ITABIRA TRANSPORTE NO TEMPO A fotografia na poesia de Carlos Drummond de Andrade e Ruy Belo
LISBOA
Antonio Carlos Martins Menezes
TRANSPORTE NO TEMPO A fotografia na poesia de Carlos Drummond de Andrade e Ruy Belo
Copyright© Antonio Carlos Martins Menezes, 2017 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem a autorização prévia por escrito do autor, poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados.
Editor João Baptista Pinto
Revisão Rita Luppi
Projeto Gráfico e capa Rian Narcizo Mariano
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ M513t Menezes, Antonio Carlos Martins 1948Transporte no tempo: a fotografia na poesia de Carlos Drummond de Andrade e Ruy Belo / Antonio Carlos Martins Menezes. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Letra Capital, 2017. 128 p. : il. ; 21 cm. Inclui bibliografia e índice ISBN: 9788577855377 1. Andrade, Carlos Drummond de, 1902-1987 - Crítica e interpretação. 2. Belo, Ruy. 3. Poesia brasileira - História e crítica. 4. Poesia portuguesa - História e crítica. I. Título. 17-42193 CDD: 869.91 CDU: 821.134.3(81)-1
Letra Capital Editora Tel: (21) 2224-7071 / 2215-3781 vendas@letracapital.com.br
Un éclair... puis la nuit! – Fugitive beauté Dont le regard m’a fait soudainement renaître, Ne te verrai-je plus que dans l’éternité Ailleurs, bien loin d’ ici! trop tard! jamais peut-être Car j’ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,’ Ó toi que j’eusse aimée, ó toi qui le savais! (“À une passante” – Charles Baudelaire)
Agradecimentos
Aos meus filhos, Marília, Patrícia, Helcio e Iza, Luisa e Michael estímulos de pura energia, alento e alegria para reaprender. A meus netos Pedro e Camilo, Amanda, Manu e Isabela. Para meus pais – Antonio Carlos e Idalina; minha irmã Therezinha e Tia Telma. À prima Rejane – energia e estímulo. Para as professoras Celia Pedrosa e Ida Alves, paciência infinita, sorriso da graça e da competência. Aos laços espirituais que fortaleceram essa tentativa.
Prefácio Luiz Carlos Bernal Psicoterapeuta transpessoal
Tempo, o que és, preciso deveras saber, já que, à queima -roupa, me impuseste, mais forte do que a esfinge, o instigante desafio: “Decifra-me ou te devoro”. Assim, poderia se aproximar dessa misteriosa entidade todo aquele que ouvisse sua frase enigmática. Os físicos quânticos não deram conta de equacioná-lo; os cosmólogos, relativistas que são, apesar de conjugá-lo ao espaço, prosseguem no seu encalço; os filósofos, mesmo virando-o pelo avesso em ousados sistemas, declinaram; e os poetas, ah! os poetas, onde grassa a viabilidade do impossível, compromissados tão somente com a verdade subjetiva, sorrindo ou chorando, verbalizam-no. Na atemporalidade do verso que oferece carona, mortais embarcam. Se vivenciam sua essência, no regresso não respondem, pois mais não têm a devolver do que a experiência a que o próprio verso continua a convidar. Transporte no tempo 9
Estes dois grandes, o brasileiro e o português, fruindo na verve do idioma comum, escolheram este artefato moderno, tão milagroso quanto aquele outro ancião, na propriedade de refletir o precioso objeto que é o si mesmo. Falo do espelho a refletir fiel a imagem do real, e da fotografia, máquina produtora de surrealidade, que borra o aventureiro quando se ilude na recreativa intenção de rever seu passado e ingressa no túnel do tempo coagulado. Acontece com o próprio poeta que volta tosquiado quando adentra o rebanho que julga possuir, em forma de álbuns ou coleções de fotos. É que o tempo continua devorando seus gladiadores. Contam-nos sua desdita esses dois expressivos homens, nas asas da ímpar arte da palavra-musicada. Saíram tosquiados, escalpelados, na insistência de oferecer sua pele como testemunha, a alma em carne-viva, um néctar ácido que goteja da soturna jornada que decidiram encetar. Deram-se ao sacro-ofício de artesanar a misteriosa palavra que, tangendo cordas invisíveis, canta a música da vida. Esta que todos saboreamos bela quando traduzida em versos, por mais doídos sejam. Miraram-se no espelho das íntimas fotografias que tantas canções já foram e mais outras continuam a ser quando recicladas pelo olhar reprisado desfeito em verbo. Se todo poeta, independente do que escreve, como afirma Octávio Paz, pratica autobiografia, excedem-no Drummond e Belo, quando insistem em contemplar sua história, muito mais do que a real a se dar em fatos, a implícita, a se retirar pelas entrelinhas na nostalgia do que mais havia para ser e não foi ou que, simplesmente, se suspendeu na pausa do tempo que o verso retoma. Mas com a poesia terminada retorna o indefectível tempo a caçoar dos mortais que nele se esmeram e erram. Inte10 Antonio Carlos Martins Menezes
gre-o às emoções, estas trabalhadas com afinco pelos dois artistas, e apanharemos instigantes elaborações proporcionando outras visadas aos afins – meros leitores ou estudiosos da singular palavra. Nosso caro amigo Antônio Carlos, talvez cansado de minerar a lascada pedra da praticidade a que todos nós somos instados para garantir o pão de cada dia, foi mineirar na palavra do conterrâneo e do irmão além-mar o tesouro capaz de desvelar o real valor da vida nossa de cada existência. Talvez nem por cansaço, mas para ser leal ao chamado interno de ir mais fundo. Os poetas nos ajudam, embora a preço que exige, como paga, ouro de outra natureza. Drummond precisou pagar a culpa pelo distanciamento da casa paterna, e o fez misturando ironia com angústia no isolamento que padeceu. Não procedeu como o filho pródigo – acho que Antônio também não – que retornou. Consolouse no imo da mestria do seu verbo, cuja solidão temperou. No acerto de contas com o tempo, recomposto por fotos, Belo, em vez dos laços familiares, foi invadido por imagens femininas, que também acusaram não apenas a impossibilidade de recuperar o passado perdido, mas que o inexorável porto disposto pelo futuro é o chão fugidio da morte. Pôde, ao menos ou ao mais, brincar com metáforas para navegar numa solidão onírica. Mas não teve dúvida de que Caronte dirigia o leme. É possível nem fosse o tempo que quisessem entender, mas a vida que permite se reinventar na diferença de outra hora, ou a que promete repetição do gozo, condicionado à fotocópia inexistente no arquivo descarrilhado da memória. Ali, na consciência, que quando se ativa não se sabe se é continente ou conteúdo. E mais: se o flash que, como reminiscência, nela espoca é foto que reprisa o real gasto, ou fantasia que estofa os interstícios vazios do fato. Transporte no tempo 11
Parece que o ato de consciência que emerge em cada instante de um fluxo mental hipotético seja um híbrido desses dois – passado resgatado somado à imaginação livre; enfim, um mesmo diferente. Isso confirmam aqueles que debruçaram para esmiuçar a ontologia da memória, da consciência e da subjetividade. Assim, um laivo de esperança despontaria afirmando a insurgência do novo – o tempo sempre aberto à criatividade do agora – não fosse a teima emocional que insiste no princípio do eterno retorno do mesmo. Findaria com a morte que, em tese, termina com o sofrimento deste pesadelo que parece disponibilizar o novo apenas como um sarcasmo à vã esperança. Não se obtém resposta (cabal) sobre o que o tempo é, nos curtos 45 anos de Belo, nem se responde (pouco) o que é a subjetividade, através dos profícuos 85 anos de Drummond. E vice-versa. No entanto, vige não menos do que a riqueza incomensurável da jornada pessoal refletida nas obras de vulto que nos legaram. Fico tentado em citar os místicos na condição de arrimo para dar cabo da questão. Mas deparo-me com duas objeções: primeiro, os místicos se calam, já que é acanhada a concha que tenta conter o mar... não obstante ecoá-lo; segundo, não vim aqui para apor ponto final, e sim, vírgulas, parêntesis, reticências. A obra deve ser inacabada, diz o paradigma da pós-modernidade. Como de todo não concordo, apoiome nos místicos – sonhadores para alguns, sérios para outros –para entender o tempo, apesar de instigante e pouco alienável, como ilusão. Tal como a doce, a precária e sofrida subjetividade. O vivido, embora soe tão fidedigno como as revisitadas imagens da fotografia, é não real. E o é na mesma proporção da impotência da memória para resgatar a literalidade do passado. O que lhe confere a onticidade que parece ter é a oportunidade do novo que coabita o instante presente 12 Antonio Carlos Martins Menezes
trazendo a marca de vida, mas que como tal é subtraída pelo gosto de morte inerente a todo pretérito que, no ato de relembrar, se atualiza. Paradoxalmente, a vida paira presente, não obstante, submergida e (quase) inalcançável. Mesmo assim prossegue alimentando de esperança o agora, como único ente real – fluindo, sendo. Se o fluxo mental, ilusório, que conta nossa história equivale a uma sequência de meros fragmentos saltados da ambivalência de forma-fundo, que privilegia uma parte em detrimento da outra, esse tem se sobressaído às custas da submersão do fundo contínuo, a dita consciência una e atemporal. É desse vasto e fértil território que vem o convite: leiam Antônio, que lê Carlos, o gigante mineiro, e que lê também Rui, o Belo. Convite para o encontro com esses que, lendo, traduzem o que universal é. Este em idioma original está no imo do fulgor da consciência de cada um de nós. Livro aberto ou quase.
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Sumário Poesia - Tempo e Memória ..............................................17 Reencontrar o tempo, remontar a memória...................22 Fotografia: a flor que não murchou................................38 Drummond: olhos do presente..................................40 Ruy Belo: O Tempo da Poesia...................................77 O desejo e a pluma...........................................................113 Referências bibliográficas................................................123 Dos poetas...................................................................123 Fontes Teórico-Críticas...............................................123 Sobre o autor.....................................................................127
Poesia - Tempo e Memória Um dia a morte devolverá meu corpo, estes olhos verão a luz da perfeição e não haverá mais tempo. Murilo Mendes
Carlos Drummond de Andrade e Ruy Belo – este menos conhecido nas hostes dos amantes da Poesia – criaram entre si um mundo paralelo mas com vasos comunicantes, por onde fluíram as mais lúdicas e oníricas visões, espelhadas numa linguagem poética da representação do tempo e da memória. A fotografia, nos poemas de Drummond e Belo, assinala este entrelaçamento burilado mas, ao mesmo tempo, diáfano e complexo na fronteira da imaginação, da memória e experiência vivida. A imagem, revelada na fotografia, trazida ao mundo pela instantânea captura do tempo, apresenta-se como um coágulo do tempo passado e retém consigo toda uma carga densa de subjetividade. Ali se encontra um fragmento da realidade que existiu numa fulguração do tempo e que, agora, nos olha do passado, convertida em um outro sujeito, vivo e presente no instante Transporte no tempo 17
mesmo em que contemplamos a sua imagem – um vestígio, um evento fugaz, comprimido em um só e único instante do tempo pretérito. A linguagem poética apropria-se desses fragmentos e os recupera de forma alterada, muda a maneira como nos vemos e como vemos o mundo. A imagem fotográfica leva o olhar a si mesmo como um outro: a consciência da identidade dissocia-se de si própria, problematizando uma visão de mundo. A leitura dos poemas e o que eles revelaram como testemunhas do significado e expressão do fenômeno fotográfico, na intersecção da poesia com a linguagem fotográfica, foi o percurso “proustiano” do que, na leitura, se tornou paralelo aos dois poetas – a memória na passagem do tempo. Em Carlos Drummond de Andrade, a passagem do tempo – o fluir da existência, o tempo fugaz e onívoro – é vivida com angustiada ironia. Em Ruy Belo, embora também carregado de ironia, a marcha temporal surge como tragédia, destila melancolia e incorpora o incontido fascínio pela morte. A ironia drummoniana e a melancolia beliana revelam-se na forma diferente do olhar. A imagem fotográfica devorou os dois poetas no poema que se reinventou na imagem transformada pelo olhar. Em Drummond, as imagens trazidas pelas fotografias evocam as lembranças familiares, especialmente a figura paterna e as emoções experimentadas na infância. A linguagem poética cria uma atmosfera fugaz e diáfana que transfigura as recordações, as lembranças e também a memória sempre fugidia e traiçoeira. O olhar para as fotografias recupera acontecimentos, agora misturados à imaginação. Os versos estão impregnados de uma sutil ironia no caleidoscópio de imagens do presente que, implacável, corrói a existência, corrói a vida dos poetas. Assim são os olhares de Drummond nas fotos que chegaram até nós. Um olhar que reverbera angústia, remorso e conformidade ditada pelo tempo que decanta a impossibilidade de retorno, de retomada daquilo que já se foi. 18 Antonio Carlos Martins Menezes
Do outro lado, na poesia de Ruy Belo, as imagens fotográficas são, quase sempre, ligadas a personagens femininas que coabitam espaços e tempos superpostos e que emergem no presente, no vórtice dos eventos do cotidiano – imagens que afloram encobertas por uma névoa – marca de imprecisas lembranças e que gera sentimentos ambíguos. Esse tom de ambiguidade habita sua poesia e faz nascer a sentida amargura beliana disseminada em seus versos, tecidos com o sentido agudo da tragédia filtrada pela melancolia. O poeta como que se acha perplexo, surpreso com o que os sentimentos da vida presente se lhe revelam. O poeta reafirma seu sentimento de trágica solidão: “(...) serei um dia apenas um corpo atirado em praia solitária por uma onda anônima”. O poeta se acha abandonado, à mercê da passagem do tempo, entregue a um destino que o aproxima da morte de maneira irremissível. A ausência de pontuação nos versos belianos é proposital e insinua o ritmo de continua simultaneidade no fluxo da vida – a íntima conexão do presente e do passado – envolvidos num sentimento antevisto na tragédia da morte para onde todos caminhamos. Ruy Belo suspira, em seus versos, a amargura que o consumiu até o suicídio. Carlos Drummond de Andrade e Ruy Belo exprimem assim, com uma ironia própria, o extravio de si mesmos com uma escrita poética lavrada em angústia e melancolia. De suas obras afloram poemas que incorporam essas referências às imagens fotograficas – o percurso do fio da experiência do viver, a percepção do papel da fotografia – presença e ausência: em Drummond – “Confidência do Itabirano”, “Viagem na Família”, “Retrato de Família”, “Convívio”, “Edifício Esplendor”, “Os mortos de sobrecasaca”, “Imagem, Terra, Memória” – e Ruy Belo, “Despeço-me da Terra da Alegria”, “A Flor da Solidão”, “Mas que sei eu”, Transporte no tempo 19
“Agora o verão passado”, “Orla Marítima”, “Rapariga de Cambridge”, “Solene saudação a uma fotografia”, “Elogio a Maria Tereza”. Em cada um desses poemas estão ali, vivas, as formas pelas quais a representação fotográfica é absorvida pela linguagem poética que, por sua vez, filtra e recupera os interstícios de uma memória singular, sinalizando ora a destruição, ora a reconstrução simbólica de experiências soterradas no passado. Há um notável paralelo entre a poesia de Drummond e a de Ruy Belo, tecidas a partir das imagens fotográficas e de experiências que afloram distorcidas – transfiguram o poema – a forma de olhar e intervir no mundo para transformá-lo. A imaginação bordou uma trilha e um percurso teórico vivido na convergência da obra de Walter Benjamin e de Roland Barthes com o ensaio crítico sobre a imagem – de Georges Didi-Huberman – além da experiência imagética da poesia de Charles Baudelaire. Essas remissões conduziram a Marcel Proust, que rememorou suas experiências de vida em ressurreições da memória involuntária – uma reflexão singular sobre o tempo e o esquecimento que iluminou a leitura de Drummond e Belo. Assim é que Walter Benjamin entende a fotografia como uma imagem dialética que desconstrói a experiência humana através do fragmento que é a fotografia – fenômeno que cria uma nova percepção do homem e de ser no mundo. Roland Barthes, nessa mesma sequência, aponta para algo único na imagem fotográfica: os acontecimentos rememorados convertem-se em outros e que, embora fixados e indeléveis na imagem fotográfica, prenunciam a emergência de uma singularidade que se abre na revelação da imagem, agora convertida em metatexto. Esse caminho deixa brotar uma relação entre a linguagem fotográfica e o poema – como tentativa de recuperação 20 Antonio Carlos Martins Menezes