O dia que nĂŁo foi contado
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Editor João Baptista Pinto Revisão Do autor
Projeto Gráfico e capa Rian Narcizo Mariano
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ C352d Castro, Marcelo Corrêa e, 1956O dia que não foi contado / Marcelo Corrêa e Castro. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Letra Capital, 2018. 104 p. ; 21 cm. ISBN 9788577855926 1. Contos brasileiros. I. Título. 18-48904 CDD: 869.3 CDU: 821.134.3(81)-3 Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária CRB-7/6439
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Marcelo CorrĂŞa e Castro
O dia que nĂŁo foi contado
O que há por trás dessa permanente transmutação da realidade em ficção? A pretensão de preservar certas experiências importantes contra a passagem do tempo devorador? O desejo de exorcizar, transfigurando-os, certos fatos dolorosos e terríveis? Ou, simplesmente, um jogo, uma embriaguez reunindo palavras e fantasia? Quanto mais escrevo, mais difícil me parece encontrar uma resposta1. Mario Vargas Llosa
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LLOSA, M. V. Sabres e utopias. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010, p. 38.
Sumário
Última carta ao engenheiro................................................... 9 O dia que não foi contado..................................................... 19 Panapaná................................................................................. 24 Quem o feio ama.................................................................... 35 A quinta história..................................................................... 43 O Relator................................................................................. 47 História com muitos parágrafos e duas vontades................ 57 Ou homem.............................................................................. 62 Da arte de capturar serpentes............................................... 70 Quatro cenas........................................................................... 73 Pequena história da esperança.............................................. 78 Cárcere.................................................................................... 81 A caminho do Setor de Recursos Humanos........................ 87 O Milagre................................................................................ 94 A Borboleta amarela............................................................... 97
Última carta ao engenheiro Aqui em casa, anteontem Senhor Engenheiro, Como têm passado o senhor e sua família? Espero que esta encontre a ambos no gozo pleno da saúde. Afinal, que bens mais preciosos podem existir na vida de uma pessoa do que saúde e família, não é mesmo? Como o senhor já sabe, mas pode ter esquecido porque tem muitos assuntos importantes a ocupar seu tempo, tenho 74 anos e moro no Edifício Maria Rosa, bem defronte à obra que o senhor está chefiando. O senhor talvez desconheça por que há tantos edifícios como o meu, com nomes de pessoas sem fama. Trata-se de uma exigência de ordem sentimental imposta pelos proprietários das casas que foram vendidas para que as empreiteiras construíssem prédios em seus lugares. Em geral, é o nome de um neto ou neta, que fica ali como uma lembrança triste do que foi um dia uma casa de família. Desculpe esta digressão, não pretendo tomar mais o seu tempo com informações que não lhe interessam. Escrevo mais esta carta ao senhor, que deve ser a última, porque tomei uma decisão e preciso de sua ajuda para levá-la a termo. Para que compreenda melhor a minha situação, tomo a liberdade de contar um pouco mais da história da minha vida, que até hoje o senhor conhece muito pouco. Espero que não se aborreça com isso, mas é que se trata de uma providência essencial para que entenda o que vou lhe pedir. O dia que não foi contado 9
Quando estava com 10 anos de idade, fui morar com minha família em Buenos Aires. Filha única de pais severos, era mantida sob constante vigilância da minha mãe e, em especial, do meu pai. Logo de manhã, ele me deixava na porta do colégio para moças, onde ficava confinada, estudando com outras meninas e as nossas professoras freiras. Ao final das aulas, minha mãe vinha me buscar. Ficávamos em casa o restante da tarde, até que, por volta das cinco, tomávamos banho e nos vestíamos para esperar meu pai de volta do trabalho, o que fazíamos debruçadas à janela da sala de jantar do sobrado em que morávamos, próximo da Praça Dorrego, aquela em que há a Feira de San Telmo, que os turistas brasileiros gostam tanto de visitar. Talvez o senhor a conheça. Antes de irmos para a janela, rezávamos a oração da Ave Maria, ajoelhadas diante da imagem de Nossa Senhora que havia no canto esquerdo da sala. Isso ocorria diariamente, sempre às seis horas da tarde. Apesar de não ser católica, para desgosto das freiras e de minha mãe, sempre me encantei com a oração da Ave Maria. Não sei de onde vem esse encanto nem quero explicá-lo: apenas aceito-o como uma espécie de diálogo atravessado com uma outra mãe que não pune nem deixa jamais de perdoar. Novamente à janela, pouco depois das seis, víamos meu pai chegar, o que nos enchia de alegria, como se fosse o atendimento as nossas preces. Aos sábados e domingos, quando não estava preparando tarefas escolares, ficava com minha mãe na cozinha do bar em que meu pai trabalhava de gerente. Vivi assim por alguns anos, sem sobressaltos e sem grandes expectativas. Um dia, vi da janela passar um jovem de chapéu negro, muito compenetrado e altivo, montado em sua bicicleta, 10 Marcelo Corrêa e Castro
descendo a rua em direção ao centro da cidade. Ele não me viu naquele dia nem em muitos outros posteriores, mas eu o via sempre, e cada vez com mais aflição e deslumbramento. Aconteceu então que, em uma quinta-feira chuvosa e fria, minha mãe adoentada, impedida de sair da cama, fiquei só à janela por tempo suficiente para ver o jovem parar bem em frente ao nosso prédio, do outro lado da rua, a examinar o pneu da sua bicicleta, ao mesmo tempo em que parecia procurar algo com que se proteger da chuva. Em uma rápida mirada na direção do alto, nossos olhares se encontraram e se conheceram de imediato, com tanto furor e história quanto pode haver em uma paixão atemporal. Como mantivesse seus olhos fixos nos meus, sinalizei que esperasse. Fui lá dentro, peguei uma antiga capa de lona que meu pai usava para cobrir objetos vários que guardávamos na área de serviço e arremessei-a em sua direção. O modo como ele pegou a capa – não como um ciclista qualquer incomodado pela chuva, mas como um discreto e preciso dançarino que colhesse uma flor do céu – jamais esquecerei, porque naquele instante inacabável tive certeza absoluta de que não queria mais ninguém para amar por toda a minha vida. Depois de muitas peripécias, das quais vou poupar o senhor, estive a sós com ele, falei com ele, senti seu cheiro de jacarandá e sua respiração que me tragava com suavidade. Chamava-se Augustin, tinha dois anos a mais do que eu, era natural de Buenos Aires e trabalhava de ajudante em uma das várias lojas de antiguidades que há nas cercanias da Praça Dorrego. Depois de outras tantas peripécias, das quais igualmente vou poupá-lo, passamos a nos encontrar e abraçar e beijar e amar em palavras e silêncios; em cheiros e tatos; em gestos e vozes; em totalidades perfeitas. Até que meus pais descobriram a história e adotaram O dia que não foi contado 11
todas as medidas punitivas e restritivas de praxe quando se trata de abortar o exercício de amores, não importa o seu tamanho. Naquela época, a única solução, em um caso assim, consistia em fugir. Talvez fosse mais correto dizer sumir ou mesmo desaparecer, porque não bastava fugir para outra parte da cidade, mesmo que distante, nem para outra cidade. O mundo era pequeno e todos se conheciam. E uma mãe e um pai desfrutavam de poderes inquestionáveis sobre os destinos de uma filha enamorada. Fugimos para outro país, o único que nos ocorreu: o Brasil. Talvez porque fosse longe. Talvez porque eu tivesse vivido nele antes de ir morar na Argentina. Talvez porque eu soubesse a língua que se fala aqui. A vida é cheia de mistérios com relação às decisões que tomamos, o senhor não acha? No Brasil, estabelecemo-nos no apartamento em que vivo até hoje e onde vivi por mais de 50 anos com meu adorado Augustin. Não tivemos filhos, porque assim não quis Deus ou a natureza, não sei, mas tivemos plenamente um ao outro, sempre com paixão, sempre com um inesgotável amor e uma amizade que pareciam existir desde antes do próprio universo ganhar vida. Nos últimos 19 desses mais de 50 anos, de segunda a sexta, eu me banhava, perfumava, enfeitava e ia para a janela do meu quarto de dormir um pouco antes das seis da tarde. Ali, contemplando as amendoeiras de tantas décadas à minha frente, ouvia no rádio a oração da Ave Maria, rezada pelo padre da vez, com a voz de Roberto Carlos ao fundo, cantando a composição de Schubert. Assim como meu pai em San Telmo, Augustin chegava pouco depois das seis. Com um chapéu de Panamá – que dizia ser mais adequado ao nosso clima – e ainda elegante e imponente em sua bicicleta, despontava no fim da Rua dos Antiquários, onde trabalhava, agora como um dos sócios, e 12 Marcelo Corrêa e Castro
não mais como um ajudante, mas com o mesmo garbo e delicadeza de quando o vi pela primeira vez. O senhor nunca será capaz de saber o quanto isso me fazia feliz, o quanto a minha vida se completava e assumia sentido quando meu Augustin surgia, o quanto meu corpo e minha alma se despediam de qualquer dor que os atormentasse. A última tarde em que fiz isso, era uma quarta-feira ensolarada do outono e nada em seu trajeto poderia prever que ele, dali a alguns metros, iria cambalear, pela primeira e última vez na vida, e cair da bicicleta. Nem que a pancada seca da cabeça no meio-fio iria matá-lo instantaneamente. Nem que a poça de sangue que se formou abaixo da sua cabeça iria poupar de manchas seu chapéu de Panamá e seu paletó bege de linho. Meu Augustin morreu de quê? Até hoje ninguém sabe. Não deixei que fizessem esses exames em que cortam a pessoa toda, para descobrir nada. Ou para confirmar que morreu de velho, de doente ou pela mão inexplicável de Deus. Um homem tão íntegro, tão cioso da sua intimidade, nunca poderia estar em paz sabendo que, depois de morto, teve seu corpo vasculhado por desconhecidos. Morreu. Era um homem sem igual. E seu dia havia chegado. Pronto. Por maior que fosse a minha tristeza, era essa a explicação necessária para que nada mais impedisse a dor de se instalar completamente. Sepultei-o em companhia de dois funcionários da loja e do porteiro do nosso prédio, que trabalha conosco há mais de 30 anos. Depois da missa de sétimo dia que mandei rezar em intenção da sua alma – apesar de sermos esse tipo de católico a que se costuma chamar de passivo – voltei para casa pelo caminho que ele fazia. Quando já estava bem próxima do local em que ele caiu, avistei uns homens colocando tapumes para cercar o terreno que havia em frente à janela do nosso quarto de dormir. No momento, nem me passou pela mente O dia que não foi contado 13
relacionar a novidade com a morte de Augustin. Hoje penso que foi derrubado da bicicleta pela antevisão do inferno que acabava de emergir em nosso modesto paraíso. Três meses depois, quando o terreno já estava todo cercado e capinado, vi afixarem a placa da obra. O nome da construtora – Santa Efigênia – me pareceu um bom sinal, porque Efigênia era o nome da minha finada mãe. Apesar de nunca mais termos nos falado depois que fugi para o Brasil, sei que me amava e queria o meu bem. E sinto saudades de estar à janela ao seu lado e de rezar com ela para Nossa Senhora. Eu também a amava e tentei ajudá-la, quando soube, por parentes de Augustin, que havia enviuvado, mas não consegui que lesse minhas cartas – todas devolvidas com o envelope intacto – nem que aceitasse as ordens bancárias emitidas por mim em seu favor. Os meses seguintes trouxeram uma tristeza cada vez maior. Primeiro, fiquei sabendo que a obra que eu, na minha ingênua e otimista suposição, pensei poder tratar-se de uma pequena edificação, até mesmo uma lojinha ou um pequeno templo, na verdade era a construção de um prédio de 16 andares e 128 unidades, estilo flex business & living, com um nome em outra língua. Disto reclamei logo em minha primeira carta ao senhor, explicando que acabaria de vez com a vista que tenho tido há tantos anos da janela do meu quarto de dormir. Da sua resposta só lembro a parte em que o senhor, depois de citar muitas leis e decretos e licenças e órgãos, disse que estava solidário comigo e compreendia a minha frustração, mas que não poderia fazer nada porque a vida era assim mesmo. Estava decretada a morte da única imagem que ainda me restava como uma esperança de encontrar Augustin novamente, fosse na memória, fosse na fantasia de que ele, não tendo morrido de vez, tornaria a surgir – de tardinha, de bicicleta, de chapéu de Panamá e paletó de linho – para 14 Marcelo Corrêa e Castro
retomarmos nossa felicidade. Aquele prédio de nome incompreensível, enorme, cheio de pessoas desconhecidas, sepultaria de uma vez meu querido Augustin e uma parte linda da nossa história de amor. E aí compreendi de novo que o tombo que o matou fora causado pela visão dos tapumes da obra e, pior, pela antevisão do desastre que ela traria para a nossa vida. Chorei muito até aceitar – muito mal, é verdade – mais essa morte. A solução que encontrei para diminuir a dor foi aproveitar as tardes que me restavam para estar à janela e desfrutar da vista. Aí vieram as máquinas. As máquinas eram imensas e funcionavam sem parar das 8:00 às 18:00. Seu barulho, mais do que soar alto, humilha, em sua declarada obstinação de não conceder qualquer trégua a outras formas de viver. Passei a não ter mais onde nem como me isolar da obra. Ela invadiu todos os cômodos da minha casa; todas as frequências dos meus sentidos; todos os espaços do meu pensamento. Não consigo mais dar atenção às rotinas nem me dedicar a possíveis passatempos. A obra é tudo. A obra domina. A obra paralisa. A obra me tem inteira em sua indiferença e arrogância de coisa sem rosto e sem alma. A obra está me matando sem qualquer rasgo de piedade ou arrependimento. Tudo isso o senhor também já leu em minha segunda carta. Não sei se lembra; aquela em que escrevi que não era contra o progresso e que aceitava que meu tempo estava se acabando; aquela à qual o senhor respondeu dizendo que havia leis e decretos e licenças e órgãos, que de novo compreendia minha frustração, mas que não podia fazer nada e que a vida era assim mesmo. Depois, a obra passou a fazer barulhos regularmente das sete da manhã às dez da noite, sempre abrigada, segundo o senhor, pelos termos da Lei do Silêncio e as normas da ABNT. O dia que não foi contado 15
Não entendo como uma lei que se diz do silêncio serve exatamente para estabelecer um máximo de barulho que uma obra pode fazer, para desespero dos demais cidadãos. Depois de depois, a obra passou a funcionar regularmente aos sábados. Se não estivesse absolutamente convencida de que todas as decisões que envolvem a obra são tomadas unicamente no interesse da obra e dos que lucram com ela, diria que as atividades dos sábados são diabolicamente escolhidas para infernizar os demais trabalhadores e vizinhos. Os sábados, que, segundo o senhor, são dias úteis, embora o meu banco não pense assim, são reservados para os maiores barulhos: retroescavadeiras que enchem com terra dezenas de caminhões; betoneiras que, em fila, despejam concreto nas entranhas da obra; e infalíveis serras elétricas que cortam madeiras que deveriam chegar serradas à obra. Isto sem falar no leitmotiv sonoro das bombas de recalque, cujo funcionamento ininterrupto se faz indispensável por conta do rebaixamento do lençol freático. Eu estudei música e me ocorreu fazer essa metáfora com leitmotiv. Espero que o senhor não se importe em tentar entender sozinho o que eu quis dizer. Faça como eu fiz no caso das bombas de recalque e do lençol freático: pesquise, pergunte aos amigos, conheça, se espante, deteste. O pior, no entanto, não tinha chegado ainda. O pior é que não consigo mais ouvir a oração da Ave Maria no meu rádio, debruçada à janela, às seis da tarde, embora o senhor tenha escrito que ia ver se podia dar um jeito de desligar as máquinas “dois minutinhos antes das seis, para atender à senhora”. As máquinas nunca param de funcionar mais cedo, como o senhor quase prometeu. As máquinas funcionam e fazem barulho e causam tremores em meu prédio com a precisão, a monotonia e a indiferença de máquinas e de homens que usufruem do que elas permitem destruir. Agora tenho de fechar o vidro da janela (um antirruído 16 Marcelo Corrêa e Castro
que instalei, seguindo um conselho do senhor mesmo, mas que serve de muito pouco), ligar o rádio em um volume bem alto e escutar a voz do novo padre com o auxílio de um fone de ouvidos. Além de não escutar mais a voz do Roberto Carlos cantando ao fundo, não sinto mais que esteja à janela, à espera do meu pai ou de Augustin, enquanto me dedico a Nossa Senhora e lhe dou graças pela vida de amor que vivi. Isso, mais do que o barulho, mais do que as sombras do novo prédio projetadas sobre o meu, mais do que a destruição total da vista que testemunhou meu amor por tantos anos; isso, digo e repito, é que é a morte: não poder estar à janela, com Nossa Senhora, com minha mãe e meu pai, à espera de que Augustin me acene com seus olhos e seu chapéu e me leve com ele em sua bicicleta. E agora, que o prédio foi entregue aos seus atarefados proprietários – que nele fazem funcionar uma consultoria financeira –, o restante das obras passou a ser feito depois que termina o imperturbável expediente daquela gente toda de gravata e tailleur, tão ocupada em gastar dinheiros imaginários. Isto porque, para os proprietários, depois do expediente resta apenas o horário de repouso dos vizinhos – nós – que, no parecer deles, não merecemos qualquer consideração, ou melhor, sequer existimos de verdade, sendo mais coisas que, vez por outra, gritam do outro lado da parede e, em noites de desespero, chamam a polícia, a ver se para por um instante o barulho que nos impede de dormir, de sonhar, de viver. E depois que as últimas obras acabarem, alguma outra surpresa intragável virá do prédio que o senhor ajudou a construir: festas até tarde, equipamentos ruidosos que funcionam diuturnamente, alarmes de automóveis que disparam a toda hora na garagem. A obra é uma obsessão – não um meio – e os que a conduzem vivem isso com um fundamentalismo irretocável. O dia que não foi contado 17
Sei que o senhor vive de obras e que sua família depende disso, como já me escreveu em outra carta. Não quero que interrompa suas obras. Além disso, já é tarde para pensar em algo de concreto quanto a isso. Não quero que interrompa suas obras nem que desligue suas máquinas nem que derrube o prédio que lhe contrataram para construir. Sei que isso seria a sua morte, e não quero o mal para ninguém. A ajuda que lhe peço é outra. Gostaria que o senhor, somente às quartas-feiras, que é o dia em que me lembro mais do meu Augustin e dos meus pais, interrompesse por um minuto seus afazeres, se dirigisse até alguma janela em que pudesse ver uma paisagem de onde fosse capaz de imaginar que surgisse a história de um amor da sua vida, e de lá ouvisse ou rezasse, mesmo que em silêncio, a oração da Ave Maria, em intenção daquilo que nos torna felizes. Peço isso porque, como disse, tomei uma decisão: vou retornar à Praça Dorrego e ao meu velho sobrado, onde passarei o resto dos meus dias à janela, até que não reste mais nada a viver. Faça isso por mim e pelo senhor. Faça isso e prometo não enviar mais nenhuma carta que o aborreça ou lhe traga desgosto. Se o senhor não conseguir fazer o que lhe peço, recomendo que considere com todo o amor que há em seu coração a possibilidade de adquirir uma bicicleta, um chapéu e uma janela, antes que não possa mais decidir que a vida nunca é assim mesmo. Faça isso enquanto seu mundo existe e a obra da sua destruição ainda não começou. Mercedes
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O dia que não foi contado (Morte em vida 1)
I
N
o dia do ocorrido, Simplício de Tal e Qual levantou-se às seis horas da manhã, como havia feito em todas as 2.456 terças-feiras de sua vida. Naquele momento exato, não trazia, na memória do sono, nem a incerteza amarga do despertar de certas horas nem o gosto doce de sentir-se vivo, de outras. Apenas levantou-se às seis da manhã. E não parecia que houvesse qualquer fator mais determinante do que se levantar às seis horas da manhã daquele dia. Talvez – destinos e cosmogonias à parte – houvesse muitos motivos para levantar-se ou não, embora, durante toda a sua existência, Simplício nunca os tivesse procurado. Pouco importava a razão de despertar; importante, imprescindível era respeitar o horário, andar na data que o calendário desse e marchar no rigor do relógio. Assim: lavou o corpo às 6:10, tomou café às 6:42, beijou a mulher-das-6:51 às 6:51. Ajustado, encontrou a hora de sair. Ganhou a rua. Perdeu a identidade. Escravizou os pés do chão. A rua tinha seu próprio ritmo, era preciso viver um outro tempo – assim pensavam os sapatos de Simplício todas as vezes em que pareciam não querer cumprir o percurso na cronometragem previamente estipulada. Chegou ao trabalho na Firma, sentou-se à mesa-das8:45, grudou dedos à máquina de calcular e executou a sinfonia em três movimentos: café, almoço e vida alheia. O dia que não foi contado 19
Deu as duas mijadas: a das 11:43 e a das 16:13. Olhou o rebolado gasto da moça do cafezinho das 13:10. Ouviu a piada do Torquato às 17:02. Naquele dia, excepcionalmente, não fumou o cigarro das 14:08. Em compensação, às 12:23, saboreou uma bala que não estava no programa; uma bala que o fez lembrar o quanto era bom colorir o cotidiano com pequenas variações. Às 17:15 daquele que seria um dia trágico, Simplício pôde dar um até amanhã e encaminhar-se para pegar o ônibus das 17:21, que para no ponto entre 17:22 e 17:38 e vai até o local de saltar em cerca de dezoito minutos, gastando, no percurso, nunca menos de quinze nem mais de trinta, a não ser, evidentemente, quando fica retido no eventual congestionamento das 17:34. Cinquenta e sete segundos depois de ter descido do ônibus, Simplício chegou a sua casa. Beijou a mulherdas-17:53; pegou filhos no colégio – um das 18:00, outra das 18:15 -; jantou jantar das 20:30 e assistiu à novela das 20:40, que é depois do noticiário das vinte em ponto. Leu extratos e relatórios das 22:16, deu a cochilada das 22:35 e deitou-se às 22:56, não sem antes verificar a sincronia dos vários relógios que havia em sua casa. Teve relações sexuais com a mulher-das-23:17, lavou a genitália às 23:28 e, depois de um boa noite quase inaudível, virou o rosto para a mulher-das-23:34. De olhos cerrados, tentou fazer, como sempre, a agenda do dia seguinte passar em sua mente antes de pegar no sono das 23:45. Um estranho entorpecimento de sua musculatura, no entanto, foi tomando seu corpo e sua mente, até impedir que ele concluísse seu último pensamento.
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II Seu último pensamento, cujo instante preciso não se conseguiu determinar, foi o de que algo de errado estava acontecendo e que era necessário acordar sua mulher para socorrê-lo. Sua mulher, porém, só foi acordada às 7:38 do dia seguinte. Ao ver o marido ainda deitado, a cabeça pendente para a direita, tentou, sem sucesso, acordá-lo. Sacudiu seu corpo inerte e tentou abrir seus olhos vidrados, mas tudo o que lhe restava era um corpo sem vida, embora insuficientemente frio para estar morto. Não fossem o inconformismo da mulher e a experiência do médico de já ter presenciado a exumação de um cadáver suspeito de ter sofrido um ataque de catalepsia, Simplício teria sido sepultado antes de morrer de fato. E não teria sido o primeiro caso de um cataléptico ser enterrado vivo. Sua mulher ainda se recobrava do susto quando percebeu o problema que seria contar a Simplício que ele faltara a um dia inteiro de horários e rotinas. O médico aumentou sua preocupação ao advertir que qualquer emoção mais forte poderia provocar um novo ataque ou mesmo algo pior. Durante alguns dias, depois que Simplício acordou, foi possível escamotear a verdade, às custas de incríveis truques. A mulher reordenou os calendários que havia em casa; tossia alto quando o locutor da televisão se referia a datas e horas; mandava os filhos para o colégio em dias feriados e fins-desemana; e vigiava todo e qualquer indicador que pudesse revelar ao marido o tempo certo das coisas. Seu chefe na Firma chegou mesmo a ordenar que ele fizesse um serviço extraordinário, doméstico, para que não percebesse que o dia que Simplício julgava ser uma sexta-feira era, de fato, um sábado. Os recursos e a disposição para enganá-lo, porém, foram escasseando, ao mesmo tempo em que os diversos personaO dia que não foi contado 21
gens daquelas farsas se desgastavam mais e mais com tanta vigilância, tanta mentira e tantos sobressaltos. Quando se convenceu, enfim, de que não seria capaz de suportar mais a situação, a mulher resolveu que seria preferível contar-lhe tudo. Quem sabe, com jeito, escolhendo o tom e a ocasião favorável?
III Esperou que ele voltasse com as crianças da escola e pediu que viesse à sala de jantar, onde os aguardava o médico que havia tratado do caso. Pouco a pouco, em meio a muitos termos e explicações técnicas, o médico relatou o ocorrido: – A catalepsia, meu amigo, foi durante um bom tempo um desafio à medicina, o quadro é bastante semelhante ao da morte, o indivíduo fica totalmente inerte e... Sinplício já não ouvia mais nada. Menos um dia! Então não soubera disso? Por que não lhe haviam dito nada em casa até hoje? Por que tinham escondido tudo dele na Firma? Acaso não tinha uma família? E o chefe não falava sempre que a Firma era um segundo lar? Como puderam ter permanecido quietos, enquanto um fato tão extraordinário acontecia? Será que não percebiam que isso mudava tudo? Todo o calendário? Todo o cronograma? Simplício tentava – e não podia – moer a incrível mágoa que o invadiu instantaneamente ao saber que tinha tido menos um dia na vida e não desfrutara do privilégio de cumprir vinte e quatro horas tão inéditas. Foi muito duro reconstruir a vida a partir daquele dia, que mais parecia um empecilho calculado no tempo da existência de Simplício de Tal e Qual. Ele, contudo, conseguiu refazer suas cronometragens: com serões, expedientes extraordinários, utilizando para outros fins o tempo reservado para o descanso.
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Restou, porém, em seu peito uma dor indefinida. Nunca mais voltou a confiar em calendários e relógios. Verificava pessoalmente o tempo oficial. Conferia tudo de meia em meia hora. Os dias jamais voltaram a ser os mesmos para ele. Uma confusão de mostradores e dígitos instalou-se em rotações na sua cabeça, impedindo que Simplício de Tal e Qual resistisse por muito tempo ao esforço de recuperar o tempo perdido.
IV Um ano, três meses, dois dias, cinco horas e quarenta e sete minutos depois do dia do ocorrido, Simplício de Tal e Qual finalmente cedeu ao cansaço e perdeu-se no tempo. O funcionário que abria as sepulturas se atrasou. O enterro – marcado para as 14:30 – só se consumou às 15:02. O Torquato achou que foi melhor assim. Desde o dia do ocorrido, Simplício de Tal e Qual – o único que sempre ria pontualmente de suas piadas – jamais tornou a ser o homem que todos calculavam que ele fosse. E ninguém pôde mais contar com ele.
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Panapaná I
S
ua reputação, construída com regularidade, como resultado de várias inserções nos mais diversos grupos sociais, merecida e indiscutível, tinha como marca soberana a falta de imaginação que marcava todos os seus atos. Jamais se ouvira sair dos seus lábios uma ideia criativa ou mesmo qualquer proposta com algum traço de originalidade. Seus gestos eram totalmente previsíveis. Suas escolhas, as mais óbvias. Suas preferências, as mais disponíveis para consumo imediato. Nunca se pôde saber se, escondido em um canto remoto da sua intimidade, alimentava alguma espécie de sonho. O que revelava por conta própria eram palavras e passos de uma pessoa imersa no lugar comum e na banalidade. Uma pessoa mergulhada em sua opacidade. Apenas uma característica do seu repertório destoava do conjunto insosso que apresentava ao mundo. Não se sabe por que nem com que propósito, conhecia praticamente todos os substantivos coletivos que costumam ser ensinados nas escolas, ainda nas primeiras séries. Aquelas palavras estranhas e inúteis que nos fazem decorar, por meio de listas de colunas emparelhadas, sendo uma da coisa coletivizada e a outra do substantivo correspondente: de abelhas – enxame; de lobos – alcateia; de cebolas – réstia. Raramente empregados na vida real, servem tais substantivos para reafirmar a autoridade das escolas e dos professores, que – já conhecendo previamente as listas e as respostas – não erram nunca, embora nos induzam a muitos erros na 24 Marcelo Corrêa e Castro