. (FATTORI, 2012, p. 26).

Fattori argumenta ainda que este mesmo narrador, que desfere severas críticas à Ismênia, polarizando-a de forma extremamente conservadora/negativa, ao se referir a Olga confere a ela apenas elogios, intensificando os seus atributos, ou seja, opondo-a na perspectiva moderno/positiva. Observemos os fragmentos abaixo a fim de comprovarmos tal afirmação: A afilhada de Quaresma, diversamente, pensa, reflete sobre a realidade ao seu redor e atua sobre tal realidade e de tal maneira a vemos assumir posições sensatas, coerentes e ao mesmo tempo críticas em relação ao seu próprio grupo social, que o leitor facilmente percebe uma espécie de adesão do narrador ao discurso da personagem (FATTORI, 2012, p. 26). Destaque-se ainda a defesa que o narrador empreende a favor da afilhada de Quaresma quando, por exemplo, denuncia o fato de as leituras de Olga não terem a sua profundidade compreendida pelo marido. Tal fato, aparentemente simples, revela-nos a necessidade de se avaliar a própria instituição casamento, ao se discutir o papel da mulher na obra deste autor (FATTORI, 2012, p. 27)

Aqui cabe mencionar o fato de que as leituras de Olga lhe concediam instrução e inteligência que corroborava significativamente para o seu modo de pensar, questionando as injustiças sociais que aconteciam à época bem como o lugar destinado às mulheres, porque a leitura como fonte de conhecimento confere a Olga emancipação. Logo, diz-se que “a ‘fúria de ler’ das mulheres foi rapidamente


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estendida por uma indústria de novelas e romances escritos por e para mulheres, de modo que houve uma feminilização daquele domínio até então reservado aos homens” (KEHL, 2008, p. 78-79). Essa “fúria de ler” a que se refere à autora possibilitou às mulheres um deslocamento do feminino, antes circunscrito ao ambiente doméstico, uma vez que “de alguma forma, os homens pressentiram a magnitude das forças que a educação recalcou nas mulheres em nome da redução da complexidade dos papéis que uma esposa/ mãe tem de representar” (KEHL, 2008 p. 68). Dito de outro modo, a leitura serviu para Olga como fonte de empoderamento que lhe deu autoridade para questionar os valores impregnados no contexto social a que estavam inseridos. Sobre esse aspecto, Fattori (2012) postula que: Lima Barreto, embora a julgar pela posição assumida pelo narrador de TFPQ, não almejasse nenhuma grande modificação para essa instituição, critica o exagero com que, via de regra, se realizavam as cerimônias, inclusive no que concerne ao vestuário das noivas (FATTORI, 2012, p. 27).

Em relação a isso, é bom lembrar que o vestuário das noivas é sugestivamente pormenorizado no caso da degradação de Ismênia diante da impossibilidade de consolidação e/ou realização da aspiração ao casamento que finda de forma bastante trágica e até poética na cena final da sua morte, pois a moça é descrita minuciosamente em sua obsessão pelos utensílios que seriam utilizados por ela na concretude ainda que imaginária do casamento. Ainda de acordo com Fattori, as críticas feitas pelo narrador acerca da banalização do casamento podem assim ser entendidas: Frente a esse quadro, depreende-se das críticas do narrador o desejo de que homens e mulheres buscassem o casamento por amor e que as mulheres, especificamente, não se submetessem aos maridos e às regras sociais a ponto de perderem sua individualidade, especialmente se estas mantivessem visão mais ampla e ideais mais nobres que os respectivos, como ocorre com a personagem Olga. A capacidade da personagem em questão de perceber as injustiças sociais, capacidade que a transforma na primeira personagem feminina da literatura brasileira a se empenhar no resgate de um preso político, faz da personagem uma espécie de parceira do narrador. Dessa forma, o autor traz


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uma mulher para o centro da obra, ressaltando outras características que não a beleza ou a competência para realizar prendas domésticas, traça um perfil de mulher bastante mais próximo da mulher moderna. Além disso, acena com a possibilidade de homens e mulheres se relacionarem em parceria, sem submissão de uma ou de outra parte, rompendo, de alguma maneira, com o status quo (que punha a mulher em situação de inferioridade em relação ao homem), posicionamento que pode ser considerado um avanço em relação ao pensamento da época (FATTORI, 2012, p. 28-29).

Sobre a morte de Ismênia os fragmentos abaixo representam a cena narrada da autodestruição da personagem. Eis os excertos: – Mamãe... Eu vou morrer... As palavras saíram-lhe dos lábios, seguras, doces e naturais. [...]. – Qual, mamãe! Eu sei: vou morrer e peço uma coisa à senhora [...]. – Eu quero, mamãe, ir vestida de noiva (BARRETO, 2012, p. 137). [...] Lembrou-se do noivo, do nariz fortemente ósseo e dos olhos esgazeados de Cavalcânti; mas não se recordou com ódio, antes como se fosse um lugar visto há muito tempo (BARRETO, 2012, p. 138). [...]. Acabou de abotoar a saia em cima do corpinho, pois não encontrara colete; e foi ao espelho. [...]. O véu afogou-lhe as espáduas carinhosamente, como um adejo de borboleta. Teve uma fraqueza, uma coisa, deu um ai e caiu de costas na cama, com as pernas para fora... Quando a vieram ver, estava morta. (BARRETO, 2012, p. 138).

Logo após a morte de Ismênia “o enterro foi feito no dia imediato e a casa de Albernaz esteve os dois dias cheia, como nos dias de suas melhores festas” (BARRETO, 2012, p. 138). O Major Quaresma foi ao enterro de Ismênia e, ao chegar lá, depara-se com a seguinte cena: [...] era ela mesma ali; era a Ismênia dolente e pobre de nervos,


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com os seus traços miúdos e os seus lindos cabelos, que estava dentro daquelas quatro tábuas. A morte tinha fixado a sua pequena beleza e o seu aspecto pueril; e ela ia para a cova com a insignificância, com a inocência e a falta de acento próprio que tinha tido em vida [...]. (BARRETO, 2012, p. 138). E lá ia aquela moça por ali afora para o buraco escuro, para o fim, sem deixar na vida um traço mais fundo de sua pessoa, de seus sentimentos, de sua alma! (BARRETO, 2012, p. 139).

O que se percebe é que o insucesso de Ismênia em relação ao casamento só a deixou como perspectiva a morte. Ela fora incessantemente moldada para exercer o papel social de esposa e, consequentemente, de mãe, função esta que sofreu uma ruptura com o abandono do noivo Cavalcânti, o que a levou vestida de noiva para a cova, porque sua vida não tinha mais significado. A propósito disso, cabe dizer que a insanitas é comum tanto a Ismênia quanto ao Major Quaresma. Ela foi aos poucos se entregando à loucura, enquanto ele, por sua vez, foi internado em virtude de seu patriotismo demasiado, em ambos os casos se vê a ideia excessiva de aspirar por algo: no caso dela, o casamento; em se tratando dele, o patriotismo.

A Construção do Feminino em Triste Fim de Policarpo Quaresma Olga é outra personagem feminina desta narrativa. Ela é afilhada do Major Quaresma, protagonista da trama, apresenta personalidade forte, era instruída, pois muitas vezes reivindicava, junto ao padrinho, contra as injustiças sociais cometidas pelo regime republicano de Floriano Peixoto. Quanto ao casamento, pode-se dizer que não representava o motivo para o seu existir, contudo, o pretendente a noivo de Olga precisava possuir qualidades dignas de um homem de personalidade marcante, tal como se apresentava a personagem, para ela não bastava que este indivíduo fosse detentor do título de doutor. Leia-se o fragmento: Todos os rapazes que ela conhecia não possuíam relevo que a ferisse, não tinha o quê, ainda indeterminado na sua emoção e na sua inteligência, que a fascinasse ou subjugasse. Ela não sabia bem o que era dominante no homem. Era o heroico, era o fora


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do comum, era a força de projeção para as grandes coisas; mas nessa confusão mental dos nossos primeiros anos, quando as ideias e os desejos se entrelaçavam e se embaralhavam, Olga podia colher e registrar esse anelo, esse modo de se lhe representar e de amar o indivíduo masculino (BARRETO, 2012, p. 52-53).

Ainda em se tratando desta personagem, vale ressaltar que, mesmo sendo uma mulher de relevo e tendo aparentemente vontade própria para escolher seu futuro esposo, ela se deixou levar pelas convenções sociais e casou-se. Portanto, mesmo havendo a marca de uma personagem forte dentro da narrativa e sem mostrar muito interesse por se casar, ela não pôde escapar do estigma social destinado à mulher. Observemos o próximo fragmento: E tinha razão em se casar sem obedecer à sua concepção. É tão difícil ver nitidamente num homem, de vinte a trinta anos, o que ela sonhara que era bem possível tomasse a nuvem por Juno... Casava por hábito de sociedade, um pouco por curiosidade e para alargar o campo de sua vida e aguçar a sensibilidade (BARRETO, 2012, p. 53, grifo nosso).

No excerto acima, o narrador coloca-se positivamente ao modo de pensar de Olga, pois, quando diz “e tinha razão em se casar sem obedecer à sua concepção”, fica explícito o ponto de harmonia entre o que pensa o narrador e a personagem, ao mesmo tempo, ambos (narrador/personagem) colocam-se na mesma linha de raciocínio do conservadorismo burguês, isso se dá no trecho: “casava por hábito de sociedade”. Não obstante, percebe-se que há nesse discurso um resquício de não conformismo com aquela situação. No tocante à D. Adelaide, irmã do Major Quaresma, ela não possuía personalidade marcante tal como a de Olga. Essa personagem nos é apresentada assim: D. Adelaide, a irmã de Quaresma, tinha uns quatro anos mais do que ele. Era uma bela velha, com um corpo médio, uma tez que começava a adquirir aquela pátina de grande velhice, uma espeça cabeleira já inteiramente amarelada e um olhar tranquilo, calmo e doce. Fria, sem imaginação, de inteligência lúcida e positiva [...]. (BARRETO, 2012, p. 88). Para D. Adelaide, a vida era coisa simples, era viver, isto é, ter uma casa, jantar e almoço, vestuário, tudo modesto, médio. Não tinha ambições, paixões, desejos. Moça, não sonhara prín-


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cipes, belezas, triunfos, nem mesmo um marido (BARRETO, 2012, p. 88).

D. Adelaide dedicou-se exclusivamente aos afazeres domésticos e a cuidar do irmão. Nesse sentido, o título de “Rainha do Lar” pode ser atribuído a esta personagem, mas também serve para nos referimos a D. Maricota, pois ambas representam, cada uma a sua maneira esse papel social. A irmã de Policarpo Quaresma privou-se do casamento por escolha própria, mesmo ainda jovem não sonhara com isso, consequentemente, também se privou de ser mãe. Era uma típica representante da mulher da sociedade brasileira do começo do século XX. Contudo, cabe aqui o destaque para a sua atitude diante do quadro de não se entregar ao costume/hábito do casamento, pois, ao escolher não se casar, ela se mostra à frente de seu tempo, o que corrobora para sua emancipação naquele contexto no qual as mulheres poucas escolhas tinham. [...]. Às filhas do pai cabe destino igualmente melancólico. Ou enveredam como é o caso das histéricas, pelo caminho de uma fragilização excessiva que as tornam doentes e passíveis de tutela por algum médico. Ou se travestem e tomam para si valores e papéis masculinos como é o caso das donzelas-guerreiras, e são punidas por essa invasão ao mundo dos machos. Ou há uma feminilidade demasiada, ou uma masculinização dessas personagens cujo cordão umbilical as prende ao pai. E faz de uma possível analogia (Tal mãe, tal filha), dúvida (Tal pai, qual filha?) ou assimetria (Tal pai, qual filha) (SÜSSEKIND, 1984, p. 147).

Flora Süssekind em Tal Brasil, Qual Romance (1984) pontua de forma bastante esclarecedora o que acontece com as personagens limianas, porque em Ismênia e D. Maricota há uma feminilidade latente, pois a primeira, ao se deixar levar pelas convenções sociais, representa a mulher passiva, cuja única alternativa era a consolidação do projeto de casamento. A segunda se mostra caricaturizada como a mãe à procura de bons casamentos para as filhas. Já em Olga e em D. Adelaide sobrepõe-se, mesmo que ainda incipiente, a emancipação feminina, uma vez que ambas, cada uma na sua perspectiva, se revelam como perfis femininos com independência de vontade para trilhar caminhos e fazer escolhas que não se vinculem estritamente ao matrimônio. Já D. Maricota, mãe de Ismênia e esposa do general Albernaz, a


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consideramos uma típica mulher brasileira da época, casada e com filhas, porém com um diferencial: possuía um espírito jovem, era dada a festividades e bastante alegre. Sendo assim, faz-se necessário pontuar que as personagens femininas presentes no romance de Lima Barreto representam o modelo/estereótipo da mulher brasileira da sociedade patriarcal. Quase nenhuma das personagens apresenta complexificação psicológica, exceto Olga que, a nosso ver, é a mais atuante das personagens, no tocante a sua postura de insatisfação diante dos preceitos sociais vigentes. As demais personagens femininas são prototipicamente apenas reflexo/espelho de uma sociedade na qual as mulheres eram moldadas para o casamento e/ou para exercer a função de “escrava do lar”. Ao falar sobre o ideário construído em torno de uma “identidade feminina”, Maria Rira Kehl, em Deslocamentos do feminino (2008), diz-nos que: O que estou chamando de “identidade feminina”, aqui, são os contornos comuns – frequentemente transformados em clichês – que resumem experiências subjetivas nas quais a maioria das mulheres se reconhecia. Os sentimentos de isolamento, de frustração das expectativas amorosas depois do casamento, de dificuldade de expressar emoções e conflitos, a luta por manter alguma autoestima quando os filhos cresciam (ou quando não se tinha filhos), a inibição diante dos homens e ao mesmo tempo a hostilidade abafada em relação a eles, as fantasias e anseios por uma felicidade vaga e sempre fora do alcance, são aspectos frequentes nos relatos de vidas de mulheres – tanto os confessionais quanto os ficcionais. Na medida em que algumas mulheres vieram tornar públicas as experiências vividas, uma a uma, por tantas outras, produziu-se um campo de identificações em que as mulheres puderam se reconhecer, assim como reconhecer suas diferenças em relação aos ideais de feminilidade a partir do suposto saber masculino (KEHL, 2008, p. 94, grifo do autor).

Conforme a fala da autora, podemos fazer um quadro de algumas das personagens femininas da prosa limiana. Olga insere-se no modelo das mulheres frustradas após o casamento. Ismênia e D. Maricota são verdadeiros clichês, pois representam, cada uma a sua maneira, o ideal de feminilidade do suposto saber masculino. D. Adelaide cabe perfeitamente no modelo de mulher


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que tinha que manter alguma expectativa mesmo quando não concebeu filhos. A educação das mulheres voltava-se para “o cuidar” dos filhos e maridos e até parentes próximos como irmãos, sobrinhos etc. Nesse panorama estavam inseridas as mulheres do século XX, reféns de uma sociedade cujos senhores eram os maridos e os filhos, os detentores do poder e da dominação masculina. Assim, cabe mencionar que “as personagens femininas criadas por grandes escritores podem ser entendidas no mesmo sentido do aforismo lacaniano: ‘a mulher é um sintoma do homem’” (KEHL, 2008, p. 92). Essa perspectiva é possível de ser verificada a partir da leitura e da análise das personagens femininas que transitam na obra de Lima Barreto, Triste fim de Policarpo Quaresma.

À Guisa da Conclusão O retrato romanesco de Lima Barreto, em Triste fim de Policarpo Quaresma, apresenta ao leitor um quadro sociológico do Brasil dos primeiros anos do século XX. Entre os aspectos ficcionalizados no romance temos o contexto político, cultural, histórico e ideológico do país à época da produção da diegese. Isso fica evidente se tomarmos como referência a perspectiva limiana de retratar eventos como: “a Revolta da Armada e a República”, talvez por isso, “o meio mais adequado que Lima Barreto encontrou para falar do país foi a exploração de verve satírica e mordaz. Não há ressentimentos, mas também não existe absolvição” (MAIA, 2013, p. 21). No entanto, corrobora para o estudo aqui proposto uma leitura dos perfis femininos presentes na narração, os quais são: Olga e Ismênia, D. Maricota e D. Adelaide. Ressalta-se que os pares estão sempre em oposição, porque essas mulheres com suas subjetividades são moldadas conforme o olhar masculino do narrador, que as constrói ora como afirmação dos valores sociais vigentes, ora como oposição a esses hábitos, o que nos faz pensar que o autor situa-se numa linha tênue e ambígua de representação do feminino, isso se dá porque “no tocante à feminilidade, a literatura desempenha a função de modelo a ser seguido, ou evitado, com uma frequência inusitada” (SCHWANTES, 2003, p. 393). Sendo assim, o romance limabarretiano apresenta perfis femi-


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ninos ambíguos, pois na tessitura de Triste Fim... tem-se Olga como uma mulher de vontade e personalidade própria que, a princípio, ia contra a dialética do casamento, mas, que, ao final, acaba por se submeter a essa construção social. Já Ismênia é aquela que aspirava desde a tenra idade o casamento, no entanto, seu sonho/objetivo é frustrado com a fuga do noivo, o que acarreta em sua entrega às enfermidades físico-mentais cujo fim é a sua morte. D. Adelaide é uma mulher retratada como uma “solteirona”, porém cabe aqui deixar explícito que essa condição não condiz com a realidade dessa personagem representada como uma “bela senhora” que optou por não se casar. D. Maricota, assim como D. Adelaide estão impregnadas pelo estereótipo de “Rainha do Lar”. Diferentes nos caminhos seguidos: a primeira era casada e mãe, ou seja, era dada a festividades e futilidades, só pensava em casar as filhas, tanto é assim que se sente culpada pela demência de Ismênia; a segunda optou apenas por cuidar dos afazeres domésticos e do irmão, o Major Quaresma. Em relação a essas personagens femininas é válido endossar a opinião de que elas aparecem paradoxais, contrastivas, pois o narrador as coloca em pares opostos de polarização positivo/moderna, no caso de Olga/D. Adelaide; e polarização negativo/conservadora, em se tratando de Ismênia/D. Maricota. Enfim, a ficção de Lima Barreto apresenta ao leitor/a um diagnóstico sócio-histórico e político-cultural do Brasil do início do século passado, em especial, destaque para a sociedade carioca deste período.

Nota ¹ A categoria “obra limiana” é tomada de empréstimo de VASCONCELLOS, Eliane. A mulher na obra de Lima Barreto. In: Travessia N° 25 – 1992. Importante ressaltar que a referida categoria foi usada neste trabalho tanto no sentido proposto pela autora quanto para designar “ficção limiana” e “personagem limiana”.

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