Feminismos, identidades, comparativismos: vertentes nas literaturas de lĂngua inglesa Vol. XII
Ana Lucia de Souza Henriques (ORG.)
Feminismos, Identidades, Comparativismos: Vertentes nas Literaturas de LĂngua Inglesa Vol. XII Ana Lucia de Souza Henriques (Org.)
Copyright©, Das Autoras, 2014 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem a autorização prévia e por escrito do(s) autor(es).
Editor João Baptista Pinto Capa/Projeto/Diagramação: Francisco Macedo
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
F735 – v.12 Feminismos, identidades, comparativismos: vertentes nas literaturas de língua inglesa, vol. XII. / Organização: Ana Lucia de Souza Henriques. – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Letra Capital, 2014. 118 p.; 14x21 cm. Inclui bibliografia sumário ISBN 9788577853267 1. Literatura em língua inglesa – História e crítica. 2. Feminismo e literatura. 3. Identidade (Psicologia) na literatura. 4. Etnicismo. 5. Literatura comparada. I. Henriques, Ana Lucia de Souza. 14-18459
CDD: 820.9 CDU: 821.111.09
Letra Capital Editora Tels: (21) 3553-2236 / 2215-3781 www.letracapital.com.br
Sumário
Apresentação Ana Lucia de Souza Henriques – 7 Escrita da história da literatura nacional: a ótica estrangeira Ana Lucia de Souza Henriques – 9 Albert Nobbs: mulher, masculinidade e passing Eliane Borges Berutti – 20 Shakespeare, modo de usar, ou o que se pode dizer da presença de Shakespeare em dez romances da literatura brasileira contemporânea Fernanda Teixeira de Medeiros – 31 Personagens escritoras na literatura migrante de autoria feminina de expressão inglesa Leila Assumpção Harris – 51 O Ano do Dilúvio, de Margaret Atwood: uma obra marcada pelo ecofeminismo Lucia de La Rocque – 64 Manifestações literárias femininas afro-americanas na era do realismo norte-americano Maria Aparecida Andrade Salgueiro – 80
A imaginação técnica: as ilhas de Bioy Casares e Tarkovski Maria Conceição Monteiro – 92 Quando realidade e lenda se encontram na representação de diferenças de gênero e etnia: When Fox is a Thousand, de Larissa Lai Peonia Viana Guedes – 106
Apresentação Ana Lucia de Souza Henriques
O décimo segundo volume de Feminismos, identidades, comparativismos: vertentes nas literaturas de língua inglesa reúne, da mesma forma que toda a série publicada anualmente desde 2003, trabalhos das professoras do Curso de Mestrado em Literaturas de Língua Inglesa, que é ligado ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Os ensaios que compõem os capítulos desta obra contemplam uma diversidade de temas e apontam para a pluralidade de questões abordadas a partir de uma das linhas de pesquisa do MLLI, cujos títulos são: “Literatura e Comparativismo” e “A Voz e o Olhar do Outro: questões de gênero e/ou etnia nas literaturas de língua inglesa”. Os diálogos aqui presentes, por vezes, ultrapassam o campo dos estudos literários e dos estudos culturais, ilustrando parte do interesse acadêmico de cada uma das pesquisadoras. Ao chegarmos a este volume número 12, renovamos os agradecimentos ao PPGL da UERJ pelo apoio dado e torcemos para que possamos dar continuidade a esta série, sempre procurando contribuir para aprofundamento de discussões em torno de nosso objeto comum do desejo que é a literatura.
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Escrita da história da literatura nacional: a ótica estrangeira Ana Lucia de Souza Henriques
Alguns europeus de diferentes nacionalidades podem ser considerados como precursores da escrita da história da literatura brasileira. Aqui destacaremos quatro nomes de estrangeiros não anglófonos que se destacaram no momento de fundação da literatura nacional, tendo exercido influência direta ou indireta sobre nossos escritores, a saber: Friedrich Bouterwek (1765-1828), Sismonde de Sismondi (1773-1842), Almeida Garrett (1799-1854) e Ferdinand Denis (1798-1890). Contribuições sob a ótica anglófona foram por nós focalizadas anteriormente nos seguintes ensaios: “Viajantes anglófonos dos oitocentos e a construção da identidade nacional brasileira: Thomas Plantagenet Bigg-Wither, Isabel e Richard Burton” (Henriques: 2010), “Considerações acerca da literatura brasileira em Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, de Richard Burton” (Henriques: 2013) e “Poetas árcades e Inconfidência Mineira sob a ótica de Richard Burton” (Henriques: 2013a). Enquanto o alemão Friedrich Bouterwek, o suíço Sismonde de Sismondi e o português Almeida Garrett, para citar alguns, apresentam a literatura brasileira em conjunto com a de Portugal, o francês Ferdinand Denis estuda-a em separado, como um todo autônomo. O seu Résumé de l’Histoire littéraire du Portugal, suivi du Résumé de l’Histoire Littéraire du Brésil, (Resumo da história literária de Portugal, seguido do resumo da história literária do Brasil), publicado em 1826, deu início à crítica romântica brasileira que se baseava no nacionalismo literário. 9
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Julgamos que breves observações a respeito de como a literatura brasileira é apresentada nos textos desses autores sejam relevantes para que, juntamente com as considerações que teceremos sobre o Résumé, de Denis, possamos mostrar de que maneira a visão do escritor brasileiro desse primeiro Romantismo está orientada pelo olhar estrangeiro. Bouterwek foi o primeiro europeu que estudou autores brasileiros numa obra de grande vulto, como também o primeiro crítico a aplicar o método histórico ao estudo da literatura portuguesa (César: 1978, p. XV-XVI). O seu texto Geschichte der Poesie und Beredsamkeit seit dem Ende des 13. Jahrhunderts (História da poesia e da eloquência desde o fim do século XIII) veio a lume em 1805, em Göttingen. Esse trabalho faz parte da coleção, em doze volumes, intitulada Geschichte der Kunst und Wissenschaften seit der Wiederherstellung derselben bis an das Ende des 18. Jahrhunderts (História das artes e das ciências desde a época do seu renascimento até o fim do século XVIII). Apesar da pequena repercussão em Portugal, essa obra foi muito discutida em outros países, tendo sido traduzida para o francês, o inglês e o espanhol. Os críticos e historiadores brasileiros do início do século XIX praticamente não fizeram referências a ela. Guilhermino César afirma que a projeção das ideias desse alemão sobre os escritores da primeira geração romântica acontece indiretamente, ou seja, através de dois portugueses aqui muito influentes, Almeida Garrett e Alexandre Herculano (Ibidem, p. XXII). Em sua História da poesia e da eloqüência, Bouterwek faz comentários a respeito de apenas dois escritores brasileiros. Um deles é Antônio José, o Judeu (1705-1739) e o outro Cláudio Manuel da Costa (1729-1789). Nos vários elogios que tece ao último, lembra que há mais qualidades positivas do que negativas em sua poesia. Para o crítico, seus sonetos são de “rara expressividade e naturalidade poética”, sendo “elegante e sincera” a linguagem em que são escritos, o que justifica sua afirmação de que podem ser considerados “os mais perfeitos da literatura portuguesa” (César: 1978, p. 10). 10
Escrita da história da literatura nacional: a ótica estrangeira
Assim, não seria ainda nem com Bouterwek nem com Sismondi que seria recomendado aos nossos escritores que buscassem apresentar em suas obras características que refletissem peculiaridades da natureza e do povo brasileiros. Quando esses críticos tiveram seus trabalhos publicados, em 1805 e 1813, respectivamente, o Brasil ainda não havia conquistado sua autonomia política. A necessidade de criar algo novo seria enfatizada mais tarde, após a conquista de nossa independência. Sismonde de Sismondi, em seu Histoire de la Littérature du Midi de l’Europe, menciona escritores brasileiros que tiveram destaque entre os da metrópole. São eles: Antônio José, o Judeu, Cláudio Manuel da Costa e Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1749-1814). Garrett e Denis seriam os primeiros a falar em harmonia entre a literatura brasileira e nosso país. Apesar de Garrett não ter se estendido muito ao tratar de escritores brasileiros, ressalta, em 1826, no seu Bosquejo da história e poesia da língua portuguesa, que a bela natureza do Brasil devia ter dado aos nossos poetas mais originalidade, um estilo mais adequado à nossa terra. Chega mesmo a dizer que a educação europeia lhes teria apagado o espírito nacional (Ibidem, p. 90). Além dos poetas árcades – Cláudio Manuel da Costa, José de Santa Rita Durão (1720?-1784), Tomás Antônio Gonzaga (17441812?) e Basílio da Gama (1740 ou 1741-1795) –, Garrett só inclui, entre os portugueses que analisa, o dramaturgo brasileiro Antônio José. Como vimos, Denis é o primeiro a tratar de nossa literatura como algo separado da de Portugal. Em sua juventude, veio conhecer a América, tendo morado no Brasil por um período de quase três anos (1816-1819). Sua permanência no país não parece ter sido planejada. Na verdade, acredita-se que, ao chegar ao Rio de Janeiro, ele pegaria um navio para as Índias Orientais (Rouanet: 1991, p. 16). Durante o tempo em que ficou aqui, Denis visitou boa parte de nosso país. Conheceu tribos indígenas, tendo demonstrado grande interesse no estudo de nossos aborígenes. Segundo o crítico, os índios deveriam ser considerados os brasileiros primitivos e, por essa razão, 11
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servir de tema para as obras de escritores que desejassem buscar no passado as raízes de nossa origem. Em Scènes de la Nature sous les Tropiques et leur Influence sur la Poésie (Cenas da natureza tropical e sua influência na poesia), de 1824, Denis defende a ideia de que a natureza exerce influência sobre a imaginação daqueles que vivem nas regiões quentes. Essa teoria da influência da natureza nas artes ele desenvolveria, dois anos mais tarde, em seu Résumé de l’Histoire Littéraire du Portugal, suivi du Résumé de l’Histoire Littéraire du Brésil. Nesse texto, o literato francês segue teses de outros europeus que tiveram grande repercussão naquele momento em que eram discutidos vários aspectos da questão do nacionalismo. A esse respeito, Antônio Cândido comenta: Era, com efeito, o tempo das especulações sobre o “espírito nacional” e a influência das latitudes; da peculiaridade das raças e atuação dos climas. Madame de Stäel, continuando a linha francesa que teve em Montesquieu o maior expoente, acentuava a importância do fator geográfico, enquanto Schlegel, prolongando as cogitações de Herder, acentuava a do fator racial. “Literaturas do norte e do meio-dia em Sismondi”; “dos povos germânicos e latinos”, em Schlegel; ambas as coisas em Madame de Stäel, exprimem a entrada aparatosa da geografia e da etnologia na crítica. (Cândido: 1971, p. 323-324)
Em seu Résumé, Denis destaca que os moldes literários da velha Europa já não poderiam mais servir aos escritores brasileiros. A literatura nacional de um país jovem deveria procurar inspiração em novas fontes, verdadeiramente suas. A bela natureza tropical com tudo que lhe é peculiar – seu clima, sua flora, sua fauna – deveria servir-lhe de inspiração:
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Escrita da história da literatura nacional: a ótica estrangeira
O Brasil, que sentiu a necessidade de adotar instituições diferentes das que lhe havia imposto a Europa, o Brasil experimenta já a necessidade de ir beber inspirações poéticas a uma fonte que verdadeiramente lhe pertença; e, na sua glória nascente, cedo nos dará as obras-primas desse primeiro entusiasmo que atesta a juventude de um povo. Se essa parte da América adotou uma língua que nossa velha Europa aperfeiçoara, deve rejeitar as ideias mitológicas devidas às fábulas da Grécia: usadas por nossa longa civilização, foram dirigidas a extremos onde as nações não as podiam bem compreender e onde deveriam ser sempre desconhecidas; não se harmonizam, não estão de acordo nem com o clima, nem com a natureza, nem com as tradições. A América, estuante de juventude, deve ter pensamentos novos e enérgicos como ela mesma; nossa glória literária não pode sempre iluminá-la com um foco que se enfraquece ao atravessar os mares, e destinado a apagar-se completamente diante das aspirações primitivas de uma nação cheia de energia. Nessas belas paragens, tão favorecidas pela natureza, o pensa-mento deve alargar-se como o espetáculo que se lhe oferece; majestoso, graças às obras-primas do passado, tal pensamento deve permanecer independente, não procurando outro guia que a observação. Enfim, a América deve ser livre tanto na sua poesia como no seu governo. (César: 1978, p. 36)
A natureza consiste então, segundo Denis, numa fonte inesgotável de energia para nossos escritores, sendo muito “favorável aos desenvolvimentos dos gênios”. O crítico ainda afirma que, se os poetas brasileiros realmente olhassem para a natureza e percebessem quão magnífica ela é, em um curto período de tempo se igualariam ou até ultrapassariam os poetas europeus (Ibidem, p. 37). Uma das características apontadas no brasileiro é a que diz respeito à sua predisposição para a poesia. Essa tendência seria, segundo ele, o resultado da combinação de alguns elementos. Sobre isso, diz Denis: 13
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Quer descenda do europeu, quer esteja ligado ao negro ou ao primitivo habitante da América, o brasileiro tem disposições naturais para receber impressões profundas; e para se abandonar à poesia não precisa da educação citadina; afigura-se que o gênio peculiar de tantas raças diversas nele se patenteia: sucessivamente arrebatado, como o africano; cavalheiresco, como o guerreiro das margens do Tejo; sonhador como o americano, quer percorra as florestas primitivas, quer cultive as terras mais férteis do mundo, quer apascente seus rebanhos nas vastas pastagens, é poeta (...). (Ibidem, p. 38)
Como podemos observar, ser poeta consistiria numa característica inata do brasileiro, e a literatura nascente deveria conjugar nossa genialidade com as peculiaridades de nossa natureza. Nas descrições de Denis, como nas de muitos outros estrangeiros, o Brasil é um país exótico. São muitos os adjetivos empregados para engrandecer determinados aspectos de nossa terra e de nossa gente. Maria Helena Rouanet, no estudo que realiza sobre Ferdinand Denis em Eternamente em berço esplêndido, observa que podemos ver uma linha de continuidade de pensamento, ao compararmos o que dizem os descobridores e primeiros visitantes em suas descrições do Novo Mundo com a forma pela qual o Brasil é visto pelos europeus do século XIX. Dessa maneira, “o paraíso de riquezas, de bom clima e de belas paisagens atravessou o espaço que vai dos italianos renascentistas ao olhar “científico” dos Oitocentos” (Rouanet: 1991, p. 68). Assim, a autora observa que desde relatos dos primeiros viajantes não descobridores, dentre os quais destaca os nomes dos religiosos André Thevet (1503-1592) e Jean de Léry (1534-1613), existe uma linha de continuidade. Esses viajantes franceses vieram para o Brasil no século XVI, em 1555 e 1557 respectivamente, para participar com Villegaignon da fundação do que foi chamado de França Antártica.
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Escrita da história da literatura nacional: a ótica estrangeira
O primeiro, um monge franciscano simpatizante da Igreja Reformada, publicou em 15581 As singularidades da França Antártica (Les Singularités de la France Antarctique). Trata-se de um longo relato que contém descrições detalhadas da flora e fauna brasileiras, dos habitantes do país e dos índios tupinambás, aliados dos franceses contra os colonizadores portugueses, de acordo com o que afirma Leyla Perrone-Moisés no seu artigo Alegres trópicos: Gonneville, Thevet e Léry (Costa: 1996, p. 86). O segundo, Jean de Léry, publicou, em 1578, História de uma viagem feita à terra do Brasil (Histoire d’un Voyage fait en la Terre du Brésil), escrito anos antes. A imagem do Brasil divulgada por esses viajantes – dentre outros – foi aceita como sendo fiel à nossa realidade. Afinal, como escreveram sobre o que viram in loco, seus relatos foram tomados como documentos que atestavam a “verdade” sobre a natureza e o povo brasileiro. A divulgação desses primeiros relatos fez com que outros viajantes que viriam para cá nos séculos seguintes já trouxessem consigo uma ideia do exotismo que aqui encontrariam (Rouanet: 1991, p. 75). Essa ótica idealizada do Brasil seria introjetada em muitos de nossos escritores, inclusive José de Alencar. De acordo com Antônio Cândido, esse exotismo persistente “eivou a nossa visão de nós mesmos até hoje” (Cândido: 1971, p. 324). Luiz Fernando Valente em Alencar’s Flawed Blueprints (Projetos imperfeitos de Alencar), também a esse respeito, afirma: A exuberância da natureza brasileira tem sido o tema de escritores desde o século XVI, como um dos critérios mais importantes das diferenças entre Brasil e Europa. Essa atitude está na raiz do ufanismo que silenciou o pensamento de muitos escritores românticos, incluindo Alencar, na busca de uma definição de uma identidade nacional e na criação de uma literatura nacional. Entretanto, a visão do Brasil
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