Memórias que eu guardei de memória

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Mem贸rias que Eu Guardei de Mem贸ria


Copyright © Therezinha Lins de Albuquerque, 2011 Editor João Baptista Pinto Capa Francisco Macedo Projeto Gráfico/Diagramação Francisco Macedo Revisão Marcia Xavier de Brito CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

A311m Albuquerque, Ulysses Lins de, 1889-1979 Memórias que eu guardei de memória (1889 a 1941)/ Ulysses Lins de Albuquerque; [organização Therezinha Lins de Albuquerque). - Rio de Janeiro: Letra Capital, 2011. 300p. : il.; 23cm Apêndices ISBN 978-85-7785-094-5 1. Albuquerque, Ulysses Lins de, 1889-1979. 2. Escritores brasileiros - Biografia. 3. Brasil, Nordeste - Usos e costumes. 4. Brasil, Nordeste - Política e governo. I. Albuquerque, Therezinha Lins de, 1926-. II. Título. 11-2791. 17.05.11

CDD: 869.98 CDU: 821.134.3(81)-94 18.05.11

Letra Capital Editora Telefax: (21) 2224-7071 / 2215-3781 www.letracapital.com.br

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Ulysses Lins de Albuquerque

Que Eu Guardei De Mem贸ria (1889 a 1941)



“Quanta saudade – quanta! – ao coração me fala, Ao transpor, casa velha, os teus nobres umbrais! Quanta recordação, ao entrar nesta sala, De um tempo que se foi e que não volta mais! Tempos bons que se vão nas asas do passado Que hoje, longe, bem longe, eu vejo a se sumir... – Mas, para que reler o meu poema encantado Que aqui deixei a um canto, esquecido, a dormir? Não. É melhor deixar assim, o livro de ouro Fechado como está. Tocando-o, a minha mão Iria profanar meu oculto tesouro E, talvez, sem querer, magoar-me o coração”.

N.E. – Trechos da Poesia “Pantaleão”, de Ulysses Lins, de 1930.



Prefácio ............................................................... 9 Apresentação ..................................................... 15 Rio de Janeiro................................................... 21 1889 - 1897.......................................................... 23 1898...................................................................... 55 1899...................................................................... 61 1900...................................................................... 65 1901...................................................................... 75 1902...................................................................... 84 1903...................................................................... 86 1904...................................................................... 88 1905...................................................................... 100 1906...................................................................... 107 1907...................................................................... 111 1908...................................................................... 113 1910...................................................................... 117 1911...................................................................... 120 1912...................................................................... 128 1913...................................................................... 138 1914...................................................................... 141 1915...................................................................... 147


1916...................................................................... 150 1917...................................................................... 155 1918...................................................................... 160 1919...................................................................... 164 1920...................................................................... 167 1921...................................................................... 170 1922...................................................................... 174 1923...................................................................... 183 1924...................................................................... 186 1925...................................................................... 189 1926...................................................................... 191 1927...................................................................... 195 1928...................................................................... 201 1929...................................................................... 207 1930...................................................................... 211 1931...................................................................... 223 1932...................................................................... 226 1933...................................................................... 231 1934...................................................................... 232 1935...................................................................... 237 1936...................................................................... 240 1937...................................................................... 241 1938...................................................................... 249 1939...................................................................... 255 1940...................................................................... 259 1941...................................................................... 263 Nota da Família ................................................. 267 Posfácio .............................................................. 268 Apêndice 1 – Carta ao Avô............................... 273 Apêndice 2 – Assentamentos e Lembraças de Ulysses Lins de Albuquerque...................... 281


“A narrativa (...) não está interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do barro”. (Walter Benjamin, “O Narrador”)

Este livro de Ulysses Lins de Albuquerque, Memórias que Eu Guardei de Memória, como o próprio título sugere, é um excelente repertório de memórias. Aos sessenta e três anos, num apartamento da Rua Senador Vergueiro, bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro, Ulysses dá início àquele que seria o derradeiro trabalho de sua extensa lavra de publicações. Desta vez é diferente. Não vislumbra o amplo público leitor de sua pena. Apenas conta histórias para seus filhos e netos. “Falo aqui, na intimidade, para meus filhos (e netos...)” (p. 99 do original). Pelos cuidados demonstrados por Ulysses Lins, logo no início de suas reminiscências e até o parágrafo final, infere-se que o texto destas Memórias obedeceu à pauta de uma crônica testamento daquilo que lhe parecia ser o mais rico e valioso acervo do político, homem público e cidadão. “Mas, agora, ao escrever as minhas memórias, ao correr da pena, – na idade em que julgo necessário ir deixando para meus filhos trechos da minha vida”... (p. 51 do original). Claro, a referência inequívoca sempre foi a sua antiga Alagôa de Baixo Memórias que Eu Guardei de Memória

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que, por iniciativa dele próprio, viria a se chamar Sertânia e cuja raiz etimológica é a mesma de Sertão. Narra com pormenores de quem viaja aos labirintos da alma e, nela, recolhe as reminiscências que lhe são muito caras. Talvez as mais diletas de suas maiorias; algumas bastante doídas, já que falamos de reminiscências da alma. Esta viagem-narrativa tem um ponto de partida e um ponto de chegada, no tempo e no espaço. Contempla o espaço de tempo que se inicia em 1889, na Fazenda Pantaleão, encerrando, em primeira parte, a crônica de sua vida no ano de 1941, ao expor o seu amor à outra fazenda, a “Conceição”, esta hoje administrada por netos. Desde o início, demonstra muita consciência e determinação na árdua tarefa de revisitação dessas memórias, inclusive no alcance dos seus limites. No seu Caderno de Anotações Diárias declara que, “escrevendo estas linhas, delas quero partir para contar a minha vida. Pelo menos um pouco de sua história, pois, narrar toda a história (grifo do autor) é tarefa que não me proponho” (p. 03 do original). É a marca e o estilo narrativo de Ulysses Lins. Na leitura de Memórias que Eu Guardei de Memória, ganha corpo um gradiente que contempla pontos fulcrais das reminiscências de Ulysses. Deixo o leitor à vontade, porém aceno para os primeiros oito anos vividos na Fazenda da família, onde o autor deposita o repositório de suas melhores lembranças. E delas fala com uma intimidade comovente, apontando lugares, pessoas, recantos e sentimentos que raramente são abordados com tamanho grau de sensibilidade. Isto pode ser resumido numa afirmação sua, na página 84 dos originais, onde ele, falando da Fazenda, reporta-se ao “cheirinho de uma saudade da infância”. Ao falar de “cheiro de saudade”, nosso cronista se mostra atraído pelo (en) canto de Mnemósine. Outro traço marcante da memória intimista do autor é o número de vezes em que ele se reporta aos familiares, indicando o nome de cada pessoa e os seus laços de parentesco, seja de sua família, seja da família dos amigos e até dos agregados da Fazenda. É um duplo conhecimento das pessoas: pelo nome e pelos laços de parentesco. São tocantes, no texto, as passagens 10

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que se referem aos pais, aos irmãos e às frequentes perdas pelo falecimento de pessoas queridas. Entretanto, nenhuma delas é mais comovente do que a lembrança do seu sofrimento ante a lenta agonia da doença que levou Inah à morte por tuberculose, ela que era sua filha de predileção. Obvio que, a partir desta referência familiar, estrutura-se a vasta memória da instituição da parentela nos sertões de Pernambuco e do Nordeste. Em torno dela se explicitam os laços de amizade, de convivência, de lealdades, de propriedade e da própria violência, vista com tanta naturalidade nos sertões. Em seguida, temos o espaço da política que, ao lado dos laços de parentesco, povoa os espaços das reminiscências do autor. Ulysses se revela um líder político por excelência. Diferente dos atrabiliários coronéis do interior, seu texto passa a memória de uma pessoa marcada pelo despojamento, pela lealdade, pela coerência e pela capacidade de conciliação. O interessante é que ele coloca a Família acima da Política: “Em Alagôa de Baixo as paixões partidárias separam as famílias”, afirma ele (p. 82 dos originais). Chama ainda a atenção o fato de que este rico acervo de reminiscências denota o perfil da pessoa de Ulysses Lins como alguém marcado pela grandeza de alma e de espírito, aberto à convivência com pobres e ricos, pretos e brancos, letrados e analfabetos. E tudo isto no espaço de uma sociedade e cultura, onde impera o legado histórico da distancia social e da prepotência do mando. Não deixa de ser instigante também o fato de que Ulysses Lins, ocupando um posto de alta relevância na administração pública federal, demonstra magnanimidade no exercício dessa função. Em várias páginas de suas Memórias reitera este sentimento de profundo incômodo quando se tratava de aplicar multas nos contribuintes, especialmente aqueles do interior sertanejo. O tema da memória, aqui, tem um profundo significado para nossa condição de humanos, bem como para o histórico descaso da cultura brasileira no trato com a memória, a cultura e a cotidianidade do passado nacional. Através da leitura deste Memórias que Eu Guardei de Memória

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livro de Ulysses Lins tem-se a justa dimensão de que, por conta da nossa finitude de humanos, buscamos com tenacidade de espírito nos proteger contra as ciladas do esquecimento. Esquecer é eleger o silêncio como sinônimo de morte e negação da vida, que se quer preservada através da memória, não obstante a fragilidade das teias de nossas lembranças. O presente livro é um exemplo eloquente da busca de superação da fragilidade e finitude humanas, que proliferam nos desvãos do esquecimento mas que tem seu antídoto na preservação e valorização da memória. O livro também evidencia algo suficientemente importante na composição do mosaico de histórias que torna possível uma melhor visibilidade da sociedade, da cultura e da complexidade social que marcam o interior do Nordeste, Pernambuco em particular. Se não existe passado sem lembranças, também não existe memória sem narradores. O livro é um primor de narrativa das reminiscências de um sertanejo que, literalmente, escancara os espaços da intimidade aos filhos e aos filhos dos seus filhos. Mais que isto, é uma crônica do sertão nordestino que se consubstancia na sua estrutura familiar, patrimonial, político-partidária e histórica, finalmente. Os historiadores, atentos às observações de W. Benjamin chamam a atenção para o fato de que os gregos ao falar da memória no seu sentido mais abrangente referiam-se a Mnemósyne como a musa da poesia. Dado o seu caráter de abrangência épica, esta divindade celebrada pelos gregos tem o sentido de reminiscência como algo fundante na cadeia da tradição que transmite os acontecimentos de geração para geração. A volta ao passado, empreendida por Ulysses Lins é uma luta contra o esquecimento, sim, através da crônica poética narrada com leveza de estilo, sentimento de pai amoroso e a sinceridade de um letrado sertanejo. Em Memórias que Eu Guardei de Memória, como nos diversos livros de sua lavra, Ulysses assume magistralmente a figura do cronista-narrador benjaminiano: aquele que tece o fio condutor das várias memórias, das múltiplas reminiscências, onde cada final é um novo recomeço. Aprendemos com Ulysses que o historiador não se confunde com 12

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o cronista, mas, que o bom historiador, também, terá que ser um bom narrador. Afinal, na tarefa de selecionar e referir os fatos passados, ao decifrá-los, buscando um ou vários sentidos para os fatos pretéritos, o historiador os rememora. Dizemos, portanto, que ao rememorar, o historiador escreve a história num cenário de intertextualidade e interpretações. Ao passo que o narrador, como Scherazade, inscreve a história narrada na inesgotável fonte de reminiscências do espaço que se instaura entre ele e os seus interlocutores. Por isto mesmo Benjamin conclui que o cronista é, por excelência, o narrador da história. Ulysses, aqui, é o narrador e o cronista da intimidade da família sertaneja que, igual ao que ocorre nas boas narrativas, torna-se referência das inúmeras famílias de sua relação, começando pelos seus laços pessoais de parentesco e, incidindo, finalmente, nos traços de intensa afetividade que permeiam a narratividade de sua crônica familiar. Através de Therezinha, filha de Ulysses, pessoa de minha profunda admiração e respeitoso bem querer, gostaria de agradecer aos demais membros da conceituada família Lins de Albuquerque pelo honroso convite que me foi feito para escrever este Prefácio. Além de conterrâneo, sou grande admirador, leitor assíduo e estudioso diligente da obra de Ulysses Lins de Albuquerque. Aproveito também para externar minha alegria e satisfação ante da decisão da família de publicar estas Memórias de Ulysses Lins. Neste sentido, parabenizo o destemor da família na decisão de publicar o texto, sabedor que sou de que algumas das reminiscências aqui anotadas foram cicatrizes de certas feridas oriundas de sua relação com parentes próximos, com políticos opositores e correligionários. Sou testemunha de que este detalhe foi objeto de cuidados elevados e prudentes ponderações de parte da família Lins de Albuquerque, evitando abrir feridas onde talvez nem mais existam cicatrizes. Editando este livro, a família reparte com o público leitor o legado da crônica intimista de um grande brasileiro. Portanto, quem ganha é a memória política do país e de Pernambuco em especial. Memórias que Eu Guardei de Memória

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Concluo afirmando que, para mim, a memória de Ulysses Lins ficará indelevelmente associada ao alpendre da casa grande da Fazenda Pantaleão como a maior e melhor referência de sua vida e de suas lembranças. Não por acaso, o livro inicia a crônica da cotidianidade daquelas reminiscências, tendo, na Casa da Fazenda, o marco inicial de suas lembranças. Igualmente, não é sem razão que as linhas finais do livro revisitem a “Conceição” de sua vida para falar dos seus encantamentos e recordar aos filhos e netos que eles são destinatários e guardiões de todo aquele referencial de lembranças, explicitador da memória familiar e da riqueza histórica do sertão pernambucano. Nas palavras finais de Ulysses, uma declaração de amor e um pedido dirigido aos filhos, netos e bisnetos: “... de fato, a “Conceição”, tendo hoje muito valor, – para mim é um reino encantado. Não há dinheiro que me seduza para aliená-la. E, a meus filhos, eu peço que, por morte minha, conservem-na por toda a vida com o mesmo amor que eu a ela consagrei” (p. 157 dos originais). Encantado no infinito etério das estrelas, Ulysses continua bem próximo de nós como narrador e decifrador do Sertão, seja na perene leveza de sua crônica, seja no (en)canto poético de suas reminiscências. Antonio Jorge de Siqueira Recife, julho de 2009.

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Tudo tem seu tempo. Há momento oportuno para cada coisa debaixo do céu: tempo de nascer e tempo de morrer; tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou. Ecl 3, 1 – 2

Umas palavras em tempo, no tempo... e sua dinâmica Vivo uma convocação histórica, desafiadora e reveladora de uma região no seu contexto social, psicológico e humano – o Sertão de Pernambuco – a exigir a sua História em raízes mais profundas... Já percorri um longo caminho ao publicar os livros post-mortem de meu pai – Ulysses Lins de Albuquerque – “Coletânea Poética” e “Colcha de Retalhos” escritos a mão, em caligrafia impecável e em “agendas”... Hoje, entretanto, o caminho a seguir foi outro... são as suas “memórias”, escritas para seus filhos, a partir de 9 de maio de1952 – Memórias que Eu Guardei de Memória – escritas em seu estilo simples, coloquial, despretencioso, – relatando acontecimentos do dia a dia, voltando a sua infância na simplicidade de quem viveu a vida na sua plenitude... É o testemunho de uma época longínqua e rica no desenrolar das relações existentes em toda a extensão dos vários matizes do ser humano. Memórias que Eu Guardei de Memória

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Creio, hoje, após várias reflexões, que o legado de um sertanejo, sofrido e atento como meu pai, documentando, por escrito, a dinâmica do “existir” tinha nas suas potencialidades, com seu espírito de pesquisador, deixar registrado para filhos e netos, todo o “caminho” de uma época, – elemento necessário para a compreensão do que é o ”ser nas suas raizes”... Várias indagações me fiz e me faço... – que caminhos tomar? O que selecionar? Seria um desrespeito à sua intimidade? Após a sua morte um mundo de riqueza caiu em minhas mãos... Graças a ajudas diversas e procedentes, fui desvendando o mistério e saldando uma dívida como nordestina... assim que em 2007 ao re-arrumar alguns “escritos” encontrei na estante o livro De Sertões e Espaços Incivilizados de Ângela Mendes de Almeida, Berthold Zilly e Eli Napoleão de Lima, publicado em dezembro de 2000. Releio o capítulo de Luitgard Oliveira Cavalcanti Barros, Literatura e Memória – O Sertão de Ulysses Lins de Albuquerque, onde ela diz: “Ulysses não pretende fazer uma reconstrução, mas uma reconstituição da época, baseando-se, em cada frase, em cada verso, na experiência pessoal para sua história” e mais... “ainda se desenvolve a ideia de que a memória se faz, principalmente, de lembranças, das imagens vividas”. “E portanto o típico escritor que faz a história de seu mundo a partir das emoções humanas, suas e de seus personagens, o que pretendeu em sua obra de memórias: a trilogia Um Sertanejo e o Sertão, Moxotó Brabo e Três Ribeiras, publicados pela Ed. José Olympio e que já o tinham revelado em vida”... Um outro ânimo me possuiu e Luitgard, nordestina alagoana, antropóloga, historiadora, me é devolvida não só como “a amiga”, mas como a profissional que conhecia a obra de meu pai... Hoje, aqui, também é a profissional e nordestina estudiosa permanente do mundo sertanejo que me ajuda a remoer e vencer o escrúpulo familiar, assumindo a responsabilidade de admitir publicá-lo... O caminho, entretanto, continua sofrido e penoso... Fernando Patriota, historiador, morto precoce e recentemente em um acidente de carro, me deixou em luto. Perdi um irmão histórico... A sua descoberta de Um Sertanejo e o Sertão em um sebo quando 16

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pesquisava para o curso de Mestrado na Universidade Federal de Pernambuco gerou laços de amizade e uma cobrança constante de “responsabilidade da família” com a obra de Pai. Para ele, o historiador, Pai não nos pertencia. Era parte de uma história e ele lamentava não tê-lo conhecido vivo, em Sertânia, terra de ambos... Todavia, a complexidade das relações em uma família tão grande e, outras implicações, retardaram “o ceder”... Hoje, assumo a responsabilidade por uma parte já ter sido publicada e por pedir a ajuda de dois de seus netos para revisar o material que eu já mandara datilografar logo após a sua morte, quando fazia o levantamento do que ia encontrando... Àquela época, pedi ajuda à Fundação Getulio Vargas, através de Célia Freire, também historiadora, para verificação do teor do material e orientação sobre o que fazer com ele e como fazêlo, uma vez que entre esses papeis encontrei a Ata de uma eleição, a bico de pena, de 1905... Passei três meses lendo e relacionando o material encontrado e entreguei à FGV já com outros olhos. Ouvi, na entrega do material, que a FGV não dispunha, no momento, de recursos para uma organização condizente. Posteriormente recebi de volta todo o material, do CPDOC/FGV, já organizado, e com a dimensão histórica reconhecida e credora de todo o seu “acervo valioso”. Mas as agendas – “Memórias que Eu Guardei de Memória” foram postas de lado... Os originais dos livros publicados post-mortem e as “agendas” (escritos à mão), com as Memórias permaneceram com a família. – O “diário” estava em mãos de Ulysses Filho a quem Pai mesmo havia entregue. Ao Padre João Medeiros Filho, a quem devo a orientação da diretriz artesanal do que encontrara, entreguei, um dia, o diário, datilografado por uma amiga – Janete Pouchet. Dele, dias depois, quando da devolução do material, ouvi comentário emocionado: “Li, madrugada a dentro... estava diante de um ideólogo do Nordeste... Precisa ser relido...” Quanto às “agendas”, meu irmão, a quem tinham sido entregues, não manifestava desejo de publicá-las... Eu, pensei de saída, publicá-las como estavam, na sua originalidade... Mas Memórias que Eu Guardei de Memória

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meus dois sobrinhos, Leonardo e Eduardo que ajudaram-me com a revisão para que outros pudessem ter acesso, lendo e compreendendo o seu percurso histórico dentro de sua maneira de ser e dos caminhos que teve que percorrer (pois, na sua letra, apesar de calígrafa, e com alguns termos não usados hoje, dificultavam sua compreensão...). Enfim consegui ultrapassar as barreiras do Solo Terra e do Solo Interno como filha e na responsabilidade de filha de um Sertanejo autêntico. Vivendo e ultrapassando os limites da emoção, agradecendo a todos os que me ajudaram nesta tarefa, especialmente a Fernando Patriota, o irmão histórico que em sua tenacidade conseguiu, mesmo ausente, deixar o terreno adubado para o florescer desse desfecho... Até aqui foi necessário focalizar aspectos significativos de toda uma elaboração, de um processo. Sempre desejei escrever aspectos substanciais da nossa convivência, sobretudo das relações no dia a dia dos seus últimos dez anos – dos 80 aos 90 – fornecendo elementos na qualidade de filha, para o entendimento dessa publicação, mas destacando o enriquecimento como ser humano através de atitudes, comentários, indagações... A idade física nem sempre é impedimento para o aprender. Ele se definia, na infância, como um “menino curioso”. E essa curiosidade o acompanhou ao longo de toda a existência... sendo um grande “ouvinte”... Seguem alguns registros que me vem à mente: 

9/5/59 – Morte de minha mãe – repentina, deixou-nos atônitos... Sereno, perdido, recolheu-se e escreveu este poema:

A Rosa - minha rosa ... E esfacela-se, assim. o velho ninho. Por nós dois - há que tempo! – construído, E que por muitos anos, bem florido, Serviu de berço a tanto passarinho! 18

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Isolado do humano borborinho, Às vezes pelos ventos sacudido, Por bondade do Céu foi protegido Das fúrias da borrasca em torvelhinho. Hoje, a um golpe instantâneo – oh, companheira! – Ao soar a tua hora derradeira, Eu, velho pássaro a tremer a um canto, – Zonzo... – o que vejo, me parece um sonho... E só desperto, ante o clamor tristonho... Dos passaritos que te choram tanto” U. Mudo, caminhando e presente no enterro, Estátua viva, segue o barco da existência... 

Quando o homem foi à Lua assisti, com ele e uma amiga (Eneida Campos), ao evento. Aflito, na ponta da cadeira, aguardando e relaxando “graças a Deus, vamos comemorar,” e complementando “gostaria de viver mais 80 anos para ver a volta que esse mundo velho vai dar...”

Recorri a Jorge Siqueira para leitura do material digitado, por justiça convocando-o para a responsabilidade pelo Prefácio, uma vez que foi o primeiro a “cobrar” a divulgação dos escritos de Pai após a sua morte, além de ser quem demoveu qualquer dúvida que persistisse em mim, possibilitando que eu fizesse todo esse itinerário para – “dividir com aqueles que só o conheceram através de seus livros...” E finalmente consegui atravessar rios, riachos, plantações, secas, pastos, enfim... O tempo é construtor e desconstrutor das paredes internas... E Marcos Cordeiro, filho de Waldemar Cordeiro, “Grande Memórias que Eu Guardei de Memória

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Poeta” na classificação de meu Pai, e a quem a Academia de Letras de Pernambuco acaba de conceder o prêmio “Edimir Domingues” por seu livro de poesia “Romançal Paranambuco”, fez o Posfácio... Dizer da alegria dessas companhias, faltam-me palavras. A senha da poesia se faz presente. A amizade, a troca, e o Sertão na sua plenitude... Surpresa comigo mesma, aqui cheguei... É certo que sobrevivi a tudo isso graças a atitudes que presenciava e das quais participava no ”aprender” com um jovem de 90 anos, ouvindo e indagando – sempre... Therezinha Lins de Albuquerque Outubro de 2010

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Rio de Janeiro, 9 de maio de 1952 Rua Senador Vergueiro 55, apto 901

Dia do meu aniversário. 63 anos, hoje... Mal desperto, aproxima-se de mim a minha neta Maria Regina, caçula do meu filho – Etelvino, atualmente Senador Federal por Pernambuco. A garotinha, que completou 3 anos há poucos dias, é inteligente e viva. Vem dar-me os parabéns. E abraça-me, anunciando que o irmão, Rodrigo, fora comprar um presente para mim, acompanhado do pai. Nega-se a dizer qual o presente. “Se eu disser, assim não é presente”... – ela diz, com muita graça. Conversamos ainda um pouco. Levanto-me da cama e ela me acompanha os passos, tagarelando. Minha filha Consuelo volta da rua, onde fora comprar uma lembrança para me ofertar: um par de meias “nylon”. Em seguida, chega o Rodrigo em companhia do pai.Traz-me uma gravata; e, em nome da irmã – Maria Regina – apresenta-me um par de meias.Ela fica satisfeita por participar da homenagem que me é prestada. E, depois de almoçar, vai embora com o irmãozinho de quem não gosta de separar-se, acompanhando o pai, que mora aqui perto, na Praia do Flamengo, 300, apartamento 202. Minha filha Therezinha oferece-me uma camisa. O Juarez, uma gravata “borboleta”. Dos demais filhos, residentes no Recife, recebo um telegrama de felicitações, pela “Western”.Assinam-no o José, Marieta, Ulyssinho e esposa, e o Ruy (este – o caçula –, ali a passeio), bem Memórias que Eu Guardei de Memória

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assim meu genro Hildo e o velho primo Jobelino, solteirão, Escrivão de Casamentos na capital. O Waldemar, residente em Sertânia, dali me telegrafará, de certo, como faz todos os anos. Lendo essas mensagens, fico triste. Dão-me parabéns... mas sinto saudades deles. E... estou ficando velho. Sessenta e três anos! Depois do almoço, fui à Câmara. Ali, sou procurado pelo jornalista conterrâneo, José Wamberto. Abraça-me e me faz presente de outra gravata “borboleta”. Descobrira ser, hoje, o dia do meu aniversário. À noite, vem jantar comigo o Etelvino e a esposa, Djanira. Depois, chegam os seus filhos, que me vêm felicitar: Roberto, Maria Cristina, Rosa Inês, Rogério, Maria da Conceição e, outra vez, Rodrigo. A Maria Regina ficou dormindo. Inah, a filha mais velha deles, chegou depois que eu já havia saído para uma sessão noturna, na Câmara dos Deputados, em companhia de João Roma (Deputado por Pernambuco), que me veio cumprimentar, com o sogro, engenheiro Teófilo de Freitas, casado com minha parenta, Carlota Arcoverde. Antes de sair, meu neto Roberto traz-me um telegrama do Dr. Getúlio Vargas, endereçada para a residência de meu filho Etelvino, de felicitações pelo meu aniversário. Não me sinto envaidecido porque – fico a pensar – certamente ele costuma telegrafar a todos os Congressistas no dia de seus anos. Mas, de acordo com o que se chama “protocolo”, tenho de ir agradecer pessoalmente a honra... ou a gentileza do “velhinho” que, pela segunda vez, é Presidente da República. E irei sem nenhum constrangimento, pois, com todo o meu apoucamento de sertanejo, sinto-me à vontade quando falo com ele. É muito tratável. Delicado. Sabe captar a simpatia dos que o procuram. E, eu gosto dele, de quem, aliás, já recebi benefícios: em 1938, por exemplo, atendendo ao pedido que lhe fiz, por carta, transferiu-me, como Agente Fiscal de imposto de consumo do Recife para São Paulo (capital). E, depois, aposentou-me, a pedido. Escrevendo estas linhas, delas quero partir para contar a minha vida. Pelo menos, um pouco de sua história, pois, narrar toda a história, é tarefa a que não me proponho. E, ninguém, - acredito – já teria escrito as suas “Memórias”, sem omissão de muitas particularidades que – é óbvio -, não interessam... para usar da expressão usada vulgarmente. Assim, mãos à obra, - a começar do dia em que completo 63 “primaveras”... 22

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1889-1897

Meus oito anos “Oh, que saudades eu tenho Da aurora da minha vida, Da minha infância querida Que os anos não trazem mais!” Casimiro de Abreu

Começava assim a poesia de Casimiro de Abreu, intitulada “Meus oito anos”, que eu lia, com emoção, no “3º Livro de Leituras”, de Abílio Cesar Borges (Barão de Macaúbas), poucos meses depois que ingressei na Escola Estadual do Professor Moreira, em 1898, na então Vila de Alagôa de Baixo, mais tarde Cidade (1909), hoje com o nome de Sertânia (lembrado por mim e adotado em 1944). É que eu, também, passara os meus oito anos na velha fazenda onde nasci e criei-me, até aquela idade. E é a minha fase da vida que sempre me despertou saudades: Depois... fui para a Escola, na Vila, e o mundo para mim começou a perder todo o encanto! E, então, tudo me vem à lembrança, como se eu tivesse diante dos olhos d´alma – um aparelho de televisão: – a velha casa em que nasci... as pessoas da família... o pessoal da fazenda... o gado na várzea, a pastar... as árvores em cuja sombra eu brincava com o meu “gado de osso”... os meus companheiros de infância a cavalgarem, junto comigo, os nossos famosos cavalos de pau: “Passarinho”, “Bem-te-vi’ “Mata Escura”, “Busca-pé” (nomes dos cavalos verdadeiros dos meus tios Dino e Pule, de Mocinho Gordo e Totonho Lopes), – tudo, tudo passa pela tela da minha memória, como se uma fada amiga estivesse Memórias que Eu Guardei de Memória

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a mostrar-me o que guardara bondosamente, nos seus segredos de magia, para, vez por outra, trazer-me um pouco de alegria ao espírito conturbado pelas desilusões da vida. E eu fico, assim, como que engolfado num sonho bom, delicioso, confortante, do qual, ao despertar, digo comigo mesmo, diante da realidade áspera que me ressurge à vista: – enfim... já tive a minha fase de felicidade na vida. Nasci em um velho casarão de taipa, na fazenda “Pantaleão” do município de Alagôa de Baixo, sertão de Pernambuco. A 9 de maio de 1889, conforme descobrira, quando comecei a ler, na última página, em branco, de um dos poucos livros que meu pai possuía: o “Manual Enciclopédico”, edição portuguesa, de 1872. Ali, meu pai anotara a data de seu nascimento, bem assim a dos filhos. Por sinal que, quanto a mim, ele escreveu: 6 de maio, emendando o 6 para 9. E, não fora essa anotação, eu não sei se viesse a saber, depois, quando teria vindo ao mundo; – porque – como verifiquei, mais tarde – meu pai não me havia registrado o nascimento; e, o Padre que me

 Gravura, a bico de pena, de Barboza Leite, feita em 1957, no Rio, retratando a “Casa Grande” da Fazenda Pantaleão, onde nasceu Ulysses Lins de Albuquerque em nove de maio de 1889, desenhada pelo artista seguindo a descrição do próprio Ulysses.

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batizou – Nuno Teodoro da Costa – não anotara meu batismo no livro da Igreja. (Certifiquei-me de tudo isso com o velho João Ferreira do Patrocínio – “Ferreirinha” – santo homem, que acumulava as funções de Oficial de Registro Civil e de sacristão. E, nas horas vagas, fazia selas – ofício que lhe rendia mais, talvez, do que as duas “colocações” que exercia, por ser um dos mais habilitados da terra). Meu avô materno, Francisco Alves de Siqueira Melo (Tenente – Coronel da Guarda Nacional...) casara-se com uma prima, - Carlota Leite de Siqueira – filha do Tenente-Coronel Antônio de Siqueira Barbosa e Manuela Maria de Melo, residentes na fazenda “Jacú”. E ali ficaram residindo, na mesma casa do sogro (seu tio afim, visto que a mulher, dele, era irmã do Capitão Antônio Alves de Siqueira – do Poção – pai de meu avô). Ali, no “Jacú”, em 1874, deu-se o casamento de minha mãe. E meu pai ficou morando também no mesmo casarão, construído por Antônio de Siqueira (Barbosa), em 1856, onde nasceram os meus primeiros irmãos: Arcôncio (a 8 de setembro de 1875) e Virgolino, (que faleceu com 6 meses de idade), em 1877. Em 1877, meu avô resolveu mudar-se para o sítio “Pantaleão”, distante de “Jacú”, umas duas léguas ao nascente. E, uma vez ali, aumentou a casa construída pelo primitivo dono do sítio, – Manuel Coelho – a qual passou a ter oito quartos (inclusive 2, próximos à cozinha), além da grande sala da frente e a de jantar. E construiu outros quartos de taipa, independentes, atrás da casa. E mais uma cobertura de telha para abrigar o “moinho” de pedra, onde se quebrava o milho para o xerém – prato popular do sertanejo. E levantou várias casinhas para os escravos e moradores, ao lado direito da casa grande. E quem por ali passasse, havia de pensar que se organizava um arraial meio desordenado, em meio do deserto daquelas caatingas do Moxotó. Era ali o “meu mundo”, na primeira infância vivida nesse ambiente tranquilo das fazendas sertanejas. Memórias que Eu Guardei de Memória

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Naquela sala grande do casarão (sala de visitas, a que se dava o nome de “varanda”), existia um banco enorme (que eu há alguns anos adquiri, mandando transportá-lo para a minha fazenda “Conceição”), no qual meu avô escanchava a sua “roladeira”. A um canto, estava uma mesa grande de cedro, na qual puseram um jantar para Né Batista (mais tarde Antônio Silvino), quando, uma vez, ele passou na fazenda, com seu grupo de cangaceiros. Lembro-me bem disso. Não havia nenhum homem em casa. Devia ser num sábado, dia de feira em Alagôa de Baixo, quando todos para lá se dirigiam. Meu pai e meu avô, talvez estivessem de Caruaru para o Recife, vendendo as boiadas que compravam no sertão. Minha avó e minha mãe tiveram que falar com o chefe dos bandoleiros, o qual pediu que lhes dessem uma refeição. Isto foi feito. Antônio Silvino – cognome que adotaria logo depois, em homenagem a Silvino Aires, a quem acompanhara para assaltar a Vila do Teixeira, na Paraíba, como uma represália aos Dantas que o perseguiam, logo após a refeição se retirava, manifestando-se agradecido. Por sinal, eu olhava para aquela mesa com um respeito religioso, desde que ouvi minha mãe dizer, um dia em que se referia, com os olhos marejados de lágrimas, à morte do seu primeiro filho – meu irmão Arcôncio – falecido em dezembro de 1891: – “uma tarde, dias antes de adoecer, ele deitou-se sobre aquela mesa, e, pensativo, olhou por muito tempo para as telhas, com os seus olhos grandes, tão bonitos”... E, chorando dizia: “Não sei como não enlouqueci com a morte de meu filho. Às vezes, sentada em frente da casa, debaixo da latada, parecia-me, de momento, vê-lo aparecer, montado a cavalo, encourado, de dentro do mato, como se viesse vaquejando gado, em disparada – o que fazia em vida, apaixonado pela vida de vaqueiro, como era...” Eu ouvia tudo aquilo com a mais forte comoção. E tinha muita pena de minha pobre mãe, que – coitada! – mal havia de saber que mais tarde teria de sofrer, ali, outro golpe pungente, com a morte de outro filho, Etelvino, (“Seu Lins”, como era chamado na intimidade) falecido aos 23 anos, em 19 de junho de 1907, deixando dois filhinhos. (“Seu Lins” nasceu ali, a 6 de setembro de 1883). 26

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Ali, naquela sala grande eu pratiquei a primeira proeza, que provocou muitas risadas entre as pessoas a quem meus pais a relatavam: não sei por que motivo meu pai repreendeu-me severamente. E, zangado com isso, num momento em que meu pai, logo depois, estava em pé, na sala, fazendo um cabresto com uma corda de caroá, eu, atirando-lhe às nádegas o meu chapeuzinho de palha de ouricuri, gritei: “vinguei-me!” – e saí a correr para fora, indo esconder-me atrás da cerca dos currais, no pátio da fazenda. Meu pai, longe de enfurecer-se, achou graça na história. E, quando voltei para casa, de onde minha mãe mandara chamar-me, desapareceram meus receios de vir a ser castigado, pois todos me receberam sorrindo, a comentarem o incidente. Ali, também, fui surpreendido uma feita, por meu avô a arranhar com as unhas a sobrecapa nova, da sua sela “roladeira”, escanchado nela bancando o cavaleiro. O velho gritou-me: “sai daí, moleque!” e eu pulei rápido, ganhando o terreiro. No dia seguinte, meu avô me agradava e, como fosse plantar milho no “roçado da ilha”, levou-me como seu “trabalhador”... Lá, então, me explicou que eu fosse lançando quatro a cinco grãos de milho em cada cova que ele abrisse com a enxada, cobrindo-a com um pouco de terra, que eu arrastaria com o pé. Mas, aqui e acolá, eu enchia as mãos de milho e jogava numa cova. Dias depois, voltamos ao roçado. O milho já estava nascido. E eu contemplava satisfeito, os inúmeros pés que brotavam das covas onde despejei os punhados de grãos. Era tempo de inverno. Talvez o de 1894, que foi o maior inverno daquelas paragens, conforme ainda hoje afirmam os sertanejos mais velhos. E não sei se foi nesse mesmo ano – quando o riacho da fazenda correu durante muito tempo – ou depois, que eu ia morrendo afogado. É que, um dia, umas pessoas da fazenda foram tomar banho no rio, por detrás da “cacimba velha”; e eu, acompanhado de Manuel Salina – um caboclinho do meu tope (quase da mesma idade), com quem, por isso, vivia sempre a brincar, fui banhar-me também no riacho sem saber nadar. Memórias que Eu Guardei de Memória

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Entramos n’água que, tendo arrombado o paredão da cacimba, espalhava-se, com ímpeto, de uma à outra ribanceira do riacho até chegar a uma certa altura da parte posterior do paredão onde mergulhamos, porque ali não havia correnteza. Mas, num dado momento, eu escorreguei, faltou-me pé... e o remanso das águas foi me levando para o meio do rio. Felizmente, um dos rapazes que se banhavam logo ali em baixo, nadou um pouco e arrebatou-me da correnteza, que ia me arrastando, sem que eu, ao menos, soltasse um brado de protesto. Ioiô Siqueira (pai de Aprigio de Siqueira, hoje Comissário do Distrito de Albuquerque Né) foi que me salvou a vida. Ele era sobrinho de meu avô e viera do sítio “Poção” onde morava, a trato de negócio ou a passeio, ao Pantaleão. No velho casarão onde eu vivia, sem ter com quem brincar, quando eu não podia escapulir para procurar Manuel Salina e, com ele, ganhar o mato, à cata de “gado de osso” ou a perseguir passarinhos, a badoque, ficava, às vezes, a divertir-me com uns pequenos “calungas” de louça e um de borracha, com o qual presenteou-me “Seu Lins”, que viera da Vila, passar uns dias na fazenda. Estava ele na Escola Professor Moreira. Deu-me também um “pião” e com ele me distraía horas inteiras, na “varanda”. Mas quando me entediava, saía a “fazer artes” pelas casas dos moradores, até que gritassem por mim, chamando-me para casa. Meu tio Dino, sempre que chegava em casa, vindo de Alagôa de Baixo, ou, às vezes de Caruaru, aonde ia com meu avô, que sempre ia vender boiadas dali para Vitória (Santo Antão, como se chamava naquele tempo), espalhava-me um pouco de alegria na alma, com um presente que, para mim, era uma grande novidade. Lembro-me que de uma vez me trouxe uma gaita, com chaves, como um pequeno clarinete. De outra feita, deu-me uma minúscula caixa de música, com um pequeno veio que, posto a rodar, impelia umas figurinhas de chumbo a dançar aos sons emitidos pelo engenhoso aparelho. 28

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