Literaturas de lingua inglesa leituras interdisciplinaresvol2

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Conselho Editorial Série Letra Capital Acadêmica

Beatriz Anselmo Olinto (Unicentro-PR) Carlos Roberto dos Anjos Candeiro (UFTM) Claudio Cezar Henriques (UERJ) Ezilda Maciel da Silva (FAAO) João Medeiros Filho (UCL) Leonardo Santana da Silva (UFRJ) Luciana Marino do Nascimento (UFRJ) Maria Conceição Monteiro (UERJ) Maria Luiza Bustamante Pereira de Sá (UERJ) Michela Rosa di Candia (UFRJ) Olavo Luppi Silva (UFABC) Orlando Alves dos Santos Junior (UFRJ) Pierre Alves Costa (Unicentro-PR) Rafael Soares Gonçalves (PUC-RIO) Robert Segal (UFRJ) Roberto Acízelo Quelhas de Souza (UERJ) Sandro Ornellas (UFBA) Sergio Azevedo (UENF) Sérgio Tadeu Gonçalves Muniz (UTFPR)


Davi Pinho Fernanda Medeiros (organizadores)

Literaturas de LĂ­ngua Inglesa: leituras interdisciplinares

Vol. II


Copyright©, Dos Autores, 2017 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem a autorização prévia e por escrito do(s) autor(es).

Editor João Baptista Pinto Capa Rian Narciso Mariano Projeto/Diagramação: Luiz Guimarães

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ L755 v.2 Literaturas de língua inglesa: leituras interdisciplinares: volume 2 / organização Davi Pinho, Fernanda Medeiros. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Letra Capital, 2017. 136 p.: il.; 14x21 cm.

Inclui bibliografia ISBN 978-85-7785-564-3

1. Literatura em língua inglesa - História e crítica. 2. Literatura moderna - História e crítica. I. Pinho, Davi. II. Medeiros, Fernanda. 17-46261 CDD: 820.9 CDU: 821.111.09

Letra Capital Editora Tels: (21) 3553-2236 / 2215-3781 www.letracapital.com.br


Sumário

Apresentação Davi Pinho Fernanda Medeiros – 7 “Selos, moedas, medalhas, jarrões”: as narrativas das coleções e a ordem imaginada Adriana Jordão – 9 Virginia Woolf costura à janela: em busca de uma textualidade andrógina Davi Pinho – 21 “In fading silks compose”: Reading Woolf’s Rosary Elisa Kay Sparks – 35 Lição de retórica em quatro letras: I-A-G-O Fernanda Medeiros – 45 “Toda estória conta uma estória que já foi contada”: (re)visitando o passado através do presente em My Brother, de Jamaica Kincaid Leila Assumpção Harris – 60 Educação científica para a cidadania: o discurso social de Elysium Lucia De La Rocque – 71 Os movimentos do Harlem Renaissance, da Négritude e o trânsito de ideias intercontinental na abertura do século XX Maria Aparecida Andrade Salgueiro – 83


Satã: um corpo mutante Maria Conceição Monteiro – 94 “Fill Thy Purse With Money”: Financing Performance In Shakespearean England Tiffany Stern – 106 Reverse Transcription: “read backwards, write backwards” – AIDS como alegoria da inversão na escrita política de Tony Kushner Vanessa Cianconi – 123


Apresentação Davi Pinho Fernanda Medeiros

O que é, hoje, ser professor da Universidade do Estado do Rio

de Janeiro? O que é fazer pesquisa hoje, no Brasil? Por um lado, é ser vítima de uma tentativa de aniquilamento, com a retirada vilanesca dos salários e o corte vertiginoso de verbas. Por outro, é perceber a força de uma instituição comprometida com o Estado e com sua população; é constatar, em meio aos ataques de um desgoverno criminoso, a potência de docentes altamente qualificados bem como de seus e suas estudantes. Nós, professoras/es e pesquisadoras/es da especialidade Literaturas de Língua Inglesa do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, lançamos este segundo volume de nossa série Literaturas de Língua Inglesa: Leituras Interdisciplinares, herdeira de uma série de treze volumes, Feminismos, Identidades, Comparativismos, como uma afirmação do nosso compromisso com o centro de excelência pelo qual somos responsáveis, os setores de literaturas de língua inglesa do Instituto de Letras da UERJ. Pertencemos a uma das únicas instituições no país em que se oferece uma graduação com habilitação exclusiva em Inglês e suas Literaturas, e nossa especialidade, no âmbito da Pós-graduação, faz jus ao investimento massivo de nossas pesquisas nas literaturas anglófonas. Mas para além de emblematizar a consistência de um projeto acadêmico transversal, a força que move este projeto é também dissidente, pois faz de nossa existência, do nosso lugar ainda que precário, nossa maior potência de resistência. Uma reXistência. Se “rexistimos”, insistimos em nossas salas de aula, em nossos alunos e nossas alunas, em nossas pesquisas, e afirmamos acima de tudo a qualidade do nosso trabalho acadêmico como o norte de todos os nossos esforços. Um gesto da dupla importância da UERJ, que resiste e insiste em existir em excelência, se revela no convite feito a duas grandes pesquisadoras estrangeiras. Elisa Kay Sparks, 7


professora emérita da Clemson University, EUA, e fundadora do Women’s Program da mesma instituição, contribui com o ensaio “In fading silks compose”: Reading Woolf’s Rosary. Já a historiadora Tiffany Stern, especialista em Early Modern Drama do Shakespeare Institute, Reino Unido, assina o artigo “Fill Thy Purse with Money”: Financing Performance in Shakespearean England. Ambos os textos refletem a inserção da prodigiosa e desigual UERJ no cenário intelectual mundial e vice versa. Fica aqui, então, o convite ao livro e à reflexão acerca do lugar de onde ele veio. Agradecemos ao Programa de Pós-graduação em Letras pelo apoio constante e dedicamos todo o trabalho às nossas alunas e aos nossos alunos, grandes companheiras/os em nossa luta pelo futuro.


“Selos, moedas, medalhas, jarrões”: as narrativas das coleções e a ordem imaginada Adriana Jordão ... para um colecionador — e eu quero dizer um colecionador real, um colecionador de como deveria ser — a propriedade é a relação mais íntima que se pode ter com os objetos. Não que eles ganhem vida nele; é ele quem vive neles. Walter Benjamin

E

xaminar a história dos objetos requer do interessado uma volta na linha do tempo de aproximadamente 2 milhões e meio de anos. Artefatos resultantes da tecnicidade antrópica, isto é, utensílios criados a partir da habilidade dos humanos em descobrir materiais e criar ferramentas que os auxiliassem como instrumentos nas tarefas da vida prática e de sobrevivência, foram recolhidos por paleontologistas, catalogados, datados, estudados, exibidos. Caçar, cortar, quebrar, fazer fogo, combater um inimigo; o mundo natural ao redor provia materiais, como a pedra de sílex, aproveitados e adaptados às necessidades cotidianas. Uma lenta evolução marca a história dos objetos e dos diferentes recursos naturais neles aplicados e os anos passam em milhares enquanto as experiências de trabalho e a engenhosidade humana proporcionam esta gradual modificação. No entanto, o curioso que busque por aqueles objetos que se afastam da função utilitária, de consumo, e passam a pertencer à categoria dos semióforos verá que sua história é muitíssimo mais recente, tendo ele que retroceder algo entre 70 mil e 30 mil anos e encontrar o Homo sapiens e o momento que Yuval Noah Harari chama de Revolução Cognitiva. “Os primeiros objetos que podem ser chamados de arte e joalheria datam dessa era, assim como os primeiros indícios incontestáveis de religião, comércio e estratificação social.” (Harari: 2017, p. 29). Neste ponto do continuum da história do humano, o homem parece passar a atribuir sentido e simbologia às coisas ao seu redor, 9


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modificando o espaço que ocupa, interferindo nele, modelando-o, intencionalmente legando ao tempo futuro um pouco de seu tempo presente – a continuidade de alguma parte de si mesmo, uma comunicação com o invisível, como atestam as pinturas rupestres. Krzysztof Pomian, historiador e ensaísta polonês, aponta que alguns objetos recolhidos pelos habitantes da gruta de Hyène por volta de 40 mil anos atrás já demonstram um vínculo com o estético, ainda que inicial. “São uma grande concha em espiral de um molusco da era secundária, um polipeiro de forma esférica da mesma época, blocos de pirite de ferro de forma bizarra.” (Pomian: 1984, p. 70). Objetos cuja função parece ser exatamente não a ter deixam a classificação de úteis e passam à categoria dos significantes. Embora as duas classificações possam se sobrepor em um determinado objeto, na maior parte dos casos elas se opõem. De um lado temos as coisas úteis, objetos consumíveis ou com a função de transformar outras coisas em consumíveis; tais objetos, utilitários, apresentam finalidade e também finitude, pois sofrem modificações físicas, se alteram, desgastam e por fim, acabam; entretanto, perdê-los implica substituí-los tão somente. Do outro lado, encontramos, então, os semióforos, objetos que não sofrem consumo, apenas se expõem ao olhar do observador e não a suas mãos e sua atividade produtiva; para eles não há finitude, ou pelo menos não enquanto seu significado se mantiver: um objeto que reporta ao invisível é passagem para o lugar das coisas inacabadas, das coisas que permanecem, e este, permanece juntamente com elas. Perdê-lo significa um vazio, pois ele é insubstituível. O mundo das coisas ligadas ao humano se amplia nesse momento para além do visível, do palpável, buscando aquilo que ele não pode ver, mas pode imaginar, desejar, sentir, ficcionalizar, criar, características singulares deste novo humano. Tem início aquilo que nomeamos como cultura, quando os indivíduos atuam de modo direto na criação, na fixação e na transmissão da memória e da história. Aqui começa também o desejo de amealhar, colecionar, possuir e cercar-se de objetos aos quais algum atributo particular é dado, e tê-los ao alcance do olhar. Nascem os primeiros colecionadores. “As locomotivas e os vagões reunidos num museu ferroviário não transportam nem os viajantes nem as mercadorias. As espadas, os canhões e as espingardas depositadas num museu do exército não servem para matar. ” (Pomian: 1984, p. 51). Os objetos semióforos 10


“Selos, moedas, medalhas, jarrões”: as narrativas das coleções e a ordem imaginada

não pertencem à esfera do utilitarismo, são regidos pelo estatuto do subjetivo, dos significados além de sua forma material, das coisas às quais um valor foi conferido. Trazem para frente, expõem, um signo ou sinal (semeion + phorus) que não lhes é inerente à forma ou à função e alteram a realidade do espectador que compreende a mensagem que estes carregam. Algumas vezes dotados de um significado por nascimento, assim como as bandeiras, os brasões e os produtos artísticos, outras vezes transformados em seu caráter ao serem retirados da esfera da funcionalidade cotidiana para o mundo do simbólico, como as peças em um museu ou um papel que um dia embrulhou um bombom, os objetos semióforos formam um sistema à parte. Dão visibilidade ao que é invisível, àquilo que não se pode ver por pertencer ao imaginário, ao memorial, ao longe no tempo, ao ausente em matéria. Como a flor que se pôs a secar dentro de um livro e que, não mais sendo flor, é agora um tempo imortal além de suas pétalas esmaecidas, é agora um novo algo que transporta o valor que lhe foi atribuído; como o crucifixo de ouro pendente em um cordão que, não mais duas hastes de metal conectadas, confere pertencimento a uma crença, a um grupo, a um modo de ver o invisível, a uma ordem imaginada coletivamente. Os semióforos, portanto, medeiam para o observador um significado, transportam uma narrativa sem palavras. Para além das intencionais mensagens invisíveis de valor sentimental, estético, ou histórico que os objetos semióforos narram, podemos ler também seu contexto ideológico (de produção e de seu recolhimento como peça valorizada), a tradição social em que se inserem e que determina sua importância, os valores, os interesses da mão que os escolheu de forma particular ou em nome de uma dada sociedade ou grupo. Isso é facilmente demonstrável se pensarmos nas formas de colecionismo presentes até o final da Idade Média: as grandes coleções de objetos reúnem-se em dois conjuntos, as relíquias e objetos sagrados reunidos pela Igreja, o colecionismo eclesiástico; e os objetos e monumentos ligados ao poder real e sua afirmação de predestinada perpetuação. Os dois grupos detêm o poder no período, logo controlam o diálogo do visível com o invisível, isto é, criam a ordem imaginada, estabelecendo uma narrativa que reafirme sua posição dominante para uma coletividade. A ordem imaginada, aponta Harari, não se restringe a um sujeito, mas 11


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“é, antes, uma ordem intersubjetiva, que existe na imaginação partilhada de milhares e milhões de pessoas.” (Harari: 2017, p. 124). As relíquias reunidas pela Igreja Católica, por exemplo, formavam uma coleção que tinha como propósito levar o observador à história da vida de Cristo e dos santos; expor uma lasca da cruz carregada por Cristo ilustrava e trazia novamente à mente toda uma narrativa, sem que se precisasse de palavras. A narrativa já fazia parte do imaginário dos indivíduos e era mantida viva através das marcas objetivas que se apresentavam: rituais, celebrações, datas comemorativas, a exposição de objetos sagrados. Uma fórmula didática de manutenção de poder, grandeza e glória. O que uma exibição do Sudário de Turim, ou Santo Sudário, por exemplo, pode fazer para devolver fervor à fé de cristãos? As relíquias e os artefatos ligam a ordem imaginada da religião, toda uma narrativa da Igreja acerca do invisível corpo de Cristo e dos santos, com a visível realidade cotidiana do povo, corroborando esta narrativa invisível ao dar a ela materialidade, e assim perpetuando sua presença e o alcance de sua influência. A partir da segunda metade do século XIV este sistema dual de poder, Igreja e Reis, entra em gradual declínio, dando espaço, pouco a pouco, para uma modernidade que se concretizará nos séculos XV, XVI e XVII e que trará com ela novos grupos sociais emergentes e agora detentores do poder e do conhecimento, trazendo também, consequentemente, um novo sistema de acumulação e valorização de objetos, novos padrões de colecionismo; acerca deste período, o historiador Krzysztof Pomian nos fala em seu ensaio “Colecções”: Formam-se novos grupos sociais, cuja razão de ser é o monopólio que possuem de certos conhecimentos e capacidades: os humanistas, o da bela latinidade; os antiquários, o de um saber que versa sobre a vida dos antigos; os artistas, o da produção de obras de arte; os cientistas, o da ciência. Novos semióforos entram em circulação e acumulam-se em coleções: manuscritos e diversos outros vestígios da Antiguidade, curiosidades exóticas e naturais, obras de arte, instrumentos científicos, são para os membros destes grupos ao mesmo tempo objetos que permitem a elaboração dos conhecimentos ou o tirocínio das capacidades (assim, um artista estuda as obras de seus predecessores) e insígnias de pertença social, do lugar que ocupam na hierarquia. (Pomian: 1984, p. 78-79). 12


“Selos, moedas, medalhas, jarrões”: as narrativas das coleções e a ordem imaginada

Uma nova ordem imaginada vai se estabelecendo. A filosofia se afasta da teologia e da tradição escolástica para se aproximar dos estudos da natureza; as navegações trazem notícias de um Novo Mundo, seus hábitos, seus habitantes, seus objetos; a ciência produz novas epistemes e novos instrumentos. Transforma-se, então, a concepção humana do universo e a aspiração pelo conhecimento, assim como as coleções de objetos, deixa de ser tesouro de príncipes e religiões. Sujeitos renascentistas, em sua curiosidade pelo mundo em modificação, adquirem o prazer do colecionismo e, na Europa, objetos advindos da Antiguidade, artefatos naturais e instrumentos ao gosto das novas descobertas científicas, obras de arte e peças exóticas trazidas do Novo Mundo, entre outros objetos, passam a fazer parte dos valorizados conjuntos que adornam as residências ou são mantidos a portas fechadas. São formadas assim coleções que levarão o nome de seus acumuladores para o invisível lugar da posteridade ao lado dos artefatos e da história que estes contam, fazendo surgir no século XVII o fenômeno desta nova instituição de preservação de memória, os museus. Que ligação há entre o manto do Chefe Powhatan, pai de Pocahontas, e o corpo empalhado do último espécime de ave dodô visto na Europa? Ambos podiam ser apreciados na coleção dos Tradescant, pai e filho, instalada em um casa-museu conhecida como ‘The Ark’, criada por eles em Londres em 1634 para abrigar o que se chamava então de “curiosidades”, um conjunto de artefatos que os jardineiros e botânicos Tradescant (jardineiros e botânicos empregados pelo rico conde de Salisbury e também por Carlos I, fato importante de ser ressaltado) traziam de suas muitas viagens e aventuras em terras distantes ou que lhes eram presenteados por amigos, como o lendário Capitão John Smith. Artigos de história natural, livros, armas, moedas e objetos etnográficos produzidos nas culturas que visitavam são alguns dos itens que formavam a coleção que passou posteriormente às mãos de Elias Ashmole, rico antiquário de Londres. Ashmole, por sua vez, doou sua coleção à Universidade de Oxford em 1682 para dar início em 1683 ao Ashmolean Museum, o primeiro museu público britânico e o primeiro no mundo ligado a uma universidade (cf. site oficial do Ashmolean Museum1). A história de colecionadores privados se faz paralela ao desenvolvimento da história da humanidade. Sujeitos que deram asas às 13


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paixões por coletar, reunir e eternizar legam ao coletivo suas narrativas, sua maneira de arranjar uma coleção de objetos, participando da estabilização discursiva acerca de um povo, de um momento histórico, de formas de pensar o mundo ao redor, isto é, daquilo que Harari chamou de “ordem imaginada intersubjetiva”. Uma coleção é uma construção, uma obra montada pelo colecionador a partir de suas próprias escolhas. Ela, portanto, empreende uma narrativa, pressupõe uma intervenção de um sujeito que escolheu as peças – e que possui alguma forma de poder para fazê-lo –, retirou-as de um contexto, preferiu algumas em detrimento de outras, e atribuiu às peças individuais e ao conjunto um valor testemunhal diante de seu tempo e seu grupo social. Tal pressuposto se aplica para os colecionadores individuais e também para as coleções formadas em nome de uma sociedade maior, assim como podemos aplicar o conceito de história como narrativa ficcional tanto para a História oficial como para as histórias dos sujeitos de forma individual. O componente político do discurso autoetnográfico é indiscutível em nossos dias; a construção dos selves, tanto quanto a construção da história social de comunidades, não mais se pretende isenta e inócua. Ambas resultam de esforços para legar ao olhar do outro e ao futuro uma determinada imagem de si; ambas desejam que o discurso seja criador e consubstancie aquilo que o imaginário projeta. Para o historiador francês Jacques Le Goff, a memória coletiva e sua forma científica, a História, são pontuadas de documentos e monumentos, objetos equivalentes em sua condição de semióforos, artefatos materiais que, segundo Le Goff, não são elementos eventuais que sobreviveram ao tempo por uma força do acaso, mas partem da escolha daqueles que detinham o poder de atuar na fixação de tais elementos, como os historiadores, por exemplo. Le Goff afirma: “qualquer documento é, ao mesmo tempo, verdadeiro – incluindo talvez sobretudo os falsos – e falso, porque um monumento é em primeiro lugar uma roupagem, uma aparência enganadora, uma montagem.” (Le Goff: 1996, p. 538). O documento é verdadeiro pois fala dos sujeitos envolvidos em seu contexto de produção tanto quanto falam os silêncios e ausências que tal documento carrega. Quanto mais omissor, mais alto clamam seus silêncios; quanto mais tendencioso, mais elucidativo. Montagens, ficções, mas que também 14


“Selos, moedas, medalhas, jarrões”: as narrativas das coleções e a ordem imaginada

produzem uma narrativa, comunicam o caráter de seu tempo, apenas requerem um olhar através de outras lentes. Os colecionadores formam seu autorretrato no mosaico de objetos que reúnem, produzem a imagem que têm de si mesmos ou uma imagem que querem vista pelo olhar do outro, contando uma história, produzindo uma narrativa de si, onde o corpo/texto recebe a mot juste, na busca por aquela que melhor lhe parece descrever a si próprio; um produto de sua ficcionalização, da moldagem, da construção ininterrupta que cada sujeito faz de si. Os acervos museológicos ou itens de um patrimônio cultural reúnem peças que ao contar a história de uma dada comunidade ao mesmo tempo participam do processo de estabilizá-la, estabelecê-la, criando e consolidando uma identidade social coletiva pretendida. A narrativa que desenvolvem na escolha das peças, em sua disposição, nos textos que as acompanham, nas exposições que organizam e nos produtos que destas derivam solidificam uma imagem de coletividade criada em dado momento. O modelo percorre, portanto, toda a escala de acumuladores de objetos, dos museus e seus grandes acervos ao sujeito comum e sua coleção de vinis, passando pelos colecionadores privados que eventualmente abrem suas coleções ao olhar público: todos criam uma história/imagem de si, seja como indivíduo ou como grupo, legando narrativas que confirmem a identidade engendrada. Autor de Collecting – An Unruly Passion: Psychological Perspectives, o psicanalista norte-americano Werner Muenstenberger, afirma que a paixão por colecionar deriva de uma “experiência de dor, frustração ou insegurança, ocorrida em algum momento da vida do colecionador.” (apud Costa: 2007, p. 22). A teoria poderia ser atestada pela história de Frederick Hill Meserve (1865-1962) – pequeno empresário nova-iorquino do setor têxtil, conhecido como o primeiro grande colecionador de fotografias dos Estados Unidos e o maior colecionador de fotografias de Abraham Lincoln do mundo – e sua filha, Dorothy Meserve Kunhardt (1901-1979). A ligação de seis gerações da família Meserve com Lincoln e a incrível Lincolniana por eles reunida começa em um sangrento dia da guerra civil americana em que William Meserve, pai de Frederick Meserve, ferido, se afasta para longe dos mortos; Abraham Lincoln, o americano mais fotografado do século XIX, visita o campo de batalha e agradece a Meserve e aos outros soldados pela bravura 15


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