Migracoes e outros deslocamentos na amazonia ocidental

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MIGRAÇÕES E OUTROS DESLOCAMENTOS NA AMAZÔNIA OCIDENTAL: algumas questões para o debate


Conselho Editorial Série Letra Capital Acadêmica Beatriz Anselmo Olinto (Unicentro-PR) Carlos Roberto dos Anjos Candeiro (UFTM) João Medeiros Filho (UCL) Leonardo Santana da Silva (UFRJ) Luciana Marino do Nascimento (UFRJ) Maria Luiza Bustamante Pereira de Sá (UERJ) Michela Rosa di Candia (UFRJ) Olavo Luppi Silva (UFABC) Orlando Alves dos Santos Junior (UFRJ) Pierre Alves Costa (Unicentro-PR) Rafael Soares Gonçalves (PUC-RIO) Robert Segal (UFRJ) Sandro Ornellas (UFBA) Sergio Azevedo (UENF) Sérgio Tadeu Gonçalves Muniz (UTFPR)


Carla Monteiro de Souza Organizadora

MIGRAÇÕES E OUTROS DESLOCAMENTOS NA AMAZÔNIA OCIDENTAL: algumas questões para o debate


Copyright © Carla Monteiro de Souza (organizadora), 2016 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610, de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem a autorização prévia e expressa do autor.

Editor: João Baptista Pinto

Capa: Luiz Guimarães Sobre foto exposicoesvirtuais.arquivonacional.gov.br

Projeto Gráfico e Editoração: Luiz Guimarães Revisão: Cátia Monteiro Wankler

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

M576

Migrações e outros deslocamentos na Amazônia Ocidental: algumas questões para o debate / organização Carla Monteiro de Souza. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Letra Capital, 2016. 224 p. : il. ; 15,5x23 cm.

Inclui bibliografia ISBN 978-85-7785-489-9

1. Amazônia - Aspectos sociais. 2. Migração. 3. Territorialidade humana. I. Souza, Carla Monteiro. 16-37034 CDD: 304.8098113 CDU: 314.15-026.48(811.3)

Letra Capital Editora Telefax: (21) 3553-2236/2215-3781 letracapital@letracapital.com.br


Sumário Apresentação............................................................................................. 7 Mobilidade humana na Amazônia contemporânea: pressupostos teóricos e metodológicos................................................. 13 Márcia Maria de Oliveira Sobre viagens e viajantes: o caso de Wilkens e a representação da etnia Mura.......................................................................................... 33 Veronica Prudente Costa Escritos e traçados: a epopeia de uma judia na Amazônia................. 53 Luciana Marino do Nascimento “Sou daqui, sou de lá”: deslocamento e identidade em Zeca Preto.... 64 Cátia Monteiro Wankler Cléo Amorim Nascimento Migrações, trânsitos transfronteiriços e mercado laboral na Pan-amazônia: Brasil, Venezuela e Guiana........................................... 78 Francilene dos Santos Rodrigues Márcia Maria Oliveira Mariana Cunha Pereira A presença de peruanos na cidade de Boa Vista/RR: identidades negociadas a partir das redes migratórias........................ 97 Alessandra Rufino Santos Ernesto Renan Melo de Freitas Pinto Cidade, migração e poder: Boa Vista na segunda metade do Século XX.............................................................................................. 121 Raimundo Nonato Gomes dos Santos “O Maranhão é aqui”: Arraial dos Maranheses e a produção do território simbólico-cultural na cidade de Boa Vista/RR.................. 144 Francisco Marcos Mendes Nogueira Antonio Tolrino de Rezende Veras Carla Monteiro de Souza


Deslocamento de mulheres nordestinas protagonistas sozinhas e/ou acompanhadas para Boa Vista (1985 -2000).............. 162 Raimunda Gomes da Silva NOTAS DE PESQUISA Maranhenses em Boa Vista/RR: uma discussão sobre motivações e inserções......................................................................... 178 Celene Farias de Sousa Carla Monteiro de Souza “Quem veio primeiro foi trazendo...”: trajetórias migrantes e redes sociais na migração de Olho D’Água/PB para Boa Vista/RR........................................................................................ 192 Iris Daiane Miguel da Silva Carla Monteiro de Souza Os garimpos e o crescimento demográfico de Roraima e de Boa Vista na década de 1980.......................................................... 209 Ronison do Nascimento de Sousa Carla Monteiro de Souza


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Apresentação NETO DO NORDESTE Eliakin Rufino Eu tenho um pé no ceará O meu avô era de lá Eu tenho um pé no maranhão Eu tenho mais eu tenho a mão Eu tenho um pé no piauí Rio grande do norte passa por aqui Eu tenho um pé em pernambuco Tenho uma perna no sertão Eu tenho um braço na bahia Uma costela em alagoas Na paraíba o coração Quem é filho do norte É neto do nordeste Sou chuva na floresta Sou mandacaru do agreste Quem é filho do norte É neto do nordeste Sou farinha de caboclo Eu sou cabra da peste

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ão à toa, o poema do roraimense Eliakin Rufino abre esta coletânea. Os versos leves e bem humorados falam de uma relação antiga, instituída expressivamente pelas históricas trocas populacionais entre as atuais Regiões Norte e Nordeste. Neles, o poeta nos mostra uma Amazônia feita de partes diferentes que, não obstante, funcionam organicamente, formando um “corpo” feito a partir das interações, nem sempre harmônicas, entre seres humanos, natureza, espaço e representações. Se expandirmos o nosso olhar para além desta significativa relação e pensarmos que a Amazônia recebeu e recebe gentes oriundas de todos os lugares, a nossa percepção e os nossos questionamentos sobre esse imenso “corpo” se aguçam, e nos levam a pensar o quão vivo e pulsante ele é. Com este mote, esta coletânea reúne textos acerca do tema migrações, produzidos a partir de pesquisas realizadas em diferentes áreas do conhecimento. O projeto História, Memórias e Migrações: dinâmica


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urbana de Boa Vista/RR a partir de 1943, apoiado pelo CNPq por meio do Edital Universal/2013, ensejou esta reunião que tem como objetivo promover o diálogo entre pesquisadores que direta ou indiretamente se interessam pelas múltiplas facetas dos deslocamentos humanos da/ na Amazônia. Neste sentido, falar de Amazônia é sempre falar do múltiplo, do diverso, do plural, de controversos e contraditórios (des)encontros, ainda mais quando focalizamos as gentes que a habitam. Desde que os primeiros europeus chegaram às Américas, as diferentes formas de contato que se estabeleceram entre os habitantes originários e os que chegavam configuraram e tornaram as migrações um campo de estudos fundamental para entender a região, dar-lhe sentido. Contemporaneamente, com o acirramento dos debates acerca das questões de identidade e diferença e das relações que tanto suscitam quanto mediam tais discussões, torna-se ainda mais pertinente pensar as chegadas, partidas e permanências daqueles que deixam o seu locus original e tornam a Amazônia o seu lugar. Movidos por diferentes desejos e interesses, os migrantes rumaram e rumam para a Amazônia em busca de uma terra de riquezas, considerada sem dono, considerada “vazia”. A ideia do “vazio”, portanto, imprimiu uma marca indelével na ocupação da região, tanto por aqueles que, excluídos em seus lugares de origem, enxergavam na vasta Amazônia a chance de uma vida melhor, quanto por aqueles que atuaram na linha de frente da expansão capitalista efetivada na região nos últimos cinquenta anos. A representação histórica da Amazônia como um “vazio” demográfico, fundamenta outras representações de “vazio”: de civilização, de ocupação produtiva nos moldes capitalistas, de governo, de poderes … Neste sentido, o estudo sistemático das migrações é peça chave para desmistificar e problematizar esta ideia. Assim, pensamos as migrações para a Amazônia como processos complexos que comportam uma série de peculiaridades que os tornam únicos. Por isso, o estudo dos fatores, das motivações, das formas de interação e de representação que se estabelecem a partir destas migrações, nos faz considerar que mais que uma mudança de localização geográfica, de domicílio, de lugar, migrar é uma mudança integral de vida, na qual o sair e o chegar não são dimensões estanques, nem etapas que podem ser claramente demarcadas e caracterizadas, tanto no que diz respeito ao migrante quanto às sociedades estudadas. Os textos aqui reunidos partilham este entendimento que, em minha perspectiva teórica, pode ser sintetizada na ideia de que migrar


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é a um só tempo des-re-territorializar-se. Sob vários pontos de vista, creio que buscamos apresentar as migrações para a Amazônia como um processo dinâmico, material mas também simbólico-cultural, que está alicerçado no passado deixado para trás no lugar de origem e no presente em curso no lugar de adoção; no viver com um “pé” aqui e outro lá; nas necessidades decorrentes da exclusão, mas também no desejo e no sonho de uma vida melhor! Deste modo, todos nós compreendemos que estes deslocamentos realizados por indivíduos, famílias, grupos sociais requerem uma abordagem intrinsecamente multidisciplinar, e é este o princípio que rege as interlocuções – necessárias e desejáveis – que apresentamos no livro. Além de textos voltados para a discussão da questão em Roraima, trazemos estudos referenciados em outros estados da região. Juntamos aqui pesquisadore(a)s nascidos na região e migrantes e, ainda, quem não mora na região, mas direciona seu olhar para pensá-la. O texto que abre esta coletânea, de Márcia Oliveira, nos oferece justamente esta discussão. Com sólida formação multidisciplinar, a pesquisadora traz um debate teórico e metodológico que reafirma que a “abordagem a partir dos estudos migratórios representa uma importante chave interpretativa da Amazônia enquanto espaço e lugar histórico e não apenas uma paisagem com predominância de fauna e flora”. Em seguida, apresentamos um núcleo de três textos que trata da questão das múltiplas visões acerca da Amazônia produzidas por aqueles que estando aqui, criam e recriam a região a partir de um olhar referenciado no lá. As quatro autoras que os assinam tem sua formação na área de Literatura. A começar por Veronica Prudente Costa, que apresenta um texto que discute a passagem de Henrique João Wilkens pela região, na segunda metade do século XVIII, que “registra em seu épico Muraida a descoberta do Outro, representado neste caso pela etnia Mura”. Luciana Nascimento nos traz uma leitura da obra Humilhação e luta: uma mulher no inferno verde (1977), escrita pela imigrante judia Sally Knopf ou Chaindel, a qual apresenta as “suas memórias e vivências na Amazônia, no interior da floresta e nos garimpos”, destacando aí o pioneirismo da autora. Já Cátia Monteiro Wankler e Cleo Amorim Nascimento abordam a poesia de Zeca Preto, músico e poeta paraense radicado em Roraima há mais de 30 anos, pela perspectiva da Geografia Cultural, usando o conceito de topofilia para discutir o “sou daqui, sou de lá”, como um elemento marcante da obra de Zeca. Falar das gentes da Amazônia é falar de trânsitos, de fronteiras e de múltiplas mobilidades. Neste sentido, Francilene Rodrigues, Márcia


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Oliveira e Mariana Pereira apresentam uma rica discussão acerca dos trânsitos e deslocamentos laborais na tríplice fronteira Brasil-Guiana-Venezuela, com base nas pesquisas do Grupo de Estudos Interdisciplinares sobre Fronteiras - GEIFRON/UFRR, na qual destacam as “fases” e a “dinâmica econômica” das migrações nesta região, apresentando “aspectos da integração sociocultural na fronteira com a Venezuela”, bem como “um perfil socioeconômico atual” desses migrantes. Em seguida, Alessandra Rufino e Renan Freitas Pinto abordam “as contribuições das redes migratórias no processo de socialização e negociação das identidades dos peruanos que migraram para Boa Vista”, enfocando as redes migratórias que se formam a partir deste deslocamento e as trajetórias individuais de alguns desses migrantes, através da análise das memórias de peruanos moradores da capital de Roraima. Na esteira da discussão sobre identidades, Raimundo Nonato Silva trata do “enquadramento da memória” acerca da “construção e alimentação de uma identidade boa-vistense/roraimense”, na segunda metade do século XX, tendo como base a análise de textos de “memorialistas da cidade de Boa Vista”, nos quais há uma prevalência dos chamados pioneiros, frente à constituição de novos grupos políticos fruto das migrações. Francisco Marcos Nogueira, Antônio Tolrino Veras e Carla Monteiro de Souza, abordam a construção do “território simbólico-cultural dos maranhenses na cidade de Boa Vista/RR”, a partir do estudo do Arraial dos Maranhenses, intitulado “O Maranhão é Aqui!”. Já Raimunda Silva, estudiosa do tema gênero e migrações, nos oferece um texto no qual discute a “experiência de mulheres nordestinas em Boa Vista/RR (...) que se deslocaram sozinhas ou protagonizaram o deslocamento, nos anos 1985 a 2000”, ressaltando a relação entre o deslocamento empreendido pelas mulheres entrevistadas e “as novas subjetividades de ser mulher” na contemporaneidade. E, para fechar, trazemos uma seção intitulada Notas de Pesquisa, com três textos de pesquisadores iniciantes, participantes do projeto História, Memórias e Migrações: dinâmica urbana de Boa Vista/RR a partir de 1943. Estes trabalhos, desenvolvidos como monografias de conclusão do Curso de História da Universidade Federal de Roraima, representam aqui a esperança e o esforço realizado por todos nós na formação de novos pesquisadores que fortaleçam os estudos migratórios da/na Amazônia. Alunos durante a feitura do trabalho, os agora historiadores, Celene Farias de Sousa, Íris Daiane Miguel da Silva e Ronison Nascimento Sousa apresentam excertos de seus TCCs e, respectivamente,


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nos trazem os seguintes temas: uma discussão sobre as motivações e a inserção de maranhenses em Boa Vista; as trajetórias migrantes e as redes sociais na migração entre o município paraibano de Olho D’Água e a cidade Boa Vista; a relação entre o garimpo e o expressivo crescimento demográfico de Roraima e de sua capital na década de 1980. Findo o trabalho de organização deste volume, portanto, espero que o resultado se mostre “orgânico”, retomando a metáfora do “corpo” presente na nossa epígrafe. Esperamos, falo por mim e pelos colegas que aqui comparecem com seus textos, que o material ora reunido gere novos problemas de pesquisa, suscite outras tantas discussões que gerem outras tantas propostas para entender e explicar a nossa Amazônia. Fica aqui o convite ao leitor! Carla Monteiro de Souza Organizadora



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Mobilidade humana na Amazônia contemporânea: pressupostos teóricos e metodológicos Márcia Maria de Oliveira1

Introdução O presente estudo representa um breve recorte de uma pesquisa maior realizada em nível de doutorado2 no Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia – PPGSCA, na Universidade Federal do Amazonas, entre os anos de 2010 e 2014. Os dados foram atualizados na pesquisa de Pós-Doutorado realizada no Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteira – PPGSOF, da Universidade Federal de Roraima de meados de 2014 a 2015. Ele aborda a temática das novas dinâmicas de mobilidade humana na Amazônia não apenas numa perspectiva histórica, que considera a “história política feita por indivíduos”, mas, como sugere Wallerstein (1999, p. 45), uma “história social”, levando em consideração uma construção subjetiva do objeto, que não pode ser descrito com neutralidade, mas, numa perspectiva relacional no conjunto dos “sistemas históricos” (WALLERSTEIN, 1995, p. 11). Como afirma o referido autor, “[...] os objetos históricos precisam ser construídos a partir de uma ‘história global’ ou ‘história social total’ racionalmente demonstradas e que permitem a explicação de uma determinada sequência de acontecimentos” (WALLERSTEIN, 1999, p. 45). Nessa perspectiva, “[...] o migrante representa um itinerário epistemológico” (SAYAD, 1998, p. 15) e as migrações inserem-se na categoria que Wallerstein define como “história social total”. Doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia pelo Programa de Pós-Graduação e Sociedade e Cultura na Amazônia – PPGSCA da Universidade Federal do Amazonas - UFAM (2010 - 2014); Pós-Doutorado realizado no Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteira – PPGSOF, da Universidade Federal de Roraima – UFRR, (2014 – 2015); Professora Adjunta da Universidade Federal de Rondônia - UNIR. Contato: marcia.oliveira@unir.br 2 Intitulada Dinâmicas migratórias na Amazônia, que teve como orientador o Professor Doutor Nelson Matos de Noronha. 1


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Na Amazônia, encontramos um terreno fértil para o entendimento da elaboração da “história social total” a partir das dinâmicas migratórias que se processam na região desde o período colonial, ora atenuadas, ora intensificadas a partir dos processos econômicos e políticos e da “recente mobilidade entre os países amazônicos” (ARAGÓN, 2009, p. 29). Dessa maneira, as migrações formam parte do sistema histórico pensado por Wallerstein (1995, p. 11), porque se assentam na racionalidade da “divisão do trabalho e na sua auto-reprodução (sic)” enquanto sujeitos em permanente processo de deslocamento, resultado das conjunturas econômicas, políticas e socioculturais que as provocam no tempo e no espaço. A migração na Amazônia, além de constituir-se como elemento importante da “história social total”, também pode ser entendida como um “fato social total” como sugere Sayad (1998), o que nos permite entender “[...] a sociedade como um todo, falar dela em sua dimensão diacrônica, ou seja, numa perspectiva histórica [...] e também em sua extensão sincrônica, ou seja, do ponto de vista das estruturas presentes da sociedade e de seu funcionamento” (SAYAD, 1998, p. 16). Para as ciências sociais, a mobilidade humana ou a dinâmica migratória representa uma chave de leitura e de entendimento das relações de dominação presentes no interior de uma sociedade (SAYAD, 1998, p. 16). Segundo Wallerstein (1999, p. 45) a migração representa uma importante característica da desregulamentação da chamada “economia-mundo capitalista” e é resultado do crescente processo de “desruralização” da sociedade moderna que, “[...] cada vez mais, caminha para novos processos de urbanização onde se fazem presentes as contradições fundamentais do sistema-mundo”. As migrações evidenciam as dificuldades que as sociedades modernas, inclusive a Amazônia, apresentam ao lidar com as questões relacionadas com as desigualdades sociais, a concentração do lucro e o monopólio das decisões políticas, a começar, pela ausência de políticas migratórias efetivas mediante as demandas crescentes de novos fluxos migratórios em toda a região (ARAGÓN, 2009, p. 13). Segundo Freitas (2011, p. 11) “[...] o deslocamento de populações é, por si só, um fato social, político e econômico”. Nesse sentido, é possível afirmar que, também na Amazônia, “[...] as migrações envolvem todas as dimensões da sociabilidade e se constituem em fato social total” (FREITAS, 2011, p. 17), evidenciando as contradições do capitalismo contemporâneo, desde as fronteiras até o epicentro do controle político e econômico polarizado na capital do estado do Amazonas. Nessa pers-


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pectiva, o perfil migratório na Amazônia contribui para o entendimento dos novos processos sociais, culturais, políticos e econômicos da região numa “era de transição, numa visão de longo prazo da trajetória do sistema mundo”, na chamada nova fase do capitalismo mundial (WALLERSTEIN, 2003, p. 71-92). A compreensão das migrações como “história social total” (WALLERSTEIN, 1999, p.45) e “fato social total” (FREITAS, 2011, p. 17)3, aplicados à Amazônia, definem alguns elementos que contribuem para traçar o perfil da migração na região e, por conseguinte, indicam algumas análises baseadas na abordagem interdisciplinar das migrações, à luz dos estudos pós-coloniais sugeridos especialmente por Wallerstein (2002), Sayad (1998), Freitas (2011) e Aragón (2009). De acordo com Cláudio Perani (2007:4), Aqui existe um povo! A Amazônia não é somente um ambiente físico, mas também um ambiente humano, com uma história social, política e econômica, com uma cultura própria, ou melhor, com várias culturas bem diversificadas entre si. Aqui existe um povo com múltiplos rostos: índio, caboclo, negro, migrante.

Essa abordagem a partir dos estudos migratórios representa uma importante chave interpretativa da Amazônia enquanto espaço e lugar histórico e não apenas uma paisagem com predominância de fauna e flora.

Características da mobilidade humana na Amazônia Nossos estudos e as pesquisas de campo apontam três grandes categorias migratórias na Amazônia, as quais definem bem a mobilidade humana nessa região: migrações internas, transfronteiriças e internacionais. Uma característica comum, observada em todos os processos migratórios, é a acelerada desruralização da região, apontada por Wallerstein (1999, p. 45) como um importante mecanismo propulsor da crise econômica mundial relacionada à elevação dos custos de reprodução da economia-mundo capitalista: “a desruralização, os limites ecológicos e a democratização”. Outrossim, a desruralização coloca a sociedade moderna diante de três grandes eixos que são “os processos de acelerada urbanização, os problemas ambientais resultantes desses processos e a questão política” (WALLERSTEIN, 1999, p. 45). Nessa mesma perspectiva Sayad (1998:16) utiliza a denominação “fato social completo” para referir-se ao fato social total da concepção Durkheiminiana aplicada às migrações. 3


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No caso da Amazônia, a categoria denominada desruralização (WALLERSTEIN, 1999, p. 46) é mais abrangente que a perspectiva do êxodo rural, amplamente debatido na Europa a partir do final do século XVIII e no Brasil a partir da década de 1950. Sobre essa temática, Martins (2000, p. 19) enfatiza que “[...] a luta pela terra atrai e polariza um conjunto bem maior de descontentamentos sociais, políticos e ideológicos [...]”, resultando em intensos conflitos agrários e em deslocamentos forçados do campo para a cidade. Entretanto, a categoria êxodo rural, aprofundada por Martins (2000), não abrange o movimento inverso, ou seja, a migração de retorno da cidade para o campo, como prescreve a categoria desruralização, pensada por Wallerstein (1999, p. 46). Não se trata apenas do deslocamento do campo para a cidade, mas, acima de tudo, da mudança de paradigmas, de um modo de vida rural para um modo de vida urbano, “analisada a partir das categorias espaço e tempo no qual a história e a ciência social se confundem e se complementam” (WALLERSTEIN, 2002, p. 455). O autor em questão compreende os processos de desruralização relacionados com o problema da propriedade da terra e da crise estrutural no aparecimento da economia-mundo capitalista, que criou novos entraves à utilização da terra para fins agrícolas (WALLERSTEIN, 2010, p. 2). Nesse sentido, a desruralização fornece elementos que contribuem para um maior entendimento acerca da mobilidade humana na sociedade moderna, que nem sempre segue o itinerário campo–cidade, podendo-se observar outras dinâmicas, como a circulação entre cidades de médio porte e as cidades transfronteiriças da Pan-Amazônia4. Para melhor compreender o atual processo de desruralização na Amazônia, é mister percorrer, mesmo que de forma muito breve e resumida, os antecedentes históricos que promoveram a reocupação5 De acordo com Letícia Tura, em entrevista após o quinto Fórum Social Pan-Amazônico realizado em Santarém (disponível em: http://fase.org.br/pt/informe-se/noticias/osentido-da-pan-amazonia/. Acessado em abril de 2015), a Pan-Amazônia envolve os países que têm a floresta amazônica em seu território: Colômbia, Peru, Venezuela, Equador, Bolívia, as Guianas e o Suriname, além do Brasil. O movimento social se apropriou desse conceito como sendo um conceito de luta desses povos, porque a Amazônia não é só uma questão física e geográfica, mas são povos que enfrentam os mesmos problemas, de viver e sobreviver numa das últimas reservas de floresta tropical úmida no mundo, e também uma das últimas reservas dessa biodiversidade. Os países da Pan-Amazônia sofrem grandes pressões de setores empresariais, uma série de interesses econômicos pelas riquezas materiais do lugar, seja minério, madeira, biodiversidade. A Pan-Amazônia é uma categoria de luta e a construção de uma identidade para a luta. 5 O termo “reocupação” refere-se ao fato da Amazônia ser ocupada milenarmente pelos povos indígenas. Em respeito a essa ocupação autóctone, utilizamos o termo reocupação sinalizando processos posteriores à presença indígena na região compreendidos a partir da colonização. 4


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estratégica da região desde o final do século XIX até o início do século XXI. De acordo com Celso Furtado (2005, p. 131), a reocupação demográfica da Amazônia encontra-se para além da intensificação do trabalho extrativista no curto período da economia gomífera6, que deslocou centenas de milhares de migrantes trabalhadores para a Amazônia, entre o final do século XIX e início do século XX, numa dinâmica migratória interregional com predominância da presença nordestina7. A partir da década de 1960, foi iniciada uma nova fase dos programas de desenvolvimento do governo brasileiro para a estratégica exploração econômica da região amazônica, num processo em que, “o foco do planejamento de desenvolvimento regional foi deslocado para a região relativamente isolada do norte do país [`...] através dos projetos Amazônia legal e a Operação Amazônia, organizada como tirocínio militar, que mobilizou fundos públicos e privados” (KOHLHEPP, 2002, p. 37). A partir da década de 1960, enquanto nas demais regiões brasileiras processavam-se intensos deslocamentos das áreas rurais para as cidades, na Amazônia iniciava-se um processo tardio de ocupação da famosa fronteira agrícola, pelo qual se atribuiu à região um novo significado geopolítico “[...] em âmbito global como a grande fronteira do capital natural” (BECKER, 2005: 72). É nessa conjuntura que a Amazônia passa a ser inserida no cenário nacional e latino-americano. Para Becker (2005, p. 72), o horizonte dos projetos de desenvolvimento foi baseado na estratégia de crescimento econômico fundada no paradigma da infinitude dos recursos naturais no qual o repovoamento orientar-se-á em duas grandes frentes: uma, agrária e, a outra, urbano-industrial. Nesse sentido, concomitante à criação da Zona Franca de Manaus, no final da década de 1960, outros programas de ocupação da fronteira amazônica foram levados a cabo como resultado de diversos projetos nacionais pensados na lógica da Lei de Segurança Nacional, O chamado “ciclo econômico da borracha” é definido por Furtado (2005, p. 131) como a base para a primeira tentativa efetiva de ocupação da região amazônica. No início do século XX, a indústria automobilística financiou a criação de cidades inteiras (as companycities), com o objetivo de incrementar a extração da borracha em toda a Amazônia. Com a decadência da economia gomífera, a ocupação demográfica da região entrou em letargia até meados da década de 1960, quando se iniciou uma nova dinâmica demográfica com os projetos de desenvolvimento agrário e com a Zona Franca de Manaus. 7 De acordo com Celso Furtado (2005, p. 131), em sua obra Formação Econômica do Brasil, entre o final do século XIX e início do século XX, a borracha estava destinada a transformar-se na matéria-prima de maior expansão no mercado mundial. Diante da escassez de mão de obra que se apresentava, em concorrência direta com a ascensão da produção de café no Sudeste, deu-se um verdadeiro êxodo de população da Região Nordeste, em fuga do decadente modelo de exportação da cana-de-açúcar, para a Região Norte. A esse movimento migratório Furtado denominou Transumância Amazônica. 6


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em pleno Regime Militar. Os dados históricos ou as pesquisas de economia e sociologia mostram que, em decorrência desse modelo de reforma agrária, ocorreu o avanço da fronteira agrícola, a emergência do grande latifúndio e a da monocultura (FURTADO, 2005). A estratégia para facilitar e induzir os colonos8 à ocupação primária da fronteira agrícola foi a criação de grandes estradas que interligaram a Amazônia às demais regiões do país, especialmente a Rodovia Transamazônica9 (BR-230), a BR-163 ligando Cuiabá/MT a Santarém/PA e a BR-364 que interliga a capital do Mato Grosso a Rio Branco, capital do Estado do Acre, recortando todo o norte do Mato Grosso, atravessando o estado de Rondônia de sul a norte. As grandes rodovias favoreceram os planos nacionais de ocupação e integração da Amazônia desencadeando importantes transformações ao longo de seus traçados transversais e diagonais em detrimento de grande destruição das florestas, principalmente nos estados do Mato Grosso e Rondônia. Ao longo dessas grandes estradas e rodovias, iniciavam-se os novos processos de ocupação da Amazônia numa sobreposição de colonos em áreas milenarmente habitadas por inúmeros povos indígenas de diferentes etnias. A partir do final de década de 1970 e no decorrer de toda a década seguinte, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) encarregou-se de deslocar para a Amazônia milhares de colonos expropriados de suas terras no sul e sudeste do país, conforme estava previsto no Programa Polo Noroeste do Governo Federal10, atendendo a três objetivos básicos na região: Diferentemente das categorias agricultor ou camponês, que se encontram ligados à terra num projeto social, político, econômico e cultural, numa profunda relação de pertencimento, o colono liga-se à terra na perspectiva econômica da exploração dos recursos, sem necessariamente comprometer-se com a relação de pertencimento à terra. Manteremos o uso da categoria colono porque essa é a utilizada pelo INCRA nos seus projetos de “colonização” e reforma agrária, o que dá a entender o grau de relação utilitária da terra. Entretanto, esse colono é o migrante deslocado pelo Estado de outras regiões para a Amazônia. 9 Classificada como rodovia transversal iniciando seu traçado no município de Cabedelo na Paraíba, recortando os estados da Paraíba, Ceará, Piauí, Maranhão, Tocantins, Pará e chegando ao seu ponto final no município de Lábrea, no sul do Amazonas. 10 De acordo com informações disponibilizadas no site do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente - IBAMA (www.ibama.gov.br/resex/oropreto/hist.htm) o Programa Integrado de Desenvolvimento do Noroeste do Brasil – Polo Noroeste, foi um projeto financiado pelo Banco Mundial em 1981, na ordem de US$ 411 milhões, que se encarregou da construção e pavimentação da BR 364, acelerando ainda mais o processo migratório, transformando radicalmente, em menos de 10 anos, quase toda a estrutura social, cultural e ambiental no norte do Estado do Mato Grosso e em todo o território do Estado de Rondônia. O documento original previa orientar a colonização em uma área de 410 mil Km², entre os Estados de Mato Grosso e Rondônia. O Polo Noroeste se propunha também a assentar comunidades de pequenos agricultores embasadas na agricultura autossustentada, com atendimento básico nas áreas de saúde, educação, 8


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Objetivo econômico, ou seja, promover a agricultura, como meta de aumentar a produção de alimentos para abastecer o mercado interno e para a exportação; objetivo demográfico, isto é‚ frear o êxodo rural e reorientar, para a Amazônia, o fluxo que se dirige para as grandes metrópoles do Sudeste; por fim, o objetivo social, que era diminuir as tensões sociais provocadas pelo latifúndio no Nordeste e pelo minifúndio no Sul do país (PASSOS, 2007, p. 105-106).

O terceiro objetivo apresentado pelo referido programa, segundo a análise de Passos (2007), aponta a transposição do histórico problema da terra no Brasil para a fronteira amazônica. Ou seja, os migrantes foram incluídos num processo de deslocamento arbitrário que previa empurrar para o norte as tensões sociais resultantes dos conflitos agrários no sul e no sudeste do país. Quase todos desprovidos de recursos e dependentes da assistência do governo federal, os migrantes sulistas adentraram a floresta a partir das clareiras abertas pelas grandes estradas e rodovias federais e instalaram-se em glebas11 e lotes12 nos quais o acesso só era possível através das picadas13 abertas precariamente no meio da floresta. Essa primeira fase de repovoamento, não raro, foi caracterizada por uma relação tensa com a floresta, com o clima tropical, com as intempéries naturais próprias da região e com os povos autóctones. A falta de conhecimento por parte dos colonos os levou a reproduzir na região as mesmas técnicas utilizadas na agricultura de suas regiões de origem, o que resultou em um verdadeiro desastre ecológico caracterizado pelo desflorestamento indiscriminado, comercialização ilegal da madeira, utilização das técnicas de queimada em preparação do solo para o plantio, entre outras. Vivenciaram as experiências do estranhamento e do enfrentamento face às condições ambientais da região, resultando em enormes escoamento da produção, protegendo a floresta e garantindo a manutenção das terras e das culturas das comunidades indígenas. Entretanto, na sua vigência, esse Programa fomentou os mais altos índices de desmatamento de toda região. De uma área de 1.217 Km², em 1975, passou para 30.046 Km² em 1987, e apesar de todos os recursos financeiros investidos, esteve longe de atingir os objetivos propostos, e pode ser considerado um desastre tanto do ponto de vista ambiental quanto social. 11 Nome dado pelos técnicos do INCRA aos espaços destinados aos assentamentos antes da divisão do terreno em lotes. 12 Vocábulo herdado do sistema Feudal, adaptado ao contexto de assentamentos agrários no Brasil. Refere-se à parcela de terreno agricultável que cabe a cada colono assentado. Nas áreas de assentamento da Amazônia, em geral, o colono recebia um documento que indicava a gleba onde estaria o seu lote identificado por uma numeração em ordem crescente partindo do centro da gleba no formato dos raios do sol. 13 Caminho aberto no meio da floresta com o auxílio de facão ou terçado, machado ou foice que servem para cortar os troncos das árvores e abrir um estreito trilho por onde passa-se somente a pé.


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prejuízos para ambas as partes. Segundo Passos (2007), é difícil calcular quantos milhares de agricultores sucumbiram às doenças tropicais14, aos acidentes com a derrubada ou queimada da floresta, aos ataques de animais selvagens ou peçonhentos, aos conflitos entre grileiros, posseiros, garimpeiros e indígenas15. Ao redor dos assentamentos promovidos pelo INCRA, com o apoio, inclusive, de empresas colonizadoras privadas ou terceirizadas16, foram surgindo as pequenas cidades, para onde os filhos da primeira e segunda geração de agricultores começaram a se deslocar, dando lugar a uma segunda ocupação agrária da região, desta vez pelos grandes empresários do agronegócio, o que parecia já estar previsto no Programa Polo Noroeste desde a década de 1980. A partir do início da década de 1990, observa-se intenso processo de deslocamento dos colonos para dar lugar às grandes empresas do agronegócio ligadas principalmente ao monocultivo da soja, milho e arroz. Nas décadas seguintes cresceu também a atividade pecuária e as roças de cultivos diversos foram substituídas por vasto pasto e gado especialmente no sul do estado do Amazonas, noroeste do Mato Grosso, praticamente toda a extensão de Rondônia, norte e noroeste do Pará e boa parte de Roraima. Os grandes empresários do agronegócio instalaram-se na Amazônia graças aos incentivos e financiamentos dos governos Especialmente a malária, que dizimou assentamentos inteiros, como o ocorrido em meados da década de 1980, nos municípios de Jacundá e Ariquemes, no estado de Rondônia. Tamanha catástrofe tornou-se tragicômica, entrando no imaginário popular com referências cômicas aos dois municípios. O primeiro, localizado nas imediações da área inundada para a construção da Hidroelétrica de Tucuruí, às margens da Rodovia Paulo Fontelles (PA-150), por causa do altíssimo índice de malária, mereceu a suma popular com uma referência ao nome do município: “... pela manhã, Jacundá; ao meio dia, já com febre; à noite, já com Deus”. Da mesma forma, o município de Ariquemes, localizado às margens da BR-364 (distante 198 km de Porto Velho, no Vale do Jamari), por causa do alto índice de mortes por malária, foi apelidado de “Alitremes”, numa referência aos tremores próprios da febre malárica. 15 Os territórios indígenas foram arbitrariamente ocupados com os projetos de colonização do Governo Militar colocando em confronto direto os agricultores e os povos que milenarmente habitavam a região. O resultado disso tudo foi a dizimação quase completa de povos e etnias inteiras. Do lado dos agricultores, também houve baixas, mas, ao que tudo indica, em menores proporções. Todo esse processo seria de inteira responsabilidade do Estado Nacional, que nunca assumiu a sua parcela de responsabilidade nesse genocídio pós-colonial. 16 Como é o caso emblemático da Empresa de Colonização Comércio e Indústria COLNIZA, criada no sul do Brasil, com o objetivo de fazer parte do projeto de colonização da Amazônia. Foi uma das empresas contratadas pelo INCRA para promover a colonização no noroeste do estado do Mato Grosso, trazendo centenas de milhares de colonos do sul para os assentamentos no noroeste do Mato Grosso. Em 1998, a forte presença da colonizadora na região fez com que a sigla fosse materializada dando nome ao município que faz limite com o sul do Amazonas e Rondônia. Em 2007, foi considerado o município mais violento do país pelo Mapa da Violência realizado pela Organização dos Estados Ibero-Americanos (OEI). Para maiores informações, consultar www.colnizanews.com.br. 14


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estaduais que promoveram os programas de desenvolvimento agrícola na região (PICHININ, 2007). Soma-se ao avanço da fronteira agrícola o advento da Zona Franca de Manaus, também responsável por intensos deslocamentos migratórios, ainda perceptíveis na atual conjuntura (SILVA; COSTA e OLIVEIRA, 2011, p. 197). Todos esses elementos contribuem para explicar, ao menos em parte, os processos recentes de desruralização que acenam para as profundas mudanças nos itinerários migratórios na Amazônia e a migração inversa intimamente relacionada aos novos processos de reestruturação produtiva (POCHMANN, 1999). Dessa perspectiva, observa-se que as metamorfoses do trabalho (ABRAMOVAY, 2003) são responsáveis por novos movimentos migratórios resultantes da reestruturação do trabalho rural, que demandou trabalhadores especializados nas áreas específicas da mineração, produção agrícola, pesquisas científicas especialmente nas áreas biológicas, construção de grandes projetos, dentre outras especialidades. A nova reestruturação do trabalho rural, ressaltada por Abramovay (2003), parece, em muitos setores, priorizar o trabalho masculino, principalmente na agricultura mecanizada, na pecuária extensiva, nas mineradoras e nas plataformas de exploração de petróleo e gás natural. Nas pesquisas de campo, observamos que o processo de desruralização, na Amazônia, caracteriza-se pelo deslocamento do núcleo familiar, onde quase sempre há predominância do sexo feminino, dando lugar a uma nova ocupação do espaço, formada na sua quase totalidade por novos trabalhadores, do sexo masculino. Observa-se uma significativa disparidade entre o deslocamento do campo para a cidade e a migração inversa da cidade para o campo. De acordo com os resultados de nossa pesquisa, para cada 10 pessoas deslocadas do campo para a cidade, há uma média 2,5 pessoas na migração inversa, o que corresponderia a 25% de retorno ao campo17. Ainda de acordo com os resultados da pesquisa, na migração inversa, temos um universo de trabalhadores especializados, alguns inclusive com alto grau de formação nas áreas de biologia18, Campo refere-se, nesse contexto, à zona rural que pode estar relacionada a diversas categorias de grupos humanos que ocupam a floresta, as áreas agricultáveis nas áreas de várzea ou “terra-firme”, os arredores das cidades ou núcleos urbanos, assentamentos regularizados, seringais e áreas de ocupação tradicional, reservas indígenas ou de proteção ambiental, as áreas mais longínquas, isoladas pelas distâncias, obstáculos naturais ou simplesmente ignoradas pelas políticas de sustentabilidade na região. 18 Atuando nos grandes centros de pesquisa, tais como o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia-INPA, o Instituto Mamirauá, o Instituto Piagaçu, o Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade-ICMBio e outros institutos vinculados ao Ministério do Meio Ambiente-MDA e ao Sistema Nacional de Meio Ambiente-Sisnama. 17


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geologia19, mineração20, ciências agrárias21, engenharias e tecnologias22, que promovem uma migração inversa diferenciada. Em muitos casos, são migrantes temporários que não têm um projeto de vida vinculado ao mundo rural da Amazônia. Realizam trabalhos pontuais que os vinculam à área rural apenas por um tempo determinado. Muitos se encontram condicionados a contratos de trabalho temporário, o que inviabiliza a permanência na região quando o contrato termina e não é renovado. Outros se deslocam para a Amazônia com a finalidade de adquirir experiência em uma área específica que favoreça a busca futura de novas oportunidades de trabalho em outras regiões do Brasil, muitas vezes no lugar de origem, ou seja, são profissionais que migram para fazer currículo23 e, terminado o período de experiência ou período probatório, deslocam-se novamente para outras regiões, não necessariamente para a zona rural24. Dessa forma, a etapa vivida no campo passa a ser encarada como uma breve aventura ou uma experiência a mais na vida, já que o migrante em questão não estabelece um projeto migratório definitivo da cidade para o campo. De acordo com os dados que levantamos em algumas frentes de trabalho, existe um significativo nível de desruralização e migração inversa, também em áreas de construção de grandes projetos de infraestrutura25, nas plataformas de petróleo e gás26, nas principais mineEngenheiros, técnicos e especialistas em geologia, geoprocessamento, radiologia ou radiação, ou seja, os profissionais da geologia trabalham em conjunto com geógrafos, sismólogos ou geofísicos, físicos especialistas em minérios e radiação, dentre outros profissionais. 20 De maneira especial os garimpeiros e outras categorias de trabalhadores e prestadores de serviços na economia garimpeira. 21 Principalmente os técnicos e especialistas que atuam nas instituições de regularização agrária, no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária-INCRA, nas instituições vinculadas ao Ministério do Desenvolvimento Agrário-MDA, na sua maioria agrônomos ou engenheiros agrícolas e florestais, agrimensores, cartógrafos, cientistas sociais, geógrafos, dentre outros. 22 Especialmente na área de petróleo e gás e na mineração. 23 Como ocorre com certa frequência nos concursos públicos para docentes do ensino superior, tanto em nível estadual como federal. Passado o período probatório no final de três anos, muitos dos docentes submetem-se a novos certames nas suas regiões de origem ou em outras regiões e abandonam a Amazônia. 24 Em outras regiões do Brasil como o sul e o sudeste, em muitas situações, é perfeitamente possível morar na cidade e deslocar-se diariamente para o trabalho no campo sem a necessidade de residir no local do trabalho. Essa modalidade de trabalho é perfeitamente possível, quando o local de trabalho estiver localizado relativamente próximo da cidade. Essa possibilidade é praticamente inviável na Amazônia por causa das distâncias. 25 Especialmente as grandes construções como a Ponte Rio Negro, o Complexo Hidroelétrico do Rio Madeira (UHE Jirau e Santo Antônio) e do Rio Xingu (UHE de Belo Monte), a construção e ou ampliação das grandes rodovias. 26 Especificamente, a Província Petrolífera de Urucu, base de operações Pedro de Moura, no município de Coari. 19


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radoras27, nas grandes fazendas de gado e soja e nos setores ligados ao Sistema Nacional de Unidades de Conservação28. Todos esses setores, ligados ao desenvolvimento agrário da Amazônia, são nichos da migração inversa e representam áreas e espaços ocupados por citadinos que enfrentam grandes dificuldades de adaptação e inserção na realidade rural. Por sua vez, nem sempre as instituições empregadoras estão preocupadas com a referida inserção. Aliás, em muitos casos, tal inserção ou adaptação à sociedade local não faz parte do projeto da empresa ou entidade contratante. Esses e outros processos de desruralização e migração inversa observados em nossa pesquisa, tanto empírica quanto teórica, nos conduzem à hipótese de que os mesmos acarretam grandes prejuízos no que tange ao sentimento de pertencimento social, que é um dos conceitos mais tradicionais da sociologia e uma das maiores preocupações de Wallerstein (1995, p. 9). Dessa perspectiva, identificamos, tanto na desruralização quanto na migração inversa na Amazônia, uma enorme dificuldade de integração social e adaptação à sociedade de destino migratório, com impactos diretos e indiretos na elaboração de novos “processos identitários” ou na “construção de novas identidades”, como sugere Silva (2012, p. 258-259). A rotatividade de trabalhadores alternando experiências vivenciais entre o campo e a cidade, impede que os mesmos elaborem processos de identidade e identificação com a sociedade. São eternos “membros visitantes” (WALLERSTEIN, 1995) que passam a vida num interminável sistema de rotatividade, num permanente deslocamento, entre sociedades prejudicando a inclusão social, a emancipação, o sentimento de pertencimento, o exercício pleno da cidadania, a construção da identidade29 e o direito à diversidade étnico-cultural. Trabalhamos aqui com dados levantados na Vila de Pitinga (localizada a 300 km de Manaus) no município de Presidente Figueiredo, na Região Metropolitana de Manaus, onde atua a Mineração Taboca na exploração dos minérios de cassiterita e columbita, dentre outros. Também coletamos dados entre os funcionários da Mineradora Alcoa que atua na exploração de bauxita no município de Juriti, no oeste do Pará. 28 Nesse caso, os dados foram coletados entre trabalhadores e pesquisadores que atuam no Instituto Mamirauá, que gerencia a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, localizada a 600 km a oeste de Manaus, na região do curso médio do rio Solimões entre os municípios de Uarini, Fonte Boa e Maraã, com acesso pelo município de Tefé. Outros dados também foram coletados junto ao Instituto Piagaçu que atua na gestão da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Piagaçu-Purus nos municípios de Anori, Beruri, Codajás, Coari e Tapauá localizados nos interflúvios Purus-Madeira e Purus-Juruá. A terceira instituição que fez parte do levantamento de dados foi o Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade-ICMBio, que é uma autarquia em regime especial vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, integrante do Sistema Nacional de Meio Ambiente-Sisnama, que atua no gerenciamento do Parque Nacional de Anavilhanas, no município de Novo Airão, na Região Metropolitana de Manaus. 29 De maneira especial, a identidade étnica. 27


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Nosso estudo indica que a desruralização e a migração inversa na Amazônia parecem contribuir para a manutenção e até mesmo para o acirramento de tensões e conflitos históricos que são resultado da relação de hostilidade e estranhamento entre os migrantes e a sociedade de acolhida (SILVA, 2012, p. 267). Observamos, porém, que as tensões e os conflitos não se restringem apenas às áreas rurais, uma vez que se reproduzem ou se trasladam também para as áreas urbanas. Nessa dinâmica, uma parcela importante dos migrantes, uma média de 25%, de acordo com os dados da pesquisa de campo, não consegue a tão almejada ascensão social nos primeiros cinco anos após o deslocamento do campo para a cidade. Em muitas situações, a condição econômica tende a piorar significativamente nos primeiros cinco anos, agravada pela dificuldade de inserção no mercado de trabalho, o que explica que uma parcela importante dos migrantes venha inserir-se no trabalho informal. De acordo com Silva (2010, p. 8), as migrações nos ajudam a “pensar” as contradições do processo de urbanização na Amazônia, no qual os migrantes são vistos “[...] não raras vezes, por grupos econômicos e formadores de opinião locais como ‘invasores’ e gente de ‘baixa cultura’, que pouco ou nada contribuem para o enriquecimento cultural da cidade [...]”, o que abre precedentes para se repensar a mobilidade humana para além das teorias econômicas. Nas cidades da Amazônia, de forma especial nos grandes centros urbanos, é fácil identificar os deslocados do campo. De modo geral, deslocam-se de forma precária, sem planejamento prévio e, por conseguinte, sem economias, o que dificulta recomeçar a vida em novos contextos onde é preciso ter dinheiro para toda e qualquer situação. A ausência do projeto migratório pode vir a retardar a adaptação ao novo contexto fazendo com que a pessoa, mesmo estando na cidade, não se sinta parte dela. Seus referenciais continuam sendo aqueles da pequena comunidade, aldeia ou agrupamento humano. Apresenta dificuldades e déficits em vários sentidos, principalmente, no que se refere ao nível escolar, a capacidade de locomoção dentro das cidades e a capacitação para o mercado de trabalho. Essas três exigências são fundamentais para viver na cidade e representam as principais dificuldades enfrentadas pelos migrantes internos na Amazônia. Para os migrantes da segunda categoria, previamente adaptados à comodidade e à maior facilidade de acesso aos bens e serviços nas grandes cidades, as dificuldades são outras, bem distintas. Muitos apresentam resistência à adaptação aos códigos culturais da zona rural e sentem falta dos apetrechos


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tecnológicos eminentemente citadinos. Outros reclamam da falta de academias de ginástica, de boates ou bares que proporcionem a regularidade da vida noturna, das compras no shopping ou de espaços vinculados ao conceito da vida urbana. Observamos que, tanto na mobilidade do campo para a cidade quanto na migração inversa, existe um grau diferenciado de dificuldades e de adaptabilidade. Entretanto, identificamos que há, entre aqueles que migram da cidade para o campo, um desejo permanente de voltar à cidade de origem. Entre os entrevistados, cerca de 93% daqueles que realizaram o caminho da cidade para o campo apresentam o desejo eminente de retornar à suas cidades. Para esses, não resta dúvida de que o projeto migratório é temporário e não há indícios de uma “opção” pela vida camponesa, o que implicaria mudanças radicais no estilo de vida citadino. Quando tais migrantes são oriundos de cidades de outras regiões do país, principalmente das grandes cidades das regiões sul e sudeste, o grau de inadaptabilidade aos esquemas da vida rural são ainda maiores. Nesse grupo, o desejo eminente de retorno chega a 98%. De fato, a grande maioria dos migrantes que reocupa e reordena o espaço outrora ocupado por agricultores, camponeses, extrativistas, seringueiros, pescadores, só para citar algumas categorias, tende a regressar a suas cidades de origem ou ir para outras cidades, em uma média de cinco a oito anos. Por se tratar de trabalhadores com contratos temporários, não cultivam por assim dizer, uma opção pelo “modo de vida do camponês amazônico” (WITKOSKI, 2007, p. 111). Uma questão que mereceu destaque durante a realização da pesquisa de campo foi a identificação de uma significativa presença da juventude na migração inversa. Uma média de 46% dos entrevistados tem entre 24 e 29 anos, o que indica que muitos trabalhadores com qualificação são ainda muito jovens, o que significa o início de carreira para um contingente importante desses migrantes. Isso pode estar relacionado também ao imaginário que se tem da Amazônia a partir da juventude sedenta por novas experiências e horizontes. Passado o tempo da curiosidade, a tendência é o regresso para as cidades de origem ou para outras cidades amazônicas, quase sempre priorizando aquelas de maior porte. Nesse contexto, as migrações representam a parte visível do iceberg ou um contraponto nas análises das mudanças sociais porque, ao mesmo tempo que são sintomas das mudanças, também são provocadoras de tais mudanças, o que exige das ciências sociais uma análise aprofundada, menos compartimentada e menos pontual. Dessa forma, as migrações representam um “fato histórico” na Amazônia, sendo possível incluí-la


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na compreensão do sistema histórico pensado por Wallerstein (2002, p. 167). Enquanto “fato histórico” constante, a mobilidade humana na Amazônia representa uma permanente mudança social num processo de urbanização bastante precária que tem se desenvolvido, sem levar em consideração os aspectos ambientais, salvo algumas raras exceções. Esse modelo de assentamento transforma a questão ambiental em grave limitação ao desenvolvimento urbano, uma vez que “o desenvolvimento do capitalismo ocidental transformou a cidade em lugar privilegiado para a localização da indústria, do comércio e dos serviços, ou seja, um lugar de produção e trocas comerciais” (SAUER, 2003, p. 224) negado aos migrantes.

Conflitos e resistências à mobilidade humana na Amazônia Ao analisar a mobilidade humana na Amazônia percebe-se um rompimento efetivo e afetivo entre a vida camponesa e a “cidade que passou a ser representada como o lugar privilegiado do desenvolvimento econômico” (SAUER, 2003). Ao mesmo tempo, a cidade representa também o lugar de diluição das contradições e diferenças entre o rural e o urbano num contexto em que a modernização capitalista parece estar completa, mesmo que de modo relativo. Essas questões contribuem para identificar qual é o perfil dos migrantes na Amazônia, tanto aqueles que deixam o campo e se encaminham para as cidades, como aqueles que percorrem o caminho inverso. Tal análise remete a um ponto de partida ainda não mencionado ao longo do estudo ora apresentado: a questão da propriedade da terra na Amazônia. Embora esse não seja, nem de longe, o tema de nossa pesquisa, suas interfaces implicam direta e indiretamente o tema da mobilidade humana na região. Alguns elementos presentes no relato do João Pedro, 46 anos, migrante do interior do município de Humaitá, desafiam as análises sociológicas da referida temática: Eu sou filho da terceira geração de seringueiros do Seringal Paraíso, no município de Humaitá, à margem direita do Rio Madeira. Meu pai ainda pegou o final do tempo do corte. Depois restou a castanha e a pesca. A gente foi vivendo disso sem muitos aperreios porque tinha pra quem vender os produtos [...] A gente pensava que o lugar onde a gente vivia era nosso porque nunca conhecemos outro dono da propriedade. Até que um dia, e não faz muito tempo, chegou um moço dizendo que era o representante


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do proprietário das terras. Disse que a tal da escritura estava na pasta. Na verdade, ninguém viu nem leu o documento. O homem disse que se a gente quisesse continuar morando na comunidade, até que poderia. Mas, só seria dono da casinha mesmo. De resto, a gente não poderia mais coletar castanha, nem pescar porque o dono não permitia. De início, a gente pensou que era brincadeira um negócio daquele. Mas, não passou muito tempo e apareceram os capangas do tal do fazendeiro. Cada vez que pegava alguém no castanhal, tomavam tudo e ameaçavam todo mundo, era mulher, criança, idoso. A mesma coisa começou a acontecer com a pesca. Começou a chegar barco grande pra pesca de arrastão. Aí não teve mais jeito. Como é que ia viver sem poder plantar, nem caçar, sem a castanha e sem o peixe? Casa eu tinha, mas, e o resto? A situação foi ficando muito feia até que um dia vimos que não tinha mais jeito [...] E hoje a gente vive aqui sem casa, sem-terra, sem nada. Só o que tenho é a minha saúde para trabalhar e sustentar minha família. Por isso a gente vive nesse aperreio (Narrativa n°. 432 - Pesquisa de Campo 2014).

A narrativa indica algumas das modalidades de expropriação e expulsão dos seringueiros. As análises econômicas apontam que os tempos mudaram e que a extração da seringa não faz mais parte da economia de subsistência dos ainda chamados seringueiros. Entretanto, outras modalidades de extrativismo vegetal ou animal, representam estratégias de permanência e sobrevivência nos antigos seringais (WITKOSKI, 2007, p. 111). Boa parte de tais territórios vem se transformando em Reservas Extrativistas. Porém, essa estratégia não significa que os seringueiros estão imunes aos conflitos e tensões na relação com grileiros e fazendeiros o que inevitavelmente vem resultando em intensos deslocamentos para as cidades. Embora para alguns estudiosos os conflitos pareçam fato novo ou recente na Amazônia, a verdade é que as resistências são fatos muito antigos na região e datam dos primórdios da colonização na tensa relação entre os povos autóctones e os agentes colonizadores exploradores das riquezas locais. Mais tarde, ainda no primeiro ciclo da economia da borracha, as tensões continuaram e na atualidade atingem níveis sem precedentes, como o que vem ocorrendo no sul do Amazonas e no noroeste do estado do Pará. Segundo Canuto et. all (2013, p. 7-8), Como em anos anteriores, os conflitos ganham em intensidade nas áreas para onde o capital avança, sobretudo a Amazônia. Diferentemente do restante do Brasil, onde o número de expulsões e despejos diminuiu em relação a 2012, na Amazônia ocorreu o inverso: o número de famílias expulsas cresceu em 11%, e o


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de famílias despejadas em 76% (passaram de 1.795 para 3.167). Também teve crescimento acentuado de 126%, o número de famílias com casas destruídas, e as com bens destruídos 19%. O Acre destacou-se pelo aumento de 1.038% em relação ao número de casas destruídas. Passou de 26 para 296. Também no Acre, a atuação de pistoleiros ou de milícias armadas mais que quadruplicou: de 90 famílias afetadas por ações de pistoleiros em 2012, este número saltou para 380. Na Amazônia, se concentram 20 dos 34 assassinatos, 174 das 241 pessoas ameaçadas de morte, 63 dos 143 presos, e 129 dos 243 agredidos. Das Populações Tradicionais que, em 2013, foram vítimas de algum tipo de violência, 55% se localizavam na Amazônia.

De modo geral, os conflitos encontram-se relacionados com questões muito complexas e de difícil resolução como a questão da posse da terra, do direito de propriedade e da proteção dos recursos. Na raiz dos conflitos, encontramos a disputa de grupos que representam interesses antagônicos. De um lado, encontram-se os grupos que insistem na permanência de um “modo de vida do camponês amazônico” (WITKOSKI, 2007, p. 111), baseado na relação de interação e interdependência com a natureza e seus recursos, assumindo uma atitude de permanente defesa e proteção dos meios de sobrevivência. Do outro lado, estão os grupos formados pelos interesses econômicos ou os grandes investidores, que estabelecem uma relação de apropriação dos recursos naturais baseada nos valores da economia. De Acordo com Wallerstein (2010, p. 4), é consenso entre os estudiosos que os conflitos geram deslocamentos e adensam os processos de desruralização na Amazônia. Entretanto, parece não existir ainda um entendimento acerca da categoria conflito que possa oferecer bases teóricas para o aprofundamento da questão, principalmente nos estudos migratórios. De acordo com Wallerstein (2010), a raiz dos conflitos pode estar relacionada ao problema do direito de propriedade. Por se tratar de uma questão eminentemente política, de acordo com o referido autor, o conflito é gerado também no âmbito das relações políticas que determinam, em suma, a quem pertence ou não pertence a terra. Na Amazônia, essa tensão parece ainda mais complexa porque não há um entendimento sobre a formalidade da propriedade da terra ou a sua essencialidade. Para os povos autóctones, a terra é um direito intocável e não haveria necessidade de se oficializar o direito de uso e propriedade da terra. Por isso, historicamente, não deram o devido valor aos documentos ou papéis e escrituras que comprovassem e lhes assegurassem o direito de propriedade.


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Desde a colonização, os grupos mais afetados nos conflitos socioambientais em toda a Amazônia são os povos indígenas, que na atualidade representam os principais fluxos de deslocamentos forçados, especialmente no noroeste do estado do Pará, norte do Mato Grosso e de Rondônia, nas extremidades norte e sul do Amazonas e Roraima. Bem por isso, percebe-se que o conflito socioambiental seria uma forma de resistência aos deslocamentos compulsórios e uma tentativa de acionar o direito, para além do poder do Estado e do judiciário, como uma possibilidade de ser percebido como um instrumento de justiça e democracia nas mãos dos cidadãos e da sociedade. Ao acionar o direito como instrumento de luta em defesa dos interesses coletivos, os povos indígenas representam os anseios de toda a sociedade que aposta no direito como a expressão da autocompreensão e da autodeterminação dos cidadãos e em favor da cidadania. Para Oliveira Neves (2013, p. 250), em concordância com Wallerstein (2002:167), a origem dos conflitos indígenas na Amazônia estaria também relacionada com a origem da propriedade privada e dos modelos produtivos na região. No entanto, o modelo produtivo com base na propriedade privada, extremamente divergente do modelo produtivo dos indígenas, baseado no uso coletivo da terra, provocou e continua provocando uma relação de estranhamento e enfrentamento no interior da toda Amazônia30. Trata-se de paradigmas divergentes que resultam em confrontos diretos ou indiretos. Oliveira Neves (2013, p. 252) sustenta ainda que os conflitos estariam relacionados também com as formas de ocupação territorial na atualidade, vinculadas aos grandes projetos econômicos desenvolvimentistas. Na perspectiva da ocupação territorial, há que se considerar ainda que o atual conflito socioambiental seja o resultado tardio das consequências do Programa de Integração Nacional criado pelo Decreto-Lei n°1106, de 16 de julho de 1970, em pleno período militar, e assinado pelo Presidente Médici. Tal programa, altamente neocolonialista, em sua época, disseminou lemas que ainda hoje povoam, de forma irresponsável, o imaginário popular, especialmente da classe ruralista, que continua afirmando, sem nenhum critério, base teórica ou conceitual, que “há muita terra para pouco índio”. O entendimento da terra como propriedade privada e não como bem destinado a favorecer a convivência apresenta-se como um grande entrave na relação entre os índios e os camponeses amazônidas, com Esse conflito e essa tensão podem ser verificados também nos países vizinhos da PanAmazônia, especialmente na Bolívia, no Peru, no Equador e na Colômbia. 30


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os políticos, fazendeiros e grandes empresários do agronegócio. Para os primeiros, a terra é uma “nhandereko-há” que, na língua Nheengatu, ou língua geral amazônica, significa “nossa casa”. A terra significa o lócus da organização social e política, lugar da produção e transmissão do etnoconhecimento que não pode ser reduzido a um lugar comum, mas encontra-se em todos os lugares da floresta (OLIVEIRA, 2012, p. 121). Para esses, a terra não é propriedade, é lugar e espaço vivencial; não é terreno nem gleba, é lócus e território imaginado, sentido e vivenciado. Representa o lugar do agroextrativismo, da pesca, da festa, dos jogos, das danças. Já para os fazendeiros e grandes empresários do agronegócio, a terra só tem sentido para a produção da riqueza, a qual requer intervenções importantes no espaço da floresta para torná-la agricultável, transformando a terra em extensos loteamentos ou grandes fazendas com proprietários específicos, fixados com base em posse ou direito de propriedade provada. Essa mudança radical de paradigmas de entendimento do significado da terra no sistema capitalista pode ser considerada uma das dimensões mais importantes do conflito socioambiental na Amazônia e uma das principais causas da mobilidade humana nessa região.

À guisa de conclusão Nessas breves reflexões, apresentamos alguns elementos que contribuem para o entendimento da mobilidade humana na Amazônia, fortemente caracterizada pelos deslocamentos internos e transfronteiriços. Entretanto, existem outras modalidades de mobilidade humana na região, não menos importantes, que não foram aqui tratadas e que representam grandes desafios às teorias migratórias na Amazônia. Esse breve recorte possibilitou-nos compreender os processos de mudanças sociais, políticas, econômicas e culturais da região observada a partir da mobilidade humana intensificada na última década. Identificamos os paradoxos da desruralização na Amazônia e seus impactos nas dinâmicas migratórias contemporâneas, de modo especial na migração interna. Os deslocamentos compulsórios resultantes dos conflitos agrários e socioambientais caracterizam a mobilidade humana não somente na Amazônia brasileira, mas em toda Pan-Amazônia. Observou-se que, na atualidade, de maneira especial os povos indígenas, seringueiros e os camponeses deslocados para as cidades da Amazônia encontram-se excluídos dos bens e serviços, dos direitos de acesso e privados do


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exercício pleno da cidadania. Isso faz com que a tensão que os acompanha desde o deslocamento se mantenha e retarde os processos de adaptação fazendo com que muitos se sintam migrantes mesmo depois de passados cinco, dez, vinte anos desde o primeiro deslocamento em processos contínuos de reterritorialização precária. Todas essas reflexões confirmam a importante contribuição dos estudos migratórios como mais uma forma de representação da Amazônia propiciando novas interpretações das conjunturas políticas, sociais, econômicas e culturais tendo como base o entendimento da mobilidade humana na região, conferindo à Amazônia novas singularidades e novos significados interpretados pelos povos em constante mobilidade no interior dessa região densa e complexa. Referências ABRAMOVAY, Ricardo. O futuro das regiões rurais. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2003. ARAGÓN, Luis E. Migração internacional na Pan-Amazônia. Belém: NAEA/ UFPA, 2009. BECKER, B. K. Geopolítica da Amazônia. São Paulo: Revista Estudos Avançados, Dossiê Amazônia Brasileira I., v. 19, n. 53, p. 71-86, 2005. CANUTO, Antônio et. all. (orgs.) Conflitos no Campo – Brasil 2013. Goiânia: CPT Nacional – Brasil, 2013. FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. 32 Edição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2005. FREITAS, Marilene C. da Silva. Prefácio. In. HOMMA, Alfredo K. O. ett all. Imigração japonesa na Amazônia: contribuição na agricultura e vínculo com o Desenvolvimento Regional. Manaus: EDUA, 2011. KOHLHEPP, Gerd. Conflitos de interesse no ordenamento territorial da Amazônia brasileira. São Paulo. Estudos Avançados, vol.16, n. 45, São Paulo, May/Aug. 2002. MARTINS, José de Souza. A sujeição da renda da terra ao capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. MARTINS, José de Souza. Reforma agrária: o impossível diálogo sobre a história possível (ou a arte de não fazer política, fazendo). São Paulo: Edusp, 2000. OLIVEIRA, Márcia Maria. A capacidade de organização, comando e liderança das mulheres da floresta a partir do locus da casa de farinha. In. TORRES, Iraildes Caldas (Org.). O ethos das mulheres da floresta. Manaus: Editora Valer/FAPEAM, 2012. OLIVEIRA, Márcia Maria. Dinâmicas migratórias na Amazônia contemporânea. Manaus: Tese (doutorado em Sociedade e Cultura na Amazônia). Manaus. Universidade Federal do Amazonas, 2014. OLIVEIRA NEVES, Lino João de. Volta ao começo: demarcação emancipatória de terras indígenas no Brasil. (Tese de Doutoramento). Coimbra. Universidade de Coimbra, 2013


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Sobre viagens e viajantes: o caso de Wilkens e a representação da etnia Mura1 Veronica Prudente Costa2

“O múltiplo nos inebria O espanto nos guia” Sophia de Mello Breyner

A

Literatura de Viagens é um gênero fronteiriço que abrange tipologias textuais diversificadas. O principal fator na problematização deste gênero é a questão das margens entre ficção e realidade. Caracterizar teoricamente o gênero viático é tarefa complexa devido às inúmeras possibilidades em definir o fenômeno literário que, se utilizando da linguagem, enceta a questão da mimese e a capacidade da linguagem de representar a realidade. A Literatura de Viagens apresenta caráter ambivalente, pois, ao mesmo tempo que anuncia um discurso por onde se entrevê a realidade, também anuncia o aspecto literário através do trabalho com a linguagem. A própria palavra “viagem”, vinda do Latim vaticum, sugere caminho, jornada e aquilo que o viajante carrega consigo, a experiência. Nesse sentido, a Literatura de Viagens, em seu caráter amplo e híbrido, expressa um relato de quem viveu uma experiência outra, diversa da sua experiência original. São diversas as nomenclaturas que os críticos literários utilizam para definir os textos produzidos a partir da presença do viajante num espaço desconhecido e repleto de novidades sobre o espaço observado e sobre o Outro. Estes textos podem ser denominados como “textos de viajantes”, “literatura de testemunho”, “crônicas de viagem”, “literatura informativa” ou “escritos de viajantes”. Em seu amplo sentido, a viagem confronta o exotismo e a introspecção daquele Este artigo é um excerto da tese de doutoramento Muraida: a tradição literária de viagens em questão, UFRJ, 2014. 2 Professora Adjunta da Universidade do Estado do Amazonas. Mestrado e Doutorado em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa e Africanas) pela UFRJ. Subcoordenadora do PPGICH (Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas). Coordenadora do Projeto “Presença Portuguesa na Amazônia” financiado pelo CNPq. E-mail: vprudente@uea.edu.br 1


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que narra, o projeto do viajante e as surpresas do caminho em um constante exercício de aprender com a diferença num ato de solidão e despaisamento. A viagem é a realização de suposições e hipóteses, de sucessos e reveses do caminho. Segundo Auricléa Neves (2011): As viagens têm um profundo significado na história da humanidade, pois se realizaram até para a preservação da raça humana. Inicialmente, no período da coleta, as migrações foram feitas pela necessidade de buscar alimentos; posteriormente, elas foram realizadas à procura de locais apropriados ao bem-estar da comunidade. Outros objetivos também suscitaram o deslocamento do homem: a conquista de espaços territoriais, a exploração de riquezas, o conhecimento de novas terras, o estudo de áreas territoriais específicas, ou simplesmente a viagem como forma de lazer. (p.15)

O viajante é aquele que observa o Outro e seu modo de viver dentro de uma cultura estrangeira que anuncia hábitos, atitudes e visões de mundo diferentes, pertencentes a uma outra civilização. Neste processo de conhecimento, o viajante adquire conhecimento em relação ao contato com uma cultura diversa da sua e atua sobre o inconsciente desafiador e inconstante da raça humana. Segundo Maria de Fátima Outeirinho (2000), a Literatura de Viagens é uma fonte importante para o estudo das imagens do estrangeiro “por se constituir como uma escrita da alteridade e, por consequência, se apresentar como domínio fecundo em representações do Outro.” (p.102). Segundo Éttore Finnazi Agrò (1995), os viajantes que vieram para o Brasil não eram descobridores e sim inventores. O viajante reinventa o Outro na medida em que, ao chegar no espaço alheio, encontra aquilo que “já se sabe”, inventa de acordo com seus pressupostos anteriores alguém que já estava no lugar “descoberto”, alguém que já “se sabia” enquanto ser humano: Seria bom considerar os grandes navegantes dos finais do séc. XV e/ou dos inícios do séc. XVI, não tanto como descobridores, quanto como inventores: porque eles, na verdade, não descobrem nada, mas acham ou encontram (inveniunt/inventant) aquilo que “está lá desde sempre”, aquilo todavia, de que se perdeu o rumo certo, a via para chegar. Daí o aspecto “poético” do achamento [...] Não por acaso, nos primeiros documentos, os verbos utilizados pelos espanhóis e pelos portugueses, em relação às terras há pouco descobertas, são buscar e hallar ou achar. (p.54)

O crítico italiano, nos apresenta em “A ilha maravilhosa”, uma reflexão a respeito do contato entre portugueses e indígenas na ocasião


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da chegada dos portugueses ao Brasil. Segundo o autor, o confronto entre culturas é um espaço híbrido em si, “um lugar que não pode ser identificado, de modo pleno, nem na categoria do Desconhecido nem naquela do Conhecido, [...] sendo, enfim, o espaço circunscrito de um compromisso em que todas as categorias se confundem e/ou se anulam dentro de um lugar definido”. (1995, p.57) Os primeiros textos sobre o “Novo Mundo” estão inseridos dentro desse corpus das viagens: as cartas de Cristóvão Colombo sobre a descoberta da América em 1494, as Cartas de Américo Vespúcio, difundidas pela Europa a partir da sua publicação em 1512, a Carta de Pero Vaz de Caminha sobre o “achamento” do Brasil em 1500, Cristóbal de Acunã sobre a Amazônia em 1641, entre tantos outros. A partir dos “descobrimentos” ou “achamentos”, os textos de viagens europeus tomam fôlego entre os séculos XV e XVI em razão das viagens marítimas ao Novo Mundo e da necessidade pragmática de registrar rotas, condições atmosféricas, acidentes da costa e todos os elementos que pudessem facilitar a repetição e prosseguimento dos percursos. Dessa forma, os roteiros e os diários de bordo, cartas e relatos de naufrágio, que se constituem como documentos fundamentais para orientação náutica, são os antecedentes desta literatura, que alarga o seu espectro e assume a forma de outros textos de natureza plural que inspiram a escrita do viajante sobre novos temas e novas experiências; supera a função meramente descritiva para apontamentos sobre o pitoresco que surgem da relação entre o sujeito perceptivo e o mundo novo a ser desvendado. Segundo Maria Alzira Seixo (1998), a Literatura de Viagens apresenta um vasto domínio literário, no qual “a investigação confronta-se muitas vezes com gêneros de discurso específicos que em função desta matéria se constituíram, e que foram ou não consagrados, ao longo da evolução histórica, pelos dispositivos diversificados do cânone literário.” (p.55). O hibridismo da forma e a dificuldade em estabelecer limites entre realidade e ficção são fatores que contribuem para que esta Literatura seja por vezes denominada como um: … subgênero literário compósito, o da Literatura de Viagens, articulando entre a Literatura, História e a Antropologia. Circunstância esta que reclama para os textos da Literatura de Viagem um estatuto de verossimilhança muito próximo do da verdade histórica e antropológica, e o alargamento e personalização do relacionamento narrador/narratário ao de autor/leitor”. (SEIXO, 1998, p. 18)

Além de ser uma categoria que transita entre a História e a Antro-


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pologia, aliada à problemática de classificação que o termo “Literatura” carrega em si, a variedade de formas e tipologias textuais sobre viagens impossibilitam uma definição dessa categoria de forma única em relação ao gênero; só é possível estabelecer como traço comum a unidade de tema. Para dialogar com a afirmação exposta, trazemos as reflexões de Maria Alzira Seixo a respeito da Literatura Portuguesa, que ao proceder sobre novas formas de discurso, a partir dos descobrimentos marítimos: … cabe justamente numa situação específica desta natureza que envolve propostas genológicas diferenciadas, ora praticando processos de escrita técnica da arte da navegação (diário de bordo), ora desenvolvendo um gênero pragmático (os roteiros) que aumentam no entanto a componente descritiva numa relação directa com o mundo empírico, ora ainda constituindo pequenos corpus de narrativas peculiares de organização idêntica (os relatos de naufrágio) ou textos singulares de carácter híbrido que só muito recentemente se encontram sancionados pela convenção literária vigente (a Peregrinação). Tais fenômenos da produção literária, de intenção pragmática ou marginal, não se integram na literatura erudita do tempo, dominada pela problemática humanística classicizante, mas vêm ao encontro de aspectos dessa mesma problemática, na medida em que se inspiram em modelos de contar medievais mas fortemente tonalizados pela circunstância científica e técnica coeva, numa espécie de prolongamento do tempo na resistência à sua rotura surpreendente e quase absoluta, como modulações do polissistema cultural que o período implica. Esta irregularidade de produção, emergente, de outras formas, nas literaturas ocidentais, orienta-se na sua relação com os séculos clássicos [...] (SEIXO, 1998, p.55-56, grifos nossos)

No estudo de Auricléa Neves (2011) sobre as viagens, a autora relembra a organização que Antônio José saraiva & Óscar Lopes fazem em Caráter geral da literatura de viagens. Os autores dividem esses textos em três grupos. O primeiro é constituído pela produção de literatura náutica, os chamados “livros de marinharia” e destacam relatos das primeiras viagens portuguesas, destacando as obras Diário da Viagem de Vasco da Gama, de Álvaro Velho, e a Carta de Pero Vaz de Caminha. O segundo grupo é constituído por um conjunto de obras, denominado “narrativas de viagens”, que tem como exemplo o Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco. O terceiro grupo é composto pelas narrativas de naufrágio, como a História Trágico-Marítima. Os autores do tradicional História da Literatura Portuguesa, destacam a importância de Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, pela qualidade da narrativa e o entrelaçamento entre ficção e realidade:


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Vem já da Idade Média o gosto por este gênero de livros, como se vê pelo sucesso de Marco Pólo, cuja tradução portuguesa foi impressa em Lisboa, 1502. Os precursores desta literatura devem ter servido de fonte a Gomes Eanes de Zurara, primeiro cronista conhecido das viagens oceânicas. Durante todo o século XVI e ainda no XVII multiplicam-se as crônicas, descrições e relatos. Uma parte dessa produção não tem valor propriamente literário. É o caso, não só da literatura propriamente náutica, como os livros de marinharia, escritos para pilotos, mas também o de muitos relatos das primeiras viagens. Merecem, no entanto, especial menção o Roteiro da Viagem de Vasco da Gama, por Álvaro Velho, que nela participou, e sobretudo a carta de Pero Vaz de Caminha que dá notícia ao rei Dom Manuel do achamento do Brasil [...] No entanto, à excepção, como veremos, da Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, a literatura de viagens portuguesa quinhentista e seiscentista não passou de um nível de reportagem. (Saraiva & Lopes, p.20, grifos nossos)

Conforme percebemos, ao encetar tal classificação, Saraiva & Lopes não estendem a classificação sobre as viagens para os textos setecentistas, deixando de fora a produção sobre a Amazônia, realizada a partir dos viajantes que foram para esse espaço em missões ordenadas pela Coroa Portuguesa, como por exemplo, Alexandre Rodrigues Ferreira e Henrique João Wilkens. Ao analisar estudos como o de Saraiva & Lopes, percebemos que os textos sobre a Amazônia são excluídos da concepção canônica sobre as Viagens e nem sequer são mencionados pelos autores, fato que exclui a produção e o conhecimento gerado por tantos viajantes que se dispuseram a representar os interesses da Coroa Portuguesa nas terras amazônicas. Um fator importante a ser abordado na discussão que ora levantamos é o fato de que a Literatura de Viagens não se reduz apenas a informar. Muito ao contrário, a experiência e a motivação daquele que escreve são fatores preponderantes para a classificação do texto. O viajante, independente do formato do texto que escreve, quer revelar a sua relação com o novo espaço, a nova cultura. A viagem permite o despertar da curiosidade, a avaliação de um novo mundo a partir de pressupostos anteriores, a reflexão sobre novas formas de ver e a submissão da realidade observada de acordo com o seu próprio ponto de vista. Poderíamos afirmar que a imagem do viajante, que parte de sua terra e a leva resguardada na memória, funde-se com o aparecimento da literatura ocidental? Parece-nos que desde as páginas


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da Odisséia, escrita em tempos longínquos por um Homero que “mesmo sem existir nos criou”, passando pelos bem mais sucedidos poemas épico-nacionais da literatura portuguesa até a produção literária do século XX, a viagem é tema recorrente, continuamente evocado e cultuado por aqueles que, além de escritores, são viajantes do olhar. [...] a viagem inseriu-se na história da civilização ocidental como possibilidade de metamorfose do mundo e da experiência humana; sobretudo desde que a ventura lusitana das navegações dos séculos XV e XVI alargou o espaço conhecido, tornou certo o que era incerto. (RIOS, 2009, p.84)

Desde a Odisseia de Homero, passando por autores da literatura universal como Marco Pólo e As viagens, A volta ao mundo em 80 dias, Oitocentas léguas pelo rio Amazonas e Viagem ao centro da Terra de Julio Verne, O mundo perdido de Conan Doyle, As Viagens na Minha Terra de Garrett, Viagem ao redor do meu quarto de Xavier de Maistre, Os Lusíadas de Camões, Crônica da Guiné de Gomes Eanes de Zurara, A Selva de Ferreira de Castro, entre tantos outros, a temática das viagens encanta e registra experiências únicas sobre o diferente, o olhar do viajante estrangeiro sobre o espaço desconhecido. São textos que agregam eventos reais com elementos da fantasia e do maravilhoso, textos que sobrevivem ao tempo a despertar o interesse de leitores e pesquisadores sobre a temática das viagens e sobre os viajantes que migram de seu local de origem para um novo mundo de descobertas. Desta forma, lançamos mais adiante um olhar mais atento para os viajantes na Amazônia e a descrição dos indígenas da etnia Mura, em especial Henrique João Wilkens3. As viagens dos descobrimentos e as expedições de reconhecimento de um novo território foram profícuas no que diz respeito ao encontro de diferentes povos. Na medida em que os relatos deixados pelos viajantes permitiram mapear a descoberta do Outro, também permitiram a percepção do espanto, da admiração, da perplexidade e da desorientação do europeu ao se deparar com outros homens, na maioria das vezes nus, que desafiavam a capacidade do colonizador em lidar com a alteridade. A alteridade funciona como a demonstração do mito, que faz elos partidos e perdidos reencontrarem-se numa totalidade, apaWilkens foi um militar português que a serviço da Coroa migra para o espaço amazônico e registra em seu épico Muraida a descoberta do Outro, representado neste caso pela etnia Mura. Ele veio para a região amazônica em missão ordenada pelo Marquês de Pombal para demarcação dos limites da Coroa Portuguesa a partir da assinatura do Tratado de Madri, em 13 de janeiro de 1750. 3


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ziguando desejos ancestrais. Códigos, valores e parâmetros perdem sentido e função nesse momento. Os homens, enfim, são um único e mesmo homem. O real perde sua configuração e assume uma dimensão cintilatória. E o novo faz-se presente de maneira estonteante. Por isso a visão é, por excelência, o sentido da alteridade. No momento em que faltam palavras, uma vez que esse novo absoluto não pode ainda ser nomeado, o olho é a língua. Isto porque ele faz ver o mito da fusão do eu com o outro, desejo que só pode ser resolvido com o olhar. O júbilo dessa visão basta-se a si mesmo, não necessitando nenhuma contribuição dos outros sentidos, os quais, aliás, não poderiam fazê-lo, uma vez que se encontram desordenados, como numa catástrofe. Naturalmente, a duração do fenômeno de alteridade é mínima, e não poderia ser diferente, já que se trata efetivamente de um gozo. Vivido esse estágio, retomam-se os parâmetros, valores e códigos e a cintilação cede lugar à comparação, em que se medem a superioridade ou inferioridade do descoberto. (LIMA, 1998, p.62)

De acordo com a problemática de aceitar a alteridade, discutimos a chegada dos viajantes à Amazônia, a perplexidade em encontrar o exótico e o desejo de encontrar o paraíso terrestre na terra. De militares a missionários, aventureiros a clérigos, geógrafos a cientistas, são vários os viajantes que se dispuseram a desbravar este espaço repleto de novos significados. As viagens para o vale amazônico apresentavam perigos e incertezas, tais circunstâncias exigiam do desbravador adaptação a um novo clima e a uma nova alimentação. De todas as classes, os portugueses desbravadores demonstraram que, apesar da contradição entre desejar o novo e implantar modelos do Velho Mundo na mata fechada, foram capazes de se adaptar a novas formas de vida, como dormir na rede, se alimentar de farinha e buscar alternativas de transporte, entre outras habilidades desenvolvidas na nova terra. Especificamente na Amazônia, adaptar-se naquele momento a viver nas entranhas da selva, ainda que procurando refúgio nos beiradões dos rios, não era tarefa fácil nem para o mais bravo viajante, pois a floresta nunca aceita ser domada. Os relatos de viagens são reconhecidos e entendidos como fonte de conhecimento sobre os encontros com seres humanos diferentes e com fenômenos naturais desconhecidos. O detalhamento e a intensidade desses relatos, muitas vezes narrados de maneira hiperbólica, suscitaram uma profunda influência na atitude das gerações futuras em relação aos indígenas, pois até a atualidade algumas etnias carregam estigmas oriundos do período colonial. Os relatos de viagens trouxeram


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diferentes imagens e histórias dessa “descoberta”, enfatizando o caráter dos indígenas, a organização política e comunitária. Ao mesmo tempo foram significantes nesses estudos os conhecimentos sobre a fauna, a flora, a hidrografia, topografia e potencial agricultor na nova terra. Porém, grande parte do imaginário sobre a Amazônia não foi construído a partir da chegada dos desbravadores, mas em período anterior. Ao chegar a esse espaço, os viajantes já trouxeram consigo todo um imaginário construído a partir da Índia e da história greco-romana. Até mesmo a mitologia indiana foi significativa através das lendas e maravilhas que apavoravam os homens medievais. Desde a primeira viagem ao Novo Mundo, tal imaginário anterior influenciou a visão do europeu. Jorge Fernandes da Silveira (2008) ao citar Saraiva (1972), nos diz: “A imaginação dos poetas não sabia o que fazer dessa América saída abruptamente de um mar desconhecido, chocando todas ideias estabelecidas sobre o feitio do mundo”, mas o autor adverte que: “o imaginário americano pode estar antes e aquém do conhecimento da América. (p.38) O encantamento pelo índio e o repúdio aos seus hábitos “não-civilizados” estão registrados nos textos dos viajantes que apresentam sua nudez sem pudor, o destemor e sua forma de viver “primitiva”, o canibalismo e a crueldade contra os viajantes que ousavam invadir o seu espaço. Ao mesmo tempo, propagou-se o interesse em catalogar, detalhar, descrever povos e novos climas e vegetações; a incrível possibilidade de encontrar um mundo maravilhoso, que deu margem à ficção e à descoberta do fantástico. Para além do que foi explorado nas primeiras escritas sobre a América do Norte, a escrita sobre a região amazônica suscitou o imaginário do viajante europeu sobre os mistérios da floresta e dos povos que ali habitavam. As primeiras incursões pelo Vale Amazônico ocorreram a partir de 1540 e os primeiros cronistas que desbravaram essa região foram o frade dominicano Gaspar de Carvajal4, o padre Cristóbal de Acunã e o padre João Daniel5. Carvajal e Orelhana são considerados os primeiros a desbravar o Frei Gaspar de Carvajal nasceu na Espanha e veio para América, fundou o primeiro convento da Ordem Dominicana no Peru. Acompanhou a viagem de Francisco de Orelhana em 1541/1542 na condição de capelão e escrivão. Orelhana foi governador da cidade de Santiago de Guayaquil e aventurou-se na expedição que batizou o rio Amazonas. Carvajal relata o que foi observado durante o trajeto que partiu da nascente do rio Amazonas no Peru até a sua foz no arquipélago de Marajó. A publicação desses relatos ocorreu apenas em 1894 e recebeu o título de Descobrimento do Rio Grande das Amazonas. 5 O Padre João Daniel produziu a obra Tesouro Descoberto no Rio da Amazonas, nos cárceres de Portugal, para onde foi conduzido após a expulsão dos jesuítas da Amazônia. 4


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vale amazônico. O relato dessa viagem coloca Frei Gaspar de Carvajal numa condição comparável à de Pero Vaz de Caminha da Amazônia. Resguardadas as devidas diferenças entre os dois cronistas na forma de narrar e nas especificidades de cada lugar descoberto, Krüger (2003) afirma que a “A mais relevante dentre todas talvez seja a que diga respeito às riquezas do Novo Mundo” (p.212), pois, enquanto Pero Vaz apenas supõe que deveriam existir riquezas na terra recém-descoberta, Carvajal descreve as riquezas observadas, as sociedades que habitavam suas margens, a diversidade étnica e as maravilhas observadas ao longo da viagem. Assim como as Viagens de Marco Pólo e a Peregrinação de Mendes Pinto, o texto de Carvajal é também um livro de maravilhas, ao anunciar novidades factuais e levantar elementos fantásticos. A maravilha se estabelece na medida em que há “um “eu” que se deslumbra com o que vê, extasiado ante um real que excede todos os limites” (LIMA, 1998, p.20). Citamos, como exemplo, a lenda do Eldorado e a lenda das Amazonas, mulheres guerreiras da tribo das Icamiabas que, segundo o relato dos viajantes, vieram lutar contra a expedição espanhola. No entanto, o mito das Amazonas que versa sobre belas mulheres guerreiras, existe desde a antiguidade e povoa o imaginário dos desbravadores, pois se refere às integrantes de uma antiga nação de guerreiras da mitologia grega. Entre as rainhas das guerreiras amazonas está Pantasilea ou Pentesileia, filha de Otrera, que teria participado da Guerra de Troia. Esta referência se faz presente em Muraida, a deusa é mencionada no início da estrofe a seguir, quando o autor menciona o rio das Amazonas: Rio, que de Pantasilea a Prole Habitando algum tempo, fez famoso, Enquanto não efeminada, a mole Ociosidade deu o valoroso Peito, buscando agora quem console A mágoa, no retiro vergonhoso, Que fez aos densos bosques, em que habita, Inconstante, e feroz, qual outro Cita. (Mur, I, 6)

Ao citar o mito das amazonas que antecede a chegada à Amazônia e a referir-se ao local onde habita o “feroz Mura”, Wilkens, assim como os outros viajantes que passaram por essa floresta, não fugiu ao discurso teológico ao classificar o indígena como o habitante “selvagem” dos bosques. Assim, impõe um imaginário anterior a uma nova descoberta, coibindo a possibilidade de conhecer o Outro em sua totalidade.


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A partir dos textos de Carvajal e Acunã, foi possível observar as primeiras experiências do europeu em solo amazônico e como essas experiências contribuíram para o percurso de Wilkens e a produção do épico Muraida. Tais descrições foram determinantes para a crença sobre as pistas acerca das riquezas dessa região e a transmissão do perfil do índio como um ser pagão que vivia longe dos preceitos divinos, de acordo com a ideologia cristã europeia. O índio deveria então ser catequizado e moldado à cultura do europeu. Mesmo após o cessar das guerras contra os índios, ainda permaneceram resquícios de uma época conturbada para os povos indígenas, ocasionada também pelo imaginário sobre o exótico e o selvagem na região Amazônica. Quando lemos os textos de cronistas e jesuítas que atuaram no Brasil, observamos que produzem um novo objeto chamado “o índio”. O novo objeto – chamado de índio por causa do equívoco geográfico de Colombo, que acreditou ter chegado à Índia, em 1492 – é construído por meio de um mapeamento descritivo de suas práticas, ao qual se associam prescrições teológicas-políticas que as interpretam e orientam segundo um sentido providencialista da história, que faz de Portugal a nação eleita por Deus para difundir a verdadeira fé. Obviamente, não havia “índio” nem “índios” nas terras invadidas pelos portugueses, mas povos nômades, não cristãos e sem Estado. (HANSEN,1998, p.351)

Conforme Souza (1994), “quando os europeus chegaram nessa região, depararam-se com comunidades populosas, as quais continham mais de mil moradores, lideradas por tuxaua”. Eles ficaram perplexos com o tamanho e a diversidade étnica encontrada. Tais acontecimentos podem ser observados nas crônicas dos primeiros viajantes europeus na época da conquista, cujos relatos, documentos e informações históricas colhidas pelos mesmos, foram responsáveis em grande parte pelo modo como os europeus passaram a olhar a região que haviam conquistado. Santos (2002) relata as palavras do padre João Daniel a respeito dos Mura: Atiram as flechas com tanta força, e valentia que mui longe atravessam um boi, e qualquer homem de parte a parte [...] a nação Mura também tem muita especialidade entre as mais. É gente sem assento, nem persistência, e sempre anda a corso, ora aqui, ora ali; e tem muita parte do rio Madeira até o rio Purus por habitação. Nem tem povoações algumas com formalidades, mas como gente de campanha, sempre anda em levante, e ordinariamente em guerras, já com as mais nações, e já com os brancos, aos quais querem a matar, ou tem ódio mortal. E não só assaltam as mais


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nações, mas ainda nas mesmas missões tem dado vários assaltos, e morto a muitos índios mansos, de que não puderam livrar, por serem repentinas, e inesperadas as investidas: e para as evitarem lhes é necessário fazerem cercas de pau-a-pique, e estar sempre alerta; e tem essa contínua guerra, não porque coma gente, ou carne humana, mas por ódio estranhável aos brancos, a que estes mesmos deram muita causa. (p.67-68)

Em contrapartida, a opinião sustentada pelos lusitanos era a de que os índios deveriam ser exterminados por resistirem e não se adequarem à nova realidade da selva. Nesse sentido, “só deste ano de 1615 até 1652, os portugueses haviam matado para cima de dois milhões de índios, fora os que chacinavam às escondidas”6. Deste modo, os indígenas nunca seriam vistos com bons olhos pelos desbravadores que traziam em suas caravelas e na ponta de suas armas o discurso teológico. A forma como viviam e mostravam-se resistentes contrapunha-se aos interesses econômicos, políticos e sociais dos europeus que vieram conquistar a região Amazônica. Portanto, os relatos empíricos realizados pelos primeiros cronistas são de suma importância, pois expressam, ainda que de maneira contraditória, a cultura dessa região. Os relatos construídos por outros autores que estiveram antes na região amazônica vão colaborar para a formação de um imaginário sobre a etnia Mura que vai se apresentar no texto de Wilkens no século XVIII e permanecer cristalizado na memória do colonialismo. Para dialogar com esses relatos, observemos brevemente o caso de Alexandre Rodrigues Ferreira, “o único cientista que Portugal se dignou mandar ao Novo Mundo” (Cunha, 1994). O viajante luso-brasileiro, que esteve a serviço da coroa portuguesa entre 1783 e 1792, viajou do interior da Amazônia até Mato Grosso e produziu a sua Viagem Filosófica pelas capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá (1792) e uma coleção biológica e etnográfica excepcional. Destacamos as contribuições que ele registrou a respeito da agricultura, a fauna e a flora, assim como as características físicas dos índios Tapuia, Cambeba e Mura. O autor deixou registradas em cartas e outros documentos “as formas de relação entre portugueses e índios; revezamento de alianças, conflitos, parcerias, violência e sedução; as formas que a conquista imprimiu às relações dos grupos indígenas entre si e com seu território”. Sem dúvida o cientista mais em evidência no Amazonas, no mesmo século, foi o doutor Alexandre Rodrigues Ferreira, brasileiro, 6

(Anais da Biblioteca Nacional, vol.95, tomo I., p.258.1975)


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a serviço de Portugal. Cabe a ele por antecipação e por justiça ao descortínio de antropólogo, o privilégio de haver descoberto a Amazônia para a ciência, isto porque demorou-se por muitos anos a pesquisar em todas as áreas aonde a sua curiosidade de sábio o arrastava, produzindo a mais copiosa obra que já se escreveu no Brasil àquela época... (MONTEIRO, 1977, p.117)

A viagem de Rodrigues Ferreira foi de fundamental importância no que diz respeito à observação dos indígenas. Segundo o viajante, os Tapuia em sua maioria apresentavam a pele lisa e sem pelos; os Cambeba apresentavam cabelos lisos e compridos – e desalinhados quando gentios; os Mura apresentavam barba e cabelos crespos e pareciam amulatados: “Entre os Muras os dedos do pé esquerdo são maiores que o do direito por apoiarem entre eles as extremidades de seus arcos na ação de expedirem as flechas” (FERREIRA,1974, p.82). Para ilustrar as diferentes formas de olhar e descrever os Mura, recorremos a duas representações imagísticas: ILUSTRAÇÃO 1

Fonte: Autos da devassa contra os índios Mura do rio Madeira e nações do rio Tocantins (1738-1739)

Na representação acima, observamos o dente de caititu nos lábios, cabelo grande, olhar enviesado ou estrábico, sugerindo uma interpretação agressiva a respeito das feições do indígena, mais semelhante à descrição que Ferreira faz dos Cambeba enquanto gentios: os cabelos desalinhados e o olhar confuso. Tais descrições se reafirmam no épico de Wilkens:


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Entre nações imensas, que habitando Estão a inculta brenha, o bosque, os rios, Da doce liberdade desfrutando Os bens, os privilégios e os desvios Da sórdida avareza, e desprezando Projetos de ambição, todos ímpios, A bárbara fereza, a ebriedade Associada se acha com a crueldade. (Mur, I, 9, grifos nossos)

Nos versos do poema, observamos a descrição dos Mura indicando a resistência dos membros dessa etnia aos projetos de ambição da colonização portuguesa. Os indígenas são descritos pela crueldade e fereza: Eia! Pois, filhos meus – Que assim vos chame Não estranheis, pois vosso bem só quero – O nosso Deus; a nossa fé se aclame; Que Ele nos fortaleça sempre espero; Que a Sua Graça sobre vós derrame. Aterre-se esse monstro hediondo e fero, Que em densas trevas, em vil cativeiro, Vos aparta de Deus, bem verdadeiro. (Mur, IV, 15, grifos nossos) ILUSTRAÇÃO 2

Fonte: Biblioteca Nacional (Brasil) Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira

Na ilustração 2, a gravura do “Índio Mura inalando paricá”, apesar de apresentar as características indígenas como o chapéu sem copa


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feito de fibra vegetal, as flechas e o enfeite nos lábios, os traços de seu rosto e os cabelos alinhados nos lembram os traços físicos europeus. De acordo com as descrições de Alexandre Rodrigues Ferreira, observamos diferentes formas de representação da etnia Mura em relação à outra fonte. Conforme Bhabha (1998), o estereótipo torna-se a principal estratégia discursiva, do colonizador; é uma forma de conhecimento e identificação que vacila entre o que está sempre “no lugar”, já conhecido, o lugar da “fixidez”. Segundo o autor, o aspecto ideológico da representação é uma estratégia colonialista de construção de uma imagem negativa sobre os Mura. Tal construção negativa se verifica no épico Muraida, de Wilkens, pois a etnia Mura representou uma das maiores dificuldades de implantar o projeto de colonização enviado pelo Marquês de Pombal. Como fiel representante da Coroa, Wilkens veio cumprir a missão de tomar posse e colonizar as possessões portuguesas. Em meio ao contexto de guerras e conflitos de terra, Wilkens foi representante dos interesses mercantilistas na emergência da política indigenista pombalina de assentamento e formação de mão- de- obra indígena para o “progresso” da Capitania do Rio Negro. Entre tantos outros soldados enviados para fazer cumprir a execução da missão, Wilkens chega ao território amazônico logo após a assinatura do Tratado de Madri. A biografia de Henrique João Wilkens é restrita a informações sobre sua empreitada militar. A produção ficcional de Wilkens é formada apenas pela Muraida e outros dois poemas – uma ode e um soneto escritos em homenagem ao Frei Caetano Brandão7. A primeira referência ao militar data de 7 de julho de 1755, através de uma carta do Governador Francisco Xavier de Mendonça, enviada do arraial de Mariuá, hoje município de Barcelos, no Amazonas: Em observância da ordem de S.Maj. expedida em uma das cartas de V. Exa. datada de 15 de março, mandarei logo passar patente de Ajudante-Engenheiro a Henrique João Wilchens, que na verdade, me parece, um moço com boas disposições para se poder aproveitar, e está encarregado ao Pe. Sanmartone e ao companheiro que o faz aplicar bastantemente. (Mendonça, 1963, v. 2:712 apud MOREIRA NETO, 1988, p.41)

Segundo Moreira Neto (1988), José Landi revela em seu texto sobre “o capitão e eu embarcamos num bote novo, de 6 remos por banda, Bispo do Pará em 1788. Wilkens recepcionou em Ega o bispo que estava em visita pastoral. Nessa ocasião, Wilkens compõe os dois poemas e oferece ao prelado. 7


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com 6 soldados. Em outra canoa forão o alferes Manoel da Silva com o cabo de esquadra Henrique João Wilkens e o capellão, que era padre Paganini, carmelita”. Em 12 de Julho de 1755, o governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado, em carta enviada o seu irmão Marquês de Pombal, comunica a participação de Wilkens na comissão, que iria a Mato Grosso para demarcações de limites: Pelo que acima digo se vê que a tropa que for ao Mato Grosso é a que deve dar maior cuidado, [...] Como o Coronel Antônio Carlos Pereira de Sousa foi oficial da Marinha, e o tenho por homem de honra, faço tenção de que seja o Primeiro Comissário daquela tropa, [...] O astrônomo que deve ir é o Pe. Inácio Sanmartonyi e por companheiro o nôvo Ajudante Henrique Wilckens, que é nascido e criado em Portugal [...] Para fazer o mapa deve ir o Ajudante Filipe Sturm, que é hábil, e tem a circunstância de ser casado em Lisboa com portuguesa e estar estabelecido com casa e família naquela corte. (MENDONÇA, 1963, p.744-745, grifos nossos)

Conforme as informações acima, Wilkens tem confirmada não apenas a sua nacionalidade como os vínculos com Portugal, sua presença na Amazônia é tão somente em virtude de sua missão em nome da Coroa. Logo depois, em carta endereçada ao Marquês de Pombal, no dia 13 de outubro de 1755, Mendonça Furtado refere-se com elogios ao militar Wilkens: Não me persuadia a que o ajudante Henrique Wilckens em tão tenros anos se tinha adiantado tanto; fico de acordo na sua conduta, e pode dever estas habilidades a seu mestre o Padre Sarmatone, porque depois que saiu do Pará o tomou debaixo da sua proteção para ensinar e aqui se conservava com ele na mesma casa de cujo padre se separou agora pela causa que abaixo direi. (MENDONÇA, 1963, p.749)

Ainda no ano de 1755, Antônio José Landi8 foi contratado pela comissão de limites da Amazônia com o objetivo de entrar no rio Negro para fazer o descimento de índios ao rio Marié por ordens de Mendonça Furtado. O percurso dessa viagem está descrito no “Extrato do diário da viagem ao rio Marié em setembro de 1755 para o descimento prometido e contratado pelos dois principais Manacaçari e Aduana por Antonio Landi”, incluso na obra de Alexandre Rodrigues Ferreira. Naturalista bolonhês com ofício de desenhista e cartógrafo, a serviço da Coroa Portuguesa. 8


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É importante mencionar que até o fim do governo de Mendonça Furtado, em 1758, não houve mais nenhum registro sobre a vida de Wilkens. A partir de agosto de 1764, há novas referências sobre o militar. Neste mesmo ano, Wilkens foi nomeado ao posto de ajudante de infantaria com ofício de engenheiro pelo rei D. José I, como reconhecimento ao excelente trabalho realizado nas demarcações de limites. Em 1769, há registros de que Wilkens auxiliava o engenheiro Henrique Antônio Galluzzi na construção da grande Fortaleza de Macapá. Em seguida, Galluzzi falece e Wilkens assume o governo da Praça de Macapá. Nesta ocasião, Wilkens escreve uma carta de agradecimento a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, muito provavelmente em agradecimento pelas funções que este o confiou anteriormente. Em 1777, chega ao fim o período pombalino, porém as demarcações de limites na região devido ao Tratado de Santo Ildefonso prosseguiram. Em 1781, Henrique João Wilkens, já nomeado sargento-mor, realiza uma expedição a Japurá, onde faz o levantamento cartográfico. Esses relatos estão em formato de um diário de viagem, disponível no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e publicado por Marta Amoroso e Nadia Farage. Em 1784, Wilkens substitui o segundo comissário, tenente-coronel Teodósio Constantino de Chermont, devido ao fato de este ter contrariado os interesses de Portugal em questões de limites. Através de registros de Alexandre Rodrigues Ferreira (1974), observamos que Wilkens residia com sua família em Barcelos, mas naquele momento a sua sede oficial encontrava-se na antiga Vila de Ega, atual município de Tefé, vizinho ao município de Alvarães mencionado no poema, no quartel general do rio Solimões, onde se reuniam as comissões de limites portuguesas e espanholas. E, de acordo com as informações do manuscrito, presumimos que foi o local onde o poeta escreveu Muraida entre 1784 e 1785. No mesmo ano em que conclui o manuscrito de Muhuraida (1785), Wilkens traça um plano de defesa para o território das capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá, contra as nações vizinhas, mas buscando atingir claramente as posições militares da Espanha naquela vasta região. Tal plano de defesa – que reforçava a guarda das fronteiras por meio da permanência de um exército na área de conflito – era uma demanda do comissário e tenente-coronel João Batista Martel, um dos personagens do poema épico amazônico. Ainda em 1785, o recém-nomeado governador da capitania de Mato Grosso e Cuiabá, João Pereira Caldas, que havia ocupado o cargo de governador do Grão-Pará – outro personagem do poema, que lhe é dedicado e o torna um “herói”


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da pacificação mura – encarrega Wilkens de elaborar orçamento da fortificação do Rio Negro, como parte da estratégia de defesa da região. Como se vê, esse período parece ter sido um dos mais intensos dos quase cinqüenta anos que o autor de Muhuraida viveria na Amazônia. (CALDAS, 2007, p.8)

Moreira Neto (1988) expõe que a correspondência do Governador do Rio Negro enviada a Wilkens inclui dezenas de cartas e ofícios de Wilkens entre 1790 e 1799, conservadas no arquivo Público do Pará, as quais não foram anexadas à coletânea publicada por Arthur Cezar sobre Lobo d’Almada. Em 1791, Wilkens foi transferido por Lobo d’Almada para Tabatinga. Lá, Wilkens deveria comandar a tropa portuguesa, o posto e fronteira. Em 1798, o então governador do Estado do Grão Pará, D. Francisco de Sousa Coutinho afasta Henrique João Wilkens do serviço em Tabatinga devido a conflitos com Lobo d’Almada. Moreira Neto (1988) relata os últimos registros sobre a vida do tenente-coronel através do registro do cônego André Fernandes de Souza, em Notícias Geographicas da Capitania do Rio Negro no Grande Rio Amazonas: Por seu falecimento foi governador interino o tenente-coronel José Antonio Salgado, feito pelo General do Pará D. Francisco de Souza Coutinho, que o sustenta com todas as forças. [...] chegou a sahir no decreto, na lista dos governadores, por governo do Rio Negro. [...] governou interinamente quatro annos e meio. No seu governo é que se pôz em practica a detestável agarração aos Indios nas aldêas para os serviços, que depois se fez mais odiosa por ser executada por soldados de 1ª linha [...] Urdiu as intrigas entre o Gama [Lobo d’Almada] e D. Francisco, que foi causa da morte d’aquele; como também concorreu para o extermínio do tenente-coronel João Henrique Wilkens para Mato Grosso, talvez por receio que lhe fizesse sombra, empenhando-se com o general D. Francisco de Souza Coutinho. (SOUZA 1848:474 Apud MOREIRA NETO, 1988)

A partir das informações que obtivemos sobre a missão de Wilkens na comissão de limites em território Amazônico e do cenário que nos é apresentado no épico, percebemos que desde a sua descoberta a Amazônia tornou-se palco de grandes disputas territoriais, devido não apenas à sua natureza exuberante e exótica, mas às riquezas encontradas na região, como as chamadas drogas do sertão, o ouro e outros metais preciosos. Assim, nota-se que a biografia do tenente-coronel é relatada estritamente em função de sua empreitada militar. O conhecimento sobre a natureza de sua vinda para o Grão-Pará


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torna-se relevante pelo fato de comprovar que Wilkens entrelaçou a sua produção poética a relatos, documentos e informações históricas que vivenciou durante sua trajetória e esses elementos convergem para torná-lo um fiel representante dos interesses da Coroa Portuguesa. Através da leitura de suas cartas e de seu diário, percebemos como o poema se assemelha a uma crônica de viagens pelo caráter informativo a respeito dos acontecimentos da época. Assim como o texto de Wilkens permaneceu no anonimato durante mais de cem anos, outros textos de viajantes permaneceram silenciados, “insulados” na Amazônia. Outro fator importante a ser observado é o longo título presente em seu manuscrito – Muhuraida ou o triumfo da fé na bem fundada esperança da enteira conversão, e reconciliação da grande, e feróz nação do gentio Muhúra –, a exemplo da moda dos títulos longos que a Literatura de Viagens haveria de explorar em demasia, anunciando não apenas o tema a ser tratado no texto, mas os seus momentos heroicos mais importantes, neste caso, a pacificação do gentio Mura. Ao informar a intenção do poeta, o título original do épico cumpre uma dupla função, de identificar a obra e informar sobre o conteúdo. A descrição revelada no título alicia o leitor, levando-o a entrar em contato com as maravilhas a serem contadas a respeito do triunfo da fé, a vitória da ideologia do colonizador, e, no paratexto que virá a seguir, uma longa explicação histórica reafirmará o que foi anunciado no título. Ao colocar Muraida como texto representativo da tradição de viagens, buscamos uma unidade de tema e não de gênero para pleitear este lugar, pois o épico mescla elementos da literatura, da história e da antropologia. Um texto rico que aborda questões como o etnocentrismo europeu e a ideologia expansionista que consegue conquistar o lugar de vencedora e reforça o estigma da etnia Mura. Ao suscitar a pluralidade da vertente literária de viagens, que se identifica por possuir textos de caráter híbrido e abarcar diferentes gêneros, observamos que, na mesma medida em que se revela uma falta de homogeneidade na forma, há uma reafirmação constante da ideologia expansionista europeia. É esse o elo que aqui nos interessa. Finalmente, ao se inspirar no modelo épico camoniano e, por conseguinte, na tradição clássica ocidental, Muraida revela tensões, convergências e divergências com o mais importante texto de viagens da Literatura Portuguesa, Os Lusíadas, revelando as tensões ocorridas entre colonizador e colonizado em nome da fé e da expansão territorial. Por esses motivos ideológicos, o texto de Wilkens precisa ser lido dentro desta tradição de viagens que não considerou a produção sobre


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a Amazônia de forma atenta, deixou à margem alguns textos sobre as missões de fixação portuguesa em solo amazônico, desmerecendo os viajantes que desbravaram esse espaço e deixando na subalternidade todo um acervo literário que custou a vida e o empenho de portugueses que se propuseram a representar os interesses lusitanos na nova terra. Referências ACUÑA, Cristóbal de. Novo descobrimento do grande rio das Amazonas. Trad. De Helena Ferreira. Rio de Janeiro: Agir, 1994. AMOROSO, Marta Rosa, FARAGE, Nádia (orgs.). Relatos da fronteira amazônica: Alexandre Rodrigues Ferreira e Henrique João Wilckens. São Paulo: USP/NHII; FAPESP, 1994. BHABHA, Homi. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila; Eliana Lourenço de Lima Reis; Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 1998. CALDAS, Yurgel Pantoja. A construção épica da Amazônia no poema Muhuraida, de Henrique João Wilkens. Tese de Doutorado em Estudos Literários. FALE/ UFMG, Belo Horizonte, 2007. CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Organizada por António José Saraiva. Porto: Figueirinhas,1978. CARVAJAL, Frei Gaspar de. Descobrimento do rio de Orellana. São Paulo: Nacional, 1941. CEDEAM. Autos da devassa contra os índios Mura do rio Madeira e nações do rio Tocantins (1738-1739): fac-símiles e transcrições paleográficas. Introdução de Adélia Engrácia de Oliveira. Manaus: Universidade do Amazonas; Brasília: INL, 1986. COSTA, Veronica Prudente. Muraida: a tradição literária de viagens em questão. Tese de Doutorado em Letras Vernáculas. Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. DANIEL, João. Tesouro descoberto no rio Amazonas. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1976 (Separata dos Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro), 1976. FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem filosófica pelas capitanias do GrãoPará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Brasília: Conselho Federal de Cultura/ Departamento de Imprensa Nacional, 1974. FINAZZI-AGRÒ, Ettore. A ilha maravilhosa: a invenção do Brasil pelos portugueses. In: Convergência Lusíada, n.12. Rio de Janeiro: Real Gabinete Português de Leitura, 1995. GONDIM, Neide. A invenção da Amazônia. 2 ed. Manaus: Valer,2007. HANSEN, João Adolfo. A servidão natural do selvagem e a guerra justa contra o bárbaro. In: NOVAES, Adauto (org.). A descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 347-73.


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Escritos e traçados: a epopeia de uma judia na Amazônia1 Luciana Marino do Nascimento2

No teatro da memória, as mulheres são sombras tênues. Michelle Perrot

Introdução Ao longo de sua história, o Brasil teve sua imagem conformada pelo imaginário. Considerado durante muito tempo como a terra da promissão; o eldorado; a terra das riquezas ou paraíso terreal, entre outros epítetos, o Brasil habitou o imaginário de muitos povos, que muitas vezes foram para cá atraídos. Ao enunciarmos o campo semântico Amazônia, nossas referências tendem a criar uma imagem homogênea da região na sua integralidade, o que, de certa forma, fixou uma “invenção da Amazônia”, tendo imortalizado imagens acerca dessa região, oriundas dos relatos de viajantes, dos discursos literário e midiático: Contrariamente ao que se possa supor a Amazônia não foi descoberta, sequer foi construída; na realidade a invenção da Amazônia se dá a partir da construção da Índia, fabricada pela historiografia greco-romana, pelo relato dos peregrinos, missionários, viajantes e comerciantes. (GONDIM, 1994, p. 9)

Nesse sentido, observa-se que a Amazônia constitui uma construção imaginária do Europeu legitimada pela historiografia, o que talvez nos explique a permanência de imagens ambivalentes, pois a região ora é representada como El dorado, ora como Inferno Uma primeira versão deste trabalho foi publicada sob o título “Portos de Passagem: Memórias de uma Judia na Amazônia”, no Livro “Nós da Amazônia: Literatura, cultura e identidade na/da Amazônia”, organizado pelos Professores Roberto Mibielli, Luciana Nascimento e Devair Fiorotti. 2 Docente do Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada (PIPGLA) da UFRJ. Docente do Departamento de Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq (PQ2). Este trabalho contou com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 1


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Verde3, e certamente essas construções influenciaram a imagem que se tem da Amazônia como região homogênea, o que contradiz a realidade, pois podemos afirmar que “a Amazônia” são muitas: [...] quem profere a palavra Amazônia ilumina logo na idéia a enormidade da bacia hidrográfica do rio máximo, seus veios, entrâncias e reentrâncias, barrancas, cataratas, corredeiras, pântanos, várzeas etc., tudo coberto e entremeado pela maior floresta tropical do Planeta. Quem diz Amazônia enuncia incríveis padrões de riqueza, mas também o local de inacreditável concentração de miséria humana e social [...]. (TUPIASSÚ, 2005, p. 299)

Como invenção, as imagens sobre a Amazônia foram eternizadas a partir das construções ideológicas de um território, que é parte de um conjunto de mitos e fabulações que os europeus inventaram para a América, em seus relatos de viagem: A Amazônia está no imaginário de todo o mundo, como a vastidão das águas, matas e ares; o emblema primordial da vida vegetal, animal, humana; o emaranhado de lutas entre o nativo e o conquistador; o colonialismo, o imperialismo e o globalismo; o nativismo e o nacionalismo; a idéia de um país imaginário, o paraíso perdido, o eldorado escondido; a realidade prosaica, promissora, brutal; na interrogação perdida em uma floresta de mitos. (IANNI, 2001, p. 18)

As narrativas construídas ao longo dos séculos XVI e XVII nos fornecem importantes dados, imagens e sentidos que levaram homens a adentrar pela floresta e navegar os rios, fundando povoados, aldeias e vilas, ao mesmo tempo em que foram cartografando as fronteiras portuguesa e espanhola na Amazônia. Estes aventureiros tiveram por objetivo principal, a necessidade de estabelecer barreiras de proteção, ao construírem fortalezas e, ao mesmo tempo, buscaram uma comunicação com os nativos, a fim de sobreviverem, pois como bem afirmou Leandro Tocantins: “Os rios são estrada obrigatória, entrada para a conquista do deserto verde” (1982, p. 7). A força do discurso e das imagens construídas para a Amazônia registradas nos mais diversos textos, sejam eles anotações de viagens, romances ou poesias, representaram um legado que vem sendo reinventado e reapropriado pela literatura nos mais diferentes períodos: Referência à obra de RANGEL, Alberto. Inferno Verde: Scenas e Scenarios do Amazonas. 4.ed. Tours: Typografia Arrault & Cia, 1927 (1a edição de 1908 com prefácio de Euclydes da Cunha). 3


Escritos e traçados...

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São geógrafos, historiadores, naturalistas e biólogos, sociólogos e antropólogos, romancistas e poetas os que percorreram os meandros e a lonjura, o presente e o passado, o visível e o invisível, de modo a alcançar a resposta, o esclarecimentos, o exorcismo e o encantamento. (IANNI, 2001, p. 18)

E é pela força desse encantamento e na busca da harmonia homem x natureza que se constrói a narrativa de Sally Knopf ou Chaindel, uma judia polaca, que chegou ao Rio de Janeiro em 1924, fugindo da miséria do Leste Europeu, a fim de encontrar seus tios, Joe e Jenkel, os quais estavam na América em boa situação financeira. Entretanto, Sally Knopf ou Chaindel descobrira que o negócio de seu tio Joe era, na verdade, o tráfico de judias polacas para o mercado da prostituição. Tendo conseguido fugir da casa dos tios, Sally escapou da prostituição, destino final de tantas outras suas conterrâneas, também judias do Leste Europeu. Todo o périplo vivido por Chaindel nos é narrado em seu livro de memórias intitulado Humilhação e luta: uma mulher no inferno verde, publicado pela primeira vez em 1977 e em segunda edição em 1978, pela Editora Thesaurus/Coordenada, de Brasília. Ao longo da narrativa, a autora dedica a maior parte da obra às suas memórias e vivências na Amazônia, no interior da floresta e nos garimpos.

A Epopeia de Sally Knopf Em suas memórias Humilhação e poder: Uma mulher no inferno verde, a jovem judia Sally Knopf ou Chaindel narra suas memórias de infância, sua chegada ao Brasil em 1924, suas mais diversas passagens pelos vários estados do Brasil e já na sua maturidade, por volta de 1958, a sua estada na Amazônia. O livro é dividido em 26 capítulos curtos, sendo que do primeiro ao terceiro capítulo são narradas as memórias de Chaindel na Polônia, durante a Primeira Guerra, com a perseguição aos judeus e a dominação dos Russos, sendo que “os alemães já dominavam a cidade e, ao contrário do que ocorreria na Segunda Guerra Mundial, naquela época eram gentis e tratavam bem a população civil” (KNOPF, 1978, p. 18). Eis uma afirmação da narradora sob a ótica de sua percepção de Judia, já perseguida pelo antissemitismo dos católicos na Polônia, tendo em vista que, de fato, durante a Primeira Guerra Mundial, os alemães se colocaram ao lado dos poloneses e o antissemitismo ainda não constituía uma política de Estado alemã (HOBSBAWM, 1996, p. 29). Yossef Haym Yerushalmi, historiador do judaísmo, em seu livro Zakhor: História judaica e memória judaica, afirma que a cultura judaica


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apresenta um fundamento na ordem do lembrar, sendo que o verbo “zhr aparece na Bíblia, em suas várias modalidades e tempos, nada menos do que 169 vezes, geralmente tendo como tema Israel ou Deus, uma vez que a memória está a serviço de ambos” (YERUSHALMI, 1992, p. 25), o que faz com que a memória garanta a coesão da comunidade (DEGAN, 2010, p. 206). Le Goff e Nora destacam essa peculiaridade do povo judaico. De acordo com Le Goff: “O povo hebreu é o povo da memória por excelência” (2003, p. 435). Tal pensamento é corroborado por Nora, que assim atesta: “Pensemos nos judeus, confinados na fidelidade cotidiana ao ritual da tradição. Sua constituição em povo da memória excluía uma preocupação com a história, até que sua abertura para o mundo moderno lhes impôs a necessidade de historiadores” (1993, p. 9). Desde o começo da obra, é possível observar na narrativa, a força que a memória exerce sobre a personagem narradora; não se restringindo somente à memória pessoal, mas estendendo-se à memória coletiva ou seja, àquela memória que concerne ao passado da comunidade judaica na Polônia, como se pode observar na própria abertura do capítulo I: – Vão enterrar mais um cão judeu! Um grupo de meninos não parava de gritar em frente da nossa casa. Na sala, o corpo do meu avô estirado no chão e coberto por uma manta preta de acordo com os princípios da nossa religião. Eu era muito pequena para compreender o que se passava, mas vendo toda a minha família chorando comecei também a chorar, não que eu entendesse o real sentido da morte, mas porque achei que era aquilo que eu devia fazer naquele momento. [...] A maioria da população de Rawa, cidade polonesa nas proximidades de Varsóvia, era francamente anti-semita e nunca perdia a oportunidade de demonstrar ódio à nossa gente. [...] Com o início da guerra de 14 o medo foi substituído por outro tipo de sentimento: o terror. Russos e alemães lutavam na Polônia. Os alemães queriam ocupar Varsóvia, desejo que também os russos alimentavam. E assim, Rawa vivia entre explosões de bombas dos dois lados (KNOPF, 1978, p. 13-14).

A narradora se coloca como porta voz da coletividade dando passagem a essa memória coletiva a partir de sua própria voz. Assim, a narradora refaz o passado pessoal, mostrando-se como parte dos fatos macro ali narrados, ao lado das vivências familiares:


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Os alemães continuavam sua marcha rumo a Varsóvia. Rawa estava-lhes no caminho com soldados russos tentando defender as suas posições. A luta continuava por todos os lados despejando as suas bombas. Nós vivíamos escondidos no porão da casa, que tinha apenas uma janelinha, por onde víamos os soldados caindo mortos nos combates de rua. Sair de nosso esconderijo, mesmo por alguns momentos, era o mesmo que procurar a morte. Por isso passávamos fome. [...] Assim passamos vários dias, comendo repolho e beterrabas cruas do estoque que o meu pai tinha feito para enfrentar o inverno. [...] Preparamos a nossa fuga [...] Mais seis horas de viagem e chegamos ao nosso destino: Skernievice. A nossa permanência nesta cidade não foi longa, apenas o suficiente para que os alemães tomassem Varsóvia e colocassem Rawa sob sua proteção. [...] Quando meu pai soube que os russos haviam abandonado Rawa e que os alemães já tinham conquistado a capital da Polônia, decidiu voltar. (KNOPF, 1978, p. 17-18)

A leitura das memórias de Chaindel/Sally Knopf nos aponta para as reflexões de Halbwachs acerca do entendimento da memória como patrimônio da cultura, isto é, a percepção da importância das memórias na história da formação do homem, enquanto sujeito histórico, social e indivíduo particular: Cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros meios, quando tentamos explicar essa diversidade, voltamos sempre a uma combinação de influências que são, todas, de natureza social. (HALBWACHS, 1990, p. 51)

Chaindel, enquanto narradora, nos coloca a par do cotidiano de sua vida em família, articulando-o com a história. Nesse sentido, é possível ver a ficção em diálogo com a história, tendo em vista que a literatura trabalha nos vãos dos fatos, revelando um outro cotidiano que não tenha sido iluminado pela história. (SEVCENKO, 2003, p. 30) Quando a América e a França começaram a enviar alimentos para a Polônia, a vida começou a melhorar para todos apesar do racionamento. Nós recebíamos apenas cinco quilos de açúcar por semana, mas estávamos satisfeitos, pois havia muito que não tomávamos um chá com açúcar.


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[...] Os alemães continuavam a dominar a Polônia. Aí, ficaram quatro anos, até conseguirmos nossa independência. Neste período as crianças judias já podiam frequentar as escolas mistas, porque os alemães tinham abolido a proibição e a discriminação. Mesmo assim, o anti-semitismo continuava e éramos sempre vítimas de insultos e ameaças. (KNOPF, 1978, p. 21 e 26)

De acordo com Perrone-Moisés, “a literatura nasce de uma dupla falta: uma falta sentida no mundo, que se pretende suprir pela linguagem”, (2006, p. 103) e, nesse sentido, podemos observar que na escrita memorialística, a linguagem torna-se oportunidade para que o sujeito transborde uma falta, sem dar conta de uma vivência na sua totalidade: Um homem para evocar seu próprio passado, tem frequentemente necessidade de fazer apelo às lembranças dos outros. [...] Não é menos verdade que não nos lembramos senão do que vimos, fizemos, sentimos, pensamos num momento do tempo, isto é, que nossa memória não se confunde com a dos outros. Ela é limitada muito estreitamente no espaço e no tempo. A memória coletiva o é também: mas esses limites não são os mesmos. Eles podem ser mais restritos, bem mais remotos também. A lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e, além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada. (HALBWACHS, 1990, p. 54 e 71)

Ao chegar ao Rio de Janeiro, Sally Knopf produziu o Brasil como paraíso natural, onde convivia a possibilidade de dias melhores, mas ao mesmo tempo, era o lócus da incerteza e do desconhecido: Ao entrar na Baía de Guanabara senti-me emocionada com a visão daquela cidade imensa banhada pelo sol e por um mar azul. Foi como se eu tivesse nascido naquela hora. Senti um bem-estar de liberdade. Nunca mais ouviria a palavra “judia suja’. [...] Ao ver aquela gente queimada de sol, disse para comigo mesma: é um povo feliz. Só pode ser feliz quem mora num país como este, com um sol tão lindo! Por um segundo pensei na Polônia que eu tinha deixado tão longe e que, naquela mesma época estava coberta de neve. [...] Fiquei apreensiva. Que fazer e para onde ir? [...] Pareceu-me tão difícil que pensei nunca chegar a compreender o português. (KNOPF, 1978, p. 31)


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Dos capítulos V ao XVII, Sally Knopf narra o início de sua vida no Rio de Janeiro e de como escapou de ter se tornado prostituta pelas mãos de seu tio Joe, o seu casamento com Izio, um judeu. Desse momento em diante, ela narra a sua errância pelo Brasil, primeiro em Cruzeiro, depois em Alagoinhas, Mundo Novo, Salvador-Bahia, onde se tornaram empreendedores na fabricação de laticínios. Quando “chegou a grande seca de 1932”, o casal partiu para o Pará, por curto espaço de tempo, sem sucesso na implantação da usina de laticínios, tendo, em seguida, rumado para o Ceará e depois para a Paraíba. Em 1942, ela recebe notícias de que sua família havia sido morta em um campo de concentração e, nesse momento, o casal passou a se dedicar ao comércio, em Natal e depois em Recife e a sua triste viuvez. No capítulo XVIII em diante, Sally Knopf, já com os filhos casados, narra a sua ida para Santarém- Pará. A narradora mostra que a decisão de se deslocar para a Amazônia, em fins da década de 1960, já no início da década de 1970, parte de uma busca e de um desejo de apreender o Brasil, traçando um relato de sua vida nos garimpos do Pará e pintando aspectos da paisagem Amazônica, e é na Amazônia que Chaindel vai se dedicar ao comércio de aviamentos e ao garimpo: “Eu conhecia o Brasil, principalmente, o interior. Sabia, no entanto, que ainda era muito pouco para que eu pudesse dizer que conhecia realmente todo o país. Nada me prendia em casa, e um dia embarquei para Santarém, no Pará” (KNOPF, 1978, p. 98). Entre a visão crítica e o encantamento, a narradora constrói paisagens pelo olhar estrangeiro, harmonizando o presente na descrição exuberante da natureza amazônica. Os fragmentos a seguir mostram o mais importante elemento na vida amazônica: o regime das águas: Naquele tempo não havia nada de interessante em Santarém. Era uma cidade pobre, sem calçamentos, e o único transporte urbano era feito por jipes. O veículo mais novo que havia na cidade era de 1958. Mas tudo isto esquecia quando admirava o rio Tapajós. A sua confluência com o rio Amazonas é um espetáculo maravilhoso! Pode-se ver a divisão das águas: as do tapajós, um azulado claro e as do Amazonas, turva, formando ondas violentas ao se encontrarem. [...] O garimpo do Pacu ficava nas margens de um igarapé que despejava as suas águas no Tapajós. No verão o igarapé seca e a viagem é feita em dois dias. [...] Chegamos finalmente a Pacu. Era um amontoado de casas de palha, localizado numa região montanhosa de difícil acesso. Ti-


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vemos que caminhar do igarapé até o garimpo, e em cima dum monte havia um cemitério. Perguntei a um caboclo a meu lado se havia incidência de malária ou outras doenças, no garimpo, porque as cruzes eram muitas. – De morte morrida tem muito pouca gente enterrada, de morte matada, madame, é que enche o cemitério! Tudo era difícil em Pacu. O banho era no igarapé e na hora de dormir só conseguia armar a sua rede quem andasse mais depressa. Nos barracões rústicos todos dormiam juntos, lado a lado, fosse homem ou mulher. Era mistura de caboclos, garimpeiros e meretrizes. (KNOPF, 1978, p. 98-101)

Nas descrições das paisagens, pode-se perceber que o espaço estabelece conexões com os elementos culturais, ordenando a diegese e os deslocamentos das personagens, além de desempenhar um papel simbólico na narrativa. Michel Collot destaca a importância das relações entre o espaço e a paisagem e a obra literária, partindo de um olhar carregado de subjetividade: Só se pode falar de paisagem a partir de sua percepção. Com efeito, diferentemente de outras entidades espaciais, construídas pela intermediação de um sistema simbólico, científico (o mapa) ou sociocultural (o território) a paisagem se define inicialmente como espaço percebido: ela constitui o aspecto visível, perceptível do espaço. (COLLOT, 2012, p. 11)

Essa percepção da paisagem com toda a sua simbologia percorre a narrativa de Sally Knopf, tendo lugar também no sonho da narradora. O sonho narrado permitiu a protagonista tomar a decisão de mudar-se de localidade: Uma noite sonhei que havia um grande incêndio na floresta; o fogo devorou tudo e o igarapé estava coberto de chamas. Logo depois do incêndio o céu ficou limpo, claro. Uma porção de aviões estava sobrevoando o local do incêndio. Chamei meu motorista, Firmino: – Estou pensando em mudar daqui. Uma coisa me diz: vai embora! O que acha? Lotar o nosso barco e viajar para Cripori? – Acho que a senhora está certa. A notícia corre que lá descobriram novo garimpo. A viagem é longa, rio acima. [...] Continuei na Vila fazendo as minhas transações. A civilização não me fazia falta. Com duas guerras eu estava cheia com a bondade dos homens: seis milhões de judeus sofreram mais do que eu; ruindade não era mais novidade para mim.


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Sally mudou-se para uma localidade chamada Cripori e por lá deu continuidade ao comércio, sem sucesso, pois, os homens que trabalhavam para ela adoeceram de malária e muitos morreram, os mantimentos chegaram ao fim: O meu barracão ficou triste, os homens se foram. Só fiquei eu, a Dulce e Albano. Não tínhamos forças para ir a parte alguma, tínhamos um resto de feijão e farinha. Ainda havia munição. Então Albano de vez em quando trazia uma arara ou um papagaio. Ele atirava bem e assim nos fortalecíamos com as pobres aves. Sempre havia ódio a quem as abatia. Eu estava já ficando abrutalhada. Um tatu ou uma paca era uma festa. [...] Vivemos os três completamente alheios ao nosso destino. (KNOPF, 1978, p. 197)

A narradora faz uma retrospectiva de tudo o que viveu no interior da floresta e nos garimpos, como as brigas e mortes, a presença de onças e cobras, as longas caminhadas, cujas lembranças se entrelaçavam com os acontecimentos do passado mais distante, como fuzilamento do pai, a ida da mãe e das irmãs para o campo de concentração. Essa rememoração trouxe à protagonista a esperança e a fé no futuro, justamente por estar no Brasil, mas na sua despedida, a sua visão de Amazônia permanece envolta pelo inferno verde: Revi o quadro de meu pai com mais de dezesseis homens em Rawa na Polônia: a Gestapo entrou. Levaram meu pai embaixo de chicotes, no local onde eu brincava na infância e o fuzilamento, enterrando todos no mesmo buraco. As famílias não tinham o direito de recolher seus queridos para lhes dar sepultura decente. Em seguida minha mãe e toda minha família foram levados no trem da morte para o campo de concentração, e lá cremado, servindo de ossos para adubo de repolho. Eu estava viva: viva no Brasil como uma brasileira. Tenho família, tenho que ter forças para acabar meus dias como Deus manda. [...] Finalmente tomei a decisão de abandonar o inferno verde. Com o coração em pedaços entreguei os pontos. Chamei os poucos homens que restavam, a situação expus a todos e dei ordem de se defenderem, que trabalhassem nas minhas terras, dando para cada um uma área suficiente para recompensar o seu tempo perdido. Eu era uma condessa falida, pifada e envergonhada. Tive de abandonar o meu Changrilá. A recompensa que tenho me basta: centenas de homens trabalhando lá até hoje. Um pouco de moral que plantei, decerto não foi esquecido e eu, com certeza, também não serei esquecida, pois


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um amigo me prometeu de botar uma placa na minha sepultura: aqui jaz a mulher mais besta do mundo. CHAINDEL. (KNOPF, 1978, p. 204-207)

Considerações finais A leitura das memórias de Sally Knopf nos permitiu iluminar um episódio esquecido pela historiografia oficial, ou seja, a prostituição e o tráfico de mulheres judias oriundas do Leste Europeu. Graças ao trabalho da historiadora Beatriz Kushnir e a publicação de outros livros, literários ou não, sobre o tema, a história dessas mulheres está saindo do limbo paulatinamente. Contudo, o aspecto mais importante a ser destacado foi justamente o deslocamento de Sally Knopf para a Amazônia e a sua visão daquele espaço, tão diverso de sua cultura. Embora, Sally Knopf/Chaindel conclua as suas memórias em tom melancólico, há que se reconhecer o seu pioneirismo, sendo ela uma mulher viúva e destemida o suficiente para singrar em direção ao interior da Amazônia. Na história, a narradora articulou com maestria a memória pessoal à história coletiva, iluminando a história dos vencidos. Como bem afirmou Benjamim, a história dos vencidos brilha apenas por instantes fugidios que reluzem na força de uma grande tristeza (BENJAMIN, 1985, p. 156). Referências BENJAMIN, Walter. Sociologia. Org. Flavio R. Kothe. São Paulo: Ática, 1985. Col. Grandes Cientistas Sociais. COLLOT, Michel. Pontos de vista sobre a percepção de paisagens. Trad. Denise Grimm. In: ALVES, Ida; LEMOS, Mazé; NEGREIROS, Carmen. Literatura e Paisagem em diálogo. Rio de Janeiro: Edições Makunaima, 2012. p. 11-28. GONDIM, Neide. A invenção da Amazônia. Manaus: Valer, 1994. HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Trad. Laurent Léon Shaffter. São Paulo: Vértice, 1990. HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: O breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Cia das Letras, 1996. KNOPF, Sally. Humilhação e Luta - Uma Mulher no Inferno Verde. 2. Ed. Brasília: Editora Thesaurus, 1978. IANNI, Otavio. Lendas do novo mundo. In: Cultura amazônica: uma poética do imaginário. Texto Introdutório. São Paulo: Escrituras 2011. Col. Obras Reunidas. LE GOFF, Jacques. Memória. In: ______ História e Memória. 5.ed. Campinas, SP: UNICAMP, 2003, p. 419-476.


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NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. In: Projeto História. São Paulo: PUC, n. 10, pp. 07-28, dezembro de 1993. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. TOCANTINS, Leandro. Amazônia. Natureza, Homem e Tempo: uma planificação ecológica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982. TUPIASSU, Amarílis. Amazônia, das travessias lusitanas à literatura de até agora. Estudos Avaliados. vol.19, n. 53. São Paulo: Jan./Apr. 2005. YERUSHALMI, Yosef Hayim. Zakhor. História Judaica e memória Judaica. Rio de Janeiro: Imago, 1992.


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“Sou daqui, sou de lá”: deslocamento e identidade em Zeca Preto Cátia Monteiro Wankler1 Cléo Amorim Nascimento2

DAQUI EU NÃO SAIO Não adianta ficar falando que eu não sou daqui Daqui eu não saio moço, sou ParaCuxi Não adianta ficar dizendo que eu não sou de nada Eu sou Roraimeira da Pedra Pintada Não adianta ficar pensando que eu vou me mandar Já botei a mesa em cunhã-pucá Tem Paçoca com Banana pro nosso jantar Vem me dá um pedaço desse teu luar Ora, quem manda ter essa terra muito boa pra viver Quem manda ter essa água tão gostosa de beber Quem manda ser bonita e graciosa de se ver Quem manda ter amor no coração do “bem-querer” Delícia, Maniçoba já se come aqui, Damurida já se come lá Nossas tribos vão comemorar Nossas tribos vão comemorar. (Zeca Preto)

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m janeiro de 1975, desembarcava em Boa Vista, Roraima, José Maria de Souza Garcia, nascido em Belém-PA, no dia 10 de outubro de 1950. Seu apelido de juventude, Zeca Preto, atribuído a ele por uma antiga namorada, posteriormente foi adotado como nome artístico. A música e a poesia são duas paixões que Zeca Preto traz na alma desde a mais tenra idade, tendo sido autodidata nos dois campos. Em entrevista realizada em 08 de outubro de 20133, fala sobre sua relação com estas duas formas de arte e afirma que sempre foi apaixonado pela Doutora em Letras-Teoria da Literatura pela PUCRS. Mestre em Literatura Portuguesa pela UFF. Professora do Curso de Letras da UFRR. 2 Mestre em Letras-Estudos de Linguagem e Cultura Regional pelo PPGL/UFRR. Professora do Colégio de Aplicação da UFRR 3 PRETO, Zeca. Entrevista concedida a Cátia Monteiro Wankler, Carla Monteiro de Souza e Cleo Amorim Nascimento em Roraima. 08 out. 2013. 1


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poesia de Augusto dos Anjos, a qual acredita ter influenciado sua trajetória como poeta e que, ainda menino, declamava textos que falavam sobre saudade para a família. Quanto à música, conta que aos doze anos aprendeu, sozinho, a afinar e a tocar o violão de sua irmã; aos 15 anos, ganhou da família seu primeiro violão. Nessa época, Zeca já compunha e cantava suas próprias composições e sonhava com uma carreira artística. No entanto, por não ter o apoio total da família, acabou por se distanciar deste sonho. Estudou toda sua vida em sua cidade natal, grande parte na escola pública, habilitou-se em contabilidade e tornou-se bancário. Foi a propósito de sua carreira de bancário que migrou para Roraima. Alguns anos depois, deixou o banco para se dedicar à vida artística. Foi também em Roraima que encontrou o amor e, em 1977, casou-se com Rosilene da Luz Garcia, a quem chama carinhosamente de Lena. Eles continuam casados e têm 4 filhos: Gênesis, Tatiana, Sidney e Argemiro Neto. O sogro, José Celestino da Luz, era proprietário e ator de um teatro Hi-Fi em Boa Vista, o que contribuiu para que Zeca fosse, cada vez mais, seduzido pelo meio artístico. Quando indagado sobre quem nasceu primeiro, o poeta ou o músico, Zeca respondeu: “Eu vim da letra... de escrever... sempre tentando jogar a mágica nas palavras... uma mágica no lance... mexer até dar aquele tom poético... a frase cantada”. Sua fala deixa claro que ele não faz uma distinção clara entre os dois lados, mas que um complementa o outro, embora acabe concluindo que acha que o poeta nasceu primeiro, considerando que suas primeiras incursões no universo artístico foram através da composição de textos. Ele afirma que hoje se destaca mais o seu lado músico, mas que não acha possível distinguir o Zeca Músico do Zeca Poeta, o que se confirma quando ele diz: “eu preparo a letra tipo musicando poema”. Segundo Nascimento (2014), a carreira de artista de Zeca Preto em Roraima deslanchou primeiro com a música. Em 1980, participou de um festival de música regional – Festival de Música de Roraima, I FEMUR – e ficou em segundo lugar com a música “Macuxana”. Em 1984, participou do II FEMUR e conquistou também o segundo lugar, com a música “Roraimeira”. Em agosto deste mesmo ano, fez um show no Teatro Amazonas, em Manaus, juntamente com Eliakin Rufino e Neuber Uchôa. O show recebeu o nome da música de Zeca, “Roraimeira”. Também foi esta música que deu nome a um movimento cultural, que tem este show como marco inaugural, que teve como objetivo discutir a noção de identidade no contexto roraimense, o Movimento


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Cultural Roraimeira, do qual Eliakin, Neuber e Zeca são considerados líderes, passando a ser conhecidos como “Trio Roraimeira”. Zeca participou ainda de duas edições do FEMUCIC (Festival de Música Cidade Canção, na cidade de Maringá, no Paraná) em parceria com Neuber Uchôa, em que conquistaram os prêmios de melhor arranjo musical em 1995, e o de melhor música em 1996 (WANKLER; SOUZA, 2013). A carreira musical teve seguimento com a gravação de álbuns, tendo sido o primeiro deles de samba, para o Grêmio Recreativo e Escola de Samba Mecejana, com músicas compostas por ele. Depois, gravou Roraimeira,1985 (Disco solo); Caimbé, 1988; Roraima, 1992 (em parceria com Eliakin Rufino e Neuber Uchôa); Makunaimeira, 1994; Amazon Music, 1997; Na ponta do Norte (2001), Tempo de jambo (2004); Nada de concreto (2008), Mãedioca, 2009; A Nata, 2010 (sendo os dois últimos em parceria com Neuber Uchôa), e Nas Esquinas da Amazônia (2013). Já participou de shows em outros estados do Brasil, em apresentações solo e como parte do Trio Roraimeira, que fez também apresentações internacionais, como na Venezuela e em Zurik, na Suíssa. Em entrevista realizada em 08 de outubro de 2013, foi indagado sobre a importância do Movimento Roraimeira para a sua carreira e para o estado de Roraima. Zeca respondeu que tem um profundo agradecimento pelo Roraimeira, pois através dele sua arte tornou-se conhecida. Ele define o movimento como “um negócio assim, regional... um negócio assim, que é essência mesmo”, deixando transparecer o compromisso do movimento com a busca por uma essência do lugar. Completa dizendo que a maior contribuição do Roraimeira foi a de ter colocado no coração de cada roraimense o amor por essa terra: “a gente fez a nossa parte... eu tenho certeza, sabe?... certeza absoluta... que nós fomos os responsáveis por esse amor”. E, finalizando sua colocação sobre o Movimento, disse: “O Roraimeira é isso... tá vivo até hoje”. O comprometimento de Zeca Preto com Roraima, o apego pelo espaço, para o qual migrou já adulto, é expresso reiteradas vezes em sua obra musical e poética. Seu primeiro livro de poemas, Beiral, publicado em 1987, é considerado simples e ingênuo pelo próprio autor, mas sua leitura revela textos de forma elaborada e cujo conteúdo se constrói através de imagens da paisagem boavistense da década de 1980. Indagado sobre o motivo da escolha do nome, Beiral, o autor explica que fez um passeio de lancha pelo rio Branco com um amigo poucos dias depois de chegar à Boa Vista. Durante este passeio, vislumbrou, na margem, um lugar que atraiu sua atenção: era o


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Beiral, bairro que, na época, recebia este nome e que atualmente se chama Caetano Filho. Resolveu então descer e caminhar a pé observando o local, descrito por ele na entrevista como “uma cidade pequena... que parece que está em outro plano... povo diferente”, e então confessou “eu me apaixonei pelo Beiral”. Por isso, o livro, além de se chamar Beiral, possui um poema com este nome, bem como em sua abertura faz referência ao local, embora sua temática não esteja restrita ao bairro. (NASCIMENTO, 2014, p. 25)

Seus planos para o futuro incluem o lançamento do seu livro de contos, com título provisório de Ferreira Pena: todos os números, que gira em torno das memórias dos tempos que viveu em Belém, e a publicação de seu livro Poemas Acorrentados. Zeca Preto: “sou daqui, sou de lá” Sou sim sou daqui sou de lá, sou de lá Sou sim sou daqui sou de lá, sou daqui... (Zeca Preto. “Sou daqui, sou de lá”)

Na letra da canção “Sou daqui, sou de lá”, cujo refrão serve de epígrafe a esta sessão do texto, Zeca Preto evoca sua origem paraense através de uma série de elementos típicos do seu estado natal, como o patchoully, o Círio de Nazaré e o carimbó. No entanto, a evocação de sua naturalidade vem precedida pela declaração expressa no título. SOU DAQUI, SOU DE LÁ No dengo do giro quebrando pro lado No passo do compasso socado Os rapazes não param de olhar Pra Rosinha que dança marcando na palma e no pé O cheiro de patchully tá na roda Essa é a dança do povo de fé, do povo de fé Sou sim sou daqui sou de lá, sou de lá Sou sim sou daqui sou de lá, sou daqui... Muita gente chegando em outubro É pra Festa de Mãe Nazaré Tem tacacá, açaí, maniçoba, A porta tá aberta e você pode entrar Vai ter som lá na casa do Zeca, Vem dançar carimbó, siriá


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Tem priprioca exalando na reza Que é pra Santa nos abençoar Sou sim sou daqui sou de lá, sou de lá Sou sim sou daqui sou de lá, sou daqui... (PRETO. 2013, faixa 03)

Zeca não nega sua identidade de Paraense. Na entrevista já citada, colocou a seguinte frase “Adoro Roraima... Amo o meu Pará... sou daqui ... sou de lá... eu sempre dou uma pitada do Pará nas músicas e nos poemas”. Entretanto, seus textos poéticos mostram um Zeca topofílico, fortemente apegado ao estado de Roraima, sobretudo à cidade de Boa Vista. Em função disso, perguntamos a ele qual a sua relação com cidade de Boa Vista, ao que ele respondeu: “uma relação de amor... profundo carinho...é uma terra boa...uma terra maravilhosa pra se viver”, finalizando com a seguinte frase, “Aqui eu tô mais ligado... lá é pra matar a saudade”. Considerando suas declarações, observamos que, como homem e como artista, Zeca se sente pleno em Boa Vista, ele se sente em comunhão com o lugar. No entanto, Belém não é só uma lembrança, é uma memória viva e não adormecida que o atrai vez por outra. “Sou daqui, sou de lá” marca uma relação de pertencimento bem clara em relação ao Pará, na medida em que, naquele contexto o “de lá” refere-se a Roraima e o “daqui” diz respeito ao Pará, considerando as marcas culturais e afetivas que definem o texto inteiro. É da ligação primordial entre homem e lugar que se alimenta a obra de Zeca Preto: a descrição das características geográficas aparece em consonância com as relações humanas na região, formando imagens sugestivas da interação entre o homem e o meio natural que o cerca. Sua poesia topofílica não se atém apenas à descrição da região em particular, mas denota por intermédio de sua subjetividade uma poesia que se liga a vários contextos regionais. Segundo Tuan (1980), o termo topofilia associa sentimento e lugar, pois está relacionado à percepção do lugar pelo(s) sujeito(s), representando “todos os laços afetivos dos seres humanos como meio ambiente material” (TUAN, 1980, p. 107). Graças ao trabalho com o conceito de topofilia, podemos colocar em diálogo, por exemplo, textos poéticos e autores que, sob o ponto de vista do regionalismo, não se encontrariam, como Fernando Pessoa/Alberto Caeiro e Zeca Preto, tendo em vista que poderia ser considerado um sacrilégio colocar o poeta português, mesmo como Alberto Caeiro, no escopo da literatura regional. (WANKLER, 2013, s.p.)


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Partindo desse ponto de vista, a leitura do poema “Mangueira” ilustrar esse perfil multifacetado, no qual os lugares se interligam e, ao mesmo tempo, se individualizam e marcam as identidades dos sujeitos. MANGUEIRA Mangueira cadê essa turma da Ferreira Pena, Curuçá aqui tá danado de gostoso pra se viver muito bem Te mando via mão própria o vinho gostoso de buriti me manda via sedex, urgente pupunha, açaí Rio Branco, navegar de ubá eu bebo o Guajará Uraricoera pescar acima do equador Mangueira cadê essa gente valente, presente em meu ser aqui já virei roraimeira mas sinto saudade de você Te mando via mão própria paçoca gostosa de gergelim me manda via sedex, urgente um bom pato no tucupi... (PRETO, Zeca, 1997, Faixa 14)

No poema Mangueira, o eu poético interliga dois lugares distintos: a cidade de Belém, capital do Pará, e a cidade de Boa Vista, capital de Roraima, referindo-se a elas por intermédio da culinária, dos frutos, dos rios e das localidades específicas de cada uma. Ao contrário de “Sou daqui, sou de lá”, em “Mangueira” o “aqui” é Roraima. Nos dois primeiros versos da primeira estrofe, o eu do poema dialoga com o lugar de origem do poeta, através da imagem de uma árvore, uma mangueira, a qual ele personifica ao fazê-la sua interlocutora, logo no primeiro verso, ao perguntar a ela o paradeiro da “turma da Ferreira Pena”. Esta árvore, segundo o autor, ficava situada no alto de uma ladeira, e era o ponto de encontro dos amigos que moravam na rua Ferreira Pena, em Belém (PA), endereço no qual morou em sua juventude. A lembrança estende-se também aos parentes e amigos moradores do Munícipio de Curuçá (PA), local bastante visitado por ele durante sua infância e adolescência4. Todas as citações de falas de Zeca Preto são referentes aos trechos da entrevista realizada no dia 08 de outubro de 2013, que diz respeito a biografia do artista. 4


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Nos versos 3 e 4, ainda na primeira estrofe, o eu poético fala do “aqui”, lugar onde mora atualmente, definindo-o como “danado de gostoso pra se viver muito bem”, como se estivesse convidando o elemento personificado, a mangueira, para vir visitar o seu “aqui”, para navegar de ubá5 pelas água do rio Branco, pescar nas águas do rio Uraricoera (versos 9 a 11). É através dessas duas referências geográficas – rios Branco e Uraricoera – que ele revela que o lugar de onde fala é Roraima. Nos versos 5, 6, 16,17, o eu poético apresenta as possibilidades de conexão que lhe permitem matar as saudades do seu lugar de origem sem abrir mão de estar no lugar pelo qual já sente apego e ao qual já vincula sua identidade, estratégia que se repete nos versos 16 e 17: “Te mando via mão própria / o vinho gostoso de buriti” (v. 5-6); “Te mando via mão própria / paçoca gostosa de gergelim” (v. 16-17). Já nos versos 7, 8, 18 e 19, ele diz: “Me manda via sedex, urgente / pupunha, açaí” (v. 7-8) e “Me manda via sedex, urgente / um bom pato no tucupi” (v. 18-19). Nesses versos, fica marcada a possibilidade de “estar aqui” tendo acesso ao que é “de lá” e vice-versa. É uma troca que, de certa forma, garante a permanência de alguns traços identitários na memória. Dessa forma, o sentimento de “ser daqui” não suplanta e nem é suplantado pelo de “ser de lá”, criando um vínculo indentitário que se pretende duplo e dialogante. No 12º verso, o eu retoma o seu diálogo com a mangueira e pergunta agora pela “gente valente” (v. 12-13), parte constituinte do seu próprio ser, que está na sua gênese enquanto sujeito “de lá”. Ao afirmar, na sequência “aqui já virei roraimeira”, ele se assume também como sujeito “daqui”, que não é roraimense, mas é “roraimeira”, aquele que canta e declama seu apego a Roraima. No entanto, o apego não subtrái a saudade de suas origens, de sua cultura formacional, o que fica claro quando diz: “mas sinto saudade de você” (v. 15), um “você” que é a “mangueira”, neste momento, simulacro do seu passado, das lembranças da adolescência, das conversas entre amigos, posto que a “mangueira” tornou-se cúmplice e confidente de tudo isso. Evidencia-se, neste poema, o sentimento de “estar aqui” e “ser de lá”. Embora o eu poético não revele sua naturalidade nem o lugar onde reside, o plano de fundo contido nos versos remeterá aos elementos amazônicos, e permite relacionar o poema não só com a memória da sua terra natal (Belém-PA), mas também a terra na qual escolheu viver agora, Boa Vista (RR), em relação à qual declara seu apego idetintário. “Mangueira” vem reforçar a noção de que a cultura não é fixa ou 5

Canoa indígena.


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imutável, pois “o indivíduo deve estar aberto e receptivo ao novo. Deve conhecer e experimentar as outras culturas como forma de valorizar a diversidade cultural dos povos e como enriquecimento cultural”. (MENDES e SILVA, 2012, s.p). A cultura está em permanente processo de construção, à medida que os indivíduos, dentro de uma determinada sociedade, vão interagindo, trocando ideias, conhecimentos, partilhando costumes, crenças, entre outros elementos das culturas de onde se originam. E, a partir dessa junção com novos conhecimentos, constroem uma nova história de vida, na qual os hábitos e costumes, sentimentos expressões, gostos, gêneros, tradições e costumes locais vão se inserindo e compõem um novo panorama cultural. O que percebemos em “Mangueira” acentua a nossa noção de identidade cultural como resultante de um processo de negociação entre culturas de modo que prescinda de uma legitimação etnocêntrica, baseada na discriminação e/ou na negação do Outro. Esta nossa hipótese encontra fundamento e ecos em Homi Bhabha quando propõe a ideia de “entre-lugar” como aquele que resulta da possibilidade de articulação entre as identidades culturais. Esta articulação aponta para um contexto de deslocamento e negociação entre culturas e identidades. Ao deslocar-se de Belém para Boa Vista, Zeca Preto o fez despretensiosamente, a propósito de um trabalho que assim o exigia. No entanto, a chegada ao novo espaço geográfico foi pontuada por experiências sensoriais, sociais (pessoais) e artísticas que acabaram por envolvê-lo numa atmosfera de prazer e familiaridade6. Os elementos positivos da vivência em Boa Vista entram em negociação com a memória das experiências da/na terra natal, produzindo sentimentos topofílicos em relação ao novo lugar sem, contudo, haver um apagamento dos mesmos sentimentos em relação à Belém. “Paracuxinauara” é um texto que ilustra bem este aspecto de negociação entre culturas, posto que embora se trate de duas culturas amazônicas, suas peculiaridades são acentuadamente alternadas ao longo dos versos. PARACUXINAUARA Corre no rio das minhas veias barquinhos de buriti levando uxi, caju, mangaba doce trazendo manga, açaí 6

Fonte: entrevista op. cit.


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piracema de jaraqui, cará alvoroço no Anauá Sou filho da capivara, da onça, do tamanduá do tatu, do gato maracajá, do cativo tracajá Escorre farto sobre o corpo meu vinho da erva, urucum tem parixara hoje na aldeia lá atabaque maracá marabitana pulando a dançar guaribas sou ritual Sou filho do Amazonas, do Parima, Tocantins yanomami, parintintins, Guamá, Negro, Amajarí. (PRETO, Zeca. 1994, Faixa 11)

O poema traz como título um neologismo que agrega três representações identitárias baseadas no local de nascimento dos indivíduos: paraense, macuxi7 e manauara. O eu poético faz um passeio intercultural nos versos do poema destacando elementos que, ao mesmo tempo, definem as identidades e as aproximam. A começar pela primeira estrofe, segue até o último verso do poema, ao longo do qual traz, imageticamente, o movimento das águas dos rios, marca fundamental da Amazônia, onde o rio representa não só a fertilidade da terra, a abundância do peixe, alimento fundamental, mas, principalmente, ele representa a capacidade de do deslocamento, a possibilidade de “ir” para onde a vida puder ser melhor. Abrindo o poema, o eu anuncia: “Corre no rio das minhas veias”. Isso, por si só, já contempla a ideia de que o rio e o ir-e-vir possibilitado por ele são elementos “vicerais” do amazônida. E o anúncio inicial vai ganhando significado à medida que os rios vão ganhando nome, indicando, paulatinamente, o trajeto, geograficamente construído, do sujeito através da Amazônia. O primeiro rio citado é o Anauá, em Roraima, no sexto verso, chegando, no décimo quinto, ao Amazonas (AM), ao Tocantins (que nasce em Goiás e segue até Belém), ao Guamá, no Pará, ao Negro, no Amazonas e terminando no rio Amajari, que fecha o ciclo e volta a Roraima. No poema, todos eles se tornam um só rio a circular pela Amazônia e pelas veias do eu poético, numa espécie de síntese da Amazônia brasileira. Neste cruzar de águas, barquinhos de buriti transportam uxi, caju, Quem nasce em Roraima é roraimense ou macuxi, uma denominação mais utilizada localmente em alusão ao mais numeroso dos povo indígena do estado, os Macuxi (a forma correta é sem a marca de plural). 7


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mangaba doce, manga e açaí, frutas típicas da Amazônia. Aparecem ainda nestes versos o fervilhar da piracema do jaraqui, peixe que em Óbidos, no Pará, ganha um festejo particular, o tradicional “Festival do Jaraqui”8, e também a piracema do cará muito comum nas águas do rio Negro em Manaus (AM), mas que no poema causam alvoroço nas águas do Anauá (RR). Nos versos da segunda estrofe, o eu poético assume-se como “filho” da capivara, da onça, do tamanduá do tatu, do gato maracajá, do cativo tracajá, animais da Amazônia que podem ser encontrados nos estados cujas identidades são evocadas no poema. Os versos da terceira estrofe trazem elementos comuns às culturas indígenas: o vinho do urucum usado para as pinturas corporais antes dos seus festejos; a dança do Parixara (dança indígena de Roraima); a aldeia; o atabaque (tambor) e o Maracá (chocalho), instrumentos musicais usados nos rituais indígenas que, no poema, embalam a dança dos Marabitanas (índios das margens do Rio Negro). Nos versos “Sou filho do Amazonas, do Parima, Tocantins / yanomami, parintintins, Guamá, Negro, Amajarí”, o eu poético assume-se como filho das águas do Amazonas e do Negro (AM), do lago Parima e do rio Amajarí (RR), do Tocantins e do Guamá (PA), bem como reivindica sua ancestralidade nos indígenas Yanomami (RR) e Parintintins (AM). Assim, o sujeito busca demonstrar que é possível ser “Paracuxinauara”, um sujeito que habita muitas culturas e transita por seus elementos. Um sujeito fronteiriço, que se reconhece nestas três identidades, sem demonstrar desejo ou preocupação em assumir apenas uma delas. Com base na leitura de “Paracuxinauara”, percebemos que o eu poético não apaga seus vínculos quando se desloca; pelo contrário, apresenta as marcas culturais que reconhece sob a forma de simbólica dos elementos naturais que caracterizam as identidades ao mesmo tempo evocadas e reivindicadas pelo poema, ficando claro, no entanto, que o início e o fim do trajeto estão em Roraima. É como se o poema buscasse, em seus versos, lembrar aos indivíduos vinculados ao contexto roraimense que “todas as sociedades são complexas e híbridas” (COSER, 2005, p. 186), desviando-se, portanto, dos juízos de valor que resultam, quase sempre, na hierarquização de lugares, cultura e identidades. Assim, parece buscar um ideal de convivência, de respeito da alteridade que, neste contexto, está em permaMORAES, Edsérgio. Portal Obidense. Festival do Jaraqui. Disponível em < http:// www.obidense.com.br/NC_Festival_Jaraqui2.html>. Acesso em: 24 nov. 2013. 8


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nente processo de negociação, tendo em vista a pluralidade étnica e cultural que particularizam a Amazônia em relação às demais regiões do Brasil e Roraima em relação aos demais estados da Amazônia. Trata-se de um traço observável não só em “Paracuxinauara”, mas na poesia topofílica de Zeca Preto como um todo, em que o entre-lugar teorizado por Bhabha surge como uma realidade intervalar que cria um espaço privilegiado para a negociação de diferentes culturas, tendo em vista que sua noção de identidade passa, necessariamente, pelo movimento, pelo deslocar-se, pelo reconhecer-se “si” no “outro”. As experiências íntimas entre sujeitos e lugares parecem definir os traços de uma possível identidade roraimense justamente por este movimento, através do qual o sujeito se coloca como observador permanente que, a todo momento, intervém no que se põe ao entorno e reivindica o seu pertencimento a Roraima, como pode er observado em “Sou”. SOU Sou zarabatana Atroarí Cheiro a mato, a onça, taquari Matinta Pereira solta em mim Canto a terra de Makunaima Canto o boto namorador Canto a Serra da Lua Grande No rio Branco sou vida Sou aruanã Sou Canaimé, Mapinguarí Yakoanã, Pajé Waymiri No meu sangue o gosto de açaí Toco canto tuas belezas Anuncio cruviana chegou Descalço caminho teus lavrados Sou feliz Eu sou Roraima meu irmão (PRETO, Zeca, 1997, Faixa 12)

Como é óbvio, o próprio título do poema, já traz em si uma carga de subjetividade que se desdobra no transcurso dos versos, fartos em marcadores identitários que remetem ao ambiente e à cultura amazônicos. “Sou” está escrito na primeira pessoa do singular do verbo ser, conjugado no presente do indicativo, e demonstra a condição de pertencimento do eu poético às várias identidades míticas apontadas e demais elementos que surgem ao longo do texto. Há uma associação entre sujeito/objeto e sujeito/lugar, como por exemplo, no primeiro verso, “Sou zarabatana Atroarí”, no qual há uma relação de mescla do


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sujeito com o objeto, a arma letal utilizada pelos indígenas para a caça. No verso 2, “Cheiro a mato, a onça, taquari”, o eu do poema exala a essência do lugar por intermédio dos elementos “mato, onça e taquari”, vegetação e animais comuns nesta região. Nos versos “Matinta Pereira Solta em mim (v.3)” e “Sou Canaimé, Mapinguarí (v.9)”, o eu poético assume diversos papéis dentre as figuras mitológicas que compõem as lendas da região norte, figuras míticas que assombram as histórias contadas pelos índios mais velhos para que os índios mais novos não transgridam as leis da tribo. Quando diz “Canto a terra de Makunaima / Canto o boto namorador / Canto a Serra da Lua Grande / toco canto tuas belezas / Anuncio cruviana chegou”, mediante um discurso laudatório de exaltação estética, entoa um canto à Terra de Makunaima, epíteto do estado de Roraima, “uma terra cujo guardião é Makunaima, guerreiro e herói da tribo dos macuxi, maior etnia índígena do estado de Roraima” (OLIVEIRA; SOUZA; WANKLER, 2009, p. 33). Canta as belezas do lugar, as suas paisagens naturais como a Serra da Lua e o lavrado, vegetação típica da região (FERREIRA, 2004). Canta a mitologia indígena, na figura do boto, em cuja lenda encontramos a transmutação do peixe, durante a noite, em um belo e elegante rapaz que seduz as moças das regiões ribeirinhas, bem como faz referência, ainda, ao Cruviana, vento frio e forte que sopra nos lavrados, entidade mítica dos Macuxi. Quando diz: “No rio Branco sou vida (v. 7) / Sou aruanã (v.8) / (...) No meu sangue o gosto do açaí” (v.11), adota a figura da água, fonte de vida, que corre no curso do principal rio da região. Adquire a forma do peixe aruanã, muito comum às bacias hidrográficas amazônicas, que alimenta e dá sustento aos moradores ribeirinhos. Há também neste discurso poético uma referência à terra natal do poeta, uma vez que o eu poético assume a fluidez do vinho do açaí correndo em suas veias. No verso “[sou] Yakoanã, Pajé Waymiri”, transmuta-se em Yakoanã, pó alucinógeno utilizado em rituais das tribos yanomami pelos pajés para entrarem em contato com os espíritos dos seus ancestrais (KOPENAWA & ALBERT, 2015), e também na figura do pajé, espécie de benzedor, curandeiro (FERREIRA, 2004), que no poema pertence à tribo dos Waimiri-atroari, umas das várias etnias indígenas que habitam o estado de Roraima. Por último, quando o eu do poema diz “Descalço caminho teus lavrados / Sou feliz/ Eu sou Roraima meu irmão”, assume a condição de pertencente a esta diversidade, a este cenário de várias culturas e múltiplas identidades, incluindo o outro no seu discurso chamando-o


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de “meu irmão”, convidando-o a experienciar, identificar-se e a incluir-se nesta diversidade. Considerando tudo sobre o que refletimos até aqui, parece-nos claro que a condição de migrante produz dois impactos significativos na produção poética de Zeca Preto. Um deles diz respeito à multiplicidade de elementos do entorno, dos seus lugares de referência, que contribuem para a construção de uma poesia topofílica que escapa ao campo meramente laudatório, trazendo-a para o campo da reflexão, que é onde reside o segundo impacto. Ao refletir, ou seja, ao elaborar a paisagem amazônica, Zeca Preto acaba por problematizar as relações humanas e aquelas entre o homem e o mundo natural. Este último é uma presença forte em sua obra, assim como o é na vida da maioria dos habitantes da Amazônia. O Zeca Preto é paraense de nascimento, é roraimense declarado; ele é migrante. Mas é um migrante que busca se distanciar de saudosismos e de dores da alma e cuja distância em relação ao lugar desejado é sempre a mesma que se desvela quando “vai daqui” ou “vem de lá”. Longe das angústias da distância, a imensidão da Amazônia aproxima pelo sol que nos consome, pela terra disputada, pelas águas que nos irrigam e nos unem através dos rios, das chuvas, metáfora indelével da vida... Mas isto já é assunto para um outro Zeca.

Referências BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998. COSER, Stelamaris. Híbrido, hibridismo e hibridização. In. FIGUEIREDO, E. (org). Conceitos de Literatura e Cultura. Juiz de Fora: UFJF, 2005. EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. Trad. Sandra Castelo Branco. São Paulo: Editora UNESP, 2005. KOPENAWA, Davi e ALBERT, Bruce. A Queda do Céu – Palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. MENDES, Rosicléia Lopes Rodrigues; SILVA, Susie Barreto da. A importância das raízes culturais para a identidade cultural do indivíduo. Disponível em: <http:// meuartigo.brasilescola.com/artes/a-importancia-das-raizesculturaparaidentida de-.htm>. Acesso em: 10 de ago. 2012. MORAES, Edsérgio. Portal Obidense. Festival do Jaraqui. Disponível em < http:// www.obidense.com.br/NC_Festival_Jaraqui2.html>. Acesso em: 24 nov. 2013. NASCIMENTO, Cleo Amorim. SUBJETIVIDADE E IDENTIDADE NA POESIA TOPOFÍLICA DE ZECA PRETO. 2014. 114p. Dissertação (Mestrado em Letras) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal de Roraima, Boa Vista, 2014.


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Migrações, trânsitos transfronteiriços e mercado laboral na Pan-amazônia: Brasil, Venezuela e Guiana Francilene dos Santos Rodrigues1 Márcia Maria Oliveira 2 Mariana Cunha Pereira 3

Introdução Este texto faz parte das pesquisas realizadas pelo Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras – GEIFRON4, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteiras da Universidade Federal de Roraima - UFRR. As pesquisas aqui apresentadas foram realizadas entre 2013 e 2015, com financiamento do CNPq (Edital Universal 20132015)5, sobre a dinâmica das transfronteira e das microrrelações das populações locais dos Estados nacionais brasileiro (Bonfim, Pacaraima, Boa Vista), venezuelano (Santa Elena do Uairén) e guianense (Lethem). Neste trabalho, apresentamos, primeiramente, uma descrição dos Programa de Pós-graduação Sociedade e Fronteiras (PPGSOF) e Programa de Pósgraduação em Recursos Naturais (PRONAT)/UFRR, coordenadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras (GEIFRON)/Universidade Federal de Roraima (UFRR). Doutora em Ciências Sociais, com habilitação em Estudos Comparados das Américas (CEPPAC/UnB). 2 Universidade Federal de Rondônia (UFRO) e membro do GEIFRON. Doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA/UFAM 3 Universidade Federal de Goiás (UFG), membro do GEIFRON. Doutora em Antropologia (CEPPAC/UnB).). 4 O GEIFRON está vinculado à linha de pesquisas Processos Sociais e Simbólicos do PPGSOF/UFRR. É formado por pesquisadores das diversas áreas do conhecimento que tenham como objeto de pesquisa a fronteira em suas mais diferentes concepções e abordagens teóricas, seja do ponto de vista dos processos sociais, seja do ponto de vista dos processos simbólicos. Disponível em: https://ufrr.br/ppgsof/index.php/ component/content/article.html?id=22. 5 Título da Pesquisa: Dinâmicas das fronteiras Pan-amazônica: migrações, famílias transnacionais e relações socioculturais. Financiada pelo CNPq. Edital Universal 20132015 que contou com a participação dos seguintes membros do GEIFRON: Iana Santos Vasconcelos; Beatriz Patrícia de Lima Level; Tehany Barros Lima; Eriki Aleixo de Melo; Noelline Freire Lemos; Tatiana Carvalho Aguiar; Maria Helena Medeiros Castro; Claudir Cardoso Lima Cruz; Alfredo Antunes Manso; Bruno Magalhães; Heraldo da Silva Belota Junior; Rachel Pinheiro de Matos. 1


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momentos ou fases da migração nessa região transfronteira, a dinâmica econômica da fronteira com a Guiana e alguns aspectos da integração sociocultural na fronteira com a Venezuela. Em segundo lugar, indicaremos quem são os brasileiros que transitam nessas fronteiras, ou seja, apresentaremos um perfil socioeconômico atual comparando-o com perfis encontrados em pesquisas anteriores, com a finalidade de ressaltar as mudanças. Esses perfis foram traçados em vários momentos das pesquisas financiadas pelo CNPq, a primeira de 2009 a 2011 e, a segunda de 2013 a 2015. A pesquisa foi desenvolvida em Boa Vista, Pacaraima, Bonfim (Brasil), Las Claritas, Santa Elena do Uairén (Venezuela) e Lethem (Republica Cooperativa da Guyana). Outros dados foram coletados, mas, nesse trabalho será apresentada parte dos resultados da pesquisa qualitativa, que consistia de entrevistas semiestruturadas (questões fechadas e abertas). Foram realizadas 15 entrevistas em Bonfim; 09 em Lethem; 27 em Pacaraima e 25 em Santa Elena. Os questionários foram aplicados somente aos brasileiros que vivem e/ou trabalham em Santa Elena do Uairén, nos garimpos, em Pacaraima, Lethem e Bonfim. Os dados aqui apresentados, são apenas fragmentos das pesquisas realizadas ao longo de 5 anos, com financiamento público. Esperamos poder organizá-los em um banco de dados e disponibilizá-lo para outras análises das dinâmicas transfronteiriças. Aproveitamos para agradecer aos atores e atrizes, interlocutores dessa pesquisa, que aceitaram compartilhar suas experiências diaspóricas conosco. Por fim, algumas considerações sobre os resultados aqui apresentados.

Migração e mobilidade na transfronteira Brasil/ Venezuela/Guiana Desde o início dos anos 1990, tem-se observado nos países latino-americanos o aumento considerável da migração intrarregional e transfronteiriça6. As cidades fronteiriças tornam-se cada vez mais viáveis, uma vez que o custo dessa migração é relativamente baixo, devido à proximiBRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Subsecretaria Geral das Comunidades Brasileiras no Exterior – SGEB. Departamento Consular e de Brasileiros no Exterior – DCB. Divisão das Comunidades Brasileiras no Exterior – DBR. Brasileiros no Mundo: Estimativas. Terceira Edição, Junho de 2011. Disponível em http://sistemas.mre.gov. br/kitweb/datafiles/BRMundo/ptbr/file/Brasileiros%20no%20Mundo%202011%20 -%20Estimativas%20 %20Terceira%20Edi%C3%A7%C3%A3o%20-%20v2.pdf 6


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dade e à facilidade de acesso terrestre. Outro fator que contribui para o aumento desse fenômeno social diz respeito ao intercâmbio de moedas, que favorece alguns países e apresenta amplo poder de compra em áreas fronteiriças. Desse modo, o fator econômico, o desemprego e os baixos salários determinam, em certa medida, os fluxos migratórios e cooperam com alternativa de migrar para outro país. E assim ocorre, sobretudo, quando o que se ganha no país de origem não é suficiente para a manutenção familiar entendida não apenas como sobrevivência, mas, como a aquisição de bens, tais como casa própria, transporte e bens de consumo e, também, com acesso a serviços de saúde, transporte e saneamento básico. Outros fatores que estimulam novas migrações são as condições insuficientes ou inadequadas de infraestrutura. Roraima, por sua vez, apresenta-se como um lugar de trânsito e de permanência dos migrantes sul-americanos e fronteiriços. Na tríplice fronteira Brasil/Venezuela/Guiana o fluxo migratório é intenso e faz parte do dia a dia das pessoas que vivem tanto nas cidades fronteiriças (Lethem/Bonfim; Pacaraima/Santa Elena do Uairén), como em Boa Vista (Brasil) e Bartica (Guiana). Dessa forma, o trânsito de pessoas e mercadorias nas fronteiras do Brasil, Venezuela e Guiana é uma constante e tem-se intensificado nos últimos anos. A tríplice fronteira Brasil/Venezuela/Guiana tem se constituído em um espaço social transnacional à medida que as populações desta transfronteira mantêm vínculos comerciais, trabalhistas, de parentescos e se deslocam continuamente entre os países (NEUMANN, 2008). Entendemos transnacionalismo, na perspectiva de Ribeiro (2000; 1999), como fenômeno que implica a relação de populações de diferentes territórios que desenvolvem inúmeros arranjos socioculturais e políticos que, por sua vez, orientam as maneiras como as pessoas representam o pertencimento às unidades socioculturais, políticas e econômicas. A cidade de Lethem, até pouquíssimo tempo, contrastava com Santa Elena do Uairén, cidade em que os fluxos migratórios e comerciais eram mais intensos. Nos anos 1970, 1980 e 1990 os brasileiros emigravam para a Guiana, configurando os três momentos do movimento migratório de brasileiros para a Guiana para atuarem, predominantemente, nas atividades de extração mineral (garimpagem) ou nas atividades de apoio (estabelecimentos de compra e venda de ouro e diamantes, comércio de gêneros alimentícios) (RODRIGUES, 2008), e sempre para as cidades mais próximas à essas regiões, como a cidade de Bartica (LOURENÇO, 2012). Pode-se afirmar que o fluxo migratório nesta fronteira era, predominantemente, de brasileiros para as


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regiões de garimpo (Bartica) e de guianenses para Boa Vista e Bonfim. No entanto, desde o final do ano de 2011, a cidade de Lethem tem se tornado um grande atrativo, uma vez que tem aumentado, significativamente, o número de lojas e comércios com produtos oriundos da China. Em Lethem, o número de empresas em funcionamento é três vezes maior que em Bonfim, sendo que dezenas de pequenas e médias empresas foram abertas em menos de cinco anos (SIMÕES e VERAS, 2014). É importante ressaltar que as empresas em Lethem vendem prioritariamente produtos de vestuário em geral, porém há outros ramos, como o de máquinas e equipamentos, de prestação de serviços, dos ramos de alimentos e restaurantes, setor hoteleiro, bares, supermercados etc. Este aquecimento do comercio fronteiriço tem atraído um número expressivo de brasileiros que se dirigem à cidade para a compra destes produtos, que, por sua vez, tem gerado novas demandas por serviços e mão-de-obra para os setores da construção civil e alimentação (restaurantes, lanchonetes). Dados de pesquisa de campo (RODRIGUES, 2011; SIMOES; SENHORAS, 2014) demonstram que o número destes estabelecimentos de propriedade de brasileiros saltou de dois para oito, significando um crescimento de 400% no espaço de um ano. Ao dissertar sobre a dinâmica comercial nessa fronteira, Simões e Senhoras (2014, p.16) afirmam que: O padrão de comércio formiga existente em Lethem permite retirar duas conclusões. De um lado, apesar do comércio na cidade de Lethem ser maior que o de Bonfim, evidenciou-se que, diariamente, guyanenses abastecem-se de alguns produtos que não são encontrados ou que são diferenciados dos encontrados em Lethem, como o pão, bebidas (em geral alcóolicas) e, eventualmente, mobiliário. De outro lado, a dinâmica de comércio formiga triangular é prevalecente, pois a maioria dos clientes das lojas de Lethem não são os moradores de Bonfim, mas sim de Boa Vista, corroborando com o fato de que a dinâmica entre as cidades-gêmeas é sustentada por esse município.

O investimento local em Lethem proporciona a oferta de empregos, fator que motiva dezenas de trabalhadores da cidade de Bonfim a se deslocaram diariamente para esse fim. Ressalte-se que parte destes estabelecimentos contrata, prioritariamente, mão-de-obra brasileira ou indígena (de várias etnias e de dupla nacionalidade). Vale destacar que os guianenses também buscam serviços em Bonfim e, até mesmo,


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na capital Boa Vista, principalmente no que diz respeito à educação, uma vez que o lado brasileiro detém melhor infraestrutura e qualidade destes serviços e a capital, Georgetown, está a 560km, ou 12 horas de viagem por terra, de Lethem. No entanto, o inverso também é verdadeiro. Os brasileiros de Bonfim utilizam os serviços hospitalares de Lethem pela praticidade e pela agilidade e ainda pelo fornecimento da medicação e exames de forma gratuita. Portanto, a migração diária de pessoas para fins de atividades laborais na fronteira pode ser entendida como fronteira em movimento, que alimenta o sonho de melhores condições de vida e mais favoráveis a oportunidades de trabalho, bem como de melhores serviços básicos. Podemos afirmar, então, que estas dinâmicas decorrentes do incremento das migrações, do trânsito de informações, de mercadorias e de força de trabalho possibilitam a análise da articulação entre fenômenos na esfera local, regional, nacional e transnacional neste espaço fronteiriço. Esta nova tendência chama a atenção, porque o fluxo migratório nesta fronteira era, predominantemente, de brasileiros para as regiões de garimpo (Bartica/Guiana; El Dorado, Las Claritas, Maturin/Venezuela) e de guianenses e venezuelanos para Boa Vista, Pacaraima e Bonfim. Historicamente, o fluxo na fronteira Brasil-Guiana tem-se efetivado desde o século XIX. Um dos momentos deste deslocamento populacional nesta fronteira ocorreu nos anos de 1820, 1838, 1902 e 1922 em que ocorreu o reconhecimento do direito consuetudinário das terras indígenas na Guiana, contrastando com o caso do Brasil, da época, cujo projeto de fronteira da região do rio Branco sofria uma inflexão radical (SANTILLI, 1994). Segundo Santilli (1994) outro momento do trânsito populacional na fronteira Brasil-Guiana ocorreu no início do século XX, no processo de colonização e recrutamento de mão-de-obra forçada de indígenas brasileiros. Ao final de 1920, ocorreram vários movimentos migratórios de indígenas do Brasil para a Guiana motivados pela fuga dos fazendeiros brasileiros que praticavam atos violentos contra os povos indígenas, pela invasão de terras brasileiras por pecuaristas e garimpeiros nos anos de 1920 a 1930 (BAINES, 2004). Mas, é a partir dos anos 1960, após a Independência da Guiana, em 1966 e a crise que se estabeleceu no país resultando nos conflitos étnicos entre os afro-guianenses e indo-guianenses que aumentou o fluxo para além da região fronteiriça e, depois, a partir dos anos 1990, em decorrência da crise econômica do país. Já nos anos 2000, essa migração tornou-se uma constate, formando


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o grupo mais numeroso e integrado de imigrantes internacionais na cidade de Boa Vista e Bonfim. Esse fluxo populacional foi afetado pela crise econômica na Guiana e os imigrantes guianenses visualizavam oportunidades de empregos e trabalho na informalidade, mas também pela rede de serviços sociais, sobretudo, educação e saúde, mais estruturados e acessíveis que na Guiana. A migração da Guiana para Bonfim, mas principalmente para Boa Vista, tem apresentado um crescimento significativo de mulheres indígenas e afro-guianenses, que imigram sozinhas ou para juntarem-se aos seus familiares. Apesar de suas trajetórias migratórias, se constituírem a partir das redes de parentescos consolidadas, a vulnerabilidade a que estão submetidas é enorme, principalmente, decorrente da situação de irregularidade ou não formalidade de sua condição cidadã no país de destino; das relações de trabalho e extrema exploração da sua força de trabalho; da violência nos seus mais diversos significados simbólicos como a separação física da família, o afastamento de seu universo cultural, o preconceito e xenofobia. De acordo com a análise feita por Santos (2009) acerca das representações dos imigrantes em Boa Vista reproduzidas pelo jornal “Folha de Boa Vista”, as reportagens dizem respeito a pontos negativos dessa migração. São manchetes envolvendo os guianenses em atos ilícitos. O discurso que predomina na mídia impressa roraimense é o da criminalização, marcado por nomeações como ilegais, violência, intolerância, preconceito, fiscalização, tráfico ou detenção. As representações sobre os imigrantes guianenses são reproduzidas no imaginário da população local e materializadas em forma de atos preconceituosos contra esse grupo social e cujas diferenças estão presentes nas sociabilidades. Os meios de comunicação, principalmente os de mídia televisiva e impressa, reproduzem as representações da vida social e vice-versa. A representação social sobre o objeto está relacionada ao significado e interpretação a respeito do objeto e por parte de determinado grupo (GUIMELLI, 1994), que a utiliza na formação da opinião pública das sociedades e na formação de imagens do “outro” de forma negativa, gerando conflitos e intolerâncias. Na fronteira Pacaraima, estado de Roraima (Brasil), e Santa Elena do Uairén, estado Bolivar (Venezuela), o processo migratório teve início nos anos de 1970. Segundo Rodrigues (2008), a emigração de brasileiros para a Venezuela é mais significativa do que de venezuelanos para Roraima, uma vez que este fluxo é, de certa forma, um prolongamento das migrações internas, resultado da expansão da fronteira


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agrícola na Amazônia (BECKER,1997) e da frente garimpeira. Sendo assim, Roraima enfrenta o duplo papel de emissor de mão-de-obra para os países vizinhos e de receptor de mão-de-obra de nacionais (migração interna) e de estrangeiros oriundos, principalmente, dos países fronteiriços. A emigração de brasileiros para a Venezuela esteve associada ao declínio da garimpagem ocorrido nos anos 1970 (primeiro movimento migratório) e 1990 (segundo movimento migratório), da transformação da Vila de BV-8 em município de Pacaraima (1995) e do asfaltamento da BR 174 (1998) (terceiro movimento migratório) o que facilitou e incrementou o trânsito de pessoas e mercadorias (RODRIGUES, 2008). A primeira fase deste movimento migratório caracterizou-se pela presença maciça de homens, oriundos do Nordeste brasileiro, que se estabeleceram principalmente na cidade fronteiriça de Santa Helena do Uairén, cidade de apoio e porta de entrada no país vizinho, mas, também em Ciudad Bolívar, capital do estado Bolívar, e em Maturin. Esses brasileiros inseriam-se prioritariamente no comércio vinculado à mineração. A segunda fase do movimento migratório de brasileiros para a Venezuela caracterizou-se pelo crescimento da emigração de mulheres para juntarem-se aos seus maridos e, outras, para atuarem na mineração, seja como cozinheiras e lavadeiras, seja como dançarinas7. A terceira fase deste movimento migratório apresentou novas características, dentre elas a migração de retorno para o Brasil e das áreas de garimpos para Santa Elena, ademais da emigração de mulheres sozinhas. Muitos destes brasileiros encontravam-se na Venezuela há 30 anos, com famílias constituídas ou reconstituídas ao longo da trajetória migratória. Estas famílias constituem-se famílias transnacionais definidas, aqui, não só pelo fato de os casamentos ocorrerem entre indivíduos de nacionalidades diferentes, mas, também, pelo fato de os seus membros encontrarem-se espalhados por vários países, manterem um forte sentimento de pertença à unidade familiar e estarem em contatos permanentes. Esta fase caracterizou-se, ainda, pela figura do transmigrante, aquele que possui laços simultâneos socioculturais, econômicos e políticos, no país de origem e destino (VALDERRAMA, 2007), principalmente aqueles que atravessam a fronteira diariamente para trabalharem ou estudarem em Santa Elena e retornam para Pacaraima ao final do dia. A dinâmica nesta fronteira, na atualidade, se produz também em decorrência da implantação da Universidade Estadual de Roraima Dançarinas nos cabarés inseridas no comércio da prostituição vinculado à economia garimpeira. 7


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(UERR)8, que ofertava cursos em nível universitário aos filhos de brasileiros e venezuelanos. Percebe-se, com isso, um crescimento do uso da língua portuguesa por venezuelanos, bem como do espanhol por brasileiros. O “portunhol” intensificou-se, como também outras ressignificações culturais, como é o caso da comida. A riqueza dos contatos culturais e da formação de uma cultura de fronteira. Ao imigrar, os indivíduos ou grupos humanos levam consigo interiorizados seus sistemas alimentares. Esses sistemas estão condicionados, na sua origem, à classe social do indivíduo, à sua região geográfica de procedência, à sua origem rural ou urbana, à sua herança étnica, ao aprendizado familiar, às relações de parentesco e de gênero que circunscrevem as relações familiares, à maneira como esses indivíduos ou grupos se inscrevem no processo de globalização em curso (PEREIRA, 2012, p.1). As feiras, apresentam alguns aspectos globais com produtos de vários lugares e países, principalmente chinos e, ao mesmo tempo, demonstram a riqueza dos contatos locais e interculturais, como é a feira em Santa Elena do Uairén e que acontece todas as sextas feiras. Nessa feira, podemos visualizar um pequeno microcosmo do que é essa região de fronteira com marcas culturais dos diversos povos indígenas, brasileiros, peruanos, venezuelanos, colombianos, entre outros (figura 5). FIGURA 5 - BEIJU COM LARVA DO COCO

Fonte: GEIFRON/CNPq Edital CHS 2009-2011

Enquanto terminávamos esse artigo foi noticiado que o Governo do estado de Roraima, iria extinguir campus do interior, entre eles, o de Pacaraima. Lembrando que o papel da interiorização e, principalmente da UERR-Pacaraima foi possibilitar uma maior integração sociocultural nessa região de fronteira. 8


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Nessa feira há uma grande variedade de produtos, desde carne bovina, peixes, carne de porco, frutas, queijos, pimentas, plantas nativas como orquídeas, uma variedade de temperos culinários vendidos no peso, artesanatos indígenas, vestuários, calçados, brinquedos, panelas de alumínio depósitos de plásticos para cozinha, e uma variedade de alimentos prontos para serem consumidos ali mesmo na feira, como damurida, churrasquinho, tequeño, cerveja, refrigerante, papelón con limón, beiju, salgados fritos, como pastel, coxinha, entre outros.. Nessa fronteira de forte trânsito cultural, não apenas físico, mas de trânsito permanente dos sujeitos fronteiriços entre culturas e identidades diferentes, ficam as marcas desse contato, das mesclas, inclusive no âmbito da comida e do sistema alimentar em que os atores sociais mobilizam conhecimentos tecnológicos e representações sociais. ( AGUIAR, 2015)1,

2. O mercado laboral e os rostos dos transmigrantes na fronteira Brasil-Venezuela-Guiana Apresentaremos aqui apenas o perfil dos brasileiros que se encontravam trabalhando em Lethem no período da pesquisa. Foram entrevistados 15 interlocutores e destacamos itens referente idade, gênero e grau de escolaridade e tempo de serviço na cidade de Lethem. No comércio de Lethem os gêneros feminino e masculino estavam equilibrados. No entanto, as mulheres apresentavam faixa etária entre 17 a 28 anos, os homens apresentavam faixa etária de 18 a 33 anos. Ambos os gêneros, em idade produtiva, jovens e escolarizados é o perfil esperado pelos donos dos estabelecimentos comerciais. Quanto à escolaridade, as mulheres também apresentavam melhor escolaridade, ou seja, enquanto maioria das mulheres havia concluído o ensino médio, a maioria dos homens havia concluído o ensino fundamental ou tinha somente o ensino médio incompleto. O tempo de serviço médio das mulheres nos estabelecimentos comerciais era de 3 a 6 meses, enquanto o dos homens era de 3 a 8 meses. Isso demonstra a alta rotatividade da força de trabalho no mercado laboral em Lethem. Considerando o conhecimento sobre as legislações trabalhistas da Guiana e do Brasil, parte dos entrevistados as desconhecia o que, segundo Lemos (2015, p.6), “leva-os, de certa forma, a aceitar as condições que lhes são oferecidas, mesmo que estas sejam incompatíveis com o Art. 2º da Convenção Internacional sobre a Proteção dos


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Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e dos membros das suas famílias”9. Alguns estabelecimentos comerciais em Lethem têm um brasileiro como sócio ou é empreendimento familiar em que o outro cônjuge é guianense (figura 1). Acreditamos que isso é um elemento que favorece a propriedade e gestão de estabelecimentos, uma vez que, para o desenvolvimento de determinadas atividades, exige-se a legalização e formalização de pessoa civil e com direitos e deveres regulares. FIGURA 1: LOJA EM LETHEM

Fonte: GEIFRON/CNPq Edital Universal 2013-2015

Esta dinâmica faz supor que a constituição de famílias transnacionais, os casamentos multiétnicos, conformam uma realidade desde os tempos coloniais, mas assumem outros aspectos nesta fase atual da transfronteira Brasil-Guiana (BAINES, 2004). O mercado laboral do lado venezuelano se assemelha ao do lado guianense, ou seja, comercio e mineração. Apesar dos impedimentos legais, os fluxos migratórios para as áreas de mineração, tanto na Venezuela, como na Guiana têm se mantido constante. A pressão das comunidades indígenas e das entidades ambientalistas para coibir os impactos ambientais decorrentes da exploração mineral ao longo da bacia do Orinoco e do rio Caroní (Venezuela) Convenção Interamericana sobre a proteção dos direitos de todos os trabalhadores migrantes e os membros das suas Famílias. Adotada pela Resolução 45/158, de 18 de dezembro de 1990, da Assembleia Geral da ONU. Entrada em vigor em 01 de julho de 2003. Disponível em: http://www.december18.net. Acesso: 18 de abril de 2014. 9


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levou o governo venezuelano a estabelecer uma política de remanejamento dos garimpeiros nacionais para outras atividades e à expulsão dos estrangeiros, entre eles brasileiros, que, no entanto, ainda se mantêm nas regiões de garimpo por meio de pagamento de propinas aos controladores ilegais da exploração mineral (figura 2). FIGURA 02- ÁREA GARIMPADA NA VENEZUELA (2015)

Fonte: Arquivos GEIFRON/CNPq Edital Universal 2013-2015.

Em setembro de 2006, dos dez garimpeiros mortos durante uma operação do Exército venezuelano a 250 km da Ciudad Guayana (estado Bolívar), quatro eram brasileiros10. Em 2010, novamente o governo venezuelano começou medidas de proteção das bacias dos rios Caura, Caroní, Icabarú e Paragua, no estado Bolívar, colocando em marcha o “Plan Caura”, tornando ilegal, mais uma vez, a mineração nesta região. No entanto, a mineração ilegal continuou. Leobardo Acurero, da Frente Ecológico del Partido Socialista Unido de Venezuela, em entrevista ao EL Nacional, afirmou que havia cerca de 5.000 garimpeiros trabalhando na bacia do rio Caroní11. Em dezembro de 2009, cerca de 40 garimpeiros brasileiros foram acusados de explorar ilegalmente jazidas minerais na Amazônia venezuelana e poderiam ser repatriados ao Brasil depois que o governo da Venezuela decidiu expulsar centenas Matéria do jornalista Pablo Uchoa. “Garimpeiro morto na Venezuela pode ser brasileiro”. BBC.com Brasil. De Londres, 26 de setembro, 2006. Disponível em http://www. bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2006/09/printable/060926_venezuela_ garimpeiros_pu.shtml. Acesso 01.07.09 às 18:50 h 11 Matéria de Fabiola Zerpa intitulada “La minería ilegal destruye el río que alimenta el Hurí”. Publicada no Jornal El nacional, em Caracas no dia 07 de março, 2010. (http://el nacional.com/www/site/p_contenido.php?q=nodo/126507/Nacional/ Laminer%C3%ADa-ilegal-destruye-el-r%C3%ADo-que-alimenta-el-Guri. Acesso em 25.09.11, 11:00 h. 10


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de mineiros que teriam sido flagrados realizando atividades ilegais e praticando crime ambiental grave12. A disputa pelo controle e cobrança de propina para “supostamente” protegerem os garimpeiros de fiscalização do governo tem resultado em vários conflitos armados entre bandos formados, em sua maioria, por militares e ex-militares. O diário Correo del Caroni contabilizou, em 2015, 17 conflitos violentos que deixaram 28 mortos13. Em março de 2016, os jornais venezuelanos publicaram a execução de 28 garimpeiros, em Tumeremo, município de Sifuentes. Segundo o jornal AFP, as testemunhas informaram que os garimpeiros foram “esquartejados e jogados em um caminhão”, que seguiu para um destino desconhecido. Aparentemente agiram com um objetivo”, que era assumir o controle do garimpo, declarou Carlos Chancellor, prefeito do Município14. Como dito anteriormente, a atividade de garimpagem é uma das mais conflitivas na Venezuela, diferentemente da atividade na Guyana, em que é reconhecida e é permitida aos brasileiros, desde que cumpram certas exigências. O governo do Presidente Nicolás Maduro apresentou à imprensa venezuelana, em fevereiro de 2016, “o projeto motor Minero, um dos 14 motores priorizados para fortalecer o aparato produtivo do pais como parte da Agenda Econômica Bolivariana, que tem como objetivo recuperar e impulsionar a economia superando o modelo rentista dos ingressos petroleiros”15. Esse projeto compreende a exploração mineral do Arco Minero Orinoco, uma área de 111 mil Km2 no sul do território venezuelano e afetará, principalmente, a atividade de garimpagem, uma vez que serão empresas multinacionais que procederão a exploração dos diversos minerais que ali existem. Esse projeto, sem dúvida, afetará a maior parte dos brasileiros que vive da garimpagem ilegal. Matéria publicada no Estadão online. “Garimpeiros ilegais na Venezuela podem ser repatriados ao Brasil”. São Paulo: 01 de dezembro de 2009. Disponível em http:// www.estadao.com.br/noticias/internacional,garimpeiros-ilegais-na-venezuela-podemser-repatriados-ao-brasil,475192,0.htm. Acesso 25.08.11.23:45 13 Matéria jornalística intitulada “Peritos encontram corpos de garimpeiros desaparecidos”. Caracas, Valor Econômico: 14 de março de 2016. Disponível em: http://www.valor.com.br/internacional/4480542/peritos-encontram-corpos-degarimpeiros-desaparecidos-na-venezuela. Acesso em 16.03.2016 às 16:30h. 14 Jornal AFP: “Encontrados 14 corpos do grupo de 28 garimpeiros desaparecidos na Venezuela”. AFP. 15 de março de 2016. Disponível em https://br.noticias.yahoo.com/ encontrados-quatro-corpos-grupo-28-garimpeiros-desaparecidos-venezuela-000809316-sector.html?nhp=1; Acesso em 16 de março de 2016, às 15:40h. 15 Tradução livre da materia: Arco minero del Orinoco diversificará economía venezolana. Sevilla, Espanha: Telesur: Publicado em 24 febrero 2016. Disponível em http://www.telesurtv.net/news/Arco-minero-del-Orinoco-diversificara-la-economiavenezolana-20160224-0061.html. Acesso em 12 de agosto de 2016, às 21:14h. 12


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Em nossas pesquisas, pudemos demonstrar que grande parte dos brasileiros que vive na Venezuela, mantem uma relação direta ou indireta com a atividade de mineração. Quanto ao perfil desses brasileiros, a tabulação e análise dos dados demonstraram uma certa mudança, principalmente em relação à pesquisa anterior, também financiada pelo CNPq (Edital CHS/20112012). Dos 52 (cinquenta e dois) questionários aplicados aos brasileiros, 27 viviam em Pacaraima e 25 em Santa Elena. O perfil dos brasileiros que vivem na transfronteira é de uma maioria do sexo feminino (59,6%), enquanto os homens representam apenas 38,4%. Na pesquisa anterior (RODRIGUES, 2011), os homens representavam 65%. Quanto ao lugar de nascimento, observou-se, também uma mudança. Na pesquisa de 2011 (RODRIGUES, 2011), a região/local de nascimento predominante era o Nordeste e o Norte, respectivamente, diferentemente da pesquisa atual, em que o lugar de nascimento dos entrevistados é, predominantemente, da região Norte, em especial, Roraima (34,6%), seguidos dos nascidos no Maranhão (17,3%) e no Amazonas (5,7%). Os nascidos no Ceará representam apenas 5,8%. Aqui, os nascidos na Venezuela representam 17,3%. Quanto a idade dos entrevistados, predomina os que tem entre 31 a 40 anos (25%); seguidos daquele com 21 a 30 anos e 41 a 50 anos, ambos com 23%, e, os que tem entre 51 e 60 anos representando 15,4% do total. Pode-se afirmar que 86% dos entrevistados encontra-se em idade ativa (21 a 60 anos). Dos entrevistados que declararam sua cor, raça/etnia, 38,5% disseram ser pardos, seguidos dos que se declararam brancos (23%) e indígenas (23%). Aqueles que se declararam negros representam 13,5% dos entrevistados. Estas respostas indicam uma semelhança com os dados nacionais que, conforme os resultados preliminares do Censo 2010, a soma entre pretos, pardos, amarelos e indígenas (99,7 milhões) supera a população branca (91 milhões) no Brasil16. Quanto à religiosidade ou prática de quaisquer religiões, grande parte dos entrevistados respondeu que praticava a religião protestante/ evangélica (50%) e somente 36,5% afirmou ser católico. Na pesquisa anterior (2011), os católicos representavam 53,8%. Alguns falaram, no entanto, que: “não tenho religião”; “sou mundano”; “não pratica”; “não vejo muito fundamento”; “quando pode”; entre outros. Quanto ao estado civil ou conjugal dos entrevistados, 42,3% se declararam solteiros, 32,7% casados e 9,6% em união estável. Somados Disponível em http://noticias.uol.com.br/cotidiano/listas/curiosidades-do-censosobre-raca-no-brasil.jhtm. 16


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os casados e em união estável, o resultado é 42,3%, muito próximo do resultado da pesquisa em 2011, cujo resultado foi 51% de casados ou que mantinham relação estável, seguidos de 38% que se declararam solteiros. Dos entrevistados, 39 ou 75% declararam ter filhos. Destes, predominam aqueles que têm de 1 a 3 filhos (64,1%), seguidos daqueles que têm entre 4 e 5 filhos (25,6%). Quanto a naturalidade dos filhos, 19% é de nascidos na Venezuela e 7% têm dupla nacionalidade. Dos nascidos no Brasil, 47,6% nasceram em Roraima, 9,5% nasceram no Maranhão e 4,7% nasceram no Amazonas. Por esses dados, é possível inferir a trajetória migratória. Outro elemento no perfil dos brasileiros na Venezuela é a formação de família transnacional, uma vez que os casamentos entre pessoas de outra nacionalidade ocorrem em 37% daqueles que disseram estar casados ou em união estável. Outro dado relevante é o fato de 15% dos interlocutores desta pesquisa afirmarem que um dos motivos da migração foram as “separações” ou “problemas familiares”. Nestes casos, a migração emerge como alternativa de solução para o conflito familiar. Cruzar fronteiras e transitar entre culturas distintas força esses sujeitos a manejar e negociar situações de conflito de forma criativa e melhorar seus status no interior das relações familiares. O deslocamento entre um país e outro representa uma possibilidade de sobrevivência, mas também uma escolha ou um projeto individual que nem sempre é um sucesso. A maioria mantém contatos com a família seja via telefone, seja visitando de tempos em tempos. As visitas frequentes às famílias ocorrem quando estas estão mais próximas do lugar de trabalho. Esse contato, de certa forma, é favorecido pelo baixo custo das ligações telefônicas na Venezuela e do acesso via terrestre. Há que ressaltar, que ao responderem sobre os contatos com familiares, os entrevistados relacionavam o entendimento de família ampliada, que envolve não apenas os(as) filhos(as), esposas/maridos, mas, também pais, mães, irmãos e outros. A relação ou vínculo, mesmo que imaginário, funciona como um conforto de um dia, se necessário, “voltar para casa”. Essa situação de “voltar para casa” também é ambígua, uma vez que alguns perderam contato totalmente com a família de origem. Os fortes vínculos de pertencimento aos seus lugares de origem e suas tradições são ressignificadas, contudo, sem a ilusão de um retorno, de uma volta ao passado, a não ser que o projeto migratório, ou o sonho de “bamburrar” se realizasse. Ao mesmo tempo em que esperam um dia retornar esses brasileiros acreditam que “aqui” (na Venezuela) também é o seu lugar.


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Esses migrantes brasileiros são, constantemente, obrigados a negociar com a nova cultura em que vivem sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades de origem. Não obstante, ao chegarem, os imigrantes brasileiros têm que superar as barreiras da fase de adaptação, principalmente à língua. Pela proximidade entre o espanhol e o português, há brasileiros que resistem à aprendizagem da língua. Alguns brasileiros que vivem nas regiões de fronteira com a Venezuela procuram constituir e fortalecer uma comunidade de brasileiros, criando laços afetivos, estruturando sentimento de solidariedade entre os iguais. A comunidade torna-se, ao mesmo tempo, o espaço de solidariedade e de rede social. O brasileiro que vai para o garimpo tende a chamar amigos e parentes, a contratar somente brasileiros, a comprar e vender o ouro para brasileiros. Constituem redes sociais que reforçam os laços sociais que ligam as comunidades no lugar de origem aos pontos específicos de destino nas sociedades receptoras. A maior parte dos entrevistados chegou à Venezuela por meio de um amigo, um parente, um conhecido, um familiar. Quando chegam à Venezuela, vão em busca de referências brasileiras. Os brasileiros na Venezuela, em grande parte, vivem direta ou indiretamente da atividade de mineração, em constante busca do “ouro”, de melhorar de vida, muitas vezes deparam-se com condições paradoxais. Por um lado, tanto a migração como a atividade de garimpagem significam novas oportunidades de trabalho, de “bamburrar” e pegar uma boa quantidade de ouro. Ou, como no caso das mulheres que desempenham a função de cozinheira, que chegam a ganhar um salário quatro vezes maior que em alguns empregos públicos, isento de impostos e descontos, o que possibilita certa independência econômica. Por outro lado, as condições de trabalho são muito penosas, não há segurança ou qualquer benefício social ou previdenciário, ademais de representar outras perdas materiais e afetivas, como as perdas dos laços sociais e familiares, principalmente no caso dos homens. (Figura 3) Os trabalhadores e trabalhadoras das áreas de garimpagem enfrentam uma situação de vida e de trabalho em que o cotidiano está exposto à intensidade da atividade produtiva, na qual homens e mulheres, distantes de suas famílias, trabalham ao extremo, quase sem opção de lazer, clientes de uma zona de prostituição e drogas (figura 4). Eles recebem pagamentos relativamente maiores em relação as suas atividades anteriores, mas, em contraposição, se submetem a um sistema de exploração intenso (SANTOS, 2011).


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FIGURA 03: MORADIA DOS GARIMPEIROS E COZINHEIRAS. GARIMPO NA VENEZUELA (2015)

Fonte: GEIFRON/CNPq Edital Universal 2013-2015

Às precárias condições de trabalho e o próprio processo migratório dos brasileiros imigrantes na Venezuela atuando em áreas de garimpagem ilegais, acrescenta-se o constante “temor” da Guarda Nacional e de extorsão por parte do crime organizado. No caso em que as perdas são maiores que os ganhos, poderia ocorrer a migração de retorno, numa volta ao “lugar” de origem, entretanto, muitos preferem permanecer na atividade de mineração para não voltarem como “fracassados”; e aqueles que retornam, se deparam com a sensação de sentirem-se estrangeiros em seu próprio país (HALL, 2002). FIGURA 04: QUARTOS PARA OS ENCONTROS SEXUAIS. GARIMPO NA VENEZUELA (2015)

Fonte: GEIFRON/CNPq Universal 2013-2015


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Algumas considerações finais A globalização e a consequente criação de blocos regionais têm operado na dinamização dos deslocamentos populacionais, que se balizam, sobretudo, pela centralidade do trabalho como motivação principal. A despeito do crescimento da demanda de mão-de-obra qualificada nos países de economia avançada, o mercado de trabalho secundário e informal ainda é o que predomina entre os migrantes internacionais, tanto nos países do Norte, quanto no próprio continente latino americano. Na Venezuela, o principal atrativo dos imigrantes brasileiros é a mineração artesanal ou garimpagem. Neste sentindo, tanto a busca do Eldorado pelos conquistadores, nos séculos XV e XVIII, quanto as corridas do ouro no século XX nas Amazônias brasileira, venezuelana e guianense têm se constituído, historicamente, em uma atividade associada aos deslocamentos populacionais na região. Desta forma, pode-se afirmar que a mineração está no cerne do processo de mobilidade na fronteira brasileira, venezuelana e guianense. Os brasileiros que buscam o Eldorado ou oportunidades na Venezuela e na Guiana e que atuam na mineração configuram-se, em grande parte, como exilados ou fugitivos do desemprego ou da pobreza. Ao buscarem a sobrevivência em outro país, esses brasileiros e brasileiras se deparam com o surgimento de conflitos familiares, fragilidade nos laços familiares (autoridade materna e ou paterna) e condições de trabalho muito penosas e extenuantes. Em contrapartida, essa mesma imigração contribui para a formação de uma geração de venobras, ou seja, de filhos de brasileiros imigrantes estabelecidos, que possuem dupla nacionalidade, por descendência, que vivem na Venezuela, mas mantêm fortes vínculos com o Brasil. Mas, também, crescem os “filhos da mina”, crianças e adolescentes que são levados para os garimpos pelos pais, apartando-se do convívio escolar, de sociabilidades requeridas para suas idades. Essas crianças já crescem nesse meio de dureza, sem brilho e também sem sonhos, diferentemente de seus pais, que ainda esperam encontrar o Eldorado, seja na Venezuela, seja na Guiana, pelo brilho do ouro que “embruja” e enfeitiça àqueles que o buscam.


Migrações, trânsitos transfronteiriços e migração laboral na Pan-Amazônia...

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A presença de peruanos na cidade de Boa Vista/RR: identidades negociadas a partir das redes migratórias Alessandra Rufino Santos1 Ernesto Renan Melo de Freitas Pinto2

Introdução A partir das últimas décadas do século XX, muitos peruanos migraram para os países vizinhos. Essa migração é explicada pelas teorias migratórias tradicionais como estratégia predominantemente econômica, que fortaleceu o movimento migratório entre os países de fronteira. O Brasil é o destino mais procurado, havendo, de início, opção pela cidade de São Paulo. Além de São Paulo, os peruanos se encontram também em outros estados brasileiros, como é o caso do Rio Grande do Sul, Paraná, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Amazonas, Acre, Roraima, e outras áreas de fronteiras3. Nessas regiões predominam entre os migrantes as profissões liberais, técnicas e outras relacionadas ao comércio, ao setor de serviços, educação e saúde. No que diz respeito à composição étnica desses migrantes, Silva (2001, p.491) destaca que “a maioria apresenta um componente étnico indígena relacionado as etnias aimará e quéchua. Muitos também utilizam a naturalização como forma de inserção na sociedade brasileira”. O cruzamento de fronteiras de estados brasileiros que fazem divisa com o Peru é uma prática essencial para que, posteriormente, esses Professora Efetiva da Universidade Federal de Roraima (UFRR)e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 2 Sociólogo e professor do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). 3 Segundo Sales e Baeninger (2000, p.41) existem pelo menos 16 áreas de fronteiras que envolvem desde a Guiana Francesa até o Uruguai, nas quais se constata um deslocamento emergente de pessoas. São elas: Bonfim (Roraima) – Lethem (Guiana); Tabatinga (Amazonas) – Letícia (Colômbia); Pacaraima (Roraima) – Santa Elena de Uairén (Venezuela); Santana do Livramento (Rio Grande do Sul) – Rivera (Uruguai); Barra do Quaraí (Rio Grande do Sul – Bella Unión (Uruguai). 1


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migrantes possam fixar moradia em algumas cidades da Amazônia brasileira, mais especificamente na região norte do Brasil. Santos (2011) verificou que parte dos peruanos que decidem migrar para o Brasil sai da capital, Lima, ou de alguma cidade média da região denominada de “Selva Peruana”. Alguns pegam o voo até Iquitos e daí vão de barco até a pequena cidade peruana de Santa Rosa, que faz fronteira com o estado do Amazonas. De Santa Rosa, seguem até a cidade amazonense de Tabatinga, situada na fronteira do Peru com a Colômbia. Essa cidade, além de outras cidades do interior do Amazonas, é, para muitos, apenas um lugar de passagem, pois o objetivo da maioria é chegar até à capital amazonense, a cidade de Manaus. De acordo com Silva (2010), na cidade de Manaus, as atividades desenvolvidas pelos peruanos não diferem das atividades exercidas por outros migrantes nacionais e internacionais em cidades do interior, que, na maioria dos casos, são atividades informais. A diferença é que na capital amazonense as possibilidades de trabalho aumentam. Mas, de um modo geral, são poucos os peruanos com mão de obra qualificada e que, por isso, se dispõem a aceitar qualquer tipo de trabalho para garantir o sustento de suas famílias. Santos (2011) destaca também que a trajetória migratória de alguns dos peruanos que estão vivendo no norte do Brasil pode dar-se via o Acre ou Venezuela. Os peruanos que chegam ao Acre saem de Lima até Cusco, onde pegam o voo até Puerto Maldonado. Depois, seguem pela estrada do Pacífico, que cruza o Peru a partir da Amazônia peruana até o litoral, passando pela Cordilheira dos Andes até chegar a Iñapari, vilarejo peruano que faz fronteira com a cidade acreana de Assis Brasil. Após chegarem a Iñapari, muitos seguem em direção a Assis Brasil. Outros se deslocam para Brasiléia, cidade acreana, que está a pouco mais de 100 km de Assis Brasil e faz fronteira com a cidade boliviana de Cobija. Após chegarem a Brasiléia, alguns fixam moradia, já outros vão para a capital do Acre, Rio Branco, onde passam meses ou até anos e depois se mudam para Manaus. Após passarem algum tempo em Manaus, migram para Boa Vista, já que é bastante comum receberem convites de familiares ou de amigos. Depois de passarem algum tempo em Boa Vista, alguns chegam a migrar para outras cidades roraimenses, como Pacaraima, cidade que faz fronteira com a Venezuela. Outros vão mais adiante e adentram a Venezuela, mas após algum tempo retornam para Boa Vista. Conforme se percebe na literatura acerca da migração, as decisões pessoais dependem da atuação dos indivíduos na sociedade e de suas


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relações com outros indivíduos, o que proporciona a compreensão de que a migração é um processo seletivo e não aleatório (ABUD et. al., 2008, p. 03). Neste sentido, o entendimento das redes migratórias possui importância fundamental para a compreensão da mobilidade humana em regiões de fronteira. Nesse âmbito, acreditamos que as identidades negociadas pelos migrantes peruanos ocorrem em variados contextos, tais como nas trocas familiares, nas responsabilidades parentais, nas representações das identidades projetadas pela mídia brasileira, nas memórias acionadas no Brasil, nas festas cívicas e religiosas materializadas na cidade de Boa Vista. Percebemos, ainda, que o processo migratório ajuda a construir uma experiência de interculturalidade, facilitando a aproximação das diferenças postas em contato mais incisivamente com a aceleração dos fluxos migratórios. Porém, ao mesmo tempo em que a diversidade acontece, questões relacionadas a conflitos interculturais marcam a diversidade causada pelas pertenças identitárias. É pelos fatores já apresentados que este artigo pretende discutir as contribuições das redes migratórias no processo de socialização e negociação das identidades dos peruanos que migraram para Boa Vista4. O mesmo está dividido em quatro seções. A primeira analisará as questões referentes às redes migratórias, esclarecendo os aspectos relacionados aos laços que envolvem os grupos sociais. Em seguida, as demais seções apresentarão as contribuições da relação entre a memória dos migrantes peruanos interlocutores da pesquisa e as trajetórias individuais de cada um, enfatizando o processo de negociação das identidades.

O processo de socialização a partir das redes migratórias A teoria dos movimentos migratórios resulta de contextos históricos próprios e passam a adquirir uma dinâmica interna que lhes confere as características de um sistema, um “ser vivo”. Tal sistema é resultante de várias interações entre diversos elementos, incluindo outros tipos de fluxos migratórios e outros tipos de intercâmbios. O presente texto é resultado da dissertação de mestrado intitulada “Migração de peruanos em Boa Vista/RR”, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). 4


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Sob esta perspectiva, pode-se identificar um conjunto de regiões ou países que mantêm fluxos migratórios constantes entre si, como no caso das “redes macrorregionais” internacionais, que unem uma região central (formada por um ou mais países) com outras regiões emissoras de migrantes. Para Staevie (2012) questões relacionadas às redes migratórias e ao capital social ajudam a explicar as migrações segundo uma perspectiva macro. Peixoto (2004, p.29) argumenta que: … os migrantes não atuam isoladamente, nem no ato de reflexão inicial, nem na realização dos percursos concretos, nem nas formas de integração no destino. Eles estão inseridos em redes de conterrâneos, familiares ou, inclusivamente, agentes promotores da migração, que fornecem a informação, as escolhas disponíveis, os apoios e à fixação definitiva.

Fica claro neste argumento que na migração as redes migratórias são de vários tipos, podendo se basear em solidariedades locais ou até mesmo por recrutadores temporários, o que demonstra a participação não só de agentes econômicos como também por agentes sociais envoltos por uma identidade de natureza coletiva. Em decorrência disso, o papel das redes migratórias é fundamental na formação dos fluxos e dos ritmos migratórios e até mesmo nos percursos da mobilidade social dos migrantes na área de destino, por serem fundamentais na adaptação e na interação dos migrantes no mercado de trabalho local. Brumes (2010) evidencia que as redes migratórias possibilitam a existência de pertencimento a um grupo social, compreendendo os vínculos entre todos os membros da sociedade, ou parte deles, unidos por objetivos comuns. A noção de redes migratórias consiste, portanto, de um conjunto de sujeitos e das relações definidas entre eles como, por exemplo, os laços familiares, de amizades, de confiança, de solidariedade, de conterraneidade, entre outros. Marteleto (2000), por sua vez, caracteriza uma rede migratória com um conjunto de participantes unindo ideias e recursos em torno de valores e interesses comuns. Para o mesmo autor, as redes proporcionam a compreensão dos fenômenos sociais dentro de seus contextos, estratificando suas relações e sua inserção na sociedade. As definições apresentadas nos parágrafos anteriores nos estimulam a realizar o seguinte questionamento: qual a importância das redes migratórias nos estudos migratórios? Inicialmente, é possível ressaltar


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que é através das redes migratórias que laços de identidade, de origem, de condição laboral foram verificados nos movimentos migratórios existentes em diferentes países. É também através das redes migratórias que podemos tentar responder os seguintes questionamentos: por que alguém se torna um migrante? Por que algumas pessoas, sob as mesmas transformações estruturais econômicas, sociais ou políticas, migram e outras não? Levando em consideração a migração peruana para o Brasil, por que alguns peruanos migram para Boa Vista e outros não, tendo em vista que todos experimentaram as mesmas transformações estruturais? Podemos recorrer a Tilly (1990) para respondermos às perguntas expostas anteriormente. Para este autor, as unidades efetivas da migração não são nem indivíduos sozinhos, tampouco apenas as famílias, mas sim conjuntos de pessoas ligadas por relações de amizades, de conhecimento, de parentesco e de trabalho, ou seja, as redes migratórias. Entretanto, neste processo, não é possível visualizar a existência da solidariedade entre os migrantes. Muitos aproveitam a sua posição social/laboral para explorar outros migrantes. A peruana que trabalha no comércio informal, Gisela Medina, de 32 anos, natural de Lima5, que vive em Boa Vista desde o ano de 2008, fez o seguinte relato sobre a sua chegada à capital roraimense: Mi tía me invitou para conocer la ciudad. Me disse que podia trabajar aquí, caso gostasse. Aí yo permaneci. Me gustó la ciudad. Es muy tranquila. No és movimentada como Lima. Lá vivia el tempo todo correndo. Aquí achei más tranquilo [...] Él único problema é que no realizei el mismo trabajo que exercia em Lima. Aquí tive que trabajar en el comercio para mis tíos. No começo trabajava de lunes a sábado para ellos. Ellos ficavam com lo dinero de tudo. Sólo los domingos que vendia para mí [...] Hoy ainda vivo con ellos. La diferencia es que yo no estoy solo. Ahora vivo con mi marido, que también es peruano. Tenemos un hijo de 09 (nueve) meses. Hoy trabajamos para nosotros, pero desejamos ser independientes. Queremos tener nuestra propia casa. Queremos dar un futuro mejor para nuestro hijo. (Entrevista concedida em: 22/11/2012).

O exemplo de Gisela Medina demonstra que a condição de migrante não destitui a relação de classes no âmbito da sociedade em acolhimento. Portanto, a existência de redes não garante uma vida “tranquila” ao novo migrante. Nas redes circulam, na verdade, infor5

Capital do Peru.


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mações importantes para a decisão de migrar. O exemplo de Gisela serve também como referência para a justificativa de que atualmente o número de mulheres que estão saindo do Peru tem aumentado significativamente. Esse fenômeno pode ser explicado sob muitos aspectos. As redes migratórias tornam-se para muitas mulheres um facilitador importante na decisão e no projeto migratório, mesmo nos casos de exploração da mão de obra. É a partir das redes que surgem incentivo, apoio, acolhimento, viabilização de trabalho e moradia. Neste processo, é importante ressaltar também que as redes migratórias são fundamentais na determinação das etapas do processo migratório e sua manutenção. A trajetória vivenciada pelo médico peruano Alejandro Castro, de 53 anos, natural do departamento de Ica6 e que vive em Boa Vista desde 1992, é outro exemplo que nos ajuda a ressaltar a importância das redes no fluxo migratório: Mi vida mejoró después de que llegué aquí. Cuando llegué aquí, yo vivía en el barrio Aparecida con un amigo peruano. Logo empecé a trabajar. Consegui evoluir gradualmente. Al principio andava a pé. Después compré una bicicleta. Poco después una moto. Luego después compré un carro usado. Em seguida compré un coche nuevo y una casa. Sufrí, conseguir lo que quería. Estoy muy agradecido a mi amigo que me invitó a venir aquí. (Entrevista concedida em: 15/12/2012).

O exemplo exposto destaca que as redes contribuem na redução dos riscos envolvidos na migração. Em decorrência disto, em alguns casos, podem ser apontadas como as causas da migração. Sem dúvida, também é por meio das redes que os migrantes negociam novas relações sociais. No caso dos peruanos residentes na cidade de Boa Vista, as suas tradições culturais são evocadas constantemente em espaços de sociabilidade. Como exemplo podemos citar a realização da festa religiosa em homenagem ao Señor de los Milagros, que acontece anualmente no último sábado do mês de outubro7. O público que participa da festa todos os anos varia de acordo com a rede de amizades que cada família organizadora dispõe. Departamento localizado na parte sul do Peru. Essa festa é realizada desde o ano de 2005. O grupo responsável por sua idealização é os peruanos que trabalham na área da saúde. Todos os anos uma família torna-se anfitriã da festa, cedendo a sua residência para que todos os peruanos possam se encontrar, inclusive os que não trabalham na área da saúde, como é o caso dos que trabalham na área da educação. Em 2012 a festa aconteceu no dia 27 de outubro na casa da enfermeira Rosa, localizada no bairro Paraviana. Estiveram presentes cerca de 65 pessoas, entre estas estavam 56 peruanos – 20 mulheres e 36 homens, com idade que variava entre 13 e 72 anos. 6 7


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Dessa forma, as redes migratórias possuem um papel fundamental na inserção do migrante peruano no local de destino. No lugar de destino, por exemplo, são formadas novas interações sociais que garantem a adaptação da nova cultura que o migrante passa a experimentar. Dependendo do contexto, a nova cultura pode ser bastante diferente da cultura de origem. Muitos dos peruanos reconhecem que sofreram impactos culturais quando chegaram em Boa Vista. A fala de Diego Estévez, comerciante informal de 30 anos, natural de Huancayo8 e residente em Boa Vista desde o ano 2000, pode ser tomada como referência para compreendermos essa realidade bastante comum na migração: No começo estranhei tudo. Primeiro foi a fala, né? Não conseguia falar nada. Depois a comida que não tinha o mesmo agrado. Não era a mesma coisa que a gente costuma comer no Peru. As pessoas também são diferentes, principalmente as mulheres. As mulheres brasileiras são mais “fáceis” que as peruanas [...] Mas pouco a pouco consegui me adaptar ao ambiente que estou vivendo. (Entrevista concedida em 27/10/2012).

Apesar da existência de impactos culturais na prática migratória, a existência de redes migratórias no local de destino é justificada pelas necessidades de minimizar os riscos inerentes ao ato migratório, diminuindo as tensões presentes no cotidiano de qualquer indivíduo envolvido numa mudança desta natureza. Em outras palavras, as dificuldades podem ser superadas com mais facilidade se forem pensadas de forma compartilhada. Contudo, Gaudemar (1977) reforça que a mão de obra só se desloca pelos interesses do capital. Neste caso, em muitas situações, as redes não conseguem evitar a exploração do trabalho, por exemplo. Dependendo do contexto, podem somente prestar-se aos interesses do capital, e não aos interesses do migrante. A partir desta compreensão, Carleial (2004) reforça que a estrutura de dominação no interior das redes migratórias não é violenta e muito menos forçada. É, na verdade, parte da divisão social do trabalho que pressupõe um mandatário capitalista. Precisamos esclarecer também que os condicionantes da migração são anteriores à rede. Conforme as observações de Stavie (2012, p.57), “a migração em si acessa dimensões sociais que envolvem diversos aspectos como valores, cultura, necessidade, subjetividade, etc”. Uma corrente migratória é determinada pelas estruturas nas sociedades de 8

Capital do Departamento de Junín.


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origem e destino, porém, acionada pelas decisões individuais, familiares ou coletivas de determinados grupos que se põem em movimento. São as redes migratórias, portanto, que desencadeiam o movimento migratório. Estas redes criam práticas sociais que aproximam as pessoas, criando sociabilidades e também conflitos, interesses individuais, preferências e demais relações sociais naturais em qualquer grupo social. Na pesquisa com os peruanos em Boa Vista visualizamos redes de interesses e afinidades comuns no interior de outras redes que se manifestam como espaços de sociabilidades. Entre os peruanos que trabalham no comércio informal é possível visualizar redes de interesses comuns a um determinado grupo no interior da rede maior que seria os peruanos donos de lojas que distribuem mercadorias para os peruanos que vendem na rua, no Centro Comercial Caxambú9 ou na Feira do Garimpeiro10. Esse exemplo justifica que, em virtude do processo em torno do qual uma rede se organiza, uma rede que surge com a prática migratória pode abrigar várias outras redes de sociabilidade. Em suma, a abordagem das redes migratórias defende que as migrações não estão sujeitas apenas a mecanismos econômicos. De acordo com tal abordagem, as migrações resultam também de redes de sociabilidade, fortalecendo a ideia de que os migrantes não atuam de forma isolada, nem no ato da reflexão inicial sobre a possibilidade de mudar, nem na realização concreta do(s) deslocamento(s), tampouco nas formas de adaptação e integração no lugar de destino. Conforme Peixoto (2004, p.28), eles estão inseridos em redes de familiares, amigos, conterrâneos, “que fornecem a informação, as escolhas disponíveis, os apoios à deslocação e à fixação definitiva”. Augé (2010) assevera que a abordagem das redes migratórias não nega que muitos são os fatores que acabam determinando a mobilidade espacial da população migrante. Levando em consideração esta afirmação, gostaríamos de acrescentar que a pesquisa retratada neste Criado em 13 de dezembro de 2002, o Centro Comercial Caxambú possui quase 10 anos de história em Boa Vista. O nome do Centro é uma homenagem ao amazonense Manuel Barbosa de Araújo Filho, popularmente conhecido como Caxambú. Manuel, que chegou a Boa Vista em 1936, foi o primeiro vendedor ambulante da cidade. Disponível em: http://www.portalamazonia.com.br/editoria/cidades/centro-comercial-caxambu10anos-de-historia-em-boa-vista / Acesso em: 07/04/2016. 10 É uma feira que funciona nas manhãs de domingo até às 14h da tarde. Criada na década de 1980, momento em que o garimpo estava no auge, passou a representar um local onde os garimpeiros poderiam fazer seus ranchos para enviar a alimentação às regiões garimpeiras. Com o passar dos anos o local se popularizou e foi dando espaço a instauração de barracas de vendas. Disponível em: http://www.folhabv.com.br/ Noticia_Impressa.php?id=65186 / Acesso em: 07/04/2016. 9


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trabalho sobre a migração de peruanos em Boa Vista caracteriza-se pela não quantificação dos laços, uma vez que no nosso entendimento as relações sociais são de difícil quantificação. Em decorrência disto, buscamos, sobretudo, compreender o papel das redes de sociabilidade na migração e quais são os seus impactos nas negociações identitárias de cada sujeito migrante. De acordo com os dados coletados, se não fosse a existência das redes, dificilmente a migração de peruanos para Boa Vista teria se ampliado nos últimos anos. Chegamos a esta conclusão porque o setor econômico de Boa Vista não é considerado muito atrativo. Staivie (2012) argumenta que, até a década de 1990, o garimpo e os projetos de colonização agrícola foram responsáveis pela entrada de um número expressivo de migrantes, sobretudo nacionais, no estado de Roraima. Com a proibição dos garimpos e o aumento do êxodo rural, o funcionalismo público tornou-se o principal atrativo da prática migratória, uma vez que no estado de Roraima não existem hidrelétricas em construção, nem estrada de rodagem sendo construída e muito menos grandes empresas instaladas. Ainda assim, as redes migratórias tornaram-se responsáveis pelo direcionamento do fluxo de peruanos para Boa Vista. Esta situação só reforça a necessidade de entendermos a migração como um ato social total, conforme defende Sayad (1998). Reforça ainda a aceitação da justificativa de que as pessoas migram em função das estruturas no local de origem e de destino.

Memória e identidade Lembrar é um exercício fundamental dos seres humanos, que remete não somente a situações vivenciadas, mas também a narrativas passadas em outros tempos, apreendidas de diversas maneiras, possibilitando construções identitárias individuais e coletivas. Por isso, para Bosi (2007), a memória conforma uma tipologia de fonte de riquíssima valia, que abre um significativo campo de possibilidades para perseguição do vivido, incluso no que vai sendo experimentado pelas pessoas. A análise de situações do cotidiano vivenciadas pelos migrantes peruanos na cidade de Boa Vista nos permite identificar os meios que tais migrantes buscam para superar determinadas diferenças. Segundo Mamman e Richards (1996), as experiências interculturais de qualquer grupo de migrantes iniciam no encontro de uma cultura com outra


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cultura, fortalecendo a negociação das identidades a partir do processo de socialização. Dubar (2000) reforça que o processo de identificação do migrante internacional no decorrer de sua trajetória individual pode ser construído e reconstruído em função das suas experiências em diversos cenários sociais. Por esse motivo, podemos compartilhar com Ricouer (2007) a ideia de que a identidade pode ser entendida como um relato que possui os elementos próprios da narrativa, como, por exemplo, a sequência temporal, os personagens e a situação específica. Ao considerarmos os migrantes peruanos como trabalhadores, que precisam se integrar ao contexto da sociedade de acolhimento, verificamos que a identidade social de cada um é diferente do papel social que exercem no contexto de sua profissão. O processo de negociação da identidade de trabalhadores migrantes, mesmo entre aqueles que exercem profissões distintas, possibilita o surgimento de comunidades que ajudam a criar laços imaginários. Essa ação representa o que Anderson (2005) define como “comunidades imaginadas”. Tais comunidades possuem a função de permitir a conexão das pessoas. Desta forma, ao investigarmos as identidades dos migrantes peruanos nos níveis individual e social, precisamos recorrer a Hall (1996) para verificarmos como esses migrantes se inserem na cultura do local de destino e como suas identidades e respectivas diferenças relacionam-se com a nova realidade social. Nesta conjuntura, não podemos esquecer que as recordações do passado e as experiências do presente são importantes nas negociações identitárias dos migrantes peruanos. No decorrer da análise dos depoimentos dos peruanos que participaram da pesquisa, identificamos alguns conflitos entre eles. O relato do peruano comerciante informal que vive em Boa Vista desde 2002, Julio Cesar, de 27 anos e natural de Cusco11, exemplifica esta situação: Hay muchas diferencias entre los peruanos. Las personas de clase alta tienen una vida diferente. Possuem estudio y otro tipo de comportamiento. Los que pertenecen a una clase socioeconómica más baja encaram la vida de otra maneira. No són muy comprometidos. Aquí podemos citar como ejemplo las diferencias entre los médicos y los vendedores ambulantes. Los médicos peruanos tienen una buena situación económica. Todos tiene un trabajo fijo, carro y casa propia. Gran parte de los peruanos que son venCidade situada no sudeste do Vale de Huatanay ou Vale Sagrado dos Incas, na região dos Andes. 11


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dedores ambulantes sólo trabajan para beber. Muchos no saben beber. Cuando ficam bebados começam a brigar. Eso es muy ruim para todos los peruanos. Las personas acabam pensando que nosotros somos así. Es por eso que difícilmente tú verá un médico peruano hablando con un vendedor ambulante peruano. Estos dos grupos no se misturam. Por causa de algunos todos pagan. (Entrevista concedida em: 20/12/2012).

O depoimento de Julio Cesar nos proporciona a seguinte reflexão: a questão migratória, por abranger momentos distintos, é marcada por diferenças. As negociações identitárias de cada sujeito migrante explora a diversidade de momentos críticos pelos quais passam esses sujeitos. Desta perspectiva, a memória surge como uma potência subjetiva e as lembranças se materializam em imagem e sonhos. Desse modo, Halbwachs (2004, p.41) diz que “a memória do indivíduo depende da relação entre as comunidades de destino em que está inserido, tais como instituição familiar, local de trabalho, local de estudo, instituição religiosa, associações, etc”. Para este autor, todos os mecanismos sociais que compõem a vida do indivíduo, ajudam a compor a memória individual que, sem dúvida, poderá ser constituída socialmente. Contudo, devemos reconhecer que adaptar-se e integrar-se à realidade do local de destino é também uma prática complexa. Goettert e Mondardo (2010, p.102) afirmam que “as migrações movimentam os valores e os sentidos, que se encontram e se desencontram, se “aproximam” e se “distanciam”, se juntam e se chocam, se intercruzam e se sobrepõem”. Em relação aos peruanos que fizeram parte desta investigação, verificamos que alguns se integraram facilmente à realidade brasileira, chegando a assumir a identidade de peruano e de brasileiro. Já outros criaram barreiras à integração com os novos elementos da cultura brasileira. Costumam utilizar a memória para manifestar os elementos que possibilitam a reprodução da cultura de origem, ocasionando, entre outras coisas, conflitos de valores. A valorização do passado, sem dúvida, representa a afirmação identitária através da memória e da reprodução dos costumes de origem. Como exemplo, podemos citar a narrativa da professora peruana Florencia Alborata, de 55 anos, natural de Trujillo12, que está há 16 anos em Boa Vista. Quando foi questionada sobre o que sente mais falta do Peru, a resposta dada foi permeada de tradicionalismo: 12

Capital do Departamento La Libertad.


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Yo sinto falta de tudo, de los costumbres, la comida, la música, de mis amigos y especialmente a mi familia. No me acostumbré a la realidad de Brasil. Aquí las personas són liberais. Para mí es muy difícil criar a mis hijos aquí con los costumbres del Perú, pero no voy desistir. Quiero mis hijas casadas, como manda la tradición. (Entrevista concedida em: 24/10/2012).

Na fala da peruana de Trujillo, identificamos algo muito tradicional no Peru. Grande parte das mulheres peruanas só sai da casa dos pais quando se casa formalmente, seja no civil ou religioso. A forma de pensar dessa entrevistada só nos ajuda a compreender que a identidade negociada pelos migrantes no local de destino é carregada de valores referentes à cultura de origem. Pollak (1992) expressa que a memória individual é uma herança cultural do grupo social do qual o indivíduo faz parte. Conforme este pensamento, a memória se compõe de acontecimentos, personagens e lugares de vida que permanecem como vestígios nas narrativas de cada pessoa entrevistada. Por ser uma construção tanto individual quanto coletiva, se relaciona com o sentimento de identidade. Torna-se um fator importante na continuidade e na coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si. Nesta perspectiva, a memória trabalha a identidade de um grupo nos momentos de conflitos, por exemplo. Hall (2000) nos diz que a identidade representa a busca de algo que falta fora de nós mesmos. São, na verdade, pontos de apego temporário. A partir desta exposição de ideias, podemos entender que o conjunto de narrativas elaboradas pelos migrantes peruanos contatados representa uma construção histórica com muitos percalços. A enfermeira peruana natural de Lima, Sofía Monogue de 28 anos, imaginava Boa Vista como a cidade de São Paulo: Pensei que Boa Vista tivesse muitos prédios e indústrias como a cidade de São Paulo, que conhecia pela televisão. Minha mãe falava daqui com muito entusiasmo. Não imaginava que fosse um lugar próximo a floresta. Cheguei aqui muito nova, com 17 (dezessete) anos. Apesar de ainda não ter retornado ao Peru, sinto muita falta dos meus familiares que ficaram lá. Mas não quero sair daqui. Foi aqui que vivi os melhores momentos da minha vida. Conheci meu esposo, que é brasileiro, e tive minhas duas filhas, a maior, de 05 anos, já sabe que pertence a duas culturas: a brasileira e a peruana. Ela diz assim: Mamãe é peruana e papai é brasileiro. Eu sou peruana e brasileira. (Entrevista concedida em: 25/12/2012).


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O exemplo de Sofía reforça o entendimento de que o migrante precisa tentar se adaptar ao novo lugar. As informações e imagens criadas antes do processo migratório pode se modificar na medida em que novas relações sociais são experimentadas. Para o migrante, ver e sentir o local de destino quando ainda está no local de origem não é o mesmo que conhecer a partir de suas experiências como morador deste outro local. Contudo, existem, em diferentes situações, condições que o novo território pode proporcionar. O médico peruano Juan Vicente, de 52 anos, natural de Ica, mesmo vivendo em Boa Vista há aproximadamente de 17 anos ainda busca reviver o seu passado no Peru: No começo fue muy difícil conseguir me adaptar. Pasé por várias dificultades. La primera dificultad fue con el idioma. La segunda fue con los costumbres, que son diferentes de los costumbres del Peru. A tercera dificultad fue con la infraestructura de Boa Vista. Es completamente diferente de Lima, local donde me formei. Lima es una gran ciudad que tiene todos los tipos de novidades, principalmente en relacíon a tecnología. Yo estranhei la estructura del hospital de aquí. No início faltavam herramientas para trabajar. Com el pasar del tiempo foi mejorando. Apesar de yo ter me naturalizado, ainda sufro mucho preconceito por mis colegas del profissión. Existe um xenofobismo muy grande. Los médicos brasileños no respetan los médicos extranjeros. Mesmo así, procuro me dedicar a mi trabajo. Me gusta mi profissión [...] Apesar de sentir mucha falta dos los costumbres peruanos, de la vida que tenía ]lá, quiero vivir hasta el final de mi vida aquí. Aquí já constitui família. Criei lazos con Brasil. Mi esposa es brasileña [...] Mesmo se yo regresar tudo sería diferente. No encontrarei el Peru de la misma forma que dejé. (Entrevista concedida em: 21/11/2012).

É possível perceber que Juan tem fortes heranças culturais que marcam sua memória. Ele interpreta que viver em Boa Vista é viver, sobretudo, para o trabalho. Sente falta da vida social e cultural que tinha no Peru. Mesmo assim, prefere continuar vivendo em Boa Vista, pois se retornar ao Peru encontrará tudo de outro jeito. Não será a mesma coisa. Processos migratórios como os dos peruanos representam uma escola de vida, um acúmulo de histórias, memórias, vivências identitárias e experiências culturais dotadas de significados. Os exemplos citados podem parecer muito simples, mas possibilitam distintas interpretações. Entre as interpretações que podemos realizar está a


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concepção de que os processos migratórios não são somente mudanças geográficas de espaços físicos, são experiências culturais. É uma fonte de valores que não deixam a vida se acomodar, uma vez que na prática migratória o passado e o futuro ganham sentido na vida presente. Logo, ao somar experiências e expectativas, a migração torna-se um processo diário, de cada momento, de acordo com as negociações identitárias realizadas em cada contexto e temporalidades.

A identidade como diferença Conforme argumento de Cunha (2007, p.34), “identidade é um termo que tem sido usado para descrever ou interpretar o indivíduo, tal como ele se revela e se conhece ou como ele se vê representado em sua própria consciência”. Já para Ribeiro (2002), a identidade deve ser reconhecida como modos de representar o pertencimento de um indivíduo a uma unidade sócio-político-cultural. A língua pode ser considerada um grande exemplo de manifestação identitária dos sujeitos sociais. Tal afirmação consolida-se pelo fato de a língua apresentar dimensões sociais, locais, territoriais e subjetivas muito particulares, devendo ser respeitada em sua integridade. É por isso que, neste trabalho, optamos em transcrever na integra as narrativas dos entrevistados, mesmo daqueles que se comunicam através do “portunhol”13. Woodward (2005, p.18) comenta que a identidade se constrói a partir da interação social, marcando “o processo pelo qual os indivíduos se identificam com os outros, seja pela ausência de uma consciência da diferença ou da separação, seja como resultado de supostas similaridades”. Hall (1996) complementa, esclarecendo que é através da identificação ou não que é possível tratar a identidade de forma relacional. Contudo, a identificação pode surgir do contraste com o diferente ou pela oposição ao adversário. Em outras palavras, para Nóbrega (2000), a identificação surge da noção de contraste entre o que é semelhante e o que é diferente, isto é, pela ideia de alteridade em que se observa o “eu” e o “outro”. Ainda nesta perspectiva, Cabral (2003) expõe que o processo de identificação não diz respeito ao fato de reduzir a identiInterlíngua originada a partir da mistura de palavras da língua portuguesa e da língua espanhola. É muito utilizada em cidades de fronteira entre países de língua portuguesa e espanhola. (Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Portunhol / Acesso em: 04/05/2016. 13


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dade à alteridade, haja vista que em toda a identidade quando é construída, o “eu” torna-se inevitavelmente independente. Desta forma, a identificação evidencia os processos de co-relacionamento, criando uma complexa rede de comparações que situa a pessoa como “diferente” socialmente. A esse respeito, Silva (2005) argumenta que a diferença é um produto derivado da identidade e que por isso necessita ser ativamente produzida no mundo cultural e social. Na mesma linha de raciocínio de Silva (2005), Martins (2002, p.56-57) utiliza a seguinte afirmação: A identidade se elabora em um processo de diferenciação do outro mediante reforço sistemático dos elementos que lhe são incomuns [...] A preservação das tradições folclóricas em comunidades de imigrantes, sem que haja contraposição ou oposição à(s) cultura(s) predominante(s) na sociedade global em que se encontram os imigrados, é um bom exemplo deste tipo de identificação por contraste [...] A identificação por rejeição representa uma forte agudização dos processos conflituosos [...] Logo, a identidade por diferença é um componente comum às outras formas de construção identitária. No processo temporal da consciência histórica, a afirmação dos indivíduos e dos grupos se dá na sucessão e na contemporaneidade do pensamento de cultura produzidos pelos próprios homens mediante a constituição da diferença. A consciência da diferença necessariamente decorrente da contemplação do outro, pode derivar para a assimilação, para o contraste para a rejeição. No entanto, o fiel processo decisório é a consciência da diferença, ou das diferenças, se preferir.

Diante do exposto, podemos elaborar o seguinte questionamento: até que ponto a afirmação de particularidades pelos migrantes peruanos colidem com os seus interesses nacionais? Muitos desses migrantes possuem narrativas diferenciadas sobre a instalação na cidade de Boa Vista. Os relatos referentes à nova vivência destacam questões referentes a moradia, emprego, barreira da língua ou regularização da documentação. Dessa maneira, os relatos sobre o contato com outros conterrâneos tornam-se fundamentais para o processo de adaptação á nova realidade causada pela migração. O exemplo a seguir, do peruano Pedro Fernandes, 52 anos, natural de Ucayali14, restaurador de móveis, nos ajuda a observar esta situação: Mi venida aquí surgió de una aventura. Tenía un gran deseo de conocer otros países. Como no tenía dinero para viajar a Europa, 14

É uma das 25 regiões do Peru, sua capital é a cidade de Pucallpa.


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me decidí a conocer los países de América Latina. Para mí ir a Venezuela sería esencial. Es un lugar que facilita el desplazamiento a otras regiones. Pero para llegar até lá sería más viável pasar por Brasil. Pasé por muchas dificultades. Antes de llegar a Boa Vista, capital de Brasil más cerca de Venezuela, vivi unos años en Río Branco (Acre). Lá aprendi a hacer tudo. Até fui a trabajar a los campos para garantir mi supervivencia. En el Perú nunca había hecho esto [...] No gostei de la comida brasileña. Comía solamente bolacha. No soporté la realidad de lá seguir adelante. Fue entonces cuando llegué a Boa Vista. Aquí tudo era diferente. Las personas son más hospitalarias. Me gustó mucho la tranquilidad daquí [...] Cambie mi estilo de vida. Me casé con una brasileña y aprendi a trabajar con la restaración de muebles. Hoy me considero un artista. No sé como aprendi a hacer isso. Creo que ha sido la necesidad [...] Apesar de todas estas transformaciones yo no dexei de ser peruano. Es por la nacionalidad peruana que me diferencio de los brasileños. Yo posso seguir las leyes de Brasil, comer la comida brasileña, hablas português, me vestir igual a los brasileños, pero siempre las personas irão me reconocer como peruano. Mis características físicas no me deja niegar quien realmente soy. Tengo muy orgullo de ser peruano. (Entrevista concedida em: 15/12/2012).

O relato de Pedro só reforça a concepção de que a presença do migrante, do ponto de vista social, dialoga com a diversidade e também com a diferença. Torna-se evidente que a identidade deste migrante, apesar de ser distinta da identidade brasileira e de estar interpenetrada pelos elementos culturais peruanos, se manifesta de acordo com as circunstâncias étnica, social, individual, política ou cultural. Esta interpretação pode ser reforçada por Ciampa (1997, p.157) que apresenta a seguinte observação: O indivíduo, enquanto construção social, resultado dos valores e das relações intrínsecas da sociedade à qual pertence, é construído como sujeito que interage na dinâmica das relações de produção, formas de agir, ser, viver e pensar o mundo, construir, morar, brincar e produzir símbolos, lutar, resistir, enfim, um sujeito histórico.

Neste caso, a identidade é histórica. Contudo, reconhecemos que o processo de negociação das identidades é complexo e se estabelece de forma diferenciada de indivíduo para indivíduo nas próprias contradições históricas. Torna-se evidente que a identidade deste migrante apesar de ser distinta da identidade brasileira e de estar interpenetrada pelos elementos culturais peruanos, se manifesta de acordo com as circunstancias étnica, social, individual, política ou cultural.


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No que diz respeito aos peruanos, o sentimento de discriminação étnica e social também está presente no processo de negação das identidades. Muitos destacaram que embora os brasileiros sejam de um modo geral acolhedores, existem pessoas que tratam os estrangeiros com menosprezo ou preconceito. Aqueles que chegaram há mais tempo, no início da década de 1990, destacam que tiveram mais dificuldades de integração na vida social de Boa Vista. Tiveram, na verdade, que modificar a sua cultura original. O peruano Luís Angel, de 49 anos, comerciante informal, natural de Pucallpa15, fez a seguinte declaração a respeito desta situação: Quando eu cheguei aqui, em 1990, era muito bom para ganhar dinheiro. Os garimpeiros comandavam a economia daqui. Porém, as pessoas demoraram a se acostumar com a nossa presença. Nos tratavam como invasores. No meu caso não entendiam que eu só queria vender as minhas coisas e ganhar o meu dinheiro. Para ser aceito por muitas pessoas tive que aprender a me comunicar com todos. No começo foi ruim tentar aprender uma nova língua. Tive também que mudar a forma como me vestia. A transformação mais radical foi aprender a me comunicar com as pessoas de pensamento liberal que não cumprem a tradição [...] Para viver em Boa Vista eu tive que me adaptar a realidade daqui. (Entrevista concedida em: 30/12/2012).

O exemplo destacado anteriormente nos possibilita reconhecer que os peruanos costumam demorar algum tempo para se acostumar à realidade boa-vistense. Para muitos, as mudanças ocasionadas pelas práticas migratórias não libertam o trabalhador da opressão. Produzem, na verdade, a passagem de uma dominação para outra. Foi o que mencionou o peruano comerciante informal Adrián Miguel, de 47 anos, natural de Loureto16 e que reside em Boa Vista há precisamente 10 anos: Mi vida no mudou mucho. Continuo siendo un simple trabajador que obedece a su superior para continuar sobreviviendo. En el Peru era la misma cosa. La diferencia es que hoy las cosas son más modernas y los territorios no son los mismos. (Entrevista concedida em: 20/12/2012).

Desta perspectiva, Silva (1999) reconhece que a migração não liberta o migrante da dominação. É com a prática migratória que o problema das diferenças se intensifica. Boa Vista, por exemplo, por Capital de Ucayali. 16 É uma cidade do Peru localizada no departamento do mesmo nome. 15


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ser uma cidade que recebe pessoas de outras cidades brasileiras e de outros países, tornou-se um espaço em que convivem outras pessoas de origens culturais, condições étnicas e sociais diferentes, crenças religiosas variadas, ideologias opostas que dão origem tanto a processos de aproximação identitária, como de descriminação e exclusão. É com esse ambiente que se defronta o migrante peruano que, acostumado a viver num mundo com uma cultura relativamente homogênea, encontra algumas dificuldades ao se inserir na cultura brasileira. Desta forma, Martins (1997, p.28) afirma que a questão da identidade adquire um caráter político na medida em que a sociedade determina quem ela quer incluir ou excluir. Por isso, para qualquer migrante conquistar um espaço de reconhecimento em uma determinada sociedade continua sendo uma luta conflituosa entre a constituição da identidade e aceitação das diferenças. Ao migrarem para Boa Vista, os peruanos começaram a tomar consciência de suas diferenças, tanto de classe como de etnia, e passaram a se deparar com um conflito de identidade. O discurso da estudante Priscila Heredia, de 28 anos, natural de Iquitos17 e que vive na capital de Roraima há precisamente um ano expõe esta questão: Hay muchas diferencias entre los peruanos. En cada región del Perú hay una manera de pensar. El peruano que vive en la selva es una persona más humilde. Se dá bien con todo el mundo. Es una persona sufrida. Lo peruano de la serra no es muy diferente do que vivi en la selva en relación con el comportamiento, pero algunas estrategias de supervivencia se modificam. Lo peruano de la serra es más esperto que de la selva. Es difícil engañarlo. Pero lo de la costa es un poco más moderno. Sigue un estilo de vida que no es muy tradicional. Cuando los peruanos destas regiones están en el mismo espacio dificilmente ellos se dão bien. Cada uno sigue su vida de acuerdo com los costumbres de su región. Por eso los peruanos que viven aquí en Boa Vista piensan de maneira diferente. En relación a los hombrens, por ejemplo, hay aquellos que prefieren casarse con una peruana. La brasileña es sólo una distracción. Aquellos que no les gusta de seguir la tradición prefiere constituir una familia con una brasileña. Hay aquellos que trabajan para gastar el dinero en bebida. Já otras personas piensan en el futuro y trabajar para adquirir bienes. (Entrevista concedida em: 20/12/2012).

Essa situação nos estimula a pensar a presença de peruanos na cidade de Boa Vista do ponto de vista relacional e político. Dessa 17

Capital do departamento de Loreto e da província de Maynas.


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maneira, a diferenciação do grupo originário da selva peruana em relação aos peruanos originários da capital, Lima, é resultado da necessidade que cada grupo tem em manter simbolicamente as fronteiras de diferenciação em relação ao outro grupo. Nesse contexto, mesmo existindo as diferenças, para Cabral (2003), as identidades constroem-se no próprio processo de sociabilidade. Nas palavras de Bourdieu (1996) não há como assegurar uma legitimação de forma estruturada. Isso significa que os indivíduos são agentes da produção cultural e os níveis de identidade pessoal estão sujeitos a dominação simbólica. Contudo, Cabral (2003) reforça que a diferença não existe de forma imediata. Há uma anterioridade de referências para que ela ocorra em um determinado momento. Logo, a identidade precisa ser concebida como algo associado a uma cultura, por exemplo.

Considerações finais A relação dos migrantes peruanos com o Peru e a cidade de Boa Vista é cheia de ambiguidades. De uma forma bem esquemática, pode-se dizer que os migrantes peruanos estão inseridos em sociedade, mas que não fazem parte dela. Por outro lado, pertencem a uma sociedade na qual não estão efetivamente presentes e participantes. Destas duas situações, resulta uma relação incompleta e ambígua dos migrantes peruanos com a sociedade e a cultura de origem, e a sociedade e a cultura em que estão inseridos. Provavelmente, esta ambiguidade gera certa crise de identidade cultural, uma vez que cada migrante começa a querer saber qual é o seu lugar e papel, o que dá e recebe na sociedade em que vive e na sociedade de origem. Essas preocupações começam a fazer parte do cotidiano migratório. Em decorrência disto, perante ambas as sociedades, os migrantes peruanos encontram-se numa situação provisória e insatisfatória, o que pode estabelecer condições propícias para um processo de crise de identidade cultural. Ao se inserirem em um processo de mobilidade social ascendente na cidade de Boa Vista, muitos peruanos criam diversas estratégias de sobrevivência para prolongar a permanência neste local. Além destas situações, no caso do reagrupamento familiar, acontece outro fenômeno importante: os filhos dos migrantes, sobretudo, as crianças e os jovens, que conseguem se inserir no sistema escolar brasileiro, criam grupos com outras crianças e jovens da sociedade boa-vistense. Esta explicação está relacionada ao fato de o projeto migratório se


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construir dentro de uma determinada sociedade e cultura, tornando-se viável devido ao fato de os migrantes peruanos assegurarem a viabilidade de seus projetos de mobilidade social de acordo com os padrões culturais das regiões de que são originários. Por outro lado, não podemos esquecer que em todo processo de mudança sociocultural, o migrante, independente da nacionalidade, passa por um permanente desgaste de confronto ou coerência entre comportamentos e valores adquiridos no país de nascimento. Estas questões expostas reforçam o entendimento de que a cultura aparece como um espaço simbólico em constante transformação e movimento, onde se colocam em evidencia os sentidos da diferença, da diversidade, das similaridades, das desigualdades. Desse modo, Gonzales (1980) evidencia que é por meio da cultura que se originam e se formam as identidades. Aguirre (1997, p.31) explica que a relação entre identidade e cultura sustenta-se no fato de que esta última dispõe aos indivíduos e aos grupos os sistemas referenciais construtores da primeira. Apesar desta relação, Barth (2000, p.80) destaca que “a identidade se relaciona somente com alguns elementos da cultura, de maneira que se sustenta em símbolos do povo que compartilha essa identidade, e não necessariamente com toda a sua cultura”. Conforme essa explicação, a identidade existe por identificar-se com o sistema de valores e crenças determinados, que por não serem necessariamente compartilhados por todos os seus membros, tornam-se incertos em uma cultura. Essa explicação sugere ainda que a identidade pode ser definida como uma construção simbólica de identificação ou diferenciação produzida em relação a um marco de referência determinada, podendo se referir ao território, ao gênero, a idade, a classe, entre outros. Dessa maneira, as formas sociais do passado são reproduzidas, apropriadas, transformadas nas práticas e nas interações da vida cotidiana dos indivíduos. Cuche (1999) completa esta argumentação comentando que as estratégias de identidade, mesmo que modifiquem uma cultura, quase não terão nada em comum com o que ela era antes. Hall (1996) reconhece que a identidade cultural de um indivíduo ou de um grupo se transforma ao longo do processo civilizatório. Esta afirmação nos estimula a reconhecer que a sociedade em que o indivíduo vive, seja ela de origem ou de destino, o transforma e o fragmenta, fazendo com que assuma várias identidades. De acordo com esta explicação, podemos afirmar que os migrantes peruanos assumem


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identidades variadas em diferentes momentos. Tais identidades são afetadas principalmente pelos processos de socialização. A partir deste enfoque, Garrido (2004, p.35) chega a seguinte conclusão: “a identidade, por ser um processo socialmente construído, estimula o indivíduo a buscar referência de si mesmo em seu entorno”. Segundo Laurenti e Barros (2000), com esta interação, o indivíduo passa a buscar o reconhecimento de si mesmo nos outros, aqueles que considera iguais a ele. Garrido (2004) comenta também que além da interação e identificação do indivíduo com seu entorno, este busca o reconhecimento de si em um coletivo maior, em um grupo social que defina a si e ao seu grupo em função das experiências compartilhadas no passado. Conforme Brown (1972), a construção da ideia de nação é um exemplo do reconhecimento que um indivíduo possui com um grupo maior. Para este autor, a nação é uma ideia que articula um “nós coletivo”, e este constitui uma relação de identidade, por se tornar regra de semelhança, e também um critério para demarcar a diferença com os “outros”. Já para Smith (1999, p.28) “a ideia de nação pode ser definida como uma determinada população humana, que partilha um território histórico, mitos, memórias comuns, uma cultura pública de massas, uma economia comum e direitos e deveres comuns a todos os membros”. O autor completa que a ideia de nação como identidade coletiva tem muita relevância no processo de objetivação e na distinção da vida social: trata-se da distinção entre o “eu” e o “outro” em seu sentido mais amplo. Segundo Pascual (1995), o sentimento de pertença a uma nação é nato, não há possibilidade de opção. Contudo, a identidade nacional é um poderoso meio para definir e posicionar pessoas individualmente no mundo, através da memória, da personalidade coletiva e de sua cultura distinta. De qualquer forma, no mundo contemporâneo, as identidades cultural e nacional estão se tornando desintegradas, o que torna difícil para o indivíduo compreender a característica de espaço-tempo que acelera os processos globais. Neste enfoque, Hall (1996) diz que os fluxos culturais entre as nações criam possibilidades de identidades partilhadas, formadas dentro e fora da noção de origem. É a partir de então que as identidades étnicas surgem no momento em que a descendência é questionada, não como nação de origem, mas como parte da cultura específica dentro de uma nação. Quando falamos em identidade étnica, estamos considerando uma


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necessidade de distinção, muitas vezes reforçada a partir da experiência da migração. Trata-se de um processo no qual são acionadas formas de reconhecimento a partir de elementos culturais compartilhados por certos coletivos que, entre muitas formas de identificação, se reúnem a partir de um imaginário construído em torno de seu país de nascimento ou de um grupo cultural. Barth (2000) entende que, muitas vezes, a própria concepção de etnia é construída a partir de uma ideia de nação, quando o grupo étnico é definido pelo país de nascimento. Considera, entretanto, o processo de autoidentificação do grupo étnico de pertença, mais do que os atributos que externamente possam ser referidos aos sujeitos. Todos esses apontamentos nos proporcionam a seguinte reflexão: se alguém decide ir viver num outro país e numa outra sociedade, deve ter todo o direito de manter a sua cultura, mas também deve estar pronto a aceitar minimamente as regras da maioria, especialmente no aspecto jurídico e na convivência cotidiana. Do contrário, serão formadas sociedades onde todos, formalmente, serão cidadãos sujeitos as mesmas regras, mas onde, na prática, cada grupo vive como quer, com os inevitáveis conflitos que poderão surgir.

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Cidade, migração e poder: Boa Vista na segunda metade do Século XX Raimundo Nonato Gomes dos Santos1

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ivemos um momento em que imagens como a de mulher, de negro, de índio, de deficiente, de família, de nacionalidade são colocadas em discussão, coisas que pareciam tão naturais e sagradas vêm perdendo a solidez diante de práticas e formas de vida da sociedade contemporânea, cada vez mais plástica, mais flexível (BAUMAN, 2001). É atento a estas alterações pelas quais os valores humanos vêm passando, em especial a partir das últimas décadas século XX, que este texto se propõe a pensar a construção e alimentação de uma identidade boa-vistense/roraimense na segunda metade desse século, observando ainda a sua relação com as práticas identificadas com projetos de caráter nacional, mostrando que, para além destes, existiam outros projetos regionais e locais, onde interesses se cruzavam constantemente, em condição de apoio e resistência à unidade nacional. Considera ainda, no caso específico de Roraima, as renovações nos meios de comunicação, de transporte favorecendo um processo migratório intenso para o Norte do país, visto aqui como obstáculos para os “historiadores orgânicos” encarregados da construção de uma identidade local nesse período2. Entendendo que a construção de identidades envolve uma atividade de “enquadramento da memória”, uma vez que: [...] há um trabalho que é parcialmente realizado pelos historiadores. Temos historiadores orgânicos, num sentido tomado emprestado de Gramsci, que são os historiadores do Partido Comunista, os historiadores do movimento gaullista, os historiadores socialisProfessor do Curso de História da Universidade Federal de Roraima. Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC/SP. 2 Este texto foi produzido a partir de um recorte de minha tese de doutorado em História, intitulada “Entre cultura política, memórias e política de identidade: sujeitos históricos em ação – Boa Vista/Roraima (1970-1980)”, defendida em 2015, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Professora Maria Izilda Santos de Matos. 1


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tas, os sindicalistas, etc., cuja tarefa é precisamente enquadrar a memória. (POLLACK, 1992, p. 206).

E que: Por conseguinte, o trabalho de enquadramento da memória pode ser analisado em termos de investimento. Eu poderia dizer que, em certo sentido, uma história social da história seria a análise desse trabalho de enquadramento da memória. Tal análise pode ser feita em organizações políticas, sindicais, na Igreja, enfim, em tudo aquilo que leva os grupos a solidificarem o social. (POLLACK, 1992, p. 206).

Tomando esta perspectiva e procurando dar contornos à identidade boa-vistense/roraimense, assim como as forças políticas a esta associada e, ressaltar seus atores centrais, recorre-se aos memorialistas da cidade de Boa Vista, entendendo-os enquanto porta-vozes das aspirações desse segmento de sua elite, pois não só trabalhavam as memórias da região do rio Branco, mas se colocavam como defensores dos “valores locais” e membros das famílias tradicionais. Quando se procura tornar visíveis os indivíduos e famílias apresentados como centrais no conjunto identitário local relacionados por esses autores, como não podia ser diferente, se observa que começava pelos considerados pioneiros na região: Inácio, Domingos e Manoel Lopes de Magalhães; Bento Ferreira Marques Brasil, João Capistrano da Silva Mota e Alfredo Venâncio de Souza Cruz foram os pioneiros representantes das respectivas famílias a chegarem ao antigo município de Boa Vista do Rio Branco, ao tempo em que esta unidade pertencia ao Estado do Amazonas, constituindo-se, por isso, nos autênticos pioneiros desta região. Cada um aqui constituiu família ou a trouxe de outras áreas, de onde descendem milhares de pessoas, povoando hoje este Extremo Norte Brasileiro, que escolheram para seu berço [...] (MAGALHÃES, 1997, p. 58-59).

Encerrado assim, de forma simbólica, o núcleo constituinte da origem da identidade dos boa-vistenses na região do rio Branco, para além desse conjunto, o memorialista acrescentava: “Várias outras famílias, naturalmente, vieram depois, constituindo-se, hoje, em muitos descendentes” (MAGALHÃES, 1997, p. 58-59). Portanto, novas pessoas e famílias continuaram chegando e juntando-se também como descendentes. Entretanto, o grupo inicial era a referência que se tomava para


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montar e alimentar uma identidade local, pois, mesmo aos “pioneiros” e seus descendestes imediatos, tendo vindo a se somar outras famílias posteriormente, os primeiros eram tomados como ponto de origem, apoio e, logo, de união para todos que harmoniosamente passavam a compor o quadro de habitantes da região. De forma que era em torno desse ponto de apoio de memórias que a identidade das famílias tradicionais boa-vistenses desejava ser constituída e alimentada, e a partir da qual se deveria atualizar a presença do passado e dar sentido à vida presente do seu conjunto social. Entretanto, a partir da instalação do Território Federal do Rio Branco em 1944, ano de chegada do seu primeiro governador, a relação entre as forças políticas locais e o governo federal ganhou um capítulo à parte. E no que diz respeito à condição de construção e registro de uma identidade boa-vistense/roraimense surgiram novas resistências. Pois, com o Território, por mais que se unissem em torno de um projeto único de administração da cidade de Boa Vista, havia sempre uma tensão entre o projeto político de incorporação da região do rio Branco à nação, levado a efeito pelo governo federal, e o sentido de ocupação e desenvolvimento idealizado pela elite política e econômica boa-vistense. Enquanto as pretensões do projeto de administração da região idealizado pelas forças políticas que se consideravam pioneiras na região eram mais modestas, mais restritas ao local e ao contexto regional, o plano do governo federal era no mínimo nacional, uma vez que pretendia integrar a região ao contexto do país. Os projetos deste último lançados para a região, por mais que satisfizessem os interesses das forças políticas locais, tinham objetivos próprios e, de uma forma ou de outra, findavam se chocando com os interesses da elite local. Neste trabalho, procura-se ressaltar o papel da elite tradicional no contexto social da cidade de Boa Vista, destacando seus desejos políticos, as temáticas a que estavam associados, assim como pensar as inquietações que a incomodavam, as resistências que enfrentavam na realização de um projeto identitário. Se logo após a implantação do Território as diferenças puderam ser silenciadas a favor de ambas as partes, evidências de divergências podem ser observadas quase ao longo dessa relação. Já nas eleições para deputado federal de 1950, por exemplo, estavam à frente dessa disputa, de um lado, o tenente-coronel Félix Valois de Araújo, maranhense que havia chegado a Roraima em 1946, como o segundo governador indicado para o Território do Rio Branco, e, do outro, o Sr. Fanor Cumprido Junior, parente e candidato do Dr. Miguel Ximenes de Melo,


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então governador. Este era piauiense e havia sido também indicado pelo senador Vitorino Freire do Maranhão e nomeado em 1949 para o governo do Território. Nesse confronto, o primeiro saiu vitorioso. Freitas, memorialista local e filho da terra, revendo a história, relatava esses acontecimentos com desdém: “Era um civil contra um militar. Venceu o militar. Mas para o destino do Território tanto fazia um quanto o outro, afinal os dois eram estranhos ao Território e às suas tradições” (FREITAS, 1993, p. 84). O que era de se lamentar para o memorialista “[...] é que as forças políticas locais não tenham se levantado e apresentado nome ou nomes da terra para ocupar o espaço político”. E, na disputa política travada, o que pareceu incomodá-lo foi a forma como “pessoas de fora” chegavam para governar o Território, em muitos casos sem conhecê-lo, e se tornavam lideranças políticas, entrando em oposição umas com as outras sem um plano consistente de desenvolvimento para o Território. Para Freitas, esse quadro deixava “completamente desvirtuada aqui a ação colonizadora com a criação do Território”. Tudo não passava de um jogo de interesses políticos sem preocupação com o desenvolvimento da região. O senador Vitorino Freire do Maranhão, que nunca havia visitado Roraima, era quem indicava seus governos. E, por sua vez, “Os governos se limitam a utilizar um orçamento no embonecamento da cidade de Boa Vista” (FREITAS, 1993, p. 87), esquecendo que era preciso melhorar as condições de navegabilidade para Manaus e abrir estradas para acesso a novos mercados. Os rumos desejados pelas forças políticas locais pareciam se apresentar mais claramente no Plano Quinquenal elaborado em 1944/45 para o primeiro governo do Território, que foi exercido por Ene Garcez. Conforme esse plano: “[...] o Território apresenta uma soma de recursos que, se inteligentemente utilizados, muito podem contribuir para o enriquecimento geral do país.” Falava da necessidade de se priorizar as ações, colocando em primeiro lugar “os problemas do homem” - educação, saúde, colonização e imigração; em segundo os geoeconômicos - agropecuária, transportes, preços, mineração etc.; e em terceiro lugar os problemas de ação do governo - organização administrativa, regime fiscal e tributário etc. Dessa forma, “[...] o território deveria funcionar como uma grande organização industrial por intermédio da qual o Governo Federal fizesse investimentos em empreendimentos de sentido produtivo, geradores de riqueza e construtores de uma civilização baseada em recursos locais” (FREITAS, 1993, p. 73-74). Conforme o memorialista, um exemplo dessa realização havia


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ocorrido no governo do Coronel Belarmino Neves Galvão, com Valério Magalhães enquanto Diretor da Divisão de Produção, Terras e Colonização e depois Secretário Geral, pois: [...] este Engenheiro Agrônomo, roraimense de larga visão desenvolvimentista iniciou, na prática, o programa de colonização do Território. Foi ele, com o apoio de seus companheiros Francisco Câncio da Rocha, Dorval Magalhães e Armando da Mota Barros, os pioneiros no processo de indução colonizadora. Tinham eles em mente que o Território para crescer e se desenvolver precisava aumentar sua população e explorar os seus recursos naturais, notadamente na agricultura e na pecuária (FREITAS, 1993, p. 87).

Nesta citação, esboça-se claramente a importância dada aos “filhos da terra” nesse projeto, quando mostrava o “nós”, sujeitos de vontade e ação, personalizado na pessoa de Valério Magalhães e sua equipe. Dessa forma, para além da cidade, o projeto dos pioneiros estava voltado para a ocupação territorial como um todo, assentando homens no campo em atividades ligadas à pecuária e à agricultura, sem esquecer a exploração dos recursos naturais. Outro problema observado pelo memorialista era as constantes mudanças de governos, uma vez que: As mudanças administrativas do Território, onde os governadores eram substituídos com menos de um ano, levou a uma perniciosa descontinuidade administrativa. As equipes de governo, quase sempre estranhas ao Território, não tinham conhecimento das tradições locais. Por isso, quase sempre, as tradições e os valores locais eram violentados ou desrespeitados (FREITAS, 1993, p. 91).

Desse modo, além de não contribuir para o desenvolvimento da região, esses estranhos desrespeitavam os “valores locais”, os anseios dos “filhos da terra” e, por desconhecerem o projeto “original” de ocupação do espaço, alteravam a geografia da cidade de Boa Vista, não levando em consideração a orientação estabelecida a princípio pelos antigos moradores. Entre essas alterações citava Freitas: [...] o bairro do Roi-Couro desapareceu para dar lugar ao São Pedro; o bairro do Caxangá deu lugar ao de N. S. de Nazaré; a rua do Prado foi batizada com o nome de General Penha Brasil, ilustre desconhecido cuja única façanha foi ter saltado de paraquedas em Boa Vista; a Mecejana virou GRESSB e o Mirandinha virou Iate, etc (FREITAS, 1993, p. 91).


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Ainda neste contexto, lembrava um protesto lançado por Adolfo Brasil, membros de família tradicional e então ex-prefeito da cidade de Boa Vista, contra a urbanização do Cemitério do Alto do Bode que, conforme o memorialista, foi publicado no jornal “O Átomo”, em 1953: O prefeito atual quer murar o que resta do mais antigo cemitério desta capital, que data de 1880, uma relíquia da família rio-branquense. Este cemitério está quase que totalmente tomado por casas em seu redor e mesmo dentro da área destinada a sepulturas. Ali foram construídos verdadeiros ultrajes aos abnegados patrícios que ali tem seus restos mortais; heroicos bandeirantes rio-branquenses. Pioneiros audazes que cimentaram com o seu arrojo e o seu trabalho uma civilização nesta querida terra e que pensaram encontrar a paz após uma vida de ingentes esforços, sacrifícios, lutas e dissabores, toda dedicada ao desbravamento e ao progresso do Rio Branco. A esses antepassados heroicos, vultos maiores da história do rio Branco, vontade indômita, determinação, perseverança, heroísmo, desprendimento, abnegação, renúncia e estoicismo, retemperados no cadinho do patriotismo, sequer a Paz e o respeito que a morte, pelo menos a morte, lhes granjeara se assim não fora pelo muito que fizeram esses patrícios de fibra, ao invés de gratidão, reconhecimento e admiração, se lhes nega o mais comezinho e vulgar dos direitos: o de terem túmulos resguardados e respeitados, princípio universal de uma colonização, observado até mesmo entre os povos mais bárbaros. E, mais do que isso, não se respeita nem o direito de terem eles comprado à Prefeitura o lugar sagrado em que esperavam gozar em paz. Sepulturas profanadas, túmulos desrespeitados são criminalmente classificados era isso que lhes reservava a nossa Administração Municipal aforando, precipitadamente e sem consultar os interesses das pessoas que ali tem alguns entes queridos, os terrenos em que se acha o cemitério em apreço, quando lhes devia garantir, como é de direito, justo o indispensável, o respeito à Paz e à inviolabilidade, preservando a tradição e como que uma parte da própria história do Rio Branco por que ali se encontravam sepultados os pioneiros que com coragem e denodo escreveram algumas páginas de sua história mais brilhante. Devia-se, isto sim, honrar o passado heroico que o pequeno cemitério do Alto do Bode representa. Em nome dos Magalhães, dos Motas, dos Brasil, dos Coelhos, dos Oliveiras, dos Souzas, e de outras ilustres famílias, eu me levanto contra os que se julgam prejudicados pela medida recente, muito aberta, do atual Prefeito, de murar o cemitério do Alto do Bode. (FREITAS, 1993, p. 91-92).

Conforme a citação, os “valores locais” eram desrespeitados por pessoas “vindas de fora” que, por desconhecerem os “valores do lugar”,


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viabilizavam projetos para a cidade que alteravam sua geografia física e mexiam com os sentimentos mais profundos da sociedade roraimense. Obviamente que para os recém-migrados essas memórias não faziam parte de seu repertório de lembranças. Para estes, a extensão da cidade era só mais um espaço físico a ser ocupado, destituído de toda subjetividade que proporcionava os pontos de amarração das memórias que permitiam a fundação de uma identidade local na concepção dos antigos moradores. Assim, depois de ressaltar a importância dos antepassados para a cidade, Adolfo Brasil requeria de suas autoridades de então a gratidão, o reconhecimento e a admiração, o que significava preservar a tradição local que se expressava na história do Rio Branco contida naquele espaço. Pois, naquele cemitério, “se encontravam sepultados os seus pioneiros”, pessoas dignas das mais elevadas considerações. Honrá-los era honrar a tradição, era honrar um passado de luta, amor e dedicação, isso significava gratidão. E como se pode deduzir, ao agir dessa forma, se reconheciam também as memórias locais e se valorizava sua identidade. Percebe-se, assim, que o cemitério era um espaço de sentimentos, o que levava os vivos a se levantarem em nome das famílias tradicionais para exigir respeito pelos seus mortos. Como nos discursos fúnebres atenienses, se apresentava o jogo dos espelhos, em que “[...] a pólis que honra seus mortos por meio de um discurso reencontra-se, a si própria, no discurso, como origem do nómos e como causa final da morte dos cidadãos”. Afinal, “Se toda celebração não é senão uma forma discreta de autocelebração, se, honrando-se a grandeza, engrandece-se a si próprio, então, tudo leva a supor que Atenas reserve em seu benefício uma parte do louvor que dedica a seus mortos e ao epitáfios.” (LORAUX, 1994, p. 21-22). Visto assim, o respeito que os “pioneiros” buscavam se reverteria em benefício próprio, pois respeitar os mortos era respeitar os seus entes queridos. O que se desejava dedicar aos mortos, aos antepassados e “ilustres pioneiros” era o mesmo que os seus representantes em carne e osso imaginavam merecer, uma vez que ambos eram partes de uma mesma identidade surgida tendo como suporte o espaço físico roraimense. Assim, o discurso emergia como mecanismo fundante do espaço, em que na pessoa do homenageado encontrava-se o cidadão que se desejava como morador e pertencente a essa “ordem de lugar.”3 O conceito de “lugar” é empregado aqui de acordo com CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1 - Artes de fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. 3


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Entretanto, a cidade, a partir de então, começava a se tornar outra e outros eram seus habitantes. Os heróis, se foram imponentes no passado e centrais na identidade do roraimense, não tinham o mesmo significado para os novos habitantes da cidade e, em parte, algumas alterações não mostravam o menor sinal de retorno aos valores antigos. Evidência disso pode ser percebida na “reação negativa dos moradores de Boa Vista” quando Aquilino Duarte, governador de Roraima e roraimense nomeado em 1952, alegando evitar despesas com indenizações, planejou alterar o Plano Urbanístico de Boa Vista, traçado por Darcy Derenusson, no governo de Ene Garcez. Contava Freitas: Houve sempre alguém para defender o traçado de Boa Vista, feito quando da chegada do primeiro governador. O governador Aquilino Duarte queria deixar uma cidade antiga intocável. E se dizia que esta teria sido uma medida sensata se tivesse sido tomada, inicialmente, fazendo-se apenas pequenas correções, pois o traçado antigo era bastante regular, honrando a mentalidade dos antigos prefeitos do tempo em que éramos município do Estado do Amazonas. Todavia, com o Plano Urbanístico traçado e já tendo sido, em grande parte, executado, gastando-se, por conseguinte, uma boa soma de recursos, a opinião pública evitou que o governo Aquilino Duarte alterasse o Plano Urbanístico de Boa Vista. Caso isto tivesse sido executado, seria de se lamentar, uma vez que a cidade de Boa Vista, com o seu belo traçado é, hoje, um dos orgulhos dos boa-vistenses (FREITAS, 1993, p. 93).

Como se pode perceber, o projeto levado a efeito por administradores “vindos de fora” caíra no gosto popular, de maneira que, independentemente das forças políticas atuantes na cidade, a população entrava com sua opinião e, nesta, as memórias dos “pioneiros” já não eram tão centrais. Nesse caso específico, até mesmo o memorialista se encontrava satisfeito com a forma como as coisas haviam acontecido. Voltando à instabilidade política e à falta de projetos de longo prazo comprometidos com o desenvolvimento da região, comentava-se: “Decididamente, nesse ambiente de entraves, reveses e incompreensões não é possível realizar nada de grande e duradouro.” Observava ainda que as lutas haviam se voltado para questões pessoais, com cada um avançando com toda a força sobre os erros do outro. Multiplicavam-se as acusações e esquecia-se “que, ao invés de destruírem os adversários, enfraquecem a luta pelo desenvolvimento do Território” (FREITAS, 1993, p. 94-95). Assim, as questões políticas se tornavam centrais, Petrópolis: Vozes, 1994, p. 201.


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desviando o foco dos horizontes do desenvolvimento regional. Isso levou à compreensão entre as forças políticas locais de que só o povo do Rio Branco devia conduzir os seus destinos, sob pena de sucumbir. Dessa forma, diante do que consideravam abusos de poder de Félix Valois, ex-governador e agora deputado que procurava manter uma hegemonia política no Território, formou-se, em 1954, uma frente única que tinha por objetivo eleger um representante para deputado federal e derrubar Félix Valois e o governador Aquilino Duarte, seu indicado. Entretanto, “Com a vitória da coligação e a consequente nomeação do governador por ela indicado, travou-se a mais dura batalha interna por espaço dentro do governo. A coligação ruiu e, em pouco tempo, muitos tinham saudades do tempo de mando do Deputado Félix Valois de Araújo” (FREITAS, 1993, p. 97). Nas práticas administrativas, parecia já não haver diferença entre forças políticas locais e as recém-chegadas. A luta pelo poder parecia ter contagiado a todos, e as brigas políticas entrelaçavam uns aos outros, ligando, afastando e religando políticos e propostas. Em 1958, mais uma vez as forças políticas locais estabeleciam uma nova aliança unindo todos os partidos em uma coligação para novamente buscar derrotar Valois. Entretanto, vencido o adversário e indicado Hélio Araújo para governo, A formação do secretariado desse governo foi muito difícil. Eram quatro forças brigando por uma fatia maior de poder. Brigava-se por tudo. Até por nomeação de porteiro de repartição, delegado de polícia do interior, zelador de escola, motorista de caminhão, tudo. Tudo era motivo para desentendimentos (FREITAS, 1993, p. 136).

As experiências políticas vividas pelo território pareciam ter transformado o lugar em uma torre de babel, ninguém mais se entendia. A prática administrativa criticada nos políticos “vindos de fora” mais uma vez mostrava evidências de que havia, em definitivo, contagiado “os de casa”, levando-os a lutar pelo imediato, esquecendo os planos de desenvolvimento da região. Ao tornarem centrais as vantagens pessoais que podiam tirar da máquina administrativa, passaram a apostar no jogo político em que cada um via o que lhe interessa diretamente. Isto remete às observações feitas por um antigo morador de Boa Vista, em entrevista realizada em dezembro do ano de 2000, ocasião em que este comparava a vida passada da cidade com o seu momento atual:


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Naquele tempo era mais difícil, mas eu acho mesmo assim, naquele tempo era melhor, era muito mais fácil, era mais rico de alimentos, mas você sabe porque, porque também a população era pouca, era muito menos gente. Eu vejo que a população era mais humana, era mais humanizada a coisa. Era mesmo, o que você tinha o seu vizinho da direita tinha, seu vizinho da esquerda tinha, o da frente. Era, se dividia quase tudo com todos [...], não, hoje em dia é um por si e Deus por todos. [...] Antes ninguém preocupava-se em comprar televisão, telefone, carros novos e ter isto e aquilo, hoje é uma questão da humanidade ter status e questão de necessidade de ter isto ou aquilo, para ter uma comparação com o vizinho e com outros. (Depoimento de Antônio Barros, em entrevista concedida a José Gleidson Gondim em 13/12/2000).

Conforme esse relato, a modernização da antiga cidade deixou as coisas piores, pois, por um lado, elevou o número de habitantes e tornou escassos os recursos e, por outro, trouxe o egoísmo e a ambição, elementos que, conforme seu relato, não existiam na Boa Vista do passado. Dessa forma, a vida moderna colocou novos objetos de desejo e, enquanto tal, novas preocupações que não existiam anteriormente: “comprar televisão, telefone, carros novos”, práticas que tornaram explícita a competição, aspecto que, como visto acima, já vinha se dando no campo político na administração do Território. Com os militares no poder em 1964, mais uma vez calavam-se as forças políticas da terra e, com isso, silenciavam-se os conflitos envolvendo os interesses locais versus os nacionais. Entende-se que dois motivos contribuíram para essa atitude: primeiro, a implantação de uma ditadura no país por si só já forçava o silêncio de resistências; e, segundo, a importância dada pelos governos militares à região. “As grandes mudanças só se efetivariam após a implantação do regime militar, quando Roraima adquire importância geopolítica em razão da complicada situação política no Caribe e das reformas administrativas no governo federal”, frutos de uma conjuntura que combinava “o acirramento da Guerra Fria, a execução de grandes projetos visando à integração e o desenvolvimento e, uma mudança na política aplicada aos territórios”, uma vez que “Roraima, situado no extremo norte, era “uma cunha encravada em dois países (Venezuela e Guiana ex-inglesa) com problemas de guerrilha e instabilidade política” (SANTOS, 2013, p.12-13). Entre as mudanças positivas que se processaram com os governos desse período, conforme Freitas, uma foi a permanência mais prolongada dos governadores na administração do Território, com destaque


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para três deles: Hélio da Costa Campos, que governou por seis anos em dois períodos, de abril de 1967 a maio de 1969 e de março de 1970 a abril de 1974; Fernando Ramos Pereira, que governou por cinco anos, de abril de 1974 a abril de 1979; e Ottomar de Souza Pinto, que governou por quatro anos, de abril de 1979 a março de 1983. Para os memorialistas locais, “com a Revolução tudo mudou para melhor”, pois houve: A abertura da estrada Manaus-Boa Vista, a instalação de telefone público, a televisão, o telex, o correio, o avião a jato, o automóvel, as valiosas pontes de concreto, a estrada Boa Vista-Santa Helena e Boa Vista-Bonfim, o 2º grau, a extensão universitária, o Banco, a Polícia Militar, a extensão rural, a água, a luz, o asfalto, os novos municípios, a Perimetral Norte cortando o Território, os Batalhões do Exército, a Base Aérea, o Aeroporto Internacional foram obras que a Revolução de 64 trouxe para o Território e que, no sistema de governo, anteriormente adotado, levaríamos, pelo menos, 2 séculos para construirmos (FREITAS, 1993, p. 160-161).

Diante dessas afirmações, se imagina que havia pouca coisa que pudesse caracterizar Boa Vista como um centro urbano antes de os militares chegarem ao poder, em 1964. E, conforme Freitas, as mudanças começaram mais especificamente a partir de Hélio Campos, governo que passou mais tempo à frente do Território de Roraima, chegando a fazer carreira política, elegendo-se e reelegendo-se Deputado Federal. Governo, na observação do memorialista, de “princípios democráticos que eram expressos no próprio modo de vida”, pois “ficou na lembrança do povo por andar de bermudas, aos sábados, na avenida Jaime Brasil” (FREITAS, 1993, p. 168). Pelo exposto, Boa Vista parece ter aproveitado o melhor lado que o período de ditadura militar podia oferecer: beneficiou-se do “milagre brasileiro” para se desenvolver e se modernizar, se valendo de um momento democrático que, conforme o relatado, tinha origem na própria maneira descontraída de ser do governador, que, pelo visto, gozava de certa intimidade com a sociedade local, desfrutando, por sinal, da condição de mais um descendente de “pioneiro”. Uma das vantagens deste governador, na concepção de Freitas, é que ele “não trouxe ninguém de fora para o seu Secretariado. Compôs tudo com gente radicada em Roraima”, de maneira que “Chagas Duarte foi, de fato, o governador executivo” (FREITAS, 1993, p. 170). Percebe-se, portanto, uma harmonia entre esse governador e a elite tradicional local, o que não parece ter continuado no governo seguinte, uma vez


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que, no início de 1974, tomava posse na presidência da República o general Ernesto Geisel e, em abril, assumia como governo do Território de Roraima o amazonense coronel-aviador Fernando Ramos Pereira. Esse, conforme Freitas, foi “o governador que mais sofreu pressões no exercício do poder no Território” (FREITAS, 1993, p. 183). Orientado pelo lema “ocupar para desenvolver e integrar”, Ramos Pereira se dedicou em aplicar a política desenvolvimentista do II Plano Nacional de Desenvolvimento - II PND e do Programa de Pólos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia - POLAMAZÔNIA, cujos objetivos, no que dizia respeito a sua aplicação local, estavam voltados para a “urbanização de núcleos urbanos na fronteira com a Guiana e a Venezuela, a expansão da malha urbana de Boa Vista e a completa remodelação urbana da cidade de Caracaraí, ponto de junção da BR 174 e da Perimetral Norte, ambas em construção no tempo de seu governo” (SANTOS, 2013, p. 122). Direcionado, dessa forma, para dar resposta aos desafios da nação como um todo, mais uma vez seus objetivos estavam para além de interesses imediatos das forças políticas locais. Por outro lado, o espaço de aplicação de suas ações: [...] abrangiam as “áreas antigas” ocupadas por grupos indígenas e por fazendas com limites indeterminados, cuja documentação era colocada em dúvida pelo INCRA. No sul e sudeste, a abertura das rodovias BR 174 e Perimetral Norte, causavam conflitos cruentos com os índios que foram violentamente reprimidos (SANTOS, 2013, p. 123).

Dessa forma, ao forçar a implantação do modelo de desenvolvimento planejado pelo governo central, o governador do Território entrou em choque com as forças políticas locais. “As razões do enfrentamento só se explicam pela importância que as lideranças locais, em sua grande parte agrupadas na sigla partidária do MDB, defendiam não só valores, mas principalmente sentiam-se ameaçadas pela possível perda do seu bem mais precioso: a terra” (SANTOS, 2013, p. 126), tendo em vista que entre os pré-requisitos do programa do governo para o desenvolvimento do Território estava a regularização da situação fundiária de Roraima. Diante dessa exigência e do grande número de propriedades irregulares, essa condição ameaçava a posse da terra e abria espaço para resistência. Já para o fim deste governo, a redemocratização do país, processo que se dá entre o final da década de 1970 e os primeiros anos da década de 1980, somado à crise da dívida, levou o governo central a perder


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força, o que abriu espaço para o surgimento de novas relações de poder no Território de Roraima: “[...] lideranças nascidas no bojo da burocracia estatal buscavam também seu espaço na política do já declarado futuro estado federativo, disputando com os da terra um eleitorado cada vez mais identificado com os migrantes” (SANTOS, 2013, p.126). O forte processo migratório que agitou Boa Vista na década de 1980, em parte fomentado pela abertura do garimpo e facilitada pela conclusão da BR-174 ligando Boa Vista a Manaus, estrada inaugurada em 1977, colocou em apreensão seus moradores sobre uma possível invasão de migrantes. Uma evidência disto se encontra nas observações do Deputado Júlio Martins quando, parodiando o slogan da Campanha da Fraternidade de 1980, traçava um quadro ilustrativo dessa situação: Com efeito, o Território de Roraima [...] hoje é palco de um acontecimento ao mesmo tempo fascinante e insólito. [...] De todas as partes do Brasil estão acorrendo milhares de pessoas em demandas das terras roraimenses. Gente do Sul, do Nordeste, do Centro-Oeste. São gaúchos, paranaenses, paulistas, mato-grossenses, nordestinos que chegam para as lides da agricultura e da pecuária, numa avalanche de gente que se precipita sobre Roraima, como uma onda que de repente se forma no mar calmo e invade uma ilha desconhecida. Para quem conheceu em Roraima a quietude ou o marasmo de outrora nada mais auspicioso do que o alvoroço dos que chegam com pressa de vencer, trazendo os alforjes cheios de novas ideias, de uma titânica disposição para a luta e de grande reservas de esperança. E vão revolvendo velhos conceitos, quebrando tabus e deixando cair, com a semente dos grãos que plantam, o exemplo do seu trabalho. [...] A pecuária, a indústria extrativa, o comércio, os serviços, enfim toda a economia roraimense recebe os benefícios influxos desse dinamismo. O Governo do Território parte para um ambicioso programa de desenvolvimento, visando a direcionar e estimular essa pletora de energias e de oportunidades. [...] O slogan da Campanha da Fraternidade quer ser sobretudo uma denúncia. Mas será também uma sugestão e um convite. “Para onde vais?” - Para as terras do Norte, onde o Brasil começa e onde milhões de brasileiros podem começar um novo dia (Jornal Boa Vista. “Para onde vais?” Boa Vista, 16 mar. 1980, p. 02).

No que dizia respeito a população urbana de Boa Vista, em 1970 era de 16.727, em 1980 pulou para 52.614, chegando ao censo de 1991 com o registro de 120.157 habitantes, de forma que apenas na década de 1980 sua população urbana oscilou de 52 mil para 120 mil habitantes aproximadamente, mais que dobrou de tamanho. Voltando às divergências existentes entre o projeto político local e o


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nacional, nos anos de 1970, evidências disto se encontravam para além das ações imediatas, como a condição de oposição em que se colocaram as forças políticas locais frente ao governo de Ramos Pereira, elas invadiram o campo simbólico, a exemplo das queixas apresentadas ainda no governo Hélio Campos, quando foi construído um monumento ao garimpeiro, pois nessa ocasião, comentava um memorialista: Tivemos oportunidade de dirigir-nos ao Governador [...] dizendolhe da nossa insatisfação, pois achamos que a homenagem, para atingir os diferentes valores, deveria ser tríplice: ao Índio, que, indubitavelmente, foi o primeiro habitante da região, havendo recebido pacificamente o colono branco; ao ruralista ou vaqueiro, que plasmou a primeira economia regional, ainda hoje importante; e, por fim, ao garimpeiro, eterno nômade e sonhador (MAGALHÃES, 1986, p.123).

De forma que a presença do garimpo no campo simbólico, atividade vista como marginal, trabalho de caráter nômade, ao gosto de aventureiros e dos que nada tinham a perder, conforme Dorval de Magalhães, não justificava para as famílias de “pioneiros” em Roraima a imagem de um garimpeiro com sua bateia, mostrando-se em plena atividade de garimpagem, exposta numa estátua no centro da praça principal cidade. Esse espaço, por sinal, concentrava os prédios que abrigavam os principais poderes locais constituídos. Visto assim, para este memorialista, o monumento erguido em homenagem ao garimpeiro era um dos “erros em Roraima”. Passado o governo de Ramos Pereira, em abril de 1979 era nomeado Ottomar Pinto. Este: /.../ encontrou o Território, virtualmente, dividido ao meio politicamente. De um lado os partidários de Hélio Campos, eleito pela Arena, mas com os votos de oposição ao governo Ramos Pereira e, do outro lado, os correligionários de Júlio Martins, também eleito pela ARENA, e os amigos de Ramos Pereira. Eram duas correntes diametralmente opostas. Nessa situação, Ottomar Pinto resolveu pacificar o Território, a ponto de receber, no antigo e tradicional baile do dia 13 de setembro, realizado no Palácio do Governo, no ano de 1979, um belo diploma entregue por Oder Brasil, intitulando-o O Governador da Paz. Esse diploma era em couro de carneiro encrustado de brilhantes (FREITAS, 1993, p. 195).

Encontrar-se dividida ao meio, representava poucas chances de as forças políticas locais construírem uma unidade representativa da


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sociedade boa-vistense, condição que permitiu ao novo governador já se apresentar como um elo entre suas lideranças políticas e, portanto, como um de seus líderes naturais. Dessa forma, para se manter a própria unidade política local, precisou-se de alguém “vindo de fora” para lhe restituir a tranquilidade, situação que facilitou a cooptação das forças políticas locais com a distribuição de cargos na organização administrativa do novo governo. Na concepção do memorialista, este montou “um secretariado de respaldo popular e de partidários das duas correntes arenistas, na sua maioria, de homens identificados com o povo do Território” (FREITAS, 1993, p. 195). Imagina-se que o “popular” enfatizado por Freitas se restringia à nomeação das lideranças políticas locais na composição do quadro do governo. Em seu discurso de posse, o governador enalteceu o potencial do Território, o desenvolvimento, o trabalho e incentivou o acolhimento aos migrantes, pois, implorava Ottomar: Que venham logo, sem demora, nossos irmãos do centro-sul e do nordeste! Que tragam seus instrumentos de trabalho e seu vigor produtivo, extraordinários fermentos, que farão crescer e crescer muito o bolo de nossa economia. Aqui se oferecem, há séculos, à criatividade e operosidade do nosso povo, aptas e exercer excepcional efeito multiplicador no seu trabalho, imensas extensões de terras férteis, cobertas por rico revestimento madeireiro no sul e no oeste, os vastos campos naturais do lavrado e os fertilíssimos solos do altiplano, ao norte, com um clima que assemelha o temperado, e vocação agrícola para culturas permanentes, tais como café, frutas etc. Ainda nas montanhas e vales da região norte está entesourada incalculável dotação de minérios que fará crescer nestes dias, em espiral, nossa economia, induzindo vigoroso alento à atividade industrial e comercial, porque exercida por nossa gente, aqui ficarão para benefício de nosso povo, os frutos de atividade mineradora, com que Deus prodigalizou este Território (FREITAS, 1993, p. 196-197).

Com o “nossa gente”, o “nosso povo” enfatizado em seu discurso, o novo governador se incluía na identidade local, transformando-se em roraimense de primeira linha e com a energia e habilidade de quem seria capaz de unir o Território em torno de uma identidade única. Entretanto, por mais que seu discurso político o levasse a se reconhecer como roraimense, Ottomar não apresentava todos os requisitos selecionados pelas forças políticas tradicionais do Território para ocupar tal posição, quando se leva em conta afirmações do memorialista para


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outro momento político da cidade, ocasião em que afirmava: “Nós que aqui vivemos [...] se tivéssemos a liberdade de escolher nossos dirigentes”, os requisitos seriam “que seja uma pessoa inteligente, que viva no Território, que conheça in loco os nossos problemas e que suas ideias sejam conhecidas quanto às alternativas de desenvolvimento que podemos ter na nossa região e especialmente no nosso Território” (FREITAS, 1993, p. 180). Dessa forma, apesar dos muitos projetos de infraestrutura realizados em seu governo, os conflitos na política logo se fizeram presentes, uma vez que “As lideranças locais ficaram chocadas com o viés populista do novo estilo de governo e com o crescente fluxo migratório que chegava a Roraima e que reforçava o contingente eleitoral e a liderança do governador” (FREITAS, 1993, p. 201). Como se pode perceber, Ottomar de Souza Pinto se colocava não só como um “pioneiro”, mas como detentor de forma própria de conduzir o desenvolvimento da região que se chocava com as pretensões das forças políticas tradicionais. Aproveitando-se de um contexto político de transição do regime militar para a democracia, quando acontecimentos como a queda do autoritarismo, a anistia a presos e exilados políticos e a derrubada do voto indireto para governadores e prefeitos de capitais valorizavam o voto, levando a uma “re-acomodação das elites regionais” (SANTOS, 2013, p. 127) e, citando Bertha Becker e Cláudio Egler, momento em que: O clientelismo, instrumento para obter votos através da troca de favores e bens públicos, atingiu níveis sem precedentes na história brasileira, em grande parte porque as formas tradicionais de fidelidade eleitoral – baseadas na propriedade da terra – foram profundamente abaladas pela mobilidade da força de trabalho e ameaçadas pelas novas territorialidades. (SANTOS, 2013, p. 127).

Ottomar inaugurava uma nova forma de governar, em que, enquanto sujeito de vontade, encontrava no Território de Roraima o meio propício para a sua ação. E, chegando já como sua autoridade maior, tratou de se apoderar, com toda a força de que dispunha, desse recurso que lhe caíra às mãos para adentrar o campo político. Entende-se que as atitudes desse político, mais que qualquer outra coisa, serve de base para revelar as condições em que se encontravam os investimentos na identidade local. Não só pelo seu exemplo individual – migrante que se inseria na sociedade local já como pioneiro –, mas


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pelo esforço de transformar a prática migratória em ponto forte de sua política. Nesse sentido, se tratava de um pioneiro de outra “ordem de lugar”, pois, na sua organização do espaço, eram outras as prioridades, o que, por sua vez, daria a configuração de outra identidade, diferente da idealizada pelas famílias de “pioneiros” de Roraima. De modo que, no campo das representações, sua ascensão era fracasso desta, que ficaria relegada a segundo plano, uma vez que, para este governo: [...] recebendo hospitaleiramente migrantes dos quatro cantos do País, que para cá trazem seus usos, seus costumes, suas lendas e suas histórias. Dá-se aí então um processo de fusão cultural, processo esse, que contribuiu e vem contribuindo infinitamente para o enriquecimento da cultura roraimense […] (Jornal Boa Vista. “Realidade da Migração em Roraima”. Boa Vista, 12 mar. 1983, p. 11).

E no que parecia um esforço para convencer a elite tradicional local de que era correto o seu incentivo à migração, o editorial do jornal do governo do dia 12 de fevereiro de 1983, em um texto de estilo muito parecido com os discursos do próprio governador, procurava revelar o espírito do conflito que existia entre a ideia de desenvolvimento do governo e a das forças locais. Conforme o texto, o conflito se encontrava no tempo: Quando se pensa nos novos tempos e na dinâmica das transformações que a cada dia ocorrem, vale a pena reflexionar, questionar, se os espíritos, as mentes dos homens, daqueles predestinados a conduzir esta sociedade pelos caminhos ásperos do futuro, também se desdobram e se transformam, na mesma escala de grandeza, em que se transmuda a paisagem socioeconômica desta terra. Lamentavelmente, o testemunho do que se vê e ouve nestes dias, aponta em sentido contrário; há uma divergência, um descompasso entre esses dois vetores essenciais à edificação de um futuro com progresso e em paz. É imperativo que a classe política desta terra, as suas lideranças tradicionais e também as novas, busquem a renovação criadora, aspirando a seiva da espiritualidade e das ideias do povo, na mensagem do cotidiano social, que nas fazendas de gado, nos roçados dos colonos, nas serrarias e na construção civil, nas malocas e nos garimpos, nas escolas e nos lares das cidades e vilas, compõem uma sinfonia harmoniosamente orquestrada, expressão legítima de suas aspirações atuais. Há que entender bem essa mensagem. Há que penetrar na tessitura da malha social e captar os grandes anseios, os anseios gerais e legítimos, dessa sociedade tremendamente dinâmica, dessa sociedade mutante. Esse o grande desafio de inteligência e de generosidade; de hu-


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mildade e de coragem, que se impõe às lideranças políticas de Roraima, nos tempos que vivemos, nesses novos tempos. Ressurge com inusitada atualidade, na amplidão dos lavrados, na mobilidade telúrica das montanhas, no silêncio verde das florestas e nos vales coleantes dos rios de Roraima, aquele juízo ameaçador da esfinge do Egito: decifra-me ou te devoro. Novos Tempos! (Jornal Boa Vista. “Novos Tempos!” Boa Vista, 12 fev. 1983, p. 03).

Dessa forma, para uma harmonia perfeita de uma sociedade em desenvolvimento, as transformações precisavam ocorrer na matéria e na memória, na vida prática e no espírito, pois havia uma dinâmica entre a transformação das coisas e a transformação das mentes dos homens, em especial dos que se colocavam a tarefa de conduzir a sociedade pelos caminhos do futuro. Algo sobre o que era necessário reflexionar, havia uma mensagem a ser decifrada “nos tempos que vivemos, nesses novos tempos”. Encerrando sua fase de governo, Ottomar de Souza Pinto foi exonerado do cargo de governador em março de 1983, mas permaneceu na política local, apoiando candidatos vitoriosos, sofrendo algumas derrotas e tornando-se um campeão de votos no Território. Após a exoneração de Ottomar, dois alienígenas recém-chegados ao Território passaram pelo seu governo, para finalmente, em junho de 1985, assumir Getúlio Alberto de Souza Cruz, filho da terra, roraimense de família tradicional que governou de 26 de junho de 1985 a 14 de outubro de 1987, também nomeado pelo Presidente da República. Embora Getúlio Cruz tenha dado continuidade a vários projetos de grande vulto, os embates em torno do direito à terra se radicalizaram, fomentados, em parte, pelos embates constituintes, em que se opunham forças bastantes antagônicas, como os ruralistas e os defensores dos direitos indígenas. Além disso, também no plano nacional, a crise econômica dificultou as condições do seu governo, que, no plano local, foi abalado por atentado e assassinato envolvendo o prefeito da cidade de Boa Vista, levando-o a uma crise que o conduziu à exoneração (SANTOS, 2013, p. 136-137). Com isso, mais uma oportunidade de os próprios roraimenses comandarem o governo local se perdia entre intrigas, e mais uma vez “Os problemas da gestão de Getúlio Cruz mostraram que as lideranças da terra estavam divididas demais para compor pacificamente um governo, aproveitando o vácuo de poder deixado pelo governo autoritário do regime militar” (SANTOS, 2013, p. 138).


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Imagina-se que, se Ottomar desconhecia a “ordem de lugar” partilhada pelos velhos moradores da cidade, Getúlio Cruz já não conhecia mais a “ordem do seu lugar de origem”, que não mais era constituído apenas de velhos moradores, mas de muitos novos e cuja ordem era produzida muitas vezes no calor das próprias circunstâncias. Dessa forma, até o último governador indicado para o Território Federal de Roraima, Romero Jucá Filho, que governou de setembro de 1988 ao final do ano de 1990, com raras exceções houve momentos de união das forças políticas locais, salvo para derrubar lideranças alienígenas indesejadas. E mesmo passando a Estado de Roraima com a Constituição de 1988, os alienígenas que fizeram carreira política no Território continuaram em atividade. Um exemplo disso se encontra logo na primeira eleição direta para governador ocorrida em 1990 quando ficou frente a frente na disputa Romero Jucá Filho, então governador, e o Brigadeiro Ottomar de Souza Pinto, vencendo este último, apoiado pelas forças nativistas, conforme o memorialista, “por uma razão simples: ele era o mais roraimense dos dois” (FREITAS, 1993, p. 202). Diante das situações narradas, se observa que entre os obstáculos à construção de uma identidade boa-vistense/roraimense, pode-se destacar o fato de a principal atividade econômica, a pecuária, base de sustentação financeira e simbólica de sua sociedade, nas últimas décadas do século XX, passar por um momento de transição, quando as fazendas sofriam mudanças na forma de administração. Neste processo, os novos proprietários, vindos do sul ou mesmo políticos e comerciantes locais que se tornavam fazendeiros, tinham uma mentalidade mais capitalista e, no esforço de tornarem a atividade mais lucrativa, introduziam novas técnicas e práticas, como cultivo de pastagens, cuidados com o rebanho, com vacinações periódicas, melhoramento de currais e aperfeiçoamento da raça, trabalho assalariado, entre outras (CIDR, 1990, p. 10). Imagina-se que isto enfraqueceu o ponto central de apoio das memórias dos campos do Rio Branco, uma vez que junto com a decadência da pecuária aos moldes tradicionais, entrava em decadência também o modelo de sociedade por ela ditado. Outras atividades econômicas ganhavam destaque, a exemplo do boom do ouro na década de 1980, com a abertura de novos garimpos. Por outro lado, a implantação do Território Federal de Roraima já fomentava a estruturação de sua máquina administrativa, o que se expandiu no período em que o Brasil foi administrado pelos militares. Neste quadro, os funcionários surgiam como um grupo mais


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autônomo, ligado diretamente ao governo do Território e pago com recursos provenientes do governo federal, se afastava do controle direto das elites tradicionais, assim como dos valores de sua sociedade. Percebe-se também que o processo migratório em direção a Roraima tinha sempre como espaço de apoio logístico a cidade de Boa Vista, tornando-se esta, na maioria das vezes, o destino final dos migrantes. Estes chegavam desconhecendo completamente os costumes e as práticas locais e, em muitos casos, a entendendo apenas enquanto espaço atrasado, espaço a ser colonizado e, desta forma, sem novidades a oferecer, mas a receber, o que reforçava o estranhamento e incitava o desejo de torná-la um dia, semelhante aos seus lugares de origem. Dessa forma, implantando novas práticas e hábitos diversificavam os costumes e eclipsavam os valores tradicionais. Sem identificação com a cidade, os novos habitantes contribuíam para esvaziar de sentido a sua “ordem de lugar praticado” (CERTEAU, 1994). Neste processo, forçadas por novas experiências e novas compreensões de mundo, as práticas habituais dos velhos moradores de Boa Vista abriam-se para novas configurações sociais, pois as formas de ser e agir que chegavam com os novos moradores não lhes permitiam forjar uma identidade capaz de representar o conjunto maior da população. Entendendo que para o estabelecimento de uma identidade “é necessário criar laços imaginários que permitam ‘ligar’ pessoas que, sem eles, seriam simplesmente indivíduos isolados, sem nenhum ‘sentimento’ de terem qualquer coisa em comum” (SILVA, 2007, p. 85), o convívio em Boa Vista entre pessoas de origens as mais diversas, tornava cada vez mais impossível a existência de um arsenal de lembranças em comum que pudessem ser partilhadas pelos seus moradores e funcionar como pontos de apoio de suas memórias, para que estas viabilizassem um projeto único de identificação entre os indivíduos que a compunham, pois: Para que nossa memória se auxilie com a dos outros, não basta que eles nos tragam seus depoimentos: é necessário ainda que ela não tenha cessado de concordar com suas memórias e que haja bastante pontos de contato entre uma e as outras para que a lembrança que nos recordam possa ser reconstituída sobre um fundamento comum. Não é suficiente reconstituir peça por peça a imagem de um acontecimento do passado para se obter uma lembrança. É necessário que esta reconstrução se opere a partir de dados ou de noções comuns que se encontram tanto no nosso espírito como no dos outros, porque elas passam incessantemente


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desses para aquele e reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam a fazer parte de uma mesma sociedade. (HALBWACHS, 1990, p. 34).

Portanto, a falta de pertencimento à comunidade boa-vistense de seus moradores recém-integrados a população mostrava seu efeito, não proporcionando uma “escuta compartilhada” que permitisse que as lembranças individuais se apoiassem umas nas outras, reforçando pontos em comum possíveis de orientar a vida em grupo ao se transformarem “em maneiras de agir, de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo, dotadas de um poder de coerção em virtude do qual se lhe impõem” (RODRIGUES, 1990, p. 48), recurso necessário à construção de procedimentos em comum, capaz de viabilizar a organização de um grupo social dentro de uma ordem de valores. Na falta disto, por mais que os memorialistas, enquanto seus historiadores orgânicos, trabalhassem na construção dessa identidade, os resultados sempre deixariam a desejar, os novos moradores estariam sempre desconhecendo os “valores locais”. Ao longo da segunda metade do século XX, dá-se o intenso processo migratório, Boa Vista se transformava constantemente em uma nova cidade com novos habitantes. O governo, com sua máquina administrativa, abrira espaço para uma boa parcela de funcionários. O garimpo movimentava outra gama de indivíduos, além do comércio e da prestação de serviços que se expandiam, ocupando pessoas e prendendo-as a outras ações, ramos de serviços que dependiam de outros administradores e fontes de renda, levando as pessoas a ignorarem o estilo de vida tradicional. Dessa forma, as memórias dos “pioneiros” tinham poucas chances de sobrevivência enquanto memórias hegemônicas, pois as bases de repetição não tinham tempo para se cristalizarem e as já cristalizadas não correspondiam com as novas demandas cada vez mais diversificadas, não permitiam laços afetivos com o lugar por parte dos recém-chegados, laços esses tão reclamados pelos memorialistas. Neste quadro, enquanto migrante, o governador Ottomar de Souza Pinto não percebia nenhum problema em enriquecer a cultura local com novos usos, costumes, lendas e histórias, mas talvez fosse esse o ponto mais caro para a elite tradicional local, que desejava conservar os seus próprios traços culturais. Visto assim, seus planos para o Território eram danosos aos “valores locais”, Ottomar retirava dos roraimenses o direito de escolher o seu governante, decidir sobre os rumos de seu desenvolvimento e, enquanto pessoa chegada de outro estado e


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indicada para governar o Território, por mais que conhecesse Roraima, por mais que conhecesse as pessoas que ali viviam, o espaço físico – montanhas, matas, lavrado e rios –, ele não podia partilhar dos sentimentos, do amor ao seu passado, aos seus mortos, aos seus heróis históricos, de forma que sem esse requisito não tinha como conhecer plenamente a sua “ordem de lugar” partilhada pelos seus velhos moradores, coisas que só a experiência de vida podia lhe dar, algo que não tinha como ser conquistado sem antes ter vivenciado. Voltando à Frente Única montada para derrotar o Deputado Félix Valois de Araújo em 1954, em seus relatos sobre como esta se desfez, Freitas chegava à conclusão: “O fato é que, no Território, não tem prevalecido a cidadania rio-branquense ou roraimense nas disputas eleitorais. Pelo contrário, a filosofia de Roraima para os Roraimenses derrotou a candidatura Silvio Botelho – Mozarildo Cavalcante em 1974.” Para ele, “Roraima ainda não é uma terra de roraimenses. É um povo em formação e, aqui, estão se fundindo as raças e as culturas de todos os Estados Brasileiros”. De forma que só “No futuro teremos a fusão de todos esses matizes e de onde surgirá o verdadeiro sentimento do povo roraimense.” (FREITAS, 1993, p. 112-113). Com certeza, já havia um povo roraimense, e muitos outros no futuro deverão se seguir, a dúvida é se entre estes surgirá o verdadeiro sentimento de roraimense desejado pelo memorialista.

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“O Maranhão é aqui”: Arraial dos Maranheses e a produção do território simbólico-cultural na cidade de Boa Vista/RR1 Francisco Marcos Mendes Nogueira2 Antonio Tolrino de Rezende Veras3 Carla Monteiro de Souza4

“O território (...) é a cena do poder e o lugar de todas as relações (...)”. Raffestin, 1993

Os estudos migratórios estão cada vez mais em evidência. Na

atualidade, há um revigoramento dessa temática a partir de diferentes contornos teórico-metodológicos. Nesta perspectiva, a questão em torno do Território se mostra como um campo fértil nas análises que têm as relações, as interações e os fenômenos sociais como fundamento do estudo dos processos migratórios, bem como da construção dos territórios simbólico-culturais. É mister destacar, que se entende como fenômenos sociais a própria realidade concreta em que o sujeito migrante está inserido, pois ela é ao mesmo tempo parte da experiência vivida, percebida e concebida. Partindo de uma abordagem histórica das migrações de maranhenses para a Amazônia, lembramos Marc Bloch (2001, p. 46), que no seu livro Apologia da História enfatiza que “a história não é uma relojoaria ou uma marcenaria”, mas se constitui como um esforço de O presente texto tem como base empírica e teórica a pesquisa desenvolvida por ocasião da Dissertação intitulada “O Maranhão é Aqui”: territorialidades maranhenses na cidade de Boa Vista/RR (1991-2010), defendida no Programa de Pós-graduação em Sociedade e Fronteiras – PPGSOF/UFRR. Está vinculada ao projeto História, Memórias e Migrações: dinâmica urbana de Boa Vista/RR a partir de 1943, apoiado pelo CNPq. 2 Historiador. Mestre em Sociedade e Fronteiras – PPGSOF/UFRR. Doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGH/UFRGS). 3 Geografo. Doutor em Geografia e Professor dos Programas de Pós-graduação em Geografia (PPG-GEO/UFRR) e Sociedade e Fronteiras (PPGSOF/UFRR) 4 Historiadora. Doutora em História e Professora do Programa de Pós-graduação em Sociedade e Fronteiras (PPGSOF/UFRR) 1


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compreensão e de conhecimento, já que a história é dinâmica, ou, como o autor destaca, é uma “coisa em movimento”. Nesse esforço de análise e compreensão, faz-se necessário estabelecer diálogos e conexões com outras Ciências, no caso do presente trabalho, com a Geografia, tendo em vista que versa sobre o território simbólico-cultural dos maranhenses na cidade de Boa Vista/RR, tendo como pano de fundo o Arraial dos Maranhenses, intitulado “O Maranhão é Aqui!”, que ocorre anualmente desde 2010, na Comunidade Católica São Raimundo Nonato, Bairro Santa Luzia. Considerando o exposto, tomamos, então, o conceito de Território como elemento chave na discussão dos seguintes questionamentos: se a produção territorial é “absoluta” e ao mesmo tempo ela é “relacional”, então, em que medida o Arraial dos Maranhenses contribui para “configurar” e “fortalecer” uma identidade maranhense no lugar de destino a partir dos elementos socioculturais do território de origem? Pensando o uso e a produção do território simbólico-cultural dos migrantes maranhenses no Extremo Norte do País, Boa Vista/Roraima, como ele abarca a dimensão do ser e do viver, nesse caso dos elementos socioculturais? Para esta discussão, pensamos que na produção territorial por parte dos migrantes há diferentes influências e distintas intenções, uma vez que o território produzido é, ao mesmo tempo, material e imaterial; social e cultural; relacional e afetivo; constituindo-se, assim, numa esfera de poder, que tem a capacidade de incluir e de excluir, pois todo território se dá e se constitui a partir da perspectiva de poder (HAESBAERT, 1997, 2012; SAQUET, 2007, 2009; SOUZA, 2001). Assim, opta-se pelo o aporte metodológico da História Oral (HO), pois, segundo Alberti (2008, p. 171) “ao contar suas experiências, o entrevistado transforma o que foi vivenciado em linguagem, selecionando e organizando os acontecimentos de acordo com determinado sentido”. Além disso, a HO se enquadra no campo metodológico da pesquisa qualitativa e fenomenológica, pois ela privilegia a análise dos micro processos por meio dos estudos das ações socioculturais tanto de forma individual como social ou coletiva. É mister não perder de vista que as “fontes orais são fontes orais” (PORTELLI, 1997, p. 36). Nesse sentido, a narrativa tem uma relação direta com a memória e a intencionalidade do sujeito em narrativizar-se, por meio do discurso multivocal. Por esta razão, “as histórias narradas amealham vozes revividas e constelações de imagens, enredando os fios da existência”, como afirmam Ferreira e Grossi, explicando que


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o sentido que o narrador dá não visa reproduzir o acontecido, porém, “construir o vivido através das palavras, imagens, discursos” (2004, p.42-44). Essa capacidade confere ao sujeito narrador “o poder de dizer, dizer-se, dizer-nos, o poder de resistir em sua singularidade, procurando apenas uma abertura dialógica” (FERREIRA; GROSSI, 2004, p.44). Posto isso, o texto versará sobre a dimensão do território simbólico-cultural, tendo como fio de Ariadne as narrativas dos migrantes5: Luciete Marques Farias Souza6 e Pedro Lima da Costa7, lideranças da Comunidade Católica São Raimundo Nonato e membros fundadores da Associação Cultural Maranhense de Roraima8 (ACMARR).

Aproximações e nuances conceituais: o território engendrado no contexto do espaço social Rogério Haesbaert (2011, p. 46) considera que, atualmente, vivemos num entrecruzamento de “proposições teóricas”, cenário em que pode ocorrer que algumas “proposições conceituais não se enquadrem com clareza em uma única grande corrente teórica, como ocorria no passado”. Essa questão coloca a necessidade de desvelar as várias nuances que há, por exemplo, nos estudos migratórios em vista de compreender o processo de territorialização, seja ele na perspectiva materialista, idealista, política, econômica, cultural, entre outras que poderíamos pontuar. Vale mencionar que essas perspectivas ou dimensões não existem de forma estanque ou compartimentada do/no território. Com base nisso, a figura abaixo (FIGURA 1), representa graficamente a perspectiva de que a dimensão do vivido, do percebido e do concebido no contexto territorial não corre de maneira compartimentada e/ou Registra-se que os colaboradores desse trabalho concordaram com a Gravação e a Cessão das entrevistas por meio do Termo de Participação na pesquisa e do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e do Consentimento de Participação da Pessoa como Sujeito da Pesquisa. 6 Natural de Barra do Corda, Maranhão. Entrevista gravada no dia 03 de setembro de 2014. 7 Natural de São Bernardo, Maranhão. Entrevista gravada no dia 12 de fevereiro de 2014. 8 A Associação é uma Sociedade Civil com intuitos não econômicos, constituído por prazo indeterminado, tendo como sede provisória na Rua Sólon Rodrigues Pessoa, Nº 1873, no Bairro Santa Luzia, cidade de Boa Vista. Regida pelo Código Civil, pelas demais disposições legais. 5


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estanque. Nesse caso, é possível aventar que existem diferentes realidades e com diferentes dimensões territoriais, as quais podem coexistir em estado de simultaneidade (NOGUEIRA; VERAS; SOUZA, 2016, p. 62-63). FIGURA 1 – SIMULTANEIDADES NA DIMENSÃO DO TERRITÓRIO

Organização e elaboração de Marcos Nogueira com base em Saquet, 2011.

Seguindo essa linha de pensamento, argumentamos que o território é um todo ambivalente, na medida em que sua construção e/ ou produção se dá a partir dos movimentos históricos e das relações sociais que são estabelecidas pelos sujeitos sociais. Nesse caso, concebemos o território como uma dimensão social em que há diferentes atores sociais e diferentes interesses por parte desses atores, pois “o território compõe de forma indissociável a reprodução dos grupos sociais, no sentido de que as relações sociais são espacial ou geograficamente mediadas” (HAESBAERT, 2011, p. 54). Logo, nos estudos da des-re-territorialização considerar-se-á o sentido “absoluto” e o “relacional” que os sujeitos são capazes de atribuir às experiências construídas e vividas dentro do território. Contudo, antes de avançarmos nessa questão, faz-se necessário distinguir espaço de território, uma vez que o espaço antecede ao território. Vale mencionar o estudo de Henri Lefebvre, apresentado no segundo capítulo do livro La producción del espacio, que tem como título El espacio social (2013), no qual chama atenção para o termo “produção espacial”. Para o autor, o termo e a noção “produção espacial” carece de acuidade por parte dos pesquisadores, já que eles não são autoexplicativos. A partir dessa observação, Lefebvre (2013), baseado em estudos


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referenciados no pensamento de Hegel, Marx e Engels, advoga que na produção espacial não há neutralidade e que, portanto, é preciso considerar os atores que se situam no contexto do processo criativo, bem como a intencionalidade e as motivações que existem por trás das “abstrações concretas” existentes no jogo das relações sociais. Nesse quadro, o espaço social pode apresentar características do concebido e do visível que nem sempre são percebidos no interior dos contextos sociais. Grosso modo, essa visibilidade, em muitos casos, serve para mascarar o processo de repetição na sua produção por agentes sociais que detém certo poder ou influência social. Diante dessa questão, Lefebvre adverte que os indivíduos em sociedade acabam por confundir a vida real como a questão da percepção visual que, no geral, se dá pelas imagens. Neste sentido, é possível compreender o espaço sobre diferentes perspectivas e profundidades, como por exemplo, o espaço inventado e elaborado a partir da vontade coletiva ou social, fato que permite criar vínculos afetivos e, como exemplo, Lefebvre cita a cidade de Veneza9 (2013, p. 132-133). Nesse caso, é possível considerar o espaço como um produto e, ao mesmo tempo, uma produção que acontece a partir dos elementos conscientes e por meio de uma estrutura prévia, na qual ocorrem interações socioculturais por parte dos sujeitos envolvidos. Esta inter-relação, ocasiona espaços subjetivos, dos quais fazem parte uma percepção e uma representação a partir da experiência, que não se desloca do vivido e que é capaz de integrar a dupla dimensão do material e do ideal. Di Méo (2007) destaca a ação do ator individual e/ou coletivo que, como “portadores de um discurso”, muitas vezes é ou está influenciada pelas temporalidades e pelos contextos de sua própria ação. Essa ação coloca em evidência a dinâmica social que é estabelecida e construída dentro das próprias interações sociais. Sem a presença dos atores, não haveria, por exemplo, a dinâmica espacial. Para o autor, entre esses “fatores dinâmicos, se notará que a questão das territorialidades individuais, a dos atores (trajetória e referencias territoriais, múltiplos, imbricados, ligados à ação e/ou a identidade de cada um)” acaba sendo negligenciada, em especial nas Ciências Sociais. A fim de evitar essa negligência, e na busca de pontuar a produção do Território Simbólico-Cultural por meio do Arraial dos MaraA cidade de Veneza está localizada no Nordeste da Itália, situada sobre um grupo de 117 pequenas ilhas separadas por canais e ligadas por pontes. Lefebvre disserta que as áreas de terra firme das ilhas foram ocupadas e a cidade não tinha como crescer, sendo preciso avançar sobre as águas que separavam as ilhas por meio de um sistema de aterro, ampliando, com isso, a área urbana e, consequentemente, os espaços físicos da cidade. 9


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nhenses, faz-se necessário considerar que a discussão identitária passa pelo jogo das diferentes relações existentes nas dimensões espaciais e/ ou territoriais. Neste caso, já que a discussão perpassa a dimensão do Território Simbólico-Cultural, consideramos uma estreita relação entre Cultura e Identidade, levando-se em consideração que intervém nesta relação o “enraizamento” territorial, isto é, o sentimento de pertença, seja a determinada Cultura ou a determinada Identidade. Para Ortiz, Cultura e Identidade atuam como um amálgama que desperta o sentimento de enraizamento. A ideia é sugestiva porque coloca em evidência a questão da relação entre identidade e pertencimento, pois, segundo o autor, “cada entidade espacial constituiria um elemento especifico, cuja lógica exprimiria uma identidade” (2005, p. 60). Assim, pensar o Território engendrado no contexto do Espaço Social implica pensá-lo a partir de diferentes perspectivas, como, por exemplo, a transversalidade, pois ambos os conceitos não existem apenas na perspectiva ideológica, ambos engendram realidades, temporalidades e espacialidades que vão além do víeis econômico ou material. Isso nos leva a pensar na distinção entre espaço físico e espaço social proposta por Bourdieu (2013, p. 133). No físico, sua definição dar-se-á pela “exterioridade recíproca das partes”, enquanto no espaço social esta ocorre pela “exclusão mútua (ou distinção)”, isto é, ambos estão localizados num lugar e sua constituição se dá através de uma justaposição de posições sociais, pelas quais há uma interferência direta dos agentes sociais em sua constituição e reificação. Segundo o autor, “o espaço social tende a se retraduzir, de maneira mais ou menos rigorosa, no espaço físico sob forma de um determinado arranjo distributivo dos agentes e das propriedades”. Para Bourdieu (2013, p. 135), existe uma simultaneidade entre objetividade e subjetividade nas estruturas espaciais, assim como há uma simultaneidade de temporalidades distintas nas conjunturas do território vivido e percebido na confluência do espaço social.

Territorialização e a (res)significação identitária Como já sinalizado, a categoria geográfica de território deve ser apreendida como uma dimensão sociocultural do ser humano que ultrapassa as dimensões (i)materiais. Nesse sentido, pensar o processo de territorialização e a (res)significação identitária dos migrante maranhenses por meio do Arraial dos Maranhenses, na cidade de Boa


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Vista, possibilita desvendar as dimensões em torno da questão territorial, sejam elas a material e/ou a simbólica, haja vista que a territorialização se dá a partir de múltiplas formas. Haesbaert (1997, p. 42) lembra que o Território envolve: ao mesmo tempo mas em diferente graus de correspondência e intensidade, uma dimensão simbólica, cultural, através de uma identidade territorial atribuída pelos grupos sociais, como forma de ‘controle simbólico’ sobre o espaço onde vivem (sendo também, portanto, uma forma de apropriação e ordenação do espaço como forma de domínio e disciplinarização dos indivíduos

A partir dessa linha de pensamento, pode-se inferir que a territorialização se inscreve sempre numa perspectiva de poder, não apenas no sentido da apropriação física ou material, mas, também, nas dimensões simbólico-cultural. É necessário distinguir o “Território como instrumento de Poder Político” do “Território como espaço de identidade cultural”, conforme propõe Haesbaert (1997). Para o autor, no primeiro caso, o Território remete a uma dimensão estatal, ao passo que, no segundo, predomina a dimensão cultural e da subjetividade na apropriação simbólico/cultural ao território. Assim, a migração de maranhenses revela-nos que a des-re-territorialização se apresenta como um movimento contínuo, no qual a reterritorialização se caracteriza no movimento de construir novos territórios no lugar de destino, ainda que, na sua construção existam elementos de continuidade e descontinuidade; de materialidade e imaterialidade. Haesbaert (2012, p. 101) adverte que é preciso pensar a “territorialização e a desterritorialização como processos concomitantes, fundamentais para compreender as práticas humanas”, ou seja, na medida em que ocorre a desterritorialização se processa a reterritorialização. Como já mencionado, a territorialização é um movimento de (re) produção social, cultural e simbólica e, seguindo essa linha de pensamento, Saquet (2007) expõe que essa dinâmica é cada vez mais complexa porque envolve forças produtivas por meio de máquinas, redes de circulação e comunicação. Da mesma forma, o autor afirma que “a definição de territorialidade extrapola as relações de poder político, os simbolismos dos diferentes grupos sociais e envolve, ao mesmo tempo, a dinâmica econômica centrada em seus agentes sociais” (2007, p. 70). Nesse sentido, a reprodução territorial, bem como sua apropriação por meio da territorialização faz sobressair elementos identitários, sociais e culturais. Vale mencionar que a territorialidade não é algo


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“abstrato”, estabelecida por meio das relações afetivas com o lugar de destino, mas ela se configura como uma dimensão (i)material de inserção sociocultural por parte do migrante. Santos (2012, p. 138) discorre que “o Território habitado cria novas sinergias” e acrescenta, ainda, que “o Território são formas, mas o território usado são objetos e ações, sinônimos de espaço humano, espaço habitado”. Nesse caso, entendemos o espaço habitado como a apropriação territorial por meio da territorialização. Cabe, todavia, lembrar que, “é o uso do território, e não o território em si mesmo, que faz dele o objeto da análise social” (SANTOS, 2012, p. 137). Logo, são os quadros da vida e do cotidiano que balizam nossas inferências em relação à inserção de migrantes maranhenses na cidade de Boa Vista, em particular por meio do Arraial dos Maranhenses – “O Maranhão é aqui!”, pois a territorialização a partir do Arraial possibilita, também, uma produção de sentidos e de símbolos. Nesse caso os sentidos e os símbolos são responsáveis por estabelecer uma conexão entre o aqui e o lá; o agora e o antes.

A produção do território simbólico-cultural: o caso do Arraial dos Maranhenses – “O Maranhão é aqui” A organização territorial, assim como sua territorialização, passa pela versatilidade dos elementos do vivido e do cotidiano, nos quais o indivíduo em contexto de “mobilidade” é capaz de utilizar distintas dimensões e funcionalidades. Registra-se que a des-re-territorialização não é um simples ativar ou desativar elementos de pertencimento ou de “desligamento” do indivíduo. Para Haesbaert (1997), o mundo hoje é dotado de múltiplas territorialidades. Nessas múltiplas territorialidades ocorrem, então, múltiplos processos de territorialização, nos quais os indivíduos ativam os elementos de relação-apropriação territorial a partir dos seus interesses pessoais e/ou social. Logo, pensar “Territórios”, no plural e não no singular, remete à possibilidade de existência de diversos territórios dentro do próprio Território. Vale reforçar que todo território é funcional e nele há sempre uma carga de simbolismo. Nesse caso, Haesbaert (2008) salienta que o “território simbólico” se dá a partir de processos de apropriação e da diferença. Entendendo a apropriação como algo construído e não dado ou acabado, a diferença, por sua vez, remete a maneira pela qual a territorialização é percebida – nós e eles, por exemplo. Nesse caso, a diferença é vista e percebida por meio das referên-


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cias identitárias. Haesbaert (1997) afirma que as referências identitárias ligam-se e se unificam a partir de um espaço simbólico. Esse, por sua vez, serve como distintivo. No caso do migrante maranhense, por exemplo, a relação que há com o lugar de destino por meio do espaço-territorial/simbólico se dá a partir de uma “transposição geográfica da identidade”, entendida de forma não linear, como podemos observar na Figura 2. FIGURA 2 – CENÁRIO COM ELEMENTOS DA CULTURA DO MARANHÃO NO ARRAIAL DOS MARANHENSES NA COMUNIDADE CATÓLICA SÃO RAIMUNDO NONATO, BAIRRO SANTA LUZIA, BOA VISTA/RR

Foto: Francisco Marcos M. Nogueira, 2015.

No presente texto, a transposição é entendida por meio dos elementos socioculturais em que os indivíduos têm e assumem como elementos identitários. É preciso considerar que a identidade que tratamos não é tomada pela perspectiva ontológica ou fixa, mas, entende-se a identidade como uma construção sociocultural dentro de um processo contínuo. Bauman (2005, p. 91-96), pensa as identidades como “anseio por segurança”, entretanto, segundo ele, “a construção da identidade assumiu a forma de uma experimentação infindável”, na qual, “você nunca saberá ao certo se a identidade que agora exibe é a melhor que pode obter e a que provavelmente lhe trará maior satisfação”.


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Para Bauman (2005) as identidades são para serem usadas e exibidas e não para serem armazenadas. Portanto, o território pode ser considerado como um espaço de identificação e ressignificação identitária, sendo que sua base alicerça-se na subjetividade empregada pelo sujeito social e cultural. Seguindo esse pensamento, a identidade serve como chave capaz de ligar a experiência pessoal à condição de uma identidade social. Essa, por sua vez, é mediada pela linguagem e pela cultura, as quais estabelecem e dão significados aos sujeitos/indivíduos, bem como às posições que estes assumem por meio dessa identidade construída socialmente. Neste cenário, Saquet (2008, p. 52) detalha que “o território funda-se em relações e conflitos, contradições, e é substantivado, simultaneamente, pela unidade”. Entretanto, Saquet (2009), alerta que essas relações e ações só podem ocorrer com a reciprocidade dos agentes sociais, ou seja, o sujeito tem que querer fazer parte, o que se liga aos interesses do “eu” com o “nós”. Essa consciência pode não ser percebida naturalmente, como o migrante Pedro Costa (2014) descreveu em sua entrevista, que só descobriu o Maranhão depois que saiu do Maranhão. Assim ele conta sua experiência: Bem para iniciar eu moro aqui desde 98 que eu moro aqui em Boa Vista, Roraima depois de 10 anos. Em 2008 eu tive que retornar ao Maranhão por motivos particulares passei lá um ano e meio, e lá me deparei, né?! Em São Luís do Maranhão com a grande cultura dos maranhenses. Foi em São Luiz e em parte das cidades do Maranhão e me deparei com o Folclore, com o bumba meu boi, pra mim aquilo foi me apaixonando sabe, uma paixão que quando eu estava lá, não tinha percebido isso.

Ao retornar ao Maranhão o narrador afirma que passou a olhar com “outros olhos” a cultura do seu estado de origem, pois, por muito tempo ela passou despercebida ou quando não “ignorada”. A partir desse ponto é possível inferir que os elementos ou as expressões culturais não faziam sentido como elemento de identificação ou como ideia de vínculo territorial pelo víeis do Cultural e do Simbólico. Esses vínculos e a percepção só ocorreram quando ele partiu e depois voltou, e se deu conta do “valor” material e simbólico destes elementos culturais. Assim sendo, Pedro Costa (2014) declara: “o contato com a cultura maranhense (...) aquilo fez com que eu me apaixonasse pelos elementos culturais do Maranhão”, e é dentro desse contexto de olhar com “outros olhos” que entendemos que ocorreu uma ressignificação identitária e


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cultural. Tanto é que ao retornar a Boa Vista, em 2009, Pedro Costa “trouxe” a ideia de dar visibilidade à cultura maranhense por meio de uma festa temática, isto é, nasceu o desejo de criar o Arraial dos maranhenses – O MARANHÃO É AQUI!. O Arraial, então, deveria destacar “a riqueza que há no Maranhão” por meio de elementos culturais e identitários que a representassem. O narrador atribui como justificativa inicial para a festa o expressivo número de migrantes oriundos do estado do Maranhão que residem Roraima, em particular na Capital, Boa Vista; outro fator destacado foi a participação significativa de maranhenses na Comunidade Católica São Raimundo Nonato, localizada no Bairro Santa Luzia (FIGURA 3). FIGURA 3 – LOCALIZAÇÃO DO ARRAIAL DOS MARANHENSES (COMUNIDADE CATÓLICA SÃO RAIMUNDO NONATO – BAIRRO SANTA LUZIA)

Organização: Marcos Nogueira, 2014; Elaboração: Vivian Karinne Morais Rodrigues, 2014.

Além das justificativas já pontuadas, a festa serviria de vitrine para, assim, “destacar uma imagem positiva dos maranhenses, haja vista o preconceito contra os mesmos”, como ressalta Pedro Costa (2014). Depois de apresentar a ideia à Comunidade São Raimundo Nonato, então, era preciso definir o dia que o Arraial dos Maranhenses deveria acontecer. Para o narrador, “a festa deveria acontecer no mês de junho. Junho é um mês bem festivo, né? Bem comemorativo né!”, ou seja, as referências que nortearam a implantação do Arraial estão na tradição que há no Nordeste em festejar São João e São Pedro. Assim, em 2010, na Igreja de São Raimundo Nonato, aconteceu o primeiro Arraial dos Maranhenses – O MARANHÃO É AQUI! (FIGURA 4).


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FIGURA 4 – MATERIAL DE DIVULGAÇÃO DO ARRAIAL DOS MARANHENSES, 2010

Fonte: Acervo da Comunidade Católica São Raimundo Nonato, 2010.

O material de divulgação menciona as “tradições maranhenses”, o que, para os narradores Pedro Costa (2014) e Luciete Souza (2014), se justifica no processo migratório, no qual se acaba perdendo algumas referências, de modo particular as que remetem à cultura do lugar de origem e ao jeito de se relacionar com essa cultura. Seguindo essa linha de raciocínio, é possível aventar que a dinâmica da territorialização liga-se a espaços-tempo distintos, isto é, liga o aqui e o lá, pois como disserta Bourdieu (p.133) “o lugar, topos, pode ser definido absolutamente como sítio em que um agente ou uma coisa se situa, ‘tem lugar’, existem, enfim, como localização”. Com base na ideia de Bourdieu, frisamos que o Arraial se dá a partir de processos de territorialização, a qual se insere e envolve dimensões do simbólico, do cultural e identitário, destacando que a constituição do Arraial dos Maranhenses não inventa o território, mas o reinventa. A festa nasce de uma constituição territorial já existente, de referenciais culturais e territoriais já familiares aos sujeitos, a festividade de São João e outros elementos culturais associados a ela no Maranhão, tais como: religiosidade, fogueira, Bumba-meu-boi, comidas típicas, Reggae de Radiola, entre outros elementos (FIGURA 5). Podemos pensar a festa como apropriação do território no lugar de destino, a qual, como já mencionado, é mediada por relações de poder. Do poder a partir de múltiplas dimensões e interações, visto que o território se apresenta como um campo de forças, de uma teia estabelecida por meio das relações sociais. Neste sentido, Albagli (2004, p. 26) argumenta que “cada território é produto da intervenção e do trabalho de um ou mais atores sobre determinado espaço”.


156 Francisco Marcos Mendes Nogueira, Antonio Tolrino de Rezende Veras e Carla Monteiro de Souza FIGURA 5 – ELEMENTOS DA FÉ E DA CULTURA PRESENTE NO ARRAIAL DOS MARANHENSES10

Fotos: Marcos Nogueira, 2014 (A e D); Márcio Chaves Lavôr, 2016 (B e C).

Assim, a moldagem de cada território ocorre a partir de diferentes dimensões e forças, não podendo ser compreendido de forma compartimentada ou estática, mas dentro de uma totalidade sociocultural. Nesse sentido, a territorialização do migrante, nesse caso os maranhenses, é vista como um meio de referência individual e/ou coletiva. Albagli (2004) destaca que essa apropriação territorial é concebida por diferentes contextos e escalas, no campo pessoal ou social. A autora explica que no campo individual o que sobressai, por exemplo, é a sensação de segurança e invisibilidade do território apropriado, ao passo que a territorialização no aspecto coletivo remete às regulações e às interações sociais. Seguindo essa linha de pensamento, há uma necessidade de (re)construir a identidade cultural, pois, segundo Luciete (2014) os migrantes, em particular os que saem do interior em direção a cidade, acabam por “perder ou esquecer a sua cultura, por exemplo, a fogueira, algumas comidas típicas que só o Maranhão sabe fazer – cuxá (arroz com cuxá), o pequi, o azeite do coco babaçu, entre outros”. A narradora destaca que o Arraial propicia ao migrante estabelecer uma relação de intimiReligiosidade por meio da devoção ao Padroeiro da Comunidade São Raimundo Nonato (A); elementos da cultura maranhense: Bumba-meu-boi (B), a fogueira presente nas festas juninas (C) e as comidas típicas, como arroz com cuxá (D). 10


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dade e pertencimento com o Maranhão, mesmo não morando mais no estado natal. Diante do exposto, é possível inferir que a conjuntura da festa, que apresenta o Maranhão como uma realidade presente em Roraima, acaba por verbalizar e envolver dimensões do concreto e do abstrato, de continuidade e de descontinuidade das referências culturais que faziam parte do cotidiano no lugar de origem. Por meio das teias mnemônicas que são externalizadas nas entrevistas, como destacado pela narradora acima, essa coexistência espaço-temporal desvela “um cenário complexo” e não “uma paisagem simplificada, de territórios encaixados, como uma geografia de vizinhança, de contiguidade” (HEIDRICH, 2010, p. 29). Reafirma-se, então, as territorialidades, como atributo humano, a qual é mediada e sofre influência direta dos elementos socioculturais. Dessa perspectiva, Albagli (2004, p. 29) advoga que “territorialidade não é, por outro lado, sinônimo de raízes territoriais, já que é transportável e é dinâmica”, ou seja, no caso do migrante, ao se apropriar de novos territórios reconstrói identidades territoriais a partir das referências experienciadas no lugar de destino. Assim, reforça-se a noção de que a territorialização é a apropriação do território por parte do migrante por meio dos elementos vividos e das relações cotidianas. Nesse sentido, a identidade territorial é um processo construído e em construção. Para Castells (2002, p. 22) a identidade é um “processo de construção de significados com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados”. Essa inter-relação, por vezes, sobrepõe-se a outras fontes de significados e significantes. No caso do migrante, o significado identitário é relevante no estudo do e no processo de des-re-territorialização, isso porque, como já mencionado, o território cultural é móvel e dinâmico. As identidades, segundo Castells (2002), têm o poder de organizar e estabelecer os significados. Já os papéis11 remetem às funções que os sujeitos sociais exercem no campo sociocultural. Nesse sentido, para o autor é fundamental estabelecer os limites e as diferenciações entre a identidade e o papel, pois o significado constituído por meio das identidades liga-se à identificação simbólica e à intencionalidade da ação exercida através da identidade cultural. Ainda para o autor, as “identidades são fontes mais importantes de significados do que papéis, por Segundo Castells (2002) os papéis sociais remetem a uma ação desenvolvida socialmente – ser mãe, ser trabalhador, por exemplo, remetem aos papéis que o indivíduo assume ou vive. 11


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causa do processo de autoconstrução e individualização que envolve”. Por conseguinte, concordamos com Penna quando afirma que a migração impõe a necessidade por parte do migrante em criar e recriar os seus pontos de referência. Segundo a autora, esse processo de recriação ocorre porque “não há uma essência dada, uma vez que é a experiência social que engendra os esquemas de apreensão do mundo através dos quais a materialidade é interpretada” (PENNA, 1998, p.108). A materialidade, portanto, é a condição e o meio através do qual o migrante mantém ligação com as dimensões territoriais distintas, isto é, o território de lá é vivido e percebido a partir dos significados culturais no território daqui. Penna (1998) percebe, então, no processo migratório um ato dinâmico, no qual as experiências identitárias são recriadas no jogo das representações sociais. É preciso reforçar que essas “recriações” não ocorrem de maneira pacifica. Como já mencionado, o conceito de território remete às relações de poder e, portanto, sua apropriação se dá dentro de um contexto de tensões. O território e as territorialidades maranhenses em Boa Vista são vistos aqui a partir de diferentes dimensões, que se inter-relacionam e são incorporados no jogo da realidade social vivida. Albagli (2002, p. 39) advoga que o “território é suporte da formação de identidades individuais e coletivas, despertando sentimentos de pertencimento e de especificidade”. Assim, na relação entre o lá, do Maranhão, e o cá, de Boa Vista, destaca-se a recriação no lugar de destino, daqueles elementos simbólico-culturais fundantes da dimensão territorial do lugar de origem. Isso significa dizer que a des-re-territorialização não implica a “destruição” dos pontos de referência sociais e culturais do Maranhão e, neste caso, fica claro que eles são “(re)criados”, novamente e dinamicamente, gerando, novos territórios e outras territorialidades.

À guisa de considerações finais Conforme vimos ao longo do texto, o território e as territorialidades são caracterizados como atributos humanos. Nesse caso, sua constituição/configuração e moldagem sofrem influência direta dos elementos sociais e culturais. Desse modo, é preciso considerar as diferentes dimensões que há em torno do território, tais como a econômica, a política, o social, o cultural, dentre outras. Estas dimensões não expressam de forma estanque ou hierarqui-


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zada. Dependendo dos contextos, se apresentam concomitante ou em oposição, visto que os “territórios simbólicos” são sempre “algo” construído e não dado, mas configurado através das relações sociais e campos de força. Em torno dessa questão, em que sobressai o exercício do poder e a configuração da diferença identitária, foi que pensamos a existência do Arraial dos Maranhenses. Assim, as fontes orais são instrumentos fundamentais para delinear a intencionalidade na construção do território simbólico-cultural por meio do Arraial dos Maranhenses. Isso fica expresso no próprio subtítulo do Arraial, “O Maranhão é Aqui!”, e se explicita na intenção e nas motivações apontadas pelos narradores aqui citados: de “destacar uma imagem positiva dos maranhenses” e de “não perder ou esquecer a cultura [do Maranhão]”. A primeira, sintetiza uma motivação suscitada pelo preconceito que os maranhenses enfrentam em Boa Vista, aspecto mencionado com ênfase nas entrevistas. A segunda faz referência às raízes culturais do lugar de origem que, muitas vezes, parecem “esquecidas” no desenrolar do processo migratório. Sinteticamente, ambas remetem às múltiplas facetas da discussão acerca dos processos de construção de uma territorialidade maranhense em Boa Vista. As fontes orais, portanto, fundamentam nossa afirmação de que o Arraial serve como mecanismo de apropriação e, ao mesmo tempo, de fortalecimento da identidade maranhense na cidade de Boa Vista e, por que não dizer, em Roraima. Por conseguinte, além da imagem positiva, o Arraial dos Maranhenses acaba por dar visibilidade ao número expressivo de migrantes oriundos do Maranhão que vivem em Roraima, sendo a Comunidade Católica São Raimundo Nonato, no bairro Santa Luzia, um reduto exemplar desta realidade. Por fim, podemos inferir que a construção do território simbólico-cultural dos maranhenses por meio do Arraial não só configura, mas fortalece e ressignifica a identidade do ser maranhense, pois ele é, ao mesmo tempo, expressão do vivido, do percebido e do concebido, fundado em práticas, manifestações e leituras vividas no processo de des-re-territorialização. Consequentemente, podemos inferir que a festa vem se firmando como um elemento de construção de uma “identidade territorial” dos migrantes maranhenses. Sejam eles organizadores ou frequentadores da festa, reconfiguram e reafirmam o seu pertencimento ao Maranhão a partir das mediações culturais no lugar de destino.


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Fontes Orais: Luciete Marques Farias Souza – Natural de Barra do Corda, Maranhão. Entrevista concedida a Francisco Marcos Mendes Nogueira, no dia 03 de setembro de 2014, em Boa Vista/RR; Pedro Lima da Costa – Natural de São Bernardo, Maranhão. Entrevista concedida a Francisco Marcos Mendes Nogueira, no dia 12 de fevereiro de 2014, em Boa Vista/RR;


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Deslocamento de mulheres nordestinas protagonistas sozinhas e/ou acompanhadas para Boa Vista (1985 -2000) Raimunda Gomes da Silva1

Grande desafio é, portanto, repensar os próprios critérios analíticos dos processos migratórios, entendendo a migração de mulheres não como uma derivação da migração dos homens, mas como a migração de sujeitos protagonistas de suas histórias e agentes de transformação social. Eliane Dias de Oliveira

O

s estudos sobre a mulher e as relações de gênero na História “localiza-se no quadro de transformações por que vem passando a história nos últimos tempos”. Tais estudos “emergiram da crise dos paradigmas tradicionais da escrita da história, que requeria uma completa revisão dos instrumentos de pesquisa” (MATOS, 2009, p. 279–280), fenômeno esse identificado como “crise de identidade da história que levou à procura de ‘outras histórias” (MATOS, 2007, p.21). Nesse conjunto de questões, foi-se tecendo a problemática abordada na tese Deslocamentos, sonhos, desafios e identidades: experiência de mulheres nordestinas em Boa Vista/Roraima2 e se delimitou a categoria migrante3 para o estudo de mulheres nordestinas que se deslocaram sozinhas ou protagonizaram o deslocamento para Cidade de Boa Vista nos anos 1985 a 2000. Neste trabalho, o objeto de estudo 1 Professora da Universidade Estadual de Roraima, Doutora em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 2 SILVA, Raimunda Gomes da Silva. Deslocamentos, sonhos, desafios e identidades: experiência de mulheres nordestinas em Boa Vista/Roraima (1985-2000). Tese (Doutorado em História Social), Programa de Pós-Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 2016. 3 PASSERINI (2011, p.107-109), ao trabalhar gênero e mobilidade na Europa Pós-União Europeia, explora os sentidos de ser homem e de ser mulher e reporta dados sobre novas subjetividades e uma nova compreensão de si mesma, análise que configura a mulher protagonista como gênero feminino sujeito do processo migratório.


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foi analisado a partir da abordagem de gênero e da história oral como metodologia, ou seja, por meio de entrevista temática semiestruturada, em forma de roteiro flexível4. Os perfis das mulheres entrevistadas se direcionam para a experiência que envolve tanto a identidade de gênero, quanto as mudanças e permanências que influenciaram, de forma direta ou indireta, o deslocamento destas mulheres do lugar de origem à cidade de Boa Vista, tomando como referência aquelas que não empreenderam uma migração familiar para Roraima. Nessa perspectiva, aborda-se neste artigo as falas das mulheres nordestinas que atuaram enquanto sujeito do próprio processo migratório para o Extremo Oeste da Amazônia, ou seja, para a cidade de Boa Vista no final do século XX. Verifica-se em que medida as mudanças ocorridas nas sociedades de origem e de acolhimento favoreceram essa migração, que redes e gêneros de mulheres foram configurados nesse processo.

Da invisibilidade ao protagonismo Na discussão sobre a historiografia da migração e das relações de gênero, se observa certo consenso entre os(as) pesquisadores(as) em torno da ideia de que as mulheres sempre migraram. Porém, nem sempre eram consideradas como sujeitos da migração, mas como “as que acompanhavam ou esperavam por seus maridos ou filhos, sem se evidenciar, por exemplo, a importância dos seus ganhos para a renda familiar”. (ASSIS, 2011, p. 49). Essa “invisibilidade”, que provém da teoria neoclássica da migração, reservava “à mulher um lugar secundário, incluindo-a apenas como mais um número nos cálculos migratórios. Pressupunha-se que os homens estavam mais aptos a correr riscos, enquanto as mulheres eram as guardiãs da comunidade e da estabilidade”. (ASSIS, 2011, p. 57). A percepção das mulheres como sujeitos do processo migratório faz parte das transformações ocorridas nas últimas décadas do século passado e início deste. Esse é o momento em que “novos estudos revelaram o papel de protagonismo das mulheres que migram. Não é necessário pensar, porém, que só recentemente as mulheres começaram a se deslocar sozinhas, mas sim que só agora o seu papel é mais amplamente reconhecido”. (PAGNOTTA, 2014). 4 Composto de cinco aspectos centrais: “lembrança do lugar de origem”; “processo de deslocamento”; “inserção em Boa Vista”; “relações de gênero”; e “significado da experiência migratória”.


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No contexto de globalização, as facilidades de diferentes tipos de redes migratórias, até mesmo proporcionadas pelos deslocamentos clandestinos, aumentaram significativamente a participação das mulheres em relação aos homens nos deslocamentos internacionais. (BASSANEZI, 2012, p. 169). Isso contribuiu para desconstruir a ideia de que: Migrar é “uma coisa para homem”, costuma-se dizer sem pensar, sem atentar para as estatísticas, fotos, depoimentos, histórias de famílias. Sim, as migrantes têm uma história. Desde sempre elas têm migrado, frequentemente na companhia de familiares, amigos e conhecidos em busca de melhores condições de vida e trabalho; mas também migram sozinhas não só à procura de emprego, mas de independência, de casamento, ou até mesmo para fugir de discriminações e violências. (Ibidem, 2012, p. 169).

Dessa perspectiva, as pesquisas mais recentes têm dado atenção aos deslocamentos das mulheres e observado alterações no seu comportamento cotidiano, pois: Elas não são mais somente aquelas que ficam, esperam ou seguem obedientes os passos de seus pais e maridos; elas já partem sozinhas ou em companhia de outras mulheres e, dessa forma, feminizam a migração, antes vista apenas como um processo masculino ou familiar. A significativa movimentação de mulheres tem entre suas causas a emancipação feminina, as transformações na família e nas relações de gênero e as mudanças no mercado de trabalho no destino, que abre espaço para uma crescente utilização da mão de obra feminina. (BASSANEZI, 2012, p. 173).

Nesse aspecto, as pesquisas que tomam as mulheres como sujeitos dos processos de deslocamento podem descortinar outras histórias, não só relacionadas às experiências das mulheres em si, mas também como forma de identificar mudanças ocorridas nas sociedades de origem e de acolhimento, seja nas relações cotidianas ou na abertura de novos mercados para as mulheres. É dentro deste contexto temporal e teórico que este artigo se propõe a analisar as subjetividades nos deslocamentos de mulheres sozinhas e/ou protagonistas deles para a cidade de Boa Vista, capital roraimense, no sentido de observar que gêneros femininos migraram, que mudanças ocorreram na vida destas mulheres, nas sociedades de origem e de acolhimento, em que medida esse contexto contribuiu com a migração destas mulheres.


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Entretanto, os processos de deslocamento individuais não se dão de forma isolada, pois se integram a diferentes redes sociais e migratórias, tanto do lugar de origem como do lugar de acolhimento. Essas redes têm papéis fundamentais, uma vez que são construídas por meio das relações. Dessa forma, a perspectiva de redes sociais possibilita identificar o conjunto de relações entre os grupos que saem e os que ficam e os da sociedade de destino: famílias, amigos, parentes, colegas. Nesse ponto de vista, A adoção de uma perspectiva de redes interessa a todos os que se ocupam dos processos migratórios, tanto no presente como no passado. Em primeiro lugar, porque eles normalmente ocorrem segundo critérios bastante seletivos por origem e tipo de migrante. Em segundo porque em geral os fenômenos não acontecem isoladamente de decisões individuais, mas de grupos de pessoas relacionadas por familiaridade e destino comum. Esses grupos não eram meras categorias – homens ou mulheres, jovens ou idosos, habilitados ou não habilitados, pobres ou ricos, solteiros ou casados [...]. Mas o fizeram como participantes de um processo social que se estendia muito além deles próprios. (TRUZZI, 2008, p. 214-215).

Portanto, considera-se relevante a ênfase na migração enquanto processo dinâmico construído nas relações tanto da sociedade de origem como da sociedade de destino. Entretanto, no excerto supracitado, observa-se que as questões de gênero e etnia, categorias que podem trazer outros aspectos subjetivos de quem migra e de quem convida a migrar, tanto no que diz respeito ao lugar de origem do(a) migrante como ao lugar de recepção, não são levadas em consideração. Uma vez que “as mulheres frequentemente são fundamentais e centrais nessas redes, pois tanto nas redes que articulam a própria migração quanto naquelas que reúnem grupos familiares, elas são os ‘nós’ que conectam as pessoas”. (BRETTELL, 1992, p. 47. Apud: ASSIS, 2011, p. 61). Desse modo, a perspectiva de deslocamento enquanto processo dinâmico, nesta pesquisa, articula-se com a categoria de análise histórica de gênero. Assim, busca-se dar historicidade aos sentidos dos deslocamentos, identificando e problematizando as relações de poder, as diversidades de gênero de mulheres, bem como de gerações, temporalidades e espaços. Esta abordagem, mais sintonizada com o processo de deslocamento que se caracteriza no final do século XX, contribui de forma mais favorável para a análise dos deslocamentos de mulheres


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sozinhas ou das mulheres como protagonistas deles5. Nesse olhar, Sayad contribui de forma plural, visto que “a migração é compreendida enquanto um fator social completo, sendo necessário análisá-la em seus vários aspectos (políticos, econômicos, sociais e culturais), considerando-a em sua dupla dimensão de fato coletivo e trajetória individual”. (SAYAD, 1998. Apud: COLLING; TEDESCHI, 2015, p. 484). Destarte, busca-se relacionar tanto o processo de feminização da sociedade como um dos seus desdobramentos6, especialmente nas duas últimas décadas do século XX, quanto às conquistas e lutas feministas, que passaram a fazer parte do cotidiano de diferentes segmentos de mulheres, se institucionalizaram ou se transformaram em políticas públicas específicas para elas. Esse cenário já vinha se configurando, de certa forma, consciente ou inconscientemente, primando pela cidadania, pela realização profissional e pessoal. Com relação à produção historiográfica sobre a migração de mulheres nordestinas para a Amazônia, especialmente para Roraima, no início do século XX, é possível perceber que, naquele momento, a migração direcionada para essa região era mais ligada à pecuária, à agricultura, ao garimpo – lugares de representação tradicionalmente mais ligados ao gênero masculino, como o desbravador, o guerreiro, o aventureiro ou o fazendeiro, o que geralmente condiz com práticas patriarcais. “Os homens quase sempre vêm na frente, a mulher vem depois. Mas é ela o elemento fixador do homem, por excelência. Sendo mais sentimental, por índole, é quem sofre mais com a mudança de ambiente”. (FREITAS, 1997, p. 106). Essa representação da migração feminina não está muito distante da visão clássica de migração, configurando um discurso normativo sobre o papel da mulher nesse processo. A valorização da mulher como um dos elementos de fixação da migração retrata o movimento migratório da família, mais acentuado para o campo, uma vez que nessa fase o incentivo se dava mais para a área rural.7 5 Dentro dessa perspectiva de deslocamento de mulheres enquanto sujeitos do processo migratório, tomam-se como principais referências pesquisas de deslocamentos internacionais como as de Assis (2011) e de Bassanezi (2012). Essas autoras auxiliam nas reflexões relacionadas às mudanças sofridas pelas mulheres tanto no Brasil como nos países de acolhimento, além de incluírem questões de gênero, etnia, classe e subjetividades dos deslocamentos. 6 Questão relacionada às alterações ocorridas na vida das mulheres provocadas pelo “[...] movimento feminista e mudanças de comportamentos atribuídas às mulheres, trazidas pela vida urbana e pelo mundo que se modernizava, pareciam ameaçar a dominação masculina de forma insuportável para homens que teriam sido educados numa ordem patriarcal”. (ALBUQUERQUE JR., 2003, p.34). 7 Segundo Barros (1995, p.143), em meados do século XX e antes, a maioria da população


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Entretanto, revisitando diferentes trajetórias de mulheres migrantes na imprensa8 e na historiografia local9, identificam-se roraimenses anônimas que foram além das práticas normativas de seu tempo. Outras foram mais visíveis em seus papéis de protagonistas, como as professoras que se deslocaram sozinhas para Roraima, entre elas a amazonense Maria Augusta, “que fez parte da primeira geração de professores não religiosos de Roraima e também questionava o sistema de educação da época”. (PURCENO, 1999, p. 60). Há ainda registros de outras mulheres migrantes com qualificação profissional, como a jornalista Nenê Macaggi, que chegou ao Rio Branco, em 1941, como delegada do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), além de ter colaborado na imprensa local e de sua atuação no garimpo. Nas últimas décadas do século XX, passam a ser visualizadas outras configurações que se supõe estarem alinhadas com as transformações ocorridas na vida das mulheres pelo processo de urbanização na região, pela transformação do Território Federal em estado10, pelo crescimento do fluxo migratório de pessoas de diferentes estados do país. Tais aspectos, registrados aos olhos do poeta roraimense Eliakim Rufino, a mestiçagem do roraimense aglutinava a diversidade sociocultural indígena e não indígena: Somos uma sociedade plural e de fronteira. Aqui em Roraima vivem brasileiros de todas as partes do país e mais os estrangeiros da Venezuela e Guiana. A proximidade do Caribe, a forte influência nordestina em Roraima, a marcante presença dos povos indígenas e a distância do resto do Brasil, tudo isso foi configurando um movimento cultural (música, literatura, fotografia, artes plásticas, danças) que reconhecia e acomodava todas as diferenças e que vivia em Roraima residia em fazendas, sítios, acampamentos de garimpo. Em 1950, somente 28% da população, aproximadamente, era considerada urbana. Em 1970, essa taxa passou a 43% e, em 1991, registrou aproximadamente 65% da população. 8 Durante o período em estudo, encontram-se, em diferentes jornais, trajetórias de pioneiros (as), de profissionais, personagens que por diferentes razões foram selecionados. Entretanto, no final do século XX e início do século XXI, as mulheres passam a ser mais requisitadas enquanto sujeitos do processo migratório e pela sua contribuição à sociedade local. O jornal Tribuna de Roraima, em sua primeira fase, em 1986, inaugurou uma coluna chamada “Gente”, que constrói diferentes trajetórias de roraimenses e migrantes. No início do século XXI, passou a publicar outra coluna, intitulada “Grandes Mulheres”. Nessa produção, observa-se certa evolução no que diz respeito ao papel e ao reconhecimento da mulher na sociedade local, não só as pioneiras, mas também as profissionais, as lideranças políticas, religiosas. Não enfatiza, contudo, questões relacionadas às mulheres transgressoras, mas essas trajetórias já registram outro tempo que aglutina mudanças em relação às mulheres, provocadas pelo feminismo e pelo processo de modernização da sociedade e da cidade de Boa Vista. 9 A produção historiográfica ainda é incipiente no que concerne a dissertações e teses, mas já se identifica uma procura significativa na elaboração de monografias envolvendo a temática da migração, a da mulher indígena, do mercado de trabalho. 10 O Território Federal de Roraima se transforma em estado com a Constituição de 1988.


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apontava para a diversidade e a pluralidade como marca da nossa identidade.11

Essa leitura dá mostras da pluralidade da sociedade roraimense, principalmente da cidade de Boa Vista, onde reside a maioria da população não indígena, com a presença, em seu cotidiano, de migrantes de diferentes estados do país. Na constituição desse “caldo cultural”, na formação da sociedade boa-vistense se destacam: indígenas, roraimenses e migrantes, predominando, entre estes últimos, os nordestinos. Desse modo, Boa Vista se apresenta como uma cidade de migrantes, com uma população masculina superior à feminina.12 Entre as razões apontadas para isso, identifica-se os diferentes deslocamentos ocorridos nessa década, em parte provocados pelo fechamento do garimpo em 1990. (BARROS, 1995, p. 143). Contudo, cabe destacar outro perfil de deslocamento, o de profissionais qualificados, fomentado pelo processo de formação do estado de Roraima e pela implantação de novos órgãos públicos federais, a exemplo da Universidade Federal de Roraima, uma das principais razões da migração das mulheres entrevistadas nesta pesquisa.

Mães e filhas tecendo outras subjetividades femininas As 16 mulheres selecionadas pertencem a cinco estados nordestinos: Maranhão, Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco. A seleção não tem o intuito de possibilitar um levantamento geral das mulheres que se deslocaram sozinhas para Boa Vista e/ou protagonizaram seus deslocamentos, busca apenas identificar a origem das entrevistadas, já que a finalidade da investigação é estudar as experiências migratórias de mulheres vindas de uma mesma região – o Nordeste. Entretanto, ao ouvir e analisar suas trajetórias, foi possível notar que cada uma revisitava seus lugares com suas características regionais, econômicas, sociais e culturais particulares, registrando práticas e representações, realçando tradições, interdições e diferentes cenários rurais 11 Depoimento de Eliakim Rufino, em entrevista concedida ao projeto “Paisagens e identidade na poesia de Roraima das décadas de 1980 e 1990” e publicado parcialmente em OLIVEIRA; WANKLER; SOUZA, 2009, p. 30. 12 A diferença entre os dois contingentes não ultrapassava 4%. Em 1950, a população feminina representava 46,82%, em 1970 passou para 48,46% e, em 1980, diminui um pouco com relação à década anterior, ficando em 47,86%, diferente da maioria dos estados brasileiros, onde a população feminina supera a masculina. BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censos Demográficos 1950, 1970 e 1980. Rio de Janeiro, 1950, 1970, 1980.


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e urbanos. Nesse sentido, observam-se diferentes Nordestes: espaços rurais, de pequenos sítios a grandes fazendas; e espaços urbanos, de pequenas cidades a capitais, como Fortaleza e Recife. Também foram revisitadas práticas pedagógicas cotidianas, por meio da forma de educar de cada família, ressaltando aspectos como o valor da honestidade, a economia doméstica, práticas de incentivo à autonomia e a organização do tempo. Em vários depoimentos foi relatado que uma parte dos filhos estudava pela manhã e a outra, à tarde, fosse a família grande ou pequena. Divisão que possibilitava que todas as crianças ajudassem nas tarefas da família conforme o seu ramo de atuação: comércio e confecção13, cultivo da terra14, atividades educativas15. Todavia, não se percebe com tanta frequência nos relatos a execução de atividades domésticas ou atribuição de responsabilidades em relação à casa, alimentação ou vestuário. Apesar de invisíveis na maioria das narrativas das mulheres, essas tarefas eram desenvolvidas por outras pessoas, responsáveis por essas funções, como uma empregada doméstica ou as irmãs mais velhas. Verifica-se que as mães também não eram tão presentes nesses afazeres: a figura da mãe estava mais viva na memória das entrevistadas em atividades voltadas para a renda familiar. Desse modo, suas mães, salvo algumas exceções, tinham uma renda alternativa, vinda, por exemplo, da plantação de verduras para venda a feirantes16, venda de roupas17, 13 Depoimento de Ana Lúcia Souza, em entrevista concedida a Raimunda Gomes da Silva, em 19/03/2014. Professora da Universidade Federal, local de referência: Fortaleza. Chegou a Boa Vista em 1992. Os pais de Ana Lúcia eram microempresários do ramo de confecção. 14 Depoimento de Lenira Costa, em entrevista concedida à Raimunda Gomes da Silva, em 19/03/2014. Professora da Educação Básica da Secretaria de Educação e Desporto do Estado de Roraima (SEED-RR), natural do município de Umbuzeiro-PB. Chegou à Boa Vista em 1995. A base econômica da família de Lenira era a agricultura de subsistência, trabalho realizado por sua mãe juntamente com os(as) filhos(as). 15 Depoimento de Déborah de Brito Albuquerque Pontes Freitas, em entrevista concedida a Raimunda Gomes da Silva, em 19/03/2014. Professora da UFRR, natural do município de Recife. Chegou a Boa Vista em 1994. Depoimento de Raimunda dos Anjos, em entrevista concedida à Raimunda Gomes da Silva, em 19/03/2014. Professora da Educação Básica da (SEED-RR), natural do município de São José do Egito. Chegou à Boa Vista em 1999. As mães de Déborah e Raimunda eram professoras. 16 Depoimento de Raimunda Mendes, em entrevista concedida a Raimunda Gomes da Silva, em 19/03/2014. Professora da Educação Básica da (SEED/RR), natural do município de Caxias/MA. Chegou à Boa Vista em 1991. Sua mãe cultivava hortaliças com esta finalidade. 17 Na venda de confecções se encontravam as mães de Raimunda Mendes e a mãe de Regina. Depoimento de Regina dos Santos Oliveira, em entrevista concedida à Raimunda Gomes da Silva, em 19/03/2014. Cabeleireira, natural do município de Marco. Chegou à Boa Vista em 1997.


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trabalho no garimpo18, comércio, microempresa no ramo de confecção19, carreira de professora da Educação Básica20 – sendo que uma das duas professoras também foi atriz de novela de rádio na capital pernambucana. Observa-se ênfase ao papel das mães no incentivo aos estudos como meio de garantir uma vida melhor para os(as) filhos(as). Porém, nem sempre a visão do pai comungava com a posição da esposa, pois, para alguns21, apenas os filhos podiam estudar. Outras depoentes relatam que as mães não tiveram direito de estudar, mas fizeram o possível para garantir esse direito às filhas22. Também se encontram famílias de classe média com pais professores que incentivavam mais os estudos23, bem como famílias cujos pais contrataram professora para alfabetizar os filhos e, depois, compraram casa na cidade para que continuassem a estudar24. Verificam-se relatos de famílias moradoras de grandes fazendas de café e de engenho e de pequenos sítios que viviam da produção de castanha e mandioca. São mundos variados, não tão distantes uns dos outros, mas trazendo, cada um deles, suas particularidades, seus saberes locais e jeitos de ser e de viver. A participação das mães no processo de formação de mulheres mais independentes nota-se em várias narrativas. Verifica-se entre essas mães preocupação em formar suas filhas com base na autonomia. Maria Lúcia25 traz a representação de uma mãe que, de alguma forma, A mãe de Regina também trabalhou no garimpo em Roraima nos anos 1980. A mãe de Ana Lúcia era microempresária no ramo de confecção. 20 As mães de Raimunda dos Anjos e de Déborah (desta última atuou como atriz de novela de rádio). 21 Nesta posição se encontravam os pais de Regina e de Roseli. Depoimento de Roseli Bernardo S. dos Santos, em entrevista concedida a Raimunda Gomes da Silva, em 19/03/2014. Professora do Instituto Federal de Roraima, natural da cidade de João Pessoa. Chegou à Boa Vista em 1990. 22 Entendo que esse incentivo aos estudos tem uma perspectiva de gênero, ou seja, garantir às mulheres instrução e mais oportunidades. Dentro dessas características, temos o exemplo da mãe de Ana Lúcia e de Maria Lúcia. Depoimento de Maria Lúcia Taveira, em entrevista concedida à Raimunda Gomes da Silva, em 29/03/2014. Professora da Universidade Federal de Roraima, natural de município de Baturité–CE. Chegou a Boa Vista em 1992. 23 Neste caso, encontram-se os pais de Déborah. 24 Depoimento de Célia Maria M. Nobre, em entrevista concedida à Raimunda Gomes da Silva, em 29/03/2014. Professora da Educação Básica SEED-RR, natural de município de Senador Pompeu-CE. Chegou a Boa Vista em 1985. Os seus pais viviam na área rural de Senador Pompeu-CE. Ela lembra que “ele pegava aquela professora para alfabetizar, tinha que morar lá em casa, na fazenda, eu passei três anos na primeira série, então eu lembro que, até pelo fato de não ter gente para passar para segunda série, naquela época eu repeti três anos a primeira série”. 25 Depoimento Maria Lúcia Taveira. Op. cit. 18 19


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confrontou a condição da mulher de sua época, sonhou com uma vida diferente, em que estudasse e tivesse uma profissão, ser enfermeira: “Então ela dizia que as filhas dela não iriam ser como ela, ela dava maior apoio. Papai era mais trancado: ‘Você está gastando muito com essas meninas, não precisa tantos livros’. E ela: ‘Deixe comigo’”. Ana Lúcia também recorda a influência de sua mãe no processo de formação da identidade de gênero mais independente: Não, filha, você não pode depender de homem não, você tem que trabalhar para ter sua vida e não depender de ninguém. Aí, depois que você tiver sua vida, aí você pode namorar, você pode casar, você pode fazer qualquer coisa, desde que você não precise dele para te sustentar. Isso ela sempre deixou muito claro para gente e isso sempre balizou a nossa vida.26

No seu relato, observa-se que Ana Lúcia guarda referência de uma mãe que, de certo modo, fugia também dos padrões de uma educação patriarcal, pois incentivava a filha a ser autossuficiente, principalmente no que se referia ao gênero masculino. Tratava-se, portanto, de uma educação feminina direcionada para outras possibilidades de gênero, pressupondo uma mulher mais independente, com condição de escolher e decidir o próprio destino. Ou seja, sustenta-se a ideia de que a mulher deve lutar para se manter e garantir o direito de escolher, de gerenciar a própria vida. Observa-se nessas falas, identificadas com os princípios do feminismo como autonomia, incentivo aos estudos e qualificação profissional, entretanto, não se nota, identificação com o processo de modernização ou mesmo relação e compreensão com as mudanças influenciadas pelos movimentos de mulheres, pelos feminismos. Eram suas próprias experiências que as moviam para desenvolverem tal postura, entendendo que os [...] sujeitos são construídos discursivamente e experiência é um acontecimento linguístico (não acontecem fora de significados estabelecidos), mas nenhum deles está confinado a uma ordem fixa de significado. Uma vez que o discurso é por definição compartilhado, a experiência é coletiva, bem como individual. (SCOTT, 1998, p.320).

Portanto, as mães faziam parte das mudanças por que passavam as mulheres a partir da segunda metade do século XX, uma fase de 26

Depoimento de Ana Lúcia Souza. Op. cit.


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mudanças e permanências, uma vez que se observam tanto narrativas acerca de mães com práticas de autonomia como representações de mães “zelosas” pela tradição de uma educação feminina recuada para as prendas do lar e para o casamento. Constatam-se ainda mães com práticas rígidas e pais mais sensíveis às mudanças, a exemplo da trajetória Antonia27, visões e práticas que a depoente não aceitava passivamente. Entre as mulheres que se deslocaram sozinhas, Antonia contou com o apoio de sua mãe, que não aceitava seu relacionamento com o ex-marido. Ela própria também queria mudar, refazer a vida bem longe do seu lugar de origem e ainda das tradições familiares: [...] as seis irmãs que eu tenho, até hoje é o mesmo marido, só eu mesmo que fui a teimosa e já estou no segundo marido [risos]. Mas as primeiras, realmente, seguiram toda a tradição que era da época, que a minha mãe foi criada assim. Então essa questão de a mulher ser preparada para cuidar do marido, ser submissa ao marido, ela foi repassada pela minha mãe para minhas irmãs.

Seu relato traz questionamentos acerca da educação familiar reservada à mulher, que, a seu ver, ainda permanece fixada na tradição patriarcal. Embora tenha se deslocado para morar com sua irmã em Roraima28, Antonia reconfigurou seu espaço, voltou a estudar, começou a trabalhar e também casou com uma pessoa que a respeita e valoriza. Observa-se que assim como Bassanezi (2012) identifica mudanças nos deslocamentos internacionais, Lisboa aponta característica semelhante “na migração interna (nacional) e externa (internacional) [de mulheres] como sujeitos autônomos, em busca de melhores condições de vida para si e para seus filhos” (2007, p. 808). D’Avila Neto e Nazareth (2009), também problematizam os deslocamentos de mulheres nordestinas, que não ocorrem só no sentido profissional, mas ainda no que diz respeito a questões subjetivas: a maior valorização, mais oportunidades e reconhecimento. Percebe-se, assim, outro olhar para as mulheres nordestinas, retratadas com papéis ativos no processo migratório, e não como coadjuvantes, como meras acompanhantes e em projetos de reunificação de famílias, mas como protagonistas do próprio desloca27 Depoimento de Antonia Matos da Silva, em entrevista concedida a Raimunda Gomes da Silva em 19/01/2014. Funcionária municipal, natural de Vitorino Freire- MA. Chegou a Roraima em 1998. 28 Toma-se o deslocamento de Antonia para Roraima como uma saída para além de seus espaços e papéis familiares, acompanhado de um sentimento de transgressão, de uma vontade de mudar. Refere-se, aqui, ao conceito de “sair” de Michele Perrot (2005, p.302).


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mento. Contudo, não se deve apressadamente subestimar as mulheres identificadas como coadjuvantes, pois cada uma aglutinava a história de um tempo, bem como as especificidades construídas em torno do ser mulher, das relações de poder, dos silêncios e das táticas. Observa-se que a organização, o sentido individual e do grupo (POLLAK, 1989), a forma como se narra a experiência ou se constrói a memória de mulheres migrantes leva em consideração, como explica Portelli, que “as lembranças são como impressões digitais”. Cada experiência tem suas especificidades, “a memória é um processo individual, que ocorre em um meio social dinâmico, valendo-se de instrumentos socialmente criados e compartilhados”.(PORTELLI, 1997, p.16). Nesse sentido, a memória é uma construção social e cultural.

Entre gerações, sonhos e desafios e possibilidades A reconstrução das entrevistadas organizada por meio de trajetórias e em três grupos de geração, foi possível revisitar as narrativas dessas mulheres, suas representações do lugar de origem, de suas possibilidades e seus deslocamentos, assim como identificar gêneros de mulheres que, no seu processo de formação, já vivenciavam experiências e buscavam alternativas em direção à liberdade, ao direito de escolher algo melhor para si, para a família e até mesmo para o lugar de origem. Ou seja, trata-se de mulheres inconformadas com a perspectiva do lugar de origem/referência, que tomaram a Amazônia por diferentes questões e alternativas. Cada uma dessas mulheres, mesmo se deslocando sozinha, não estava só, nem em seus lugares de origem, nem nos de destino, pois a configuração das redes migratórias envolvia relações de família, amigos, colegas de estudo, movimento e de trabalho, tanto no Norte como no Nordeste. Essas relações permitiam observar que no Nordeste já havia um processo de formação da mulher em direção à autonomia, como no exemplo do incentivo aos estudos, já citado, e da inserção em outros espaços além do setor familiar, o que impulsionava o surgimento de outras possibilidades. Dessa forma, as lutas feministas provocadas pela segunda onda parecem ter atingido outros segmentos de pessoas que estavam distantes da atuação e compreensão política desse movimento, pois se verificava que uma nova feminilidade estava se configurando em diferentes gêneros femininos:


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Las mujeres se pensaron como capaces de construir carreras propias y exigir relaciones más igualitarias con sus parejas. Estas nuevas prescripciones, evidentemente, no serán asumidas por todas, por lo que muchas mujeres vivirán estas nuevas formas de femineidad sin identificase con el feminismo, viviendo todo esto en forma individual, como una elección al interior de las innumerables prescripciones que estaban siendo constituidas en la época. (PEDRO, 2011, p. 206).

As novas subjetividades de ser mulher29, influenciadas pelas lutas feministas, estavam presentes nas narrativas das três gerações, pois se observam mulheres nascidas na década de 1950 investindo na própria formação, na carreira profissional e buscando liberdade para conquistar o próprio espaço. Nesse contexto, de forma direta ou indireta, elas questionavam as relações de poder nos espaços familiares e conjugais. Neste último aspecto, era colocada em questão a ausência de direitos da mulher e de assistência por parte do poder público. Então, o deslocamento representava um instrumento de mudança da condição da mulher e um meio de se afastar da sociedade de origem. A segunda geração pertence à década de 1960 e se revela um grupo que questionava mais as relações de poder entre homens e mulheres, pois nessa conjuntura já havia o investimento na formação e na carreira profissional da mulher. Também parecem ser mais exigentes com a vida a dois, buscando relacionamentos que levem em consideração a igualdade de gênero. A terceira geração, dos anos 1970, não apresentava tanta diferença em relação à geração anterior, uma vez que já vivenciou as conquistas do feminismo e da modernização das sociedades urbanas dos anos 1990. As subjetividades de gênero se mostravam mais independentes nessa fase, ainda que as mudanças culturais sejam lentas e nem todas as mulheres de uma mesma geração usufruam delas, uma vez que eram impedidas por sociedades conservadoras, que tendiam a bloquear as oportunidades das mulheres em direção à autonomia. Contudo, é possível observar movimentos de mudança, mulheres buscando meios para cuidar de si mesmas, redesenhando suas próprias vidas. Questões que abrem possibilidades para a formação de outras redes que conjugam novas subjetividades de gênero, manifestações que se apresentam no final do século XX no Brasil e nas sociedades ocidentais. 29 Toma-se a ideia de modos de subjetividade de Foucault, que os vê enquanto “temas fabricados em um certo momento da história, e que, portanto, podem ser criticados, desconstruídos e destruídos”. (COLLING; TEDESCHI, 2015, p.608-9).


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Considerações finais Revisitar as memórias dos lugares de origem/referência possibilita, de forma direta e indireta, pontuar algumas questões e observar elementos da arqueologia dos gêneros nordestinos e femininos presentes nas narrativas das mulheres em estudo. Pode-se dizer que a análise das fontes possibilitou descortinar outras subjetividades gêneros, de mulheres com independência, não só por parte das depoentes, mas também de suas mães que talvez sem uma clareza das mudanças do processo de modernização da sociedade brasileira a partir da segunda metade do século XX e das lutas feministas desenvolveram suas táticas (CERTEAU, 1994) para garantir às filhas mais oportunidades por meio da educação formal e orientações relacionadas ao ser mulher em direção à autonomia, aspectos percebidos nas falas da maioria. Assim, pode-se perceber que a conquista de oportunidades, autonomia e liberdade eram questões consideradas como metas para a maioria das mulheres em estudo. Este investimento se inicia no Nordeste, principalmente por meio dos estudos, chegando ao processo de experiência migratória, pois são mulheres que se deslocam como recursos humanos com qualificação profissional, característica que lhes possibilitava mais oportunidade de inserção e as diferenciavam daquelas que chegaram desprovidas de quase tudo – tanto de recursos materiais quanto de formação. Trata-se de configuração que possibilita inquietações sobre outros sujeitos que se deslocam para a Amazônia, assim como investigar os significados da experiência migratória.

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176 Raimunda Gomes da Silva BRETTELL, DeBerjeois, 1992, p.47. Apud: ASSIS, Gláucia de Oliveira. De Criciúma para o mundo: rearranjos familiares dos novos migrantes brasileiros. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2011. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1 - Arte de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. COLLING, Ana Maria; TEDESCHI, Losandro Antonio (Orgs.). Dicionário crítico de gênero. Dourados, MS: Ed. UFGD, 2015. D’AVILA NETO, Maria Inácia; NAZARETH, Juliana. Redes sociais na experiência migratória de mulheres nordestinas. Anais do XV Encontro Nacional da ABRAPSO: Psicologia social e política da existência: fronteiras e conflitos. Maceió, 30/10 a 02/11/2009. FREITAS, Aimberê. Geografia e história de Roraima. Manaus: Grafima, 1997. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10ª. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. LISBOA, Tereza K. Fluxos migratórios de mulheres para o trabalho reprodutivo: a globalização da assistência. Estudos Feministas. Florianópolis, vol. 15, nº. 3, set. Dez. /2007. MATOS, Maria Izilda Santos de. História das mulheres e gênero: usos e perspectivas. In: PISCITELLI, Adriana; MELO, Hildete Pereira de; MALUF, Sonia W.; PUGA, Vera Lúcia (Orgs.). Olhares feministas. Coleção Educação para Todos Vol. 10. Brasília: Ministério de Educação, UNESCO, 2009. MATOS, Maria Izilda Santos de. A cidade, a noite e o cronista: São Paulo e Adoniran Barbosa. Bauru, SP: EDUSC, 2007. OLIVEIRA, Rafael da Silva; WANKLER, Cátia Monteiro; SOUZA, Carla Monteiro. Identidade e poesia musicada: panorama do movimento Roraimeira a partir da cidade de Boa Vista como uma das fontes de inspiração. ACTA Geográfica. Boa Vista, nº. 6, Universidade Federal de Roraima, jul. /dez. 2009. PAGNOTTA, Chiara; PEREIRA, Syrléa Marques. Migração de Mulheres, deslocamentos “invisíveis”: historiografia e experiências de pesquisas no campo dos deslocamentos transnacionais. Anais do XVI Encontro Regional de História – ANPUH-Rio: Saberes e práticas científicas. Rio de Janeiro, 2014. PASSERINI, Luisa. A memória entre política e emoção. São Paulo: Letra e Voz, 2011. PEDRO, Joana Maria. Los sentimentos del feminismo. In: GARCIA, Gerardo Necoechea; MONTENEGRO, Antonio Torres (Compiladores). Caminos de historia y memoria en América Latina. Buenos Aires: Imago Mundi, 2011. PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru, SP: EDUSC, 2005. PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria (Orgs.). Nova História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012. POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, nº. 3, CPDOC-FGV, 1989. PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho: algumas reflexões sobre ética na História Oral. Projeto História. Revista do Programa de Estudos de Pós-Graduação em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, nº. 15, Educ, abril/1997.


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NOTAS DE PESQUISA

Maranhenses em Boa Vista/RR: uma discussão sobre motivações e inserções Celene Farias de Sousa1 Carla Monteiro de Souza2

Introdução O texto que apresentamos é um excerto revisado da monografia intitulada “O Maranhão é aqui”, Comunidade São Raimundo Nonato, bairro Santa Luzia, Boa Vista/RR (2010-2013), apresentada junto ao Curso de História da UFRR. Esta pesquisa3 teve como objetivo central “compreender o processo de auto afirmação da identidade maranhense em Boa Vista, através da festa “O Maranhão é Aqui!” (SOUSA, 2014). Neste sentido, partimos do pressuposto de que era preciso “investigar a relação existente entre a grande migração maranhense ocorrida a partir das décadas de 1980-90, a cidade e a Festa” (SOUSA, 2014), ou seja, primeiramente delinear a situação de “expulsão” e de “atração” que ligou o Maranhão e Roraima neste período. Trazemos aqui alguns elementos para pensar o contexto de partida e de chegada de maranhenses estabelecidos na cidade de Boa Vista, discussão que integra o primeiro capítulo do trabalho citado. Para a viabilização da pesquisa, foi de fundamental importância as fontes orais produzidas pelo Programa Nova Cartografia Social da Amazônia – Cartografia dos Maranhenses no Bairro Santa Luzia4 – do qual Celene foi bolsista – dentre outras fontes, escritas e iconográficas. Graduada em História. Mestranda no Programa de Pós-graduação em Sociedade e Fronteiras - PPGSOF/UFRR 2 Doutora em História. Professora Curso de História e do PPGSOF/UFRR. 3 Este trabalho insere-se no projeto HISTÓRIA, MEMÓRIAS E MIGRAÇÕES: DINÂMICA URBANA DE BOA VISTA/RR A PARTIR DE 1943, apoiado pelo CNPq. 4 Agradecemos ao Professor Carlos Alberto Cirino, coordenador do Programa em Roraima, a cessão das entrevistas. 1


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No campo teórico, nos amparamos nas noções de identidade e territorialidade, além da de migração. O fenômeno migratório geralmente está ligado a fatores econômicos, no entanto a migração ocorre também pela busca de novas oportunidades de trabalho, para unir famílias, para juntar familiares ou amigos. As motivações são variadas mas, na maioria dos casos os migrantes acabam gerando laços identitários com o novo local, agregando a sua cultura a do lugar onde passa a residir. Na Amazônia, algumas motivações conduziram os migrantes para a região, tais como as grandes obras, os programas de assentamento, a abertura de estradas e os garimpos. Porém, cabe destacar que apesar de todos esses “atrativos”, muitos se depararam com a falta de condições para abrigar este novo povoamento e desistiram. Mas muitos ficaram! Em Roraima, com a chegada de novos migrantes a partir da década de 1980, ocorre um crescimento populacional desenfreado. Sobre isso, Ana Lia Vale (2001, p.19) destaca que houve um crescimento de 6,63 % ao ano, entre os anos de 1970 e 1980, destacando como fatores de incentivo à migração os projetos de assentamentos e colonização agrícola, implantados a partir de meados da década de 1970, e a descoberta de novas áreas de garimpo de ouro, que atingiu o seu auge no período de 1987-1991. Acrescenta que, em 1980, 61,56% da população estava urbanizada, superando pela primeira vez a população rural. Esta concentração se dava principalmente na capital, Boa Vista, pois além dos novos migrantes oriundos de diversos estados do Brasil, muitas famílias começam a deixar a área rural para morar na cidade, modificando o quadro da distribuição populacional do estado. Com relação a isso, Vale (2001, p.123) argumenta que não se pode atribuir uma espontaneidade às migrações recentes para Roraima, quando discute a atuação do poder público, como, por exemplo, no governo Ottomar Pinto: Pode-se citar um fato ocorrido em 1992 quando o então governador Ottomar de Souza Pinto incentivou a população rural desenvolver a ovicultura. No intuito de elevar a produção de milho e baratear o custo da ração, para desenvolver o projeto e incentivar a produção do milho, distribuiu pintos, ração e colocou em São Luís, capital do Estado do Maranhão, em outdoor, “Milho em Roraima vale ouro”. Essa é uma das razões do aumento significativo de maranhenses em Roraima.

Neste sentido, Santos (2004, p.219), analisando a realidade do antigo Território Federal de Roraima, explica que “até o censo de 1980,


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Roraima era como todo território majoritariamente rural”, entretanto “com o governo Ottomar (1979-1983) iniciou-se uma política de incentivo migratório”. Segundo este autor, “os resultados destas políticas foram não só um movimento para o interior em busca de lotes rurais, mas também de lotes urbanos e das vantagens de uma vida urbana, proporcionada pela capital”. Sobre isso, alguns relatos5 trabalhados na pesquisa, e que serão mais à frente apresentados, mencionam que um dos fatores que incentivavam a vinda de migrantes era a facilidade de obter lotes rurais e urbanos. Desde então, o estado de Roraima é o segundo estado no país com o maior índice de migrantes. A imprensa de circulação nacional deu destaque a esse fato. Segundo os dados sistematizados pela Folha SP/UOL (2011) (tendo como base dados do Ministério da Integração Nacional, IBGE e IPEA), estima-se que 49% da população seja formada por não naturais no estado, destes 21% teriam vindo do Maranhão. A presença maranhense é visível em Roraima e, em especial, na cidade de Boa Vista Podemos ver estabelecimentos comerciais com o nome de cidades do Maranhão ou do próprio estado e, mais recentemente, é possível ver a cultura e o folclore maranhense mais presentes em algumas atividades sociais e culturais, como, por exemplo, a festa “O Maranhão é Aqui!”, realizada desde 2010, todo mês de junho na Comunidade Católica São Raimundo Nonato, no bairro boavistense de Santa Luzia.

Maranhão: terra rica, estado pobre Os dados e informações coletados na pesquisa, bem como os autores aqui estudados, mostram que a maioria dos migrantes vindos para Roraima são das Regiões Norte, em especial do Pará e Amazonas, e Nordeste, destacando os do estado do Maranhão. Estes estudos ressaltam que essas migrações relacionam-se às melhores condições de trabalho ou moradia apresentadas em Roraima. No entanto, é preciso pensar na situação do estado do qual os migrantes saem. É possível e evidente que os nordestinos que deixam sua terra, o façam porque não dá mais para viver lá. Segundo Martins (2004), ninguém abandona sua terra, suas raízes, sem que haja necessiEntrevistas produzidas pelo Programa Nova Cartografia Social da Amazônia – Cartografia dos Maranhenses no Bairro Santa Luzia e também as realizadas por Débora Luz (2013) 5


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dade, o que ficou claro nas entrevistas realizadas pela Cartografia dos Maranhenses no Bairro Santa Luzia. Portanto, ressaltamos que as difíceis condições de vida enfrentadas por muitos migrantes maranhenses foi o maior motivador para a migração. Muitos deles não tinham uma vida boa – na visão deles comunicada nas entrevistas – e não queriam que seus filhos passassem por aquilo, então decidiram sair do Maranhão, procurando um lugar onde as condições de vida e as oportunidades fossem melhores. É comum vermos na mídia que o Maranhão é um dos estados mais pobres do país. Podemos destacar, aí, a questão da pobreza e da má distribuição de renda. De acordo com o relatório social do IPEA, de 2012, a renda domiciliar per capita da zona rural era de R$ 162,75, em 2001, passando para R$ 198,78 em 2009. Ainda de acordo com dados do IPEA, a população do Maranhão, em 2009, tinha renda per capita inferior a R$ 67,07 por mês. Em 2001, 25,2% da população vivia em pobreza extrema, sendo que essa população diminui para 13,4% em 2009. Partindo desses dados e cotejando-os com as entrevistas, podemos perceber que muitos que vieram para Roraima viviam em péssimas condições. Corroborando isso, duas entrevistas feitas pelo Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia – Cartografia dos Maranhenses no Bairro Santa Luzia, relatam a situação de vida antes da migração para Roraima e como ficou depois de estarem instalados. Na primeira, o Sr. Cícero6, hoje comerciante no Bairro Santa Luzia, conta: [...] a vida que eu tinha lá no Maranhão era muito humilde, era uma vida muito sofrida a gente não tinha oportunidade então eu fui o único na família que sempre pensei em oportunidade não só pra mim porque já tava criado já como se diz não tinha mais pra onde correr [...] mas eu já não pensava mais em mim eu pensava nos filhos entendeu, puxa vida eu criar meus filhos aqui e aí eles não vão estudar o suficiente não vão ter nenhuma profissão, não vão ter nenhum conhecimento bom [...]. Aí quando foi em 94 chega uma prima minha que tava aqui, lá aí uma tia minha me falou olha fulana tá aí assim, assim, tu tem vontade de ir embora daqui porque tu não dá um pulo lá em Roraima quem sabe, aí eu é, é mesmo, é disse é [...]. Aí eu ajeitei as coisas assim rapidinho essas passagens e vim mais ela, nós viemos de avião. Já enfrentei muita coisa aqui em Roraima ah tem gente que chega e fala ah mais vocês têm isso, vocês têm aquilo, mas não foi fácil não, aqui ninguém ganhou assim não com a cara pra cima assim não, fácil não, foi muito ralado difícil [...]. José Cícero dos Santos. Entrevista realizada pelo Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia - Cartografia dos maranhenses no Bairro Santa Luzia, em 16 de julho de 2013. 6


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Na outra, D. Verônica7 destaca esse mesmo aspecto: “Meu esposo veio primeiro passou 04 meses e ele viu que o trabalho aqui era melhor de pedreiro, lá estava R$ 12,00 a diária enquanto que aqui estava R$ 25,00. Aí ele me convenceu a vir para cá porque a diária de pedreiro era mais”. As oportunidades de trabalho aparecem como motivos para a migração, tornando Roraima um lugar melhor por ter melhores oportunidades de trabalho e melhores renumerações . Em outra pesquisa, Rodrigues e Souza (2008) arrolaram alguns motivos que trouxeram migrantes para Roraima: busca por melhores condições de vida e de trabalho, acompanhamento de familiares – pais, maridos ou outros familiares – e o garimpo, que foi um dos fatores que contribuiu significativamente para o aumento da migração nos anos 1980. Mais recentemente, as oportunidades dos concursos públicos também referendam o aspecto econômico como principal motivador da decisão de migrar para Roraima. Porém, há que se ressaltar também os problemas fundiários e políticos que assolam todo o Brasil e, em especial, o Maranhão. Assim, muitos migrantes vindos do Nordeste, e também das terras maranhenses, perderam suas terras e suas moradas ou não tinham possibilidade de possuí-las. A busca pela propriedade da terra fez com que muitos maranhenses viessem para Roraima, como apontado no trabalho de Cleudimar Conceição (2012), no qual uma de suas entrevistadas aponta que a migração foi ocasionada pela falta de uma terra, ou de uma “roça”, para que pudesse tirar seu sustento, enfatizando que migrou para Boa Vista porque as coisas estavam difíceis no Maranhão, pois “nem terra possuía para colocar sua roça”, e não havia possibilidade de ser uma proprietária da própria terra. No estudo realizado por Débora Luz (2013, p. 87), a terra também aparece como motivo para a vinda para Roraima nas falas de migrantes maranhenses entrevistados, como nesta: Na verdade eu gosto da minha terra, do berço, né? Onde eu nasci. Só que o Maranhão é um estado muito pobre, apesar de ele ser um estado muito bem localizado no país, mas ele é um estado muito pobre. Então, é um estado rico, né? Rico, porque ele tem uma terra boa, tem muita área para se trabalhar, mas infelizmente a classe política ela não te deixa a trabalhar.

O excerto acima desvela a situação de pobreza, desigualdade e falta Maria Verônica de Lima da Costa. Entrevista realizada pelo Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia-Cartografia dos maranhenses no Bairro Santa Luzia em 25 de agosto de 2013. 7


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de oportunidades de trabalho existente no Maranhão, que é um dos estados mais pobres da Federação. Talita Nascimento informa que “em 1995 tinha a maior taxa de pobreza absoluta (77,8% da população) seguido pelo Piauí (75,7%) e Ceará (70,3%)”, e que em 2008, ficou em segundo (55,9%). Segue informando que, “desde 2002 até 2008, o PIB per capita do Maranhão permanece no 26º lugar no ranking por Unidade da Federação”, acrescentando que lá “vigoram as rendas per capitas mais baixas do Brasil, além de uma considerável carência no acesso a serviços básicos” (2011). A pesquisadora acrescenta que “o Maranhão é o único Estado onde existem 18 municípios com percentual de extremamente pobres superior ou igual a 50,0% de seus habitantes, os demais Estados possuem, no máximo, 3 municípios nesse ranking” (2015). Segundo dados do IBGE, dos 50 municípios mais pobres do Brasil, 32 estão no Maranhão, destacando-se que a extrema pobreza no estado teve uma redução de 46% entre os anos de 2004 e 20098. Neste caminho, Nascimento ressalta que “houve uma redução da pobreza na década de 2000 quando comparada com a de 1990, tanto para o Maranhão como para o Nordeste e para o Brasil”, o que, segundo a pesquisadora, decorreu “em grande parte, na elevação das transferências de renda para a população, para o Estado e para os municípios e, também, na grande valorização do salário mínimo nos anos 2000” (2011). Ainda que breves, estas informações corroboram aquilo que os maranhenses migrados para Roraima contam em suas entrevistas. Nos permite entender também por que muitos maranhenses migraram para a região nas décadas de 1980 e 1990, e ainda continuam migrando nos anos 2000, como bem demonstrou o trabalho de Nogueira (2015). Havia, e há, uma situação que muito contribui para “expulsar” a população do Maranhão, principalmente aquela das cidades pequenas e médias, onde vigora uma economia rural, com imensas dificuldades de acesso ao emprego e à terra. Manter a sua sobrevivência e a da família são justificativas em muitos relatos que tivemos acesso, assim como a vida sofrida um motivo forte para migrar. Anotamos que há uma certa simultaneidade de situações entre Roraima e o Maranhão. E isso sobressai nas entrevistas que tivemos acesso, como nesta realizada por Débora Luz (2013, p. 91), na qual uma das suas entrevistadas afirma “(...) lá é muito difícil as coisas. (...) eu gosto da minha vidinha aqui (…)”, enfatizando a crença nas boas http://elo.com.br/portal/noticias/ver/223679/censo-ibge-dos-50-municipios-mais-pobres-32-estao-no-maranhao.html; 8


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oportunidades oferecidas em Roraima, quando diz: “todos que vêm de fora, que vêm pra cá, fica bem de condição, sabia?”.

Boa Vista/RR: elementos para pensar uma situação de “atração”. Muitos fatores contribuíram para que Roraima se tornasse um estado com grande poder de atração de migrantes nordestinos, principalmente do estado do Maranhão. Isso porque a “propaganda” sobre Roraima no Nordeste existiu, destacando-se o “boca a boca” sobre trabalhos bons, muita terra e acesso a educação de qualidade. Maria Aparecida de Moraes Silva (2010, p.38), nos diz que a migração “enquanto processo, responde às necessidades materiais de sobrevivência (comida, roupa, remédios) e também às necessidades de manter vivas as ilusões (de melhorias, de ascensão social, de projetos de vida)”. Assim, entendemos porque o Maranhão é um grande expulsor de migrantes. Sendo assim, percebemos que o migrante maranhense não escolhe sair de sua terra simplesmente por sair. Sua motivação é geralmente uma necessidade sua e de sua família, e Roraima nas décadas de 1980 e 1990 despontava como uma boa possibilidade de satisfação destas necessidades. Podemos destacar como um dos fatores de atração para Roraima, neste período, os projetos e planos governamentais para promover o crescimento econômico. Barbosa (1993) menciona que as décadas de 1970 e 1980 foram marcadas por planos, projetos e programas governamentais que buscavam promover o crescimento econômico do então Território Federal de Roraima, através da entrada de recursos financeiros, abertura de estradas, regularização de posse de terras e do deslocamento de populações que viviam na miséria em outras regiões do Brasil, transferindo, deste modo, a pobreza de um espaço para outro. Ainda de acordo com o autor, que analisa a situação em pleno desenrolar, o governo tinha a intenção de aumentar o número de cargos políticos eletivos, mas para isso precisava de uma base eleitoral maior. A solução era incentivar a migração, “aproveitando pressões fundiárias em outros estados do país”. Assim Barbosa (1993, p.183) analisa aquela conjuntura: A população migrante seria alocada nas colônias agrícolas e na periferia de Boa Vista. Este modelo de um pretenso “desenvolvi-


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mento” apenas patrocinava crescimento desordenado da população nas zonas urbana e rural do Estado. O aumento do número de pessoas em áreas de colonização proporciona mais estradas de acesso, que eleva a taxa de desmatamento, que valoriza a terra, que motiva a especulação imobiliária, recomeçando um novo ciclo em outra localidade.

Ainda neste sentido, Santos (2004) explica que o governador Ottomar Pinto incentivava a vinda de migrantes, principalmente do Nordeste para Roraima. Freitas (1993, p.196) cita um trecho do discurso de posse de Ottomar, como governador indicado do Território Federal de Roraima, que mostra a intenção de transformar Roraima em um estado de atração para migrantes quando, em 1979, diz: Que venham, sem demora, nossos irmãos do centro-sul e do nordeste! Que tragam seus instrumentos de trabalho e seu vigor produtivo, extraordinários fermentos, que farão crescer e crescer muito o bolo de nossa economia. Aqui se oferecem, há séculos, à criatividade e operosidade do nosso povo, aptas e exercer excepcional efeito multiplicador no seu trabalho, imensas extensões de terras férteis, cobertas por rico revestimento madeireiro no sul e no oeste, os vastos campos naturais no lavrado e os fertilíssimos solos do altiplano, ao norte, com um clima que assemelha o temperado, e vocação agrícola para culturas permanentes, tais como café, frutas etc.

Dessa forma Ottomar Pinto aponta que dará inteiro apoio aos migrantes. Percebemos também que o então governador faz uma menção a quão rica é a terra roraimense, fazendo dela um atrativo para os migrantes. Essa política de incentivo à migração foi uma das suas bases de sustentação na política. Porém, se voltarmos um pouco mais no tempo, verificamos que os migrantes maranhenses eram convidados a migrar para Roraima já em 1951, com as mesmas promessas de uma “vida boa”, tal qual as de Ottomar Pinto no início dos anos 1980. De acordo com Freitas (1996, p.105-106), o agrônomo Valério Magalhães quando assumiu a Divisão de Terras e Colonização e depois a Secretaria Geral do Território Federal de Roraima, deu início ao maior programa de colonização conhecido na região na época: O programa executado entre 1951 e 1952, mas que até hoje, serve de diretriz, preconizava: 1. Passagem do Maranhão para Boa Vista, para os migrantes; 2. Hospedagem em Boa Vista no período de adaptação ao novo ambiente; 3. 25 hectares de terra por colono;


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4. Entrega de ferramentas agrícolas (facão, foice, machado, enxada, etc.); 5. Entrega de mosquiteiros e utensílios domésticos; [...] 10. Doação de sementes e mudas; 11. Transporte gratuito para a produção; [...] 13. Doação de 30 mil cruzeiros por colono, pelo prazo de 6 meses, após sua chegada a título de auxílio alimentação. Com esse apoio do Governo do Território [...] foram criadas as colônias agrícolas do Taiano (Cel. Mota), Mucajaí (Fernando Costa) e Cantá (Brás Aguiar).

Ressaltamos que os nordestinos sempre foram alvo das políticas de ocupação da Amazônia e que os benefícios oferecidos pelos governos eram importantes motivadores para o deslocamento, inclusive para Roraima, região até recentemente considerado um lugar de terras “vazias” pronto para ser “colonizado”. Estes atrativos trouxeram muitos migrantes, principalmente aqueles que não tinham suas terras ou que sofriam com os inúmeros problemas socioeconômicos que assolavam o Nordeste, dentre os quais se destacam os maranhenses, . Em tempos mais recentes, podemos destacar essa assistência do governo. Alguns migrantes que fixaram residência em Roraima mencionam em suas entrevistas a ajuda do governo que assumia variadas formas, tanto podia ser o pagamento de passagens como a ajuda com material para a construção de casa, ou oferecimento de empregos. Um dos exemplos dessa “ajuda” é a implantação do conjunto habitacional conhecido como Pintolândia, no início dos anos 1990, no qual o governo do estado cedia casas ou terrenos, assim como material para a construção das casas, como ressaltado na entrevista de D. Vera9 : Chegamos aqui em Roraima em 91, dia 14 de janeiro [...]. Ai num foi três meses e conseguimos esse terreno aqui no bairro Pintolândia. [...]. Com três dias que meu marido se inscreveu que o Ottomar nessa época era governador, mandou a gente ir se inscrever na CODESAIMA [Companhia de Desenvolvimento de Roraima], com três dias num dia de quarta-feira ele se inscreveu quando foi no domingo já saiu o nome dele [...]. Mais meu marido só teve paciência de receber só as telhas, a madeira e os tijolos e o cimento mais o resto ele não pegou.

A entrevistada ainda relata que no período em que essas casas estavam em construção, o governador Ottomar de Souza Pinto andava pelas ruas do bairro divulgando que a energia e a água – que até então não havia – logo iriam chegar. Nessas mesmas visitas ele passava Vera Lúcia Rodrigues. Entrevista realizada pelo Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia -Cartografia dos maranhenses no Bairro Santa Luzia, em 20 de julho de 2013. 9


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nas casas e perguntava se os moradores não tinham algum familiar querendo vir para Roraima, que se tivesse ele ajudaria na vinda. E ela conta que alguns de seus cunhados vieram com essa ajuda do governo: É tão certo que ele passava em uma casinha de madeira que nós tinha ai este meu marido foi pedir uma passagem pro Maranhão pra ir buscar uns cunhado dele, ele não ficava parado sempre caminhando mais ele deu, disse que ia mandar buscar eu preciso de gente e vai chegar muita coisa aqui pra vocês. Deu passagem de avião até Belém e de carro até São Luís do Maranhão e de barco na volta pra vir 05 pessoas.10

Fica claro que a intenção do governador era de povoar o estado e, para isso, ele contou com a ajuda de vários migrantes, que repassavam as informações aos seus familiares e amigos. Apesar dos maranhenses virem em grande número, o governador Ottomar ajudou a trazer migrantes de vários estados do Nordeste. Outro entrevistado, o Sr. Zezinho11, morador do atual bairro Santa Luzia – antiga Pintolândia –, conta que também recebeu ajuda do governo e como foi o seu percurso até chegar à capital. Quando a gente veio, veio para o sul do estado São Luiz do Anauá lá passamos de 1 ano e 7 meses e em seguida viemos pra cá para a capital, viemos para morar no bairro Equatorial, estava começando esse bairro e viemos pela proposta de ter ganhado um terreno aqui nesse bairro e enquanto estava loteando fomos morar nesse outro bairro ao lado do Primavera o Equatorial. O governo loteou e deu para as pessoas carentes, para todas as comunidades dos bairros da capital. O bairro era Pintolândia, era uma área imensa muito grande, então na totalidade da população era inclusive as casas eram construídas em mutirão, dava os terrenos, esperavam receber o material e o proprietário iria construir junto.

E assim como esses dois maranhenses, muitos outros conseguiram estabelecer residência na capital desta forma. Junto a isso, muitas pessoas conseguiam comprar seus terrenos, nos anos de 1990 a 2000, por valores baixos, como explica D. Verônica12, que conta em sua entrevista que, neste período, o valor do terreno era baixíssimo (em torno Entrevista de Vera Lúcia Rodrigues. Op. cit. José de Ribamar Carneiro Silva. Entrevista realizada pelo Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia - Cartografia dos maranhenses no Bairro Santa Luzia, em 14 de julho de 2013. 12 Entrevista de Maria Verônica de Lima da Costa. Op. cit. 10 11


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de duzentos reais), e que muitas famílias que já residiam na capital avisavam seus familiares em outros estados sobre as vantagens de se morar em Roraima, o que atraía muitas pessoas e fazia com que mais e mais migrantes começassem a chegar a Roraima Outro fator que funcionou como fator de atração foi o garimpo em Roraima, que teve seu auge no final dos anos de 1980 e empregou muitos migrantes, não apenas maranhenses mas pessoas procedentes de diversas regiões. Muitos dos que vieram devido ao garimpo acabaram se estabilizando na cidade de Boa Vista, após o fechamento desta atividade no início dos anos 1990, engrossando a população da capital. Assim, podemos destacar que esta política habitacional, baseada na facilidade do acesso aos lotes urbanos, juntamente com outras políticas assistencialistas e paternalistas empreendidas pelos governos, em especial por Ottomar Pinto, foram responsáveis pela expansão do perímetro urbano da capital e pela formação de novos bairros. Observando os grandes fluxos migratórios para Roraima, nas últimas quatro décadas, vemos que muitos desses migrantes vieram direto para Boa Vista e outros se deslocaram para os outros municípios, geralmente para o sul do estado, muitos dos quais posteriormente rumaram para a capital. Esses fluxos migratórios iniciados em maior escala entre os anos de 1980 e 1990 ajudaram a modificar o quadro demográfico e espacial do estado e da cidade. Para se ter uma ideia, o Censo Demográfico de 1970, mostrou que dos 40.885 habitantes do então Território Federal de Roraima, 36.464 residiam na capital; no Censo de 2000, dos 324.397 habitantes do estado de Roraima, 197.098 viviam na cidade de Boa Vista. Com isso, neste período, observamos a formação de novos bairros. Vale destacar, com base em dados do IBGE de 2002, o surgimento dos bairros chamados periféricos, na Zona Oeste da capital: “em 1990, Boa Vista já alcançava 115.247 habitantes, como consequência novos bairros surgiram”, inclusive os Pintolândias I, II, III e IV (2007, p.140). De acordo com a SEPLAN/RR, em 2012, a cidade contava com 53 bairros, entre os quais figuram as “Pintolândias” que foram renomeadas. No bairro Santa Luzia – antigo Pintolândia III – podemos encontrar uma grande concentração de maranhenses. Alguns foram entrevistados no projeto “Cartografia dos Maranhenses no Bairro Santa Luzia”, já citado aqui, e nos contam como foi o início do bairro. De acordo com os relatos o bairro carecia de infraestrutura, principalmente de água e energia, e não tinha nenhuma estrutura para


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abarcar os migrantes, como saneamento básico, escola, comércios etc. D. Verônica13 nos fala: Aqui estava começando a construir as casas. Mas não tinha nada assim ônibus, telefone a gente tinha que ir de bicicleta lá pra TELEMAR lá no Centro, pra telefonar a gente tinha mais perto o orelhão ali no Corpo de Bombeiros do Canaã era o orelhão mais perto que tinha só que quando chegava lá tinha era quilometro de pessoas para ligar, então a gente ia de bicicleta lá pra Telemar porque lá conseguia mais rápido.

O Sr. Cícero14 , morador do bairro desde de 1994, informa que o bairro cresceu rápido, que as mudanças foram ocorrendo sem que ele se desse conta e que, na época que ele mudou, a rua que morava não era formada e que o primeiro comércio do bairro ainda estava se instalando, isso por volta de 1996. Quando a gente mudou para o bairro já foi em 96. Quando a gente chegamos já tinha umas pessoas morando ali, aqui na frente tinha um barraquinho. (...) Mas assim foi uma coisa que foi se criando assim rápido e logo as ruas foram se formando no sentido certo. Agora a energia pra chegar aqui demorou acho que a gente passou uns dois anos, mas de dois anos no gato. A água era uma situação mesmo difícil, era um gato de água ali pra não sei quantas casas. (...) O comércio que tinha era o do Zezinho ali que era de madeira na época. (...) Aí com o tempo foi que surgiu o Alencar, mas o povo quase não frequentava. (...) Mas antes dele ali nos comprávamos lá no Feitosa.

Esse início difícil frustrou as expectativas de muitos que vieram para Roraima com a promessa de uma vida boa, de trabalho de qualidade e uma melhor remuneração. Contudo, a exemplo do que Souza (2009) apontou, acreditamos que a propriedade da moradia tenha sido um fator de fixação dos migrantes no bairro, ainda que este apresentasse situação precária no seu início. Muitos ficaram no bairro Santa Luzia, que foi renomeado em alusão ao nome de duas cidades do Maranhão. Lá também encontramos uma Igreja Católica que carrega o nome de um santo muito conhecido no Maranhão, São Raimundo Nonato. Esta comunidade católica, cujos fundadores são todos do Maranhão, e que tem em seus participantes 90% de maranhenses, é uma evidência da forte presença maranhense naquela área da cidade. E foi em torno da organização de seus membros Entrevista de Maria Verônica de Lima da Costa. Op. cit. 14 Entrevista de José Cícero dos Santos. Op. cit. 13


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que surgiu a Festa “O Maranhão é Aqui!”, que ocorre anualmente na Comunidade São Raimundo Nonato, desde junho de 2010. A Festa vem se firmando como um forte elemento de territorialização dos migrantes oriundos do Maranhão, a princípio dos residentes no bairro, mas que agora se estende a toda a cidade, e vem atraindo maranhenses que vivem nos municípios do interior. As migrações, portanto, constituem novas territorialidades no estado de Roraima e em sua capital, onde os maranhenses vêm marcando a sua presença, cultura e tradição.

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“Quem veio primeiro foi trazendo...”: trajetórias migrantes e redes sociais na migração de Olho D’Água/PB para Boa Vista/RR Iris Daiane Miguel da Silva1 Carla Monteiro de Souza 2

Introdução A presença nordestina em Roraima é evidente. Neste contexto, a monografia De Olho d’Àgua/PB para Boa Vista/RR: migração e redes sociais nas décadas de 1990 à 20103, apresentada ao Curso de História da UFRR, veio somar-se a outros estudos que trataram do tema, como a tese de Ana Lia Farias Vale, a dissertação de Francisco Marcos Mendes Nogueira e as monografias de Celene Farias de Sousa e David Dantas Targino. Nestas e em outras pesquisas consultadas, assim como nos dados por nós levantados, fica constatado um aumento da população roraimense nas últimas décadas, tendo seu ápice na década de 1980. Desde sua colonização, contudo, Roraima aparece como destino de nordestinos, fato que é identificado na sua historiografia. Assim, a colaboração desses migrantes na composição social e cultural do estado torna-se visível e inegável. (SOUZA, 2001) O objetivo dessa pesquisa foi enfocar a presença de migrantes paraibanos em Boa Vista/RR, especificando os oriundos do município de Olho D’Água/PB, elucidando aspectos deste processo migratório. Dessa forma, abordou o contexto dos atrativos presentes na década de 1980-1990 em Boa Vista, ligando-os ao contexto de estagnação econômica e demográfica4 do município do semiárido paraibano, sendo Graduada em História pela UFRR. Doutora em História. Professora Curso de História e do PPGSOF/UFRR. 3 Este trabalho insere-se no projeto HISTÓRIA, MEMÓRIAS E MIGRAÇÕES: DINÂMICA URBANA DE BOA VISTA/RR A PARTIR DE 1943, apoiado pelo CNPq. 4 IBGE. Evolução da população do município de Olho D’Água/PB: 1991 – 9.109 habitantes; 1996 – 8.031; 2000 – 7.831; 2007 – 7.450; 2010 – 6.931 habitantes. Disponível em: http:// 1 2


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que ainda tratou das redes sociais que ligaram os que saíram de Olho D’Água/PB aos olho-d’aguenses que já viviam na capital roraimense. Este texto apresenta um excerto da monografia supracitada. Vai apresentar os resultados da pesquisa empírica realizada, que permitiu delinear algumas características desta migração e as redes que se constituíram no processo, destacando a sua importância na inserção e permanência dos olho-d’aguenses em Boa Vista. Para elaboração da pesquisa, buscamos fontes bibliográficas e realizamos um trabalho de coleta de dados junto a alguns migrantes olho-d’aguenses residentes em Boa Vista. Foram utilizados questionários objetivos com abertura para comentários, aplicados a 10 migrantes olho-d’aguenses, de 6 famílias diferentes. Com os questionários, obtivemos informações sobre a migração, a inserção em Boa Vista/RR e as redes sociais presentes nesse deslocamento, de forma mais abrangente e completa, pois além de podermos quantificar algumas informações, pudemos contar com os comentários, que foram qualitativamente explicativos e esclarecedores. Seguimos todos os requisitos legais e éticos: foram assinados pelas duas partes o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e a declaração de cessão de uso das informações coletadas, ficando uma cópia com os entrevistados e outra com a pesquisadora. Fica aqui o nosso agradecimento a todos que colaboraram com a pesquisa.

Algumas características dessa migração Ao fazer um comparativo entre origem e destino, utilizando os dados dos censos do IBGE de 1980, 1990, 2000 e 2010, foi possível apontar o aumento da presença de paraibanos em Roraima e, ao mesmo tempo, demonstrar a diminuição da população do município de Olho D’Água. Neste cenário, encontrar uma trajetória única de migração mostrou-se tarefa inviável e, assim sendo, o que vamos abordar aqui é uma série de fatores que levaram a esse deslocamento. Observamos que as trajetórias migrantes registradas na pesquisa ainda que mostrem peculiaridades, enfatizam as características comuns entre os migrantes pesquisados. Desse modo, observamos motivações semelhantes, assim como a vinda de mais de um membro da mesma família. Os questionários foram aplicados entre abril e maio de 2015. cidades.ibge.gov.br/painel/populacao.php?lang=&codmun=251040&search. População estimada em 2015: 6.646 habitantes. Disponível em: http://cidades.ibge.gov.br/xtras/ perfil.php?lang=&codmun=251040&search=paraiba


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Contando com 19 perguntas, cada uma era lida ao entrevistado e a resposta, seguida ou não de comentários, foi registrada por escrito e em áudio. Destacamos que mesmo tendo sido concedido o direito de mencionar os nomes dos entrevistados, decidimos omitir seus nomes, nomeando-os como “Migrantes” e os identificando de acordo com a sequência cronológica de realização das entrevistas. Ouvimos adultos com idades que variam dos 30 aos 49 anos: 7 entrevistados com idades de 40 a 49 anos e 3 entrevistados com idades de 30 a 39 anos. Quando questionados a respeito do seu estado civil na época da migração e atualmente, nota-se uma maioria de casados: na época da migração, 5 entrevistados já eram casados e 5 eram solteiros; atualmente, 7 são casados e 3 permanecem solteiros. Nesse sentido, já se nota a presença familiar, pois metade dos pesquisados chegaram com uma vida familiar construída e mantiveram essa estrutura, e os demais consolidaram essa situação após a migração. No comparativo entre as atividades exercidas na Paraíba e em Roraima, temos, atualmente, 5 professores, 1 enfermeiro, 2 administradores, 1 autônomo e 1 servidor público, ressaltando que os professores e o enfermeiro mantiveram as suas profissões. Isso nos levou a identificar um número significativo de professores, vindos na década de 1990. Dentre nossos pesquisados, 5 deles são professores atuantes nas redes pública e privada, que comentaram ter vindo por intermédio de outros conhecidos ou por ter obtido algum tipo de proposta aqui de melhor remuneração para a sua profissão. Salientamos que a vinda de migrantes qualificados profissionalmente liga-se às oportunidades de concursos públicos na década de 1990, tendo em vista a consolidação da estrutura do novo estado de Roraima, criado em 1988. Sobre isso, o Migrante 2 comenta que atuou em Olho D’Água como “(…) professor na rede estadual, pro tempore, naquela época era pro tempore, e trabalhei na prefeitura como fiscal de obras”. Em Roraima, ele atua na rede pública de ensino através de concurso público e na rede privada. Já o Migrante 3 comentou a falta de oportunidade que o município de Olho D’Água oferece, quando questionado sobre a função que exerceu no município: “nenhuma, a cidade lá nunca me deu oportunidade, por isso eu vim embora”. Assim, observa-se que um dos atrativos para a vinda de olho-d’aguenses para o estado está relacionado à falta de oportunidades de emprego na cidade de origem. As entrevistas ainda apontam uma migração maior na década de 1990: 7 entrevistados chegaram entre 1990 a 1999, os outros 3, chegaram entre 2000 e 2006. Mas ainda podemos salientar que os


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comentários apresentam indícios de migrações bem anteriores a isso, pois a maior parte dos migrantes mencionou saber ou ter contato com outras pessoas que chegaram anteriormente. Diante disso, os migrantes foram questionados sobre o número de pessoas de Olho D’Água que eles acreditavam residir em Boa Vista/ RR, e as respostas apontaram para uma média de 50 a 100 pessoas. Ainda que não seja um dado preciso, aponta o número significativo de habitantes de uma mesma cidade que se deslocaram em períodos próximos, e já começa a evidenciar a presença das redes sociais de contato que ligam os dois municípios. Os comentários dos Migrantes 1 e 2 destacam esse fato: Conheço, apesar de não ter contato com todos, e que a maioria tem praticamente a história bem parecida com a minha. (…) Eu acho que tem mais de 100 pessoas, por que assim, um vai lá pra Olho D’Água e as pessoas que vem de lá, vem através de amizade, uns vai conversa e traz os outros pra cá. (MIGRANTE: 1) Bastante! (…) Famílias nem tanto, por que não dá pra saber ao certo, tem quase 100 pessoas que eu conheço da minha cidade, se não tiver mais. (MIGRANTE: 2)

Assim, perguntados sobre a vinda, 8 pesquisados vieram e ficaram de uma vez e 2 já haviam estado em Boa Vista de passagem, voltando depois. Um deles comenta: “Eu fui e voltei umas 40 vezes”. (MIGRANTE: 3) Questionados sobre como vieram para Roraima, as respostas são variadas: 6 chegaram sozinhos, 2 com a família e 2 com os amigos. A maioria veio e depois trouxe a família, já que eram os primeiros migrantes de cada família olho-d’aguense a vir para a região. Esse aspecto é apresentado pelos migrantes em seus comentários: A minha amiga foi pra lá, pra Olho D’Água e me convidou pra eu vir pra cá, por que aqui ia ter um seletivo e eu fui e resolvi de última hora. Vendi tudo que eu tinha lá e vim pra cá, junto com ela, trouxe dois filhos e meu marido veio depois. (MIGRANTE: 1) Eu vim por que já tinha meu primo aqui, que é advogado, (...) aí vim pra cá, pra poder tentar, pra poder tentar melhorar a vida por aqui. (MIGRANTE: 4) Bom é, quando eu estava pra terminar o curso né, eu falei com meu compadre, que falou das oportunidades de emprego que havia aqui, então eu não pensei duas vezes e vim embora, então graças ao intermédio de compadre, principalmente que ele falou


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que quando chegasse aqui ele ia me auxiliar na busca de emprego, então devido também a falta de oportunidade na Paraíba, eu me desloquei pra cá. (MIGRANTE: 5) Vim sozinho, depois veio minha esposa e minha filha. (MIGRANTE: 7)

A respeito da chegada ao estado, as respostas e as trajetórias são diferentes, uns já tinham emprego garantido outros vieram em busca de uma remuneração melhor. Vim com o propósito de aqui ter crescimento nos estudos, devido minha família ser de baixa renda e essa família que eu morava me deu oportunidade de estudar, (...) antes eu era domestica se você observar aí já tive várias oportunidades de trabalho, então foi graças a eles, e hoje estou aqui. (MIGRANTE: 6) Decidi vir para Boa Vista-RR por ter a certeza de que a oportunidade de emprego era maior do que em Olho D’Água-PB ou em qualquer outra cidade da Paraíba. (MIGRANTE: 10) Vim e fiquei logo, fui morar na Maloca do Contão [interior do estado], passei três anos lá, devido a demarcação das terras, muito conflito, eu não gostei dos problemas que estavam acontecendo, eu vim embora para Boa Vista em 2005. (MIGRANTE: 8)

Nesse quesito, começaram a se evidenciar as diversas motivações e contextos que marcam a vinda dos migrantes olho-d’aguenses, cada um com objetivos e perspectivas diferentes, mas tendo em comum a busca por uma melhor condição de vida. Nesses comentários também fica evidente a ação das rede sociais e familiares, um vinha primeiro e depois era seguido por outros. Com a aplicação do questionário com abertura para comentários, conseguimos identificar de forma mais precisa os fatores socioeconômicos ligados a migração. A motivação para migrar apontada por todos os migrantes foi a falta de oportunidades na origem. Isso fica corroborado quando observamos dados sobre a pobreza do município de Olho D’ Àgua, onde, no ano 2000, 50,3% da população possuía renda per capita de até R$ 140,00 e os 20% mais ricos detinham 64,9% da renda do município5. Podemos observar isso também nas respostas sobre quais informações sobre Boa Vista mais chamaram atenção dos entrevistados: todos os 10 pesquisados responderam a oportunidade de emprego, confir5 Ver: http://ideme.pb.gov.br/objetivos-do-milenio/olho-d-agua.pdf/view


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mando que a falta de trabalho na origem foi um fator que impulsionou o deslocamento; 1 acrescentou ainda a facilidade para adquirir moradia. Como comentou o Migrante 7: “Vim e fiquei, tinha que vir mesmo, não tinha como ter emprego por lá, e tinha que ficar por aqui mesmo”. Junto a isso, há que se considerar outras questões estruturais comuns aos municípios do semiárido paraibano, as quais motivaram a migração em busca de oportunidades, como apontam os comentários abaixo: Questão política, eram os fatos que fazem com que as pessoas ou migrem ou fiquem presos, no meu caso, como eu não queria ficar preso a política local, eu preferi sair, mas muita gente fica, por que arranja algum benefício e termina permanecendo lá, outros não. (MIGRANTE: 2) Facilidade de emprego e principalmente, como já foi comentado também, a questão da diferença salarial da Paraíba pra cá, também me chamou atenção, a final de contas o país é capitalista. (MIGRANTE: 8) (…) por que lá eu não tinha oportunidade, não que a família a qual morasse não me desse, por que até pra eles era difícil, devido a cidade ser pequena, ser cidade do interior. (MIGRANTE: 6)

Os 10 entrevistados citaram como a principal motivação para o deslocamento a busca de oportunidades e de melhores condições de vida. Dois entrevistados ressaltaram em seus comentários esse último aspecto: Outros, construir minha vida aqui como pessoa, é ter a minha casa própria, ainda não tenho, mas não foi por falta de oportunidade, por que assim, já surgiram mas não foi o momento. (MIGRANTE: 6) Interesse, o regionalismo, tinha interesse sempre de vir para a Região Amazônica, questão regional, também a oportunidade de emprego. (MIGRANTE: 2)

Na década de 1990, Roraima, como um estado recém-criado, aparece como grande promotor de concursos públicos, e isso trouxe muitos migrantes de todas regiões do país, inclusive os de Olho D’ Água. No seu comentário, o Migrante 4 destaca esse fato: “Como era um estado novo, em 95 o estado só tinha 7 anos, implantado em 88, as chances aqui eram bem boas, através dos concursos”. Destacando que, em sua maioria, os migrantes entrevistados são funcionários públicos concursados.


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A motivação para o deslocamento é evidenciada na falta de oportunidade e na precariedade do município em absorver sua mão de obra. Estudos consultados apontam o deslocamento para a região centro-sul do país como característica da migração de trabalhadores dos municípios do semiárido, o que chama a atenção para a opção dos migrantes pesquisados de vir para a região Norte. Um dos entrevistados já tinha feito uma migração anterior para o centro-sul, o Migrante 8 destaca: “Em São Paulo eu exercia a função de caixa de estacionamento. Já, fui a São Paulo retornei à Paraíba e depois para Boa Vista”. Quanto às motivações determinantes para a migração, as respostas obtidas demonstram a insatisfação pessoal e profissional dos pesquisados no seu município natal: 5 informaram que migraram em busca de realização profissional, 2 de realização pessoal, 1 de uma melhor condição de vida, 1 por uma melhor remuneração financeira. Fica evidenciada a diversidade de motivações que constituem a trajetória desses migrantes. Podemos observar, contudo, que todos visualizaram em Boa Vista as oportunidades pessoais e profissionais e melhores condições de vida almejadas.

As redes sociais que ligam Olho-D’Água a Boa Vista Discutindo as redes sociais que atuaram nessa migração, destacamos o fato de Olho D’ Água ser uma cidade pequena, onde muitos se conhecem, o que facilitou o contato entre os de lá e os que já estavam em Boa Vista. Acreditamos que as redes são percursoras do deslocamento de olho-d’aguenses para Boa Vista/RR, com destaque para as redes familiares analisadas na pesquisa. As redes são as ligações entre lugar de origem e o de destino, constituídas por meio de relações pessoais. São fontes de informação, articulam a passagem para a vinda dos migrantes e o auxílio para os que seguem os primeiros. Segundo Póvoa-Neto, “tais redes se tornam forças sociais vivas, a estabelecer ‘pontes’ entre os lugares e a permitir o fluxo de informações e de pessoas que fizeram da mobilidade geográfica a sua principal estratégia de sobrevivência.” (1997, p.22) Dessa perspectiva, Brito (2009) destaca a importância dos grupos primários de relação que o migrante tem e participa ao se deslocar. Para ele, as bases que vão sustentar essa movimentação estão nesses grupos, já que vão ser o primeiro contato que o migrante vai ter com novo local e também vão ser a relação com sua raiz, ou seja, ter apoio


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para se estabelecer e, ao mesmo tempo, tentar manter o contato com a terra natal. Nesse sentido, a migração pesquisada parece estar fundamentada nessas “pontes” e nessas “bases” de auxilio, tanto para o deslocamento, quanto para ajuda aos que chegavam por outros que já estavam estabelecidos em Boa Vista. A maioria dos entrevistados aponta isso. As redes sociais têm papel percursor nesse processo migratório, pois disseminaram as informações sobre Boa Vista/RR aos que estavam em Olho D’água, atuando como fator de impulso para o migrante. Essas informações são um contato prévio dos migrantes com o destino pretendido, o que influenciou a decisão de migrar. Assim, a importância dessas informações é definida nos comentários dos migrantes: Com certeza, abrevia um pouco a respeito do conhecimento de como é a região, de que forma você vai sentir o impacto quando sair do interior do sertão pra migrar para outra região, você de certa forma tem que ter uma prévia, saber pra onde você vai, como é que essa região realmente se encontra em desenvolvimento e pra isso tem que ter o contato. (MIGRANTE:2) É eu acho que assim, você não vai sair da sua, do meio da sua convivência né, que vive ali, nasceu e se criou, pra um local que você não tem ninguém conhecido é bem mais difícil, você deixar e se adaptar, agora quando você já tem uma pessoa lá que já está fixada né, já fixada, você já tem é uma referência, pra poder até lhe ajudar a se adaptar ali naquele local. (MIGRANTE: 4)

As correntes formadas na migração de nordestinos para o estado se apresentam em diversos contextos. Vale explicar que “como os lugares não são iguais, as redes que neles se instalam são marcadas pela heterogeneidade, tanto na forma quanto na composição, permitindo a constituição de categorias diferenciadas de fluxos e de usos do tempo”. (2014, p.122). Neste sentido, já se tem estudos sobre grupos específicos de nordestinos em Roraima. Nogueira (2015), no seu estudo sobre os maranhenses, ressalta que “é possível estabelecer uma conexão dialógica entre os sujeitos migrantes”, explicando que as redes são construídas e estabelecidas a partir da mediação entre o “espaço de experiência” (dos que já estão) e os “horizontes de expectativas” (dos que pretendem vir). Dessa perspectiva, Ana Lia Vale destaca que é possível identificar dois componentes principais na constituição de uma rede: “os sujeitos, que a rigor são os nós que representam fisicamente as redes e que


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ancoram as articulações em seu interior, e as relações, compostas pelos elementos de interação entre os sujeitos”. (2014, p. 123-124). Nesta pesquisa, observamos que o contato com parentes, amigos, conhecidos que já tinham se deslocado para a região foi um elemento facilitador para a vinda para Boa Vista. Os comentários dos migrantes destacam a importância do conhecimento prévio de pessoas que já moravam em Roraima: “Sim, com certeza! E muito, claro que influenciou né, influenciou tanto que resolvi (...)foi questão de uma semana(...)”. (MIGRANTE: 1); “(…) quem veio primeiro foi trazendo, falando das oportunidades que existiam aqui no estado de Roraima e automaticamente as pessoas foram se deslocando pra cá”. (MIGRANTE: 5) Mesmo que isso não tenha sido determinante para a migração, exerceu grande influência, pois, como afirma Vale, as redes de contato têm papel fundamental no deslocamento migratório, principalmente na “migração de longa distância”. Nela há mais riscos pessoais, tais como “segurança pessoal, conforto, renda, possibilidade de satisfazer as relações sociais” e ter “parentes, amigos, vizinhos e colegas de trabalho” inseridos no possível destino, conferem “confiança sobre as redes de informações interpessoais estabelecidas minimizam e diluem os riscos”. (2014, p.126) Apoiar-se no conhecimento preestabelecido desses locais faz com que o migrante se sinta seguro para deslocar-se, fundamentando-se nas informações que podem ser confiáveis, pois estão baseadas na experiência de quem já migrou, como vemos nestes comentários: De já ter informações de outras pessoas aqui (…) Informações, outros já tinham dado certo né, tava dando certo. (MIGRANTE: 4) Questão financeira pra melhorar no caso, como lá não tinha condições de emprego, tal, a principal foi justamente a financeira. (MIGRANTE: 7) Profissional, até por que a gente sabe que lá não tem condições de trabalho, pelo menos na época não eram tão favoráveis. (MIGRANTE: 9) Terminei a universidade e desejava sair do estado da Paraíba, conhecer outras regiões. (MIGRANTE: 2)

As respostas dos migrantes a respeito de quem teve informações prévias para migrar e também se tiveram ajuda para se deslocar variaram, mas seguiram um padrão quanto à importância das redes. Em relação à ajuda para se deslocar, 9 migrantes relataram essa ajuda, apenas em um caso ela não foi relevante. Já em relação às informações


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obtidas, 3 obtiveram por meio da família, 6 por meio de amigos e 1 através de informações por outros meios de comunicação. Podemos dizer que as informações sobre Boa Vista/RR ajudaram os migrantes olho-d’aguenses a conhecer um pouco do local de destino e, posteriormente, a se adaptarem melhor, como eles comentam: As informações era as que os colegas mesmo, os primos mesmo passava, a respeito de emprego, de trabalho, que era uma região recente, criada recentemente como estado, a pouco tempo em 88 foi criada como estado, e aqui tinha uma oportunidade muito grande de emprego e como a gente também tava saindo da universidade, tinha interesse de vir e como eu não tinha muito interesse de ir para a região centro-sul, então me fez vir pra essas regiões, principalmente Roraima. (MIGRANTE: 2) As informações que eu tinha sobre Boa Vista era só com relação ao pessoal que já estava aqui, os amigos. Eu não sabia, há lá tem quantos mil habitantes? Lá o estado não tinha essas informações. (MIGRANTE: 4)

Acerca da importância das redes nas migrações, Póvoa-Neto explica que “tudo parece indicar que, na conjuntura de crise, as redes de relações sociais primárias tendem a representar um apoio ainda mais fundamental àqueles que buscam se estabelecer em um dado lugar ou se encontram simplesmente de passagem.” (1997, p.21). Como disseram os pesquisados, ao deslocar-se eles contavam com um fator de risco, pertinente ao desconhecimento do lugar e das condições que encontrariam, algo que foi minimizado com as informações prévias recebidas. Além de identificar as redes como percursoras de novas migrações, elas também se destacam na ligação entre o migrante e sua origem, como Ana Lia Vale explica em seu estudo sobre os nordestinos em Boa Vista: A rede social formada por sujeitos nordestinos, procura manter as tradições culturais da região de origem numa perspectiva de transmitir as gerações (que já não são mais nordestinos, mas sim nortistas, pois são os filhos de nordestinos nascidos em Roraima), o legado cultural do Nordeste. (2014, p.137)

O que podemos notar, nesse sentido, é que as redes têm papéis variados no que diz respeito à migração, pois ela se articula de variadas formas, por meio do contato entre os migrantes, na origem e no destino, antes e depois da migração. Dessa maneira, migrar sem ter um apoio inicial pode se tornar inviável. Podemos salientar que a migração dos


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olho-d’aguenses está baseada nas informações obtidas das mais variadas formas. Assim, esta pesquisa pode identificar uma rede de famílias que se deslocaram ao longo do período estudado.

Importância das redes na migração e na inserção e permanência em Boa Vista. As redes de contato entre os municípios estudados proporcionaram um alicerce para a migração e a permanência no destino escolhido. A capacidade de adaptar-se a novos destinos é de suma importância para o migrante, e isso pode se dar pela troca de informações e contatos com os já estabelecidos. Mantendo uma relação entre as evidências coletadas nas fontes e os dados fornecidos pelos migrantes entrevistados, conseguimos ter uma boa percepção da existência de redes atuando entre os dois municípios. Nove dos migrantes pesquisados apontaram a importância das redes sociais na sua decisão de migrar. A existência de uma rede familiar é apontada como sendo um fator de importância: os 10 entrevistados responderam estar inseridos em uma rede familiar na época da migração. Contudo, perguntados se essas redes eram integradas só por suas famílias, os 10 disseram que não. É bom explicar que foi feita uma breve introdução do que se entende por rede na pesquisa, para que pudessem responder de forma mais segura. Nas respostas e nos comentários, todos identificaram a existência de redes familiares em Boa Vista/RR conectadas a Olho D’Água, redes intrafamiliares e interfamiliares. Assim, foi possível notar que esse movimento de migrar em rede não se dá só pelo laço de parentesco, mas também por serem naturais do mesmo local, ou seja, famílias conhecidas de lá continuam mantendo seus laços aqui e, ainda, novos laços entre famílias olho-d’aguenses se formam com a migração. Isso pode ser visto nos comentários: “(...)a gente hoje vive, a família que a gente tem aqui é como se fosse a de lá, é o contato nosso aqui.” (MIGRANTE: 4); “(...)De sangue nenhum, mas assim como eu mesma disse antes, a família que me acolheu, eu considero eles”. (MIGRANTE: 6); “Depois que a gente sai de lá, que se encontra aqui é como se fosse todos da mesma família.” (MIGRANTE: 8) Pudemos notar, ainda, que os migrantes olho-d’aguenses têm um conhecimento em relação a outros que aqui residem, mais de uma vez foram questionados a respeito disso e as respostam sempre apontam


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para esse conhecimento: 9 responderam que mantêm contato com outras famílias residentes em Boa Vista. Notamos também que acreditam e apontam ter muito mais famílias residindo no estado além das que eles conhecem, como já mencionado acima. Também podemos ressaltar a presença, em Roraima, de mais de um membro de cada família entrevistada. Preguntados sobre quais pessoas de sua família moram na cidade, 6 responderam esposa e filhos; 5 têm irmãos; 2 têm primos; 2 têm tios; e 6 têm também outros parentes. Ter mais de um membro de sua família residindo no estado proporciona a permanência e, também, a vinda de outros, que vêm por saber que já existem alguns dos seus aqui. Os migrantes comentaram ter parentes em Boa Vista/RR que vieram junto e que os seguiram, e alguns ampliam o conceito de família, estendendo-a aos amigos mais chegados. Por outro lado, o contato entre os migrantes consegue sanar um pouco da saudade de sua origem, manter os laços vivos e, em muitos casos, reuni-los social e culturalmente. As reuniões agrupam vários migrantes de Olho D’Água/PB e aproximam a relação entre as famílias, proporcionando uma sensação de conforto, o que ajuda na permanência em Roraima. Uma boa convivência entre os que já estão em Boa Vista ajuda a vinda de outros conterrâneos. Enquanto não estão estabilizados, esses auxílios são de suma importância na permanência, como neste comentário: “Foi um apoio, inclusive eu fiquei na casa dela e depois eu fiquei na casa de outra amiga, que me apoiaram, mais ou menos um mês, eu fiquei na casa dessa outra amiga”. (MIGRANTE: 1). É importante destacar que a circulação de informações ocorre por diversos meios de comunicação, telefone, jornal, revista, carta, fotografia e, mais recentemente, a internet. Vale (2014) argumenta que as redes vão se multiplicando e suas relações com o espaço são maiores do que o tempo vivido e a comunicação se torna mais vasta. Nesse sentido, o controle de um espaço está ligado à capacidade de viver em rede, pelas redes sólidas que vão se estabelecer consequentemente. Questionados sobre a manutenção dos contatos com os familiares ainda residentes em Olho D’Água, todos os 10 pesquisados responderam manter contato com sua origem e, principalmente, com seus familiares: “Mantenho contato com os familiares por meio de telefonemas e de pessoas que visitam a cidade durante as férias” (MIGRANTE 10). Na pergunta sobre a vontade de voltar a residir em Olho D’Água, as respostas foram bem precisas e parecidas: dos 10 pesquisados, 9 responderam não desejar voltar a residir no município e apenas um


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salienta ter esse desejo de retorno. Muitos comentaram que a adaptação é um empecilho para o retorno. Já tive muita vontade, hoje não tenho mais. Eu acho que a adaptação aqui em Boa Vista e também pelo fato de ter perdido um ente querido, que foi minha mãe. (MIGRANTE: 1) Não tenho planos de voltar. Por que eu já e fixei aqui, já tenho a minha família, já criei uma rotina né, ao longo desses anos, difícil de você voltar e retomar uma rotina lá novamente. (MIGRANTE: 4) Não, só a passeio mesmo. Por que já estou adaptado aqui, lá embora tenha meus irmãos e sobrinhos, mas lá só a passeio, pra morar mais não, aqui terminar o resto da minha vida aqui. (MIGRANTE: 9)

Além da adaptação, outros fatores são apresentados pelos migrantes, como a falta de estrutura no município paraibano e a falta de oportunidades, que seguem sendo as mesmas, e o desejo de manter o padrão de vida alcançado, que lá não seria possível. A morar não, só a passeio, pois assim lá não, a cidade ser pequena, do interior, ela não dá muita oportunidade de trabalho e aqui em Boa Vista eu comecei a estudar, mesmo você com o nível médio tem oportunidade, diversas oportunidades (...). Tenho vontade de voltar pra passear, rever minha mãe, meus irmãos, como disse antes, família de sangue eu não tenho nenhuma aqui, mas só a passeio mesmo. (MIGRANTE: 6) Não, apesar de ser a cidade natal e por isso possuir um significado muito especial, não vejo perspectivas de melhorias (estrutural, social e cultural) para se viver. (MIGRANTE: 10)

As motivações são muitas, mas o desejo de não retornar fica evidente em todos. O que mais aparece é o descontentamento com o município paraibano e sua estrutura. A falta de atrativos que prendam sua população persiste, como apontam os dados sobre o decréscimo populacional de Olho D’Água citados acima, produto de migrações constantes, não só para Roraima, mas para outros polos de oportunidades do país. Entretanto há um desejo exposto de um possível retorno para a Paraíba. Nesse sentido, alguns dos migrantes apontam como destino a capital paraibana, João Pessoa/PB. Só pra viagem, só turismo, só férias. Não acho que a cidade vai me proporcionar alguma coisa melhor que aqui. O sertão lá de onde eu vim não, tenho vontade de morar na capital, mas ao ser-


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tão não, pra morar não, pra residir não. (MIGRANTE: 2) Pra Olho D’Água não, pra Paraíba. Ficar mais próximo da família, certo que aqui já tem várias pessoas da minha família, mas que eu tenho vontade sim. (MIGRANTE: 7) Morar mesmo em Olho D’Água não, se fosse voltar a morar na Paraíba seria em João Pessoa, eu acho que Olho D’Água não tem uma fonte de emprego ou então a gente vai viver aquela vida de sempre, e eu não quero não, não pretendo morar em Olho D’Água não. (MIGRANTE: 8)

Ainda sobre isso, citamos o comentário do único entrevistado que diz querer retornar ao município de origem, e seu motivo corrobora a falta de oportunidades no município aqui apontada, pois pretende voltar quando não precisar mais buscar trabalho. Vontade eu tenho sim, não tenho como dizer que não tenho, mas quando né, eu voltaria sim a morar em Olho D’Água depois de encerrar a minha carreira profissional, por mim eu voltaria a morar em Olho D’Água. (MIGRANTE: 5)

Por outro lado, em todos os questionários, as melhores condições de vida encontradas em Boa Vista/RR são primordiais para a fixação no estado. Manter um bom padrão financeiro, ter emprego e adquirir moradia são objetivos consolidados pela maioria de nossos entrevistados. Os que ainda não obtiveram comentaram não ser por falta de oportunidade e sim por algum motivo pessoal não citado. Nesse sentido, buscamos saber se esses migrantes conseguiram obter uma realização econômica e uma estabilidade de vida: Foi importante, foi interessante, primeiro eu vim pra passar alguns anos e terminei ficando até então. É uma região boa, ótimo lugar, não tem muito desenvolvimento, mas e o número de violência é baixo considerado com outras regiões, o local que ainda dá pra criar a família bem, próximo de tudo, não tem distância entre os pontos e uma agraciada pela natureza e me identifico bastante. (MIGRANTE: 2) O meu deslocamento da Paraíba pra cá a decisão de vir pra cá, com o auxílio dos amigos que me incentivaram a vir, hoje eu acho que foi umas das decisões mais certas que tomei na vida, foi por que com essa vinda, com essa decisão que consegui, é ter condições de poder construir realmente uma vida financeira aceitável, né, que desse pra sobreviver, desse pra gente poder viver, com uma certa tranquilidade, coisa que provavelmente eu não teria na Paraíba. (MIGRANTE: 5)


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Graças a Deus, eu tive uma grande realização, fiz a minha pós graduação que era meu sonho, sei que ainda tem muito a fazer meu mestrado, mas Boa Vista pra mim, foi muito bom, graças a Deus, só me fez crescer e tenho uma vida aqui, não sei se um dia voltaria a morar na Paraíba não. (MIGRANTE: 8) Boa Vista é uma cidade que oferece oportunidade de trabalho e de estudo, que é fundamental para o desenvolvimento pessoal. (MIGRANTE: 10)

Para eles e para outros, a capital de Roraima proporcionou muitas formas de se estabelecer e de adquirir a estabilidade almejada. Vários aspectos podem ser apontados como fatores na decisão de aqui estabelecer raízes, com destaque para a rede existente entre as famílias, que fornece apoio e segurança e um sentimento de acolhimento que todo migrante sonha ter.

Considerações finais Boa Vista, a partir da década de 1980, com os atrativos já mencionados, acaba por abrigar um número expressivo de migrantes. Ainda que cada trajetória migratória seja distinta das outras, verificamos entre todos os entrevistados que Roraima e sua capital são vistas como polos de oportunidades e de melhores condições de vida, seja para constituir uma vida melhor para a família, seja pelas facilidades que oferecia para que se estabelecessem. Os dados aqui apresentados sobre Olho D’ Água, que mostram um decréscimo constante da sua população, também fundamentam a afirmação acima. Dessa forma, a permanência dos fatores de “expulsão” apresentados na pesquisa, mostra que sair deste município do semiárido paraibano pode ser, em muitos casos, quase uma necessidade. E a existência de redes que ligam migrantes olho-d’aguenses em Boa Vista é inegável. Estas redes sociais, que fazem circular informações e contatos, existem entre os estados da Paraíba e de Roraima, o que é apontado nos dados apurados no questionário e enfatizado nos comentários dos migrantes entrevistados. Seguindo estas redes, a pesquisa mostrou que a opção por migrar como meio de melhorar de vida articula a origem e o destino e é um fator bastante presente na trajetória dos migrantes entrevistados. Saber da existência de famílias olho-d’aguenses em Boa Vista/RR aproxima os migrantes do município de origem, mantendo contatos que solidificam a rede configurada na pesquisa. Famílias e indivíduos


“Quem veio primeiro foi trazendo”...

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se auxiliam e podem promover a vinda de novos migrantes, pois uns trazem os outros, o que nos permite afirmar que há uma continuidade nessa migração, ainda que ela apresente flutuação numérica em alguns períodos. Diante disso, permanecer em Roraima se torna mais fácil com o convívio entre conterrâneos. Manter uma relação com outros migrantes fornece uma “ponte” e uma “base” para decidir ficar, para se manter e, também, mantém os contatos dos que vivem em Boa Vista com a sua terra natal. Acreditamos que a manutenção desses contatos, ao invés de aguçar as saudades, contribuem para consolidar um pertencimento, um sentir-se em casa nas terras roraimenses, após um certo tempo de residência.

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Os garimpos e o crescimento demográfico de Roraima e de Boa Vista na década de 1980 Ronison do Nascimento de Sousa 1 Carla Monteiro de Souza2

Introdução Este texto faz parte da monografia intitulada Garimpo e migração em Roraima na década de 1980: implicações socioeconômicas e demográficas3, apresentada ao Curso de História/UFRR, a qual visou “analisar a relação entre o surto garimpeiro da década de 1980 e as migrações, como elementos chaves do crescimento demográfico expressivo no período”. Trazemos um excerto revisado deste trabalho, no qual apresentamos uma breve caracterização do garimpo “como atrativo para migrantes” e uma discussão sobre as implicações do boom do garimpo do final dos anos 1980 no crescimento demográfico de Roraima e Boa Vista no período. (SOUSA, 2016, p. 14-15). A pesquisa citada nos permite reafirmar que o estudo das migrações na década de 1980 é de suma importância para o entendimento da ocupação de Roraima e, consequentemente, de sua capital, Boa Vista. Neste sentido, ganha relevo a discussão da relação entre garimpo e povoamento. O garimpo foi, de forma direta ou indireta, até o início dos anos de 1990, um elemento importante na economia e no comércio de Roraima, influenciando no seu povoamento e no crescimento da sua capital. Dos garimpos de diamante localizados nas serras aos garimpos de ouro nas áreas de mata fechada e terras indígenas, a atividade extrativa mineral veio ganhando espaço desde o início do século XX. Nas Graduado em História pela UFRR. Professor do Centro de Educação Integrada Colmeia, em Boa Vista/RR. 2 Doutora em História. Professora Curso de História e do PPGSOF/UFRR. 3 Este trabalho tem como base o projeto de iniciação científica intitulado “Migração e garimpo na década 1980 e seus reflexos na cidade de Boa Vista/RR” e insere-se no projeto HISTÓRIA, MEMÓRIAS E MIGRAÇÕES: DINÂMICA URBANA DE BOA VISTA/RR A PARTIR DE 1943, apoiado pelo CNPq. 1


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suas duas últimas décadas, a intensa atividade garimpeira acelerou o crescimento demográfico e foi um fator crucial para o desenvolvimento de setor comercial e para o incremento da vida urbana, no momento em que Roraima passava de Território Federal a estado. Depois de um período de boom (entre 1987 e 1991), os garimpos vão entrar em decadência por conta da proibição imposta pelo Governo Federal, e com a ilegalidade estavam condicionados ao fim. Ainda assim, verificamos um efeito residual na dinâmica populacional, urbana e econômica de Roraima, notadamente com a fixação de muitos migrantes-garimpeiros nas áreas urbanas, inclusive naquelas que ganharam expressão com a criação de novos municípios após o ano de 1982.

O garimpo como atrativo para a migração Em um artigo publicado pela revista Norte Científico, um grupo de pesquisadores encabeçado pela pesquisadora Maria Vieira explica que: O Estado de Roraima possui um ambiente geotectônico e metalogenético que favorece as concentrações de inúmeras substâncias minerais (não ferrosos, metálicos, pedras preciosas, semipreciosas, rochas ornamentais, etc.), conforme descriminado no Relatório de Diagnóstico, conquanto isso, se configure em um potencial a ser explorado. (2007, p. 1)

O estudo aponta que Roraima detêm um vasto potencial mineral, que possivelmente poderia ser explorado. Ressalta-se que este potencial de exploração de minérios é algo que chamou atenção desde o início do século XX, e chama até os dias de hoje. Observando essa característica, em conjunto com a literatura já produzida sobre a economia do estado, percebemos que os minérios tiveram uma importância gigantesca no seu desenvolvimento e na migração acentuada de indivíduos para Roraima, sendo que nesta pesquisa a questão socioeconômica é fundamental para compreender o contexto demográfico do estado na década de 1980. Roraima, historicamente, foi palco de uma corrida por materiais preciosos até hoje cobiçados: o ouro e o diamante. Até a década de 1980, o diamante ainda era extraído e figurava como o principal produto, entretanto, a partir desse período, “o diamante tornou-se o subproduto do ouro”, conforme explica Rodrigues (1996, p. 28). Vieira ressalta que, “os anos 1980 e 1990 presenciaram a intensifi-


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cação da garimpagem para o ouro aluvionar”, em “centenas de frentes de garimpo ao longo das bacias dos rios Apiaú, Mucajaí, Parima e Uraricoera” (2007, p. 55). A autora destaca que a produção aurífera desta região “chegou a atingir 3 toneladas/mês”. Complementando, Rodrigues aponta que houve muitos pontos de garimpagem no estado na década de 1980, destacando os seguintes: “1- o rio Uraricoera; 2rio Apiaú, 3- rio Mucajaí; 4- serra Couto de Magalhaes; 5- serra do Surucucu; 6- Santa Rosa; 7- Catrimani; 8- Papiú, 9- Palimiú; 10- Ericó; 11- Demini; 12- Jundiá e, 13- Auari”. (1996, p. 28). Ao observarmos os dados apontados acima, faz-se necessário realizar uma breve análise da atividade garimpeira, buscando caracterizar essa forma de trabalho. Para compreendermos socioeconomicamente o garimpo, devemos entender que essa atividade possuía um conjunto complexo de relações sociais e financeiras, que parte do “simples” trabalhador extrator do minério até a casa de compra do ouro extraído. Santos (2013) caracteriza esse conjunto como um turbilhão de interesses e conflitos, no qual estavam os trabalhadores do garimpo, os proprietários das máquinas, das pistas e dos aviões, comerciantes, indígenas, os pequenos proprietários de terras, os latifundiários, além dos grupos políticos locais que se formavam a partir de seus interesses. Um dos fatores determinantes dessa complexidade de relações, bem como dessa corrida do ouro em Roraima, na década de 1980, é justamente a elevação do seu valor comercial e financeiro a partir da década de 1970 até meados de 1990. Isso ocasionou a intensificação da busca por esse minério, razão para essa atividade despontar na Amazônia (CAHETÉ, 1995). A ocorrência de jazidas e o alto valor do minério acabaram favorecendo a migração para áreas onde o minério existia em abundância, como em Roraima. Isso fomentou a imaginação do garimpeiro, alimentando o sonho de que poderia mudar de vida e até enriquecer. Neste campo, os deslocamentos populacionais motivados pelo garimpo guardam sempre peculiaridades. Para entendermos esta relação, precisamos conceituar garimpo. Segundo Rodrigues, “a definição de garimpo (...) diz respeito ao lugar onde é executado todo o processo da atividade de mineração. Inclui os baixões (local onde se extrai o ouro), as currutelas, onde estão localizadas as pistas de pouso, a cantina e o dormitório. (1996, p. 20). Destaca ainda a autora que o conceito de garimpeiro não se restringe somente aos que passam horas a fio trabalhando na procura do ouro, mas é atribuído também àqueles que indiretamente estão envolvidos na


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garimpagem, ou seja, podemos concluir que outros atores envolvidos no processo, como o dono dos maquinários, os comerciantes, os transportadores etc., podem ser considerados em maior ou menor grau, garimpeiros. O objetivo aqui não é definir a identidade do garimpeiro, pois, como apontam os estudos de Rodrigues (1996), existe uma autodefinição de ser garimpeiro. O fundamental nesta pesquisa é caracterizá-lo dentro desse processo, não só como agente de extração mineral e/ou serviços diversos, mas principalmente como trabalhador migrante. E os garimpos roraimenses há muito trazem migrantes. Neste contexto, Rodrigues caracteriza três períodos para o garimpo em Roraima: O primeiro período da história da mineração inicia-se em 1912 com as descobertas dos primeiros garimpos e vai até 1965. O segundo período inicia-se em 1966 a partir do aprimoramento técnico da atividade de garimpagem e vai até 1979. O terceiro período inicia-se a partir de 1980 com as descobertas de novos garimpos, passa pela “corrida do ouro” e se estende até o declínio contemporâneo da atividade garimpeira. (1996, p. 8)

O garimpo, antes de 1930, estava sujeito a uma exploração pequena por parte de moradores locais e indígenas. Somente após esse período é que temos um real crescimento na atividade de extração mineral em Roraima, ainda assim, de forma incipiente. (RODRIGUES. 1996, p. 12). Em meados da década de 1940, o estado passou a dar uma importância significante para a extração mineral, superando a atividade da pecuária e se tornando a principal base econômica de Roraima no período. Neste sentido, o geógrafo Nilson Cortez Crócia de Barros destaca que em meados dos anos 1950, a área montanhosa ao Norte de Roraima, fronteiriça, era denominada como “zona extrativa mineral”. Esta área também concentrava cerca de 80% da população territorial, ressaltando o autor que essa área “atraía migrantes (…) os garimpeiros vinham de diversos estados, como Mato Grosso, norte de Goiás e Ceará”. Explica que “salvo algumas exceções”, o garimpo “não significava um povoamento definitivo”, mas longas permanências destes trabalhadores em “áreas remotas, sempre tendo como base de trocas a cidade de Boa Vista”, sendo essa “uma ocupação episódica, de homens sozinhos, e não de famílias”. Lembra o autor que esse fato se repetiu no garimpo dos anos 1980, quando informa que segundo o censo de 1991, “a população masculina é muito mais importante nas áreas rurais que a feminina” (1995, p. 55-57).


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Sobre o boom do garimpo de ouro, Barros, informa que, em meados da década de 1980, “começou uma massiva invasão de garimpeiros”, que tem seu auge entre 1987-90. Esse rush tem como marco os anos de 1984-85, quando grupos de 4 a 5 homens entravam a pé na futura Terra Indígena Yanomami financiados “por tradicionais ou novos empresários do ouro”, para marcar a área e prepará-la para a exploração, principalmente com a construção de pista de pouso. Neste aspecto, diz que “dezenas de pistas de pouso para pequenos aviões foram sendo construídas na área do alto rio Mucajaí”, que, em 1989, “foi constatada uma média de 400 decolagens e pousos diários” no aeroporto de Boa Vista e que estima-se que neste ano cerca de 40.000 garimpeiros estavam embrenhados “nas partes mais remotas da área Yanomami” (1995, p. 76-78) Crócia de Barros avalia que no período de 1930-60, os garimpos avançaram para o Norte, pelas terras Macuxi e Taurepang e, no de 1987-90, avançaram para o sudeste do estado, seguindo o caminho aberto na década anterior pelas BRs 174 e 210. Ainda comparando os dois períodos, afirma que em ambos “o garimpo sacrificou a pecuária e a agricultura em recursos e força de trabalho, enfraquecendo-as”. (1995, p. 80) A decadência do garimpo de ouro se inicia em 1990, com a destruição de dezenas de pistas de pouso pela polícia federal. Barros segue explicando que “durante os anos de 1991-92, o garimpo foi se tornando uma atividade residual e extremamente clandestina, culminando com chacina de índios Yanomami atribuída a garimpeiros em 1993”. (1995, p. 81). Muitos garimpeiros ficaram em Roraima, outros se foram em busca e de um novo sonho.

O garimpo e o crescimento demográfico de Roraima na década de 1980 No estudo das migrações, devemos entender que os fluxos migratórios têm forte relação com fatores econômicos e sociológicos. De início, esclarecemos que existem várias teorias para a abordagem da questão migratória. Trataremos desta questão a partir de Peixoto (2004), que aborda as duas principais vertentes teóricas dos fluxos migratórios dentro da corrente explicativa neoclássica. Assim sendo, Peixoto situa “as teorias que articulam as causas (e a análise global) dos fluxos migratórios ao nível micro ou macrossociológico”. (2004, p. 13). No nível microssociológico, Peixoto explica que “o mapa de referência dos agentes é constituído pelos factores que, ao nível do mercado


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de trabalho ou do contexto de acção (ciclo de vida ou estratégias familiares, por exemplo), enquadram essa decisão”, destacando que “o processo migratório constitui, no essencial, uma série de decisões individuais tomadas por agentes racionais que procuram melhorar a sua condição individual”. No segundo nível de explicação, o macrossociológico, predomina uma visão estrutural, a qual toma “as migrações como resultado de forças sociais estruturantes”, nas quais há “uma importância de variáveis colectivas como analiticamente superiores ao momento individual da racionalização”. (PEIXOTO. 2004, p. 13). Dentro dessa perspectiva, observamos que os dois níveis se interligam, mas o microssociológico se enquadra melhor nesta pesquisa, pois engloba a questão das escolhas individuais. Neste sentido, Staevie ressalta que as teorias microssociológicas “têm como ponto comum a aceitação da ação individual, da racionalidade do agente como central na explicação do movimento migratório”, explicando que “ainda que os condicionantes sejam exteriores à sua decisão – econômicos e/ou sociais – é a racionalidade individual que pondera tais condicionantes e materializa sua (dele) mobilidade”. (2006, p.46) Ainda dentro dessa complexa divisão de conceitos, Peixoto (2004) aponta diferentes vertentes dentro da teoria microssociológica. Não obstante, o que nos interessa é destacar a interação entre o nível estrutural e o individual, segundo a qual é a racionalidade individual que define o ato de migrar, a partir de toda uma conjuntura que envolve família, amigos, trabalho e também condições de vida e de emprego, etc., junto a condições estruturais na origem e no destino. Avaliamos que o migrante é quem define seu papel, ou seja, se ele quer ou não migrar, para onde migrar, em busca de que ele irá, principalmente quando pensamos na natureza da atividade garimpeira e no fascínio que a mística do enriquecimento “fácil” associada ao garimpo exerce sobre os indivíduos. Conjugado a outros estímulos – como a abertura de grandes eixos rodoviários, projetos de assentamento e colonização, por exemplo –, o garimpo desempenha papel importante na questão populacional da região amazônica. Destacamos que, a partir de 1960, começam a chegar levas de migrantes em diferentes áreas amazônicas, como salientam Souza e Silva (2006) trabalhadores urbanos e rurais, pequenos e médios agricultores, profissionais especializados, empresários vieram para a Amazônia em busca de oportunidades oferecidas em várias frentes, o que promoveu um reordenamento do espaço, da sociedade e da cultura regional.


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No início da década de 1980, a migração se intensificou no estado de Roraima, sendo a busca por terras um dos principais motivadores. Souza e Silva (2006) e Vale (2007) apontam que neste período vários projetos de assentamento são implantados ou expandidos, aumentando a oferta de terras. Nesse momento, também, o garimpo toma uma nova dimensão, com a descoberta de grandes áreas auríferas em porções de mata fechada e de terras indígenas. Muitos homens em busca de riquezas, do sonho do “El Dorado”, rumam para a região para se aventurarem na vida da extração mineral. Na expansão populacional de Roraima, fica evidenciado, como já apontava Rodrigues, que “a atividade de mineração vai se configurar, a partir deste período, no principal atrativo à migração, verificada durante toda a década de 80”. (1996, p. 16). Ratificando esta afirmação, Pedro Staevie ressalta alguns números, mostrando que: De 1980 a 1991 a população de Roraima cresceu 2,7 vezes (Censos 1980 e 1991), passando de 79.159 para 217.583 habitantes. A taxa de crescimento anual total ficou em 10,6%, enquanto a mesma taxa para as áreas rurais foi de 9,7%, muito acima dos 2,7% observados na década anterior. Estes números estão estreitamente ligados à criação de colônias agrícolas (23 no período), mas sobretudo à expansão do garimpo, principalmente a partir de 1987. (2011, p. 481).

Complementando esses dados sobre o crescimento populacional de Roraima, nas décadas de 1980 e 1990, trazemos um comparativo das taxas de crescimento computadas pelo IBGE: no Censo de 1980, a taxa média geométrica de crescimento populacional do Brasil era de 2,48%; de Roraima, de 6,83%; e de Boa Vista, 6,28%. Em 1991, respectivamente foram de 1,83%, 9,63% e 7,21%. No Censo 2000, as taxas reduziram para 1,40%, 4,60%, 5,70%. Com os dados acima, observamos que há um crescimento exponencial da população do estado e de sua capital no período 1970-90, comparado às taxas de crescimento nacionais. É unânime na literatura consultada que Roraima passa a receber uma leva significativa de indivíduos buscando terras, riquezas e uma melhor condição de vida. Há que se considerar, ainda, que o fluxo migratório para Roraima se intensifica com a criação da BR-174 (estrada que liga Manus/AM à fronteira com a Venezuela) que possibilitou um melhor acesso ao então Território Federal de Roraima (DINIZ; SANTOS, 2006). Olhando historicamente a questão do povoamento de Roraima, Nilson Crócia Barros (1995) explica que Roraima teve um processo


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de colonização “tardia”, pelo fato de não predominar nos períodos anteriores a 1980 uma forte migração baseada na busca por terras (assentamentos) ou por empregos/trabalho (por exemplo, no garimpo). Alguns fatores favoreceram a compreensão de que houve um crescimento progressivo a partir da década de 1970, dentre os quais destacamos a abertura das estradas federais. De acordo com Vale: A conclusão da BR 174 (Manaus - Boa Vista - Venezuela) e a construção parcial da BR 210 (Perimetral Norte - prevista para ligar o Estado do Pará com a fronteira da Colômbia, passando pelos Estados de Roraima e Amazonas), guiaram um novo fluxo migratório em direção a Boa Vista, resultando um crescimento desordenado e exigindo a expansão da infraestrutura básica e de serviços, nos anos 2000. (2007, p. 112).

A BR-174 teve sua conclusão já no final da década de 1970, o que facilitou a vinda de migrantes por via terrestre, como ressaltam Diniz e Santos, quando explicam: O maior impedimento à ocupação e ao desenvolvimento do território (Federal de Roraima) era a sua grande dependência do rio Branco para transporte. O rio não era navegável por barcos de maior calado durante a estação seca, em razão da presença de corredeiras ao longo do seu curso. Tal impedimento só foi resolvido em 1976, quando a estrada de rodagem BR-174 estabeleceu o primeiro elo terrestre entre Boa Vista e Manaus. A estrada foi mais tarde estendida até a divisa com a Venezuela e concluída em 1998. Deve-se também mencionar a construção da rodovia Perimetral Norte, que abriu o flanco Sudoeste de Roraima à colonização (2005, p. 2627).

A melhoria do acesso à Roraima impulsionou a chegada de um contingente populacional direcionado por múltiplos interesses. Os migrantes vinham para fugir das precariedades de vida no seu lugar de origem ou mesmo vindo de outras áreas receptoras de migrantes, como seria o caso dos garimpeiros que vieram de outras frentes de trabalho amazônicas, por exemplo, de Serra Pelada4. Neste caminho, a situação descrita por Salvador Moura (2008) sobre a constituição do processo de ocupação dos garimpos de Serra Pelada é bastante interessante, ainda mais quando realizamos uma comparação Sobre a questão envolvendo a frente de garimpo de Serra Pelada, ver a dissertação de mestrado Serra Pelada: experiência, memórias e disputas, na qual Salvador Tavares Moura realiza uma discussão estrutural sobre o garimpo e o garimpeiro enquanto trabalhador. 4


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com as frentes de garimpo em Roraima. Em sua pesquisa, ele destaca a relação entre a migração em massa de trabalhadores e o crescimento populacional na região de Marabá a partir dos anos 1970. De acordo com Moura: Os garimpeiros de Serra Pelada emergem como uma questão peculiar, específica da Amazônia. Meus familiares chegaram a Marabá em 1972 atraídos pelo projeto de colonização da rodovia Transamazônica, como centenas de outros nordestinos, já que as décadas de 1970 e 80 foram marcadas pelo aumento do fluxo de nordestinos para a região. É significativo o afluxo de migrantes formando novos bairros na cidade de Marabá, duplicando sua população, que passa de 24.474 em 1970, para 59.743 em 1980. Esse processo fez emergir novos atores sociais, constituídos por trabalhadores, que irão ocupar terras no sul e sudeste do Pará. (2008, p. 18).

Seguindo o trabalho de Moura, percebemos certa semelhança nas formas de crescimento populacional que marcaram algumas áreas da Amazônia no período recente, cada uma com suas particularidades. Esse fenômeno populacional decorrente do garimpo possui certas características comuns, como Diniz e Santos salientam: A urbanização de Roraima não é um fenômeno isolado, mas parte integrante de um processo generalizado que se faz presente em todos os estados amazônicos (...). O fato é que as áreas urbanas da Região Amazônica constituem-se como pontos de congregação de uma força de trabalho altamente móvel e flexível, que é fundamental para o processo de desenvolvimento econômico da região. (2005, p. 28).

Roraima estava dentro desse processo de expansão das frentes de trabalho amazônicas, cuja consequência foi necessariamente o crescimento demográfico como um todo. Por outro lado, destacamos que ainda que os atrativos para a vinda para Roraima fossem de natureza rural, verifica-se claramente no estado a inversão da lógica de fixação da população, que passa a viver em grande parte em áreas urbanas. Se, em 1970, a taxa de urbanização de Roraima era de 42,76%, em 2000 chegou a 76,15%5. Diniz e Santos apresentam um quantitativo de cerca de 40.000 garimpeiros em Roraima no final da década de 1980 e início da de 1990, sem contar aqueles que trabalhavam de forma indireta com essa 5

IBGE. Censos 1970 e 2000.


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atividade (2005, p. 28). Neste caminho, Barbosa informa que, “[...] o Plano de Metas do Governo de Roraima para o triênio 1988 a1990 (GTFR 1988)”, estimava que a chamada “corrente aurífera” trazia para o estado cerca de “47 famílias por dia” no momento de sua elaboração. Ele segue explicando: A Delegacia Regional da Fundação Nacional do Índio (FUNAI/ RR) e a Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY) estimaram que cerca de 25.000 garimpeiros vindos das mais diversas regiões do país ‘invadiram’ diferentes pontos da área indígena. Isso propiciou grande demanda de vários gêneros de consumo, devido ao enorme envolvimento da populacional que existia em função da extração e comércio de ouro. Abriu-se a oportunidade na economia local para a entrada de mão de obra externa e, concomitantemente, o sonho de trabalho e vida fácil para todos em Roraima. (1993, p. 187-188)

Isso também modificou a estrutura urbana de Boa Vista. Apesar dos atrativos rurais (assentamentos e garimpos), a população crescia expressivamente no meio urbano, conforme apontado acima. Neste processo, Boa Vista se destacava como área receptora de migrantes. Segundo diagnóstico da SEPLAN/RR, “em 1970 a cidade de Boa vista se constituía como um dos núcleos de características tipicamente urbanas”, enquanto que o outro único município, Caracaraí, “sequer poderia ser considerado como detentor de uma área urbana, pois a sede do município possuí apenas 754 habitantes”. No período 1970-80, Caracaraí cresceu a taxa espetacular de 19,9%, o dobro de Boa Vista, em função da abertura da BR 210 e da BR 174, decorrente em boa parte da intensificação das migrações. Em 1980, a cidade de Boa Vista concentrava 54,4% da população, enquanto que a sede municipal de Caracaraí tinha 5,9%. Em 1991, Boa Vista concentra 55,1% da população urbana do Estado. (1992, p. 96) A expansão demográfica da capital e o adensamento do povoamento de áreas do interior, inscreve-se neste processo. Ainda segundo a SEPLAN/RR, a abertura de estradas e o fato de Roraima ser “consagrado como uma potente província mineral […] que atraiu um contingente itinerante de garimpeiros em número superior a 50.000 pessoas”, provocou “novas formas de organização espacial” e “novas formas de urbanização, principalmente na cidade de Boa Vista, por se tratar da única ‘urb’ planejada”, criando uma “demanda de bens e serviços”, assim como “déficits em diversos setores econômicos” (1992, p. 97). Ainda sobre essa questão, destacamos também


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a criação de seis novos municípios em Roraima6, no início dos anos 1980. É interessante realizarmos um questionamento sobre o processo e a afirmação dessa ocupação na década de 1980. Verificamos que os dois principais fatores para a chegada de um número significativo de migrantes foram, principalmente, os projetos de assentamento e a exploração mineral, ressaltando que os garimpos não se constituem como formas efetivas de fixação na terra e que produziram, em muitas áreas de Roraima, uma ocupação “transitória” (SOUZA, 2005). Desta forma, compreendemos o fenômeno da migração para os garimpos em Roraima não como um destino concreto e único, mas sim como algo complexo. Constatamos que esses trabalhadores tinham a capital como ponto de concentração e apoio logístico – como demonstram as informações sobre o movimento do aeroporto de Boa Vista mencionadas acima – aspecto importante quando pensamos a cidade no período. Acerca dos efeitos do garimpo na cidade de Boa Vista, temos que considerar que ainda que houvesse uma evasão significativa do ouro extraído para fora de Roraima e que, como Barros aponta, houvesse “uma drástica drenagem da renda da mineração para fora do Território”, o movimento do garimpo mudou a vida da cidade, como destaca Reginaldo Oliveira: “o comércio foi ampliado; houve maior investimento nos materiais utilizados na prática do garimpo, os pontos e escritórios de negociação aurífera ganharam ruas inteiras, conhecidas como ‘Ruas do Ouro’”. Junto ao crescimento da sua população, “a cidade de Boa Vista viveu o seu maior período de inflação, com as transações comerciais negociadas no peso de ouro como unidade monetária”. (2003, p. 135) Há que se considerar, ainda, a conjuntura do final da década, que conjugou a criação do estado de Roraima (1988) e o auge e declínio do garimpo. No primeiro aspecto, se colocava para o novo estado grandes perspectivas, principalmente quanto aos investimentos federais para montagem da estrutura da nova unidade federativa e a expansão de cargos no funcionalismo públicos. Quanto ao segundo aspecto, cumpre explicar brevemente que o declínio dos garimpos de ouro se inicia em 1990, como mencionado Foram criados, no início dos anos 1980, os municípios de Normandia, Bonfim, Alto Alegre, Mucajaí, São Luiz e João da Baliza, além dos já existentes, Boa Vista e Caracaraí. No início da década de 1990, foram criados os municípios de Pacaraima, Cantá, Uiramutã, Amajari, Iracema, Rorainópolis e Caroebe. Ver: Atlas do Estado de Roraima: território e população, de Rafael Oliveira. 6


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acima. Neste contexto, a fixação no estado foi uma forma de escape para os trabalhadores garimpeiros desmobilizados. Barbosa explica que ainda que tenha havido um “fluxo de migração inverso” com o fim dos garimpos, “uma outra parcela sem motivação de retornar a terra natal ou completamente descapitalizada para fazê-lo, veio engrossar as fileiras de pobreza ao redor de Boa Vista” (1993, p. 189). Neste aspecto, estudo do IBGE elucida esse processo: O crescimento vertiginoso da população do Estado se deu em função de eventos como a abertura de garimpo e a oferta de trabalho em alguns empreendimentos que proporcionaram a fixação da população e, sobretudo, a implantação das Instituições Federais e das administrações municipais a partir de 1988. No período 1991/2000, o crescimento migratório foi de 59,37%. Correntes migratórias vieram estabelecer garimpos que foram abertos de forma generalizada, desalojando populações indígenas que se encontravam ainda em seu estágio original; reservas indígenas e ambientais foram criadas e a atividade de garimpo foi proibida; muitos assentamentos rurais foram criados e a população que abandonou as glebas incharam a capital Boa Vista, aumentando consideravelmente, em conjunto com outras populações de outras origens, o percentual da população urbana do Estado. (IBGE, 2005, p. 28-29)

Essa mudança na estrutura socioeconômica e espacial de Roraima, assim como o boom populacional da década de 1980, não passaram despercebidos da sociedade local. Neste campo, os jornais7 se configuram como uma das fontes importantes para que pudéssemos dimensionar a importância do garimpo neste contexto. Durante a pesquisa, encontramos diversos exemplares de jornais da década de 19808 que veiculavam diferentes orientações e posicionamentos, ora em defesa, mencionando o garimpo como um setor econômico importante e necessário para Roraima, ora se referindo ao garimpo como algo ruim, nocivo para os trabalhadores, os indígenas e o meio ambiente. A capa do Jornal Tribuna de Roraima, de 23/09/1988, é um bom exemplo da importância do garimpo na sociedade local no final da década de 1980. Dentre as notícias da capa, três tratam diretamente do garimpo em Roraima no seu auge, enfocando diferentes aspectos: a Sobre a importância dos jornais como fonte no estudo da atividade garimpeira em Roraima, ver a dissertação de Adriana Gomes Santos, Garimpeiros, Quando a “Cobra Tá Fumando”: condições de vida e de trabalho nos garimpos em Roraima (1975-1991). 8 Este trabalho foi realizado no acervo do Palácio da Cultura Nenê Macaggi, Boa Vista/ RR, no âmbito do projeto de iniciação científica citado acima. 7


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primeira, “Tráfego descontrolado causa acidentes no ar”, trata sobre o aumento do número de aeronaves de pequeno porte que se deslocavam para os garimpos, enfatizando que a situação era difícil de ser controlada; outra, intitulada “Os yanomami correm perigo”, aborda a influência dos garimpos em terras indígenas e seus conflitos, enfatizando a insatisfação dos indígenas com a presença dos garimpeiros em suas terras; em uma outra matéria, um crime brutal ocorrido dentro de uma área de garimpagem é noticiado, fazendo alusão aos amplos perigos existentes nos garimpos. Indiretamente, essa capa ainda noticia a posse de Romero Jucá como governador do recém-criado estado de Roraima, designado pelo governo federal, político que naquele momento tinha forte envolvimento com a defesa do garimpo e com a questão indígena, por ter sido presidente da Fundação Nacional do Índio – FUNAI.

Algumas considerações finais Com base no que foi acima apresentado, compreendemos que os fluxos migratórios que geraram o boom populacional na década de 1980 foram fundamentais para o estabelecimento e a fixação de indivíduos no estado, notadamente quando os garimpos foram proibidos. Para os trabalhadores garimpeiros acabaram por existir duas saídas: uma nova rota de migração, inclusive para outros países fronteiriços, e a fixação em Roraima. Esta segunda opção se tornou viável por conta de dois pontos: a possibilidade de conseguir terra e nela se estabelecer, seja no meio rural ou no urbano, e a possibilidade de alocação desses indivíduos nos serviços públicos, que a mudança para estado trouxe consigo. Esses elementos foram importantes para a fixação de contingentes populacionais nos centros urbanos, ressaltando que esse crescimento se verificou principalmente no município de Boa Vista, onde, em 2005, 98,3% da população se concentrava na zona urbana e apenas 1,7% na zona rural (IBGE, 2005). Não se sabe ao certo o quanto a extração mineral beneficiou o estado de Roraima e a sua capital. Destacamos, contudo, que a expansão do número de municípios e a consolidação de polos urbanos no interior, assim como a confirmação de Boa Vista como a mais populosa e importante cidade do estado se inscrevem neste processo. Mas o fluxo migratório intenso decorrente da migração em busca dos garimpos não foi algo simples, liga-se a aspectos cruciais na estruturação da malha urbana do estado, como o aumento da urbanização em Roraima, na


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década de 1980 e nas décadas seguintes, e da demanda por infraestrutura e serviços públicos.

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Esta obra foi impressa em processo digital, na Oficina de Livros para a Letra Capital Editora. Utilizou-se o papel Pólen Soft 80g/m² e a fonte ITC-NewBaskerville corpo 10.5 com entrelinha 13,8. Rio de Janeiro, outubro de 2016


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