As Muitas Ă fricas
Copyright © Michela Rosa Di Candia, Tereza Marques de Oliveira Lima (Orgs.), 2011 Editor: João Baptista Pinto Capa: Andréia Bessa Projeto Gráfico / Diagramação: Francisco Macedo Revisão: Michela Rosa Di Candia, Tereza Marques de Oliveira Lima CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ M921 As muitas Áfricas: tradição, memória e resistência / Michela Rosa Di Candia, Tereza Marques de Oliveira Lima, organizadoras. – Rio de Janeiro: Letra Capital, 2011. 176p.; 21cm Apêndice Inclui bibliografia ISBN 978-85-7785-098-3 1. Literatura africana - História e crítica. 2. África - Civilização. 3. Diáspora africana. 4. Tradição oral - África. I. Di Candia, Michela Rosa, 1975-. II. Lima, Tereza Marques de Oliveira, 1948-. 11-2773.
CDD: 809.896 CDU: 82.09(6)
16.05.11
19.05.11
Letra Capital Editora Tels: 21. 2224-7071 | 2215-3781 www.letracapital.com.br
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Michela Rosa Di Candia Tereza Marques de Oliveira Lima Organizadoras
As
Muitas
Áfricas Tradição, Memória e Resistência
SUMÁRIO
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Prefácio: Apresentando as muitas Áfricas Michela Rosa Di Candia Tereza Marques de Oliveira Lima Angola: o texto escrito como resistência e persistência cultural Orquídea Ribeiro
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Investigando o valor do quilt em “Everyday use” de Alice Walker Michela Rosa Di Candia O conceito de lar no romance Zenzele: A letter for my daughter de Nozipo Maraire Marcel Khombe Mangwanda
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Terreiros de candomblé: territórios naturais de manutenção das tradições de matrizes africanas Anselmo Santos - Minatojy Taata Dya Nkisi Transgressão e busca de identidade na Louisiana Creole de Alice Dunbar-Nelson Tereza Marques de Oliveira Lima
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Uma breve reflexão sobre a imagem da mulher negra em Venus de Suzan-Lori Parks Cléa Fernandes Ramos Valle
As linhas divisórias da crítica literária na África subsaariana de língua inglesa Marília Fátima Bandeira
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Vidas em transformação: o assombro da modernidade em The river between e Secret lives Ângela Lamas Rodrigues Paisagem onírica versus território em Maps Divanize Carbonieri
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De tranças, tramas e outras urdiduras: contos infantis nada inocentes Denise Pini Rosalem da Fonseca ANEXO The concept of home in Nozipo Maraire’s Zenzele: A letter for my daughter Marcel Khombe Mangwanda
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Colaboradores
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Prefácio Apresentando as muitas Áfricas Michela Rosa Di Candia Tereza Marques de Oliveira Lima
O
presente livro reúne ensaios de pesquisadores brasileiros e estrangeiros que estudam as muitas Áfricas povoadas por etnias, costumes, rituais, religiões e dialetos distintos. Nesse contexto, sabemos que escritores africanos e afrodescendentes são determinados pelas histórias de suas sociedades e suas experiências sociais e que os valores culturais são responsáveis pela organização e formação dos sujeitos que passam a ver o mundo sob um prisma específico. O lugar de onde cada escritor fala, seu lócus de enunciação, revela as maneiras pelas quais são posicionados ou se posicionam em suas comunidades. Logo, não há como se pensar em uma visão monolítica dos africanos na África e na diáspora africana. Povos marginalizados, subjugados e excluídos às margens das sociedades manifestam-se por meio da escrita literária, sem perder de vista, muito pelo contrário, a sua rica tradição oral. O passado, nesse sentido, é re-visto por aqueles que outrora foram considerados diferentes, exóticos, estranhos, ou até mesmo uma ameaça ao dominador/colonizador. A dualidade existente entre colonizador e colonizado, dominador e dominado, Ocidente e Oriente contribui para a manutenção da visão errônea da superioridade do opressor, que tende a desconsiderar o outro como um sujeito possuidor de história, cultura e religião. 7
PREFÁCIO – APRESENTANDO AS MUITAS ÁFRICAS
A veracidade do dito discurso histórico é também re-significada por aqueles que vivenciam a experiência do deslocamento geográfico. As marcas identitárias do local de origem nunca serão completamente apagadas. Em um novo local, novas significações serão estabelecidas. Entretanto, o trânsito por distintas culturas e realidades mostra a dificuldade de pertencimento a um ou a outro lugar. Enquanto muitos tendem a apagar os vínculos reveladores da origem como a própria língua, cor da pele, hábitos, religião, ou até mesmo modos de se vestir, outros buscam preservar a memória cultural de um povo por meio do resgate da tradição e da manutenção dos valores locais, regionais, étnicos e culturais. A resistência se dá no momento em que o sujeito, mesmo influenciado pela cultura do outro, é capaz de sustentar seus pilares norteadores, evitando, assim, o apagamento da cultura de origem e a decorrente assimilação da cultura do opressor. Assim, As muitas Áfricas: tradição, memória e resistência surgiu da necessidade que nós, pesquisadores, temos no sentido de instigar a re-visão das noções tidas como verdadeiras pelos “cânones”. É imprescindível que o(a) leitor(a) repense sobre os valores comumente divulgados sobre africanos e afrodescendentes. Preceitos imutáveis, calcados em construções binárias e polarizadas, devem ser interrogados. Se, por um lado, o livro aponta para a questão da resistência por meio da valorização da oralidade, da orature, do uso da palavra e da religião, por outro, o retorno à África também revela a reificação do negro e as especulações e construções racistas e sexistas. No primeiro ensaio, “Angola: o texto escrito como resistência e persistência cultural”, Orquídea Ribeiro promove uma viagem pela “África” em português, abordando obras de dois autores angolanos, Luandino Vieira e Uanhenga Xitu. Ao utilizarem a língua portuguesa, tais escritores criam uma estratégia de resistência ao colonialismo, à globalização, à perda da tradição cultural na contemporaneidade. Neste artigo, a autora considera, como ponto de partida, reflexões mais teóricas propostas pelo escritor moçambicano Mia Couto sobre a questão da língua para demonstrar como Luandino Vieira e Uanhenga Xitu recorrem às suas tradições, recuperando ou preenchendo o 8
MICHELA ROSA DI CANDIA E TEREZA MARQUES DE OLIVEIRA LIMA
espaço vazio deixado pelos hiatos culturais provocados por distúrbios internos, assim preservando e transmitindo tradições culturais. Em outro contexto, porém ainda focalizando a manutenção da tradição cultural, Michela Rosa Di Candia em “Investigando o valor do quilt em ‘Everyday use’ de Alice Walker” discorre sobre a importância dos quilts como fonte de preservação da(s) história(s) das comunidades afro-americanas nos Estados Unidos. Ao realizar um quilt, por meio da junção de pedaços de roupas utilizadas por membros de uma família específica, a tradição cultural é mantida. Ao se deslocar para o Norte dos Estados Unidos, a personagem Dee passa a enxergar e classificar sua cultura de origem a partir de novos parâmetros. As tensões provocadas pela questão de não/pertencimento às duas culturas permitem tanto o questionamento quanto a aceitação da noção reificadora da arte como mercadoria ou elemento decorativo. Por fim, o artigo aborda as distintas significações atribuídas aos quilts, promovendo um debate acerca do valor da arte e da cultura negra. O trânsito entre a cultura de origem e a cultura adotada em uma nova localidade é também discutido por Marcel Khombe Mangwanda em “O conceito de lar no romance Zenzele: A letter for my daughter de Nozipo Maraire”. Esse romance é escrito como uma carta de uma mãe zimbabuense para sua filha, uma estudante nos Estados Unidos. Ao examinar as diferentes conexões entre as versões sobre o lar (espaço doméstico, ancestral e cultural), o conflito interno vivenciado pela mãe é explicitado a partir do momento em que ela almeja preservar sua própria identidade africana e, principalmente, a de sua filha que foi estudar nos Estados Unidos, residindo, portanto, em uma cultura globalizada, ameaçadora das formas tradicionais dos povos africanos. É no entremeio desses espaços demarcados de maneira aparentemente binária entre África e Ocidente que Nozipo Maraire constrói o lar como uma zona de contato, onde a cultura ocidental e a cultura africana se encontram, provocando um choque e luta entre ambas. Este ensaio encontra-se na sua versão original em inglês no Anexo. O encontro de duas culturas também se faz presente no ensaio de Anselmo Santos intitulado “Terreiros de candomblé: territórios 9
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naturais de manutenção das tradições de matrizes africanas”. Ao deixarem o solo de origem, africanos escravizados carregavam consigo histórias de vida, cultura e religiosidade. Diante desse panorama, os Terreiros de Candomblé ganham extrema relevância, pois são considerados fonte de resistência do povo oprimido e também fonte inesgotável de sabedoria ancestral. Ao traçar o percurso e as dificuldades para a formação dos Terreiros de Candomblé, o autor revela a necessidade do fortalecimento da memória coletiva de um povo e a luta para se extinguir o preconceito em território brasileiro. A questão do preconceito e, principalmente, do racismo é marcante no artigo “Transgressão e busca de identidade na Louisiana Creole de Alice Dunbar-Nelson” de Tereza Marques de Oliveira Lima que analisa o conto “The stones of the village” (1909). O artigo discute a ação do passing ou the color line, o ato de um negro passar por branco, apagando, assim, sua herança africana, tornando-a invisível. Além disso, há nessa ação o pressuposto de que, ao transpor essa barreira, o sujeito foge de uma opressão de um grupo cultural e social para angariar recompensas materiais. Nesse conto, Dunbar-Nelson apresenta uma personagem Creole de Cor, uma pessoa nascida na Louisiana com uma ascendência negra, possuidora de uma pele de coloração mais branca que a da maioria dos negros, o que gera sua exclusão, tanto por parte dos próprios negros, como por parte dos brancos. A questão do racismo também é objeto do ensaio “Uma breve reflexão sobre a imagem da mulher negra em Venus de Suzan-Lori Parks” de Cléa Fernandes Ramos Valle que investiga a produção crítica e teatral afro-americana. Segundo a autora, o gênero feminino sempre ocupou papel secundário no que diz respeito à criação do texto teatral e a performance no palco. A partir da entrada da mulher na área teatral, essa imagem começa a tomar uma nova forma. No início, somente grupos constituídos por mulheres brancas lutavam por essa nova forma de expressão. Diante desse contexto, ao se sentirem marginalizadas, as mulheres negras se organizaram no intuito de construírem um teatro que expressasse seus anseios e sua imagem. A peça Venus resgata a imagem da africana Saartjie Baartman trazida à 10
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Europa no século XIX e exposta ao público de forma polêmica. É essa imagem que o artigo discute. Marília Fátima Bandeira em “As linhas divisórias da crítica literária na África subsaariana de língua inglesa” empreende um passeio pela literatura sul-africana, mostrando que o continente africano já produziu quatro prêmios Nobel de literatura. O artigo propõe um panorama teórico/crítico acerca das distintas produções literárias das últimas décadas. Nesse período uma crítica literária autóctone surgiu, promovendo a descolonização de mentes e textos, desvelando as ricas raízes e tradições desse continente. Além disso, o texto reavalia a crítica nativa sobre a produção local focalizando duas das obras mais controversas do escritor John Maxwell Coetzee, ganhador do Nobel de 2003: Waiting for the barbarians e Disgrace. Ademais, a autora afirma que o valor estético de uma obra literária não está relacionado nem ao local de origem do escritor e nem à cor de sua pele. Em seu texto “Vidas em transformação: o assombro da modernidade em The river between e Secret lives”, Ângela Lamas Rodrigues discute os impactos do colonialismo em sociedades africanas no romance The river between e na coleção de contos Secret lives do escritor queniano Ngũgĩ wa Thiong’o. No romance, os valores dos povos de Kameno e Makuyu são interrogados a partir das questões da expropriação das terras dos nativos e da inserção da religião e saberes do colonizador. Já Secret lives aborda dramas pessoais resultantes do choque de culturas entre os povos quenianos e o colonizador. Analisando as relações entre o colonialismo britânico no Quênia e as personagens criadas pelo autor, a autora estuda o choque entre a modernidade e a tradição queniana abordando os temas das contradições individuais e sociais e da construção de novas identidades. Em “Paisagem onírica versus território em Maps”, Divanize Carbonieri concentra-se na análise do romance Maps (1986) do escritor somali Nuruddin Farah. Nessa obra, o herói só encontra mobilidade no espaço onírico, povoado por reminiscências e sonhos. O ensaio demonstra que esse espaço é constituído, sobretudo, pela oposição entre paisagem onírica e território. Segundo a autora, há uma 11
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combinação entre fatores psíquicos e políticos na elaboração do espaço onírico, espaço construído tendo por base o histórico de colonização e independência da Somália, sua dividida e desarticulada condição contemporânea, e o período de regime ditatorial que ocupou grande parte da vida independente da nação. Por último, Denise Pini Rosalem da Fonseca em “De tranças, tramas e outras urdiduras: contos infantis nada inocentes” explora as sincronias existentes entre contos infantis de escritores africanos e afrodescendentes na diáspora. O corpus escolhido compreende quatro livros publicados no Brasil na primeira década do século XXI, escritos por autoras oriundas de países distintos: uma franco-senegalesa (As tranças de Bintou); uma norte-americana (Os sete novelos. Um conto de Kwanzaa); uma angolana (A árvore do gingongo); e uma brasileira (Agbalá, um lugar continente). Segundo a autora do ensaio, a opção pelo conto infantil como veículo de re-apresentação e re-significação de valores culturais africanos constitui uma estratégia política póscolonialista para a construção de identidades étnico-raciais positivas, na África e na diáspora. No seu ensaio ela discute a ancestralidade como principal fonte de referência de pertença; o respeito como valor ético primordial; a re-sacralização da vida cotidiana; e a estética como forma de afirmação identitária. Para finalizar, queremos ratificar que o nosso objetivo na elaboração deste livro foi o de produzir em língua portuguesa uma obra que colaborasse para uma re-leitura das culturas africanas em África e na diáspora. Esperamos que, a partir da sua leitura, cada leitor(a) atravesse as fronteiras de sua nação ou grupo étnico e estabeleça um diálogo entre diferentes sujeitos e culturas. Ao localizar a si mesmo(a) na História, ele/ela construirá seus próprios códigos culturais e políticos.
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Angola: o texto escrito como resistência e persistência cultural Orquídea Ribeiro “A identidade não existe, é uma procura infinita.” “A palavra descobre-se, não se inventa.” Mia Couto
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língua é o instrumento identitário dos povos: ao ser manipulada criativamente permite a expressão da cultura a que dá voz, contribuindo para a preservação dessa mesma cultura. Em países como Angola e Moçambique, com uma heterogeneidade étnica, cultural e linguística, a língua portuguesa padrão, adaptada ao contexto do país, pode ser vista como elemento aglutinador e legitimador da identidade cultural e o meio por excelência para a preservação da memória cultural dos povos e consolidação dos diferentes universos culturais. A questão da língua europeia em África é assunto largamente tratado na obra de Chantal Zabus (2007), que refere que o escritor africano acaba por ser colocado numa situação em que escreve numa língua que quer subverter e inserir no projeto mais amplo da descolonização e, por isso, engendra estratégias para tornar sua a língua europeia. Para essa autora, a palavra “indigenização” explica bem as tentativas dos autores africanos para textualizar diferenças linguísticas e transportar conceitos, padrões do pensamento africano e características linguísticas usando a língua do ex-colonizador. 13
ANGOLA: O TEXTO ESCRITO COMO RESISTÊNCIA E PERSISTÊNCIA CULTURAL
Quando analisamos as obras do escritor moçambicano Mia Couto, somos confrontados com a capacidade que este escritor tem para inventar, recriar palavras, ideias ou provérbios que sugerem um contexto e que permitem múltiplas leituras para as suas obras. Mia Couto contribui para a preservação da alma de um povo ao contar/ narrar as estórias para que essas continuem a ser lidas e ouvidas a um nível global, atravessando fronteiras culturais e linguísticas. Moçambique é um país culturalmente e socialmente dividido em pequenos “países” e Mia Couto é prova da mestiçagem cultural: O meu país tem países diversos dentro, profundamente divididos entre universos culturais e sociais variados. Eu mesmo sou a prova desse cruzar de mundos e de tempos. (...) E eu cresci nesse ambiente de mestiçagem, escutando os velhos contadores de histórias. Eles me traziam o encantamento de um momento sagrado. (Couto: 2009, 123)
A atitude de Mia Couto em relação à escrita é analisada por Phillip Rothwell, que cita a estória “O cabrito que venceu o Boeing”, como um texto construído para interagir com o leitor que não fixa nada, não testemunha nenhuma verdade e autoriza interpretações múltiplas. O mesmo autor relembra que o estilo de Mia Couto tem sido descrito como renovador, recriador e revitalizador da língua, visto que Couto utiliza a oralidade como um marcador da identidade nacional. (Rothwell: 2004, 53, 55) No livro E se Obama fosse africano e outras interinvenções (2009), Mia Couto refere a perda de identidade das produções culturais moçambicanas que “se está convertendo na reprodução macaqueada da cultura dos outros”. Essa erosão das culturas moçambicanas é, para o autor, mais preocupante do que a “erosão dos solos, da desflorestação”. O grito de alerta de Mia Couto vai mais além e relaciona a cultura com os efeitos da globalização, com a modernidade e com a questão da identidade:
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A secundarização das línguas moçambicanas (incluindo da língua portuguesa) e a ideia de que só temos identidade naquilo que é folclórico são modos de nos soprarem ao ouvido a seguinte mensagem: só somos modernos se formos americanos. (...) Mas a modernidade não é uma porta apenas feita pelos outros. Nós somos também carpinteiros dessa construção e só nos interessa entrar numa modernidade de que sejamos também construtores. (...) Moçambique não precisa apenas de caminhar. Necessita de descobrir o seu próprio caminho num tempo enevoado e num mundo sem rumo. (Couto: 2009, 45-47)
Ora, é com o intuito de recuperar duma amnésia cultural involuntária, provocada pela presença colonial, que autores como os angolanos Uanhenga Xitu e Luandino Vieira e o moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa, entre outros, escrevem tendo como objetivo a partilha, mas também a consolidação dos universos culturais a que pertencem. Esses autores convidam o leitor ou a audiência a refletir sobre a cultura que se transmite através de fontes orais e fontes escritas. A língua portuguesa é moldada à realidade local para transmitir a angolanidade, a moçambicanidade, descolonizando o legado a ela associado: a língua do opressor faz parte do processo de libertação e é um instrumento decisivo para a construção de nações onde as línguas locais são muitas e ainda enfrentam problemas de fixação de grafias, o que dificulta a sua utilização escrita. A língua europeia, nesse contexto, é também a língua dos moçambicanos, angolanos, cabo-verdianos, da África que fala e escreve em português, mas uma língua adaptada, reinventada para servir os contextos específicos; a língua foi conquistada aos colonizadores e é agora instrumento de divulgação das culturas locais, pois permite alcançar um público mais amplo do que se o mesmo texto fosse escrito numa das muitas línguas vernáculas de Moçambique ou Angola. A inclusão de vocábulos de línguas locais, de provérbios, de expressões ou outros elementos da tradição oral nos textos dos es15
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critores contemporâneos visa restituir a mundividência tradicional, transmitir e dar a conhecer aos leitores, locais e não só, uma recriação da realidade cultural do país do autor. Os angolanos Uanhenga Xitu e Luandino Vieira fazem das suas obras homenagens à criatividade dos falantes locais: reinventam a língua com uma linguagem mestiça, que integra expressões locais, mas também a oralização de vocábulos. A questão fundamental que atravessa as obras desses escritores e de muitos outros é que a memória cultural tem que ser recuperada para que possa existir um futuro equilibrado. A produção literária, a escrita, era uma forma de resistência à colonização física e intelectual no período antes da independência. A interpenetração da língua portuguesa com as falas dos povos locais foi a forma encontrada para transmitir valores e culturas locais usando uma língua “emprestada”. A língua do colonizador, o legado deixado após a independência, não se tornou uma barreira para impedir ou limitar o desenvolvimento da produção literária das nações africanas de língua oficial portuguesa, pois, quando utilizada em conjunto com um sabor local, veicula culturas e valores locais, como se pode verificar na obra dos angolanos Luandino Vieira e Uanhenga Xitu ou do moçambicano Mia Couto, por exemplo. Durante a época colonial, a cultura africana era geralmente incompreendida, mal representada e pior interpretada. Num processo para reconstruir e preservar a memória cultural tradicional, escritores angolanos como Uanhenga Xitu recorrem à tradição oral e reinventam a língua portuguesa para mais fielmente descrever os universos culturais e sociais da nação. E, se é verdade que a oratura reflete a cultura e os valores culturais de um povo e que o texto oral pressupõe performance, que envolve o texto mas também o contador e a interação entre o contador e o público, gestos, linguagem corporal, entre muitos outros recursos, o texto escrito tem que sobreviver “sozinho” porque a performance não se passa para o papel. A obra de Uanhenga Xitu situa-se entre duas culturas, a tradicional e a moderna, e traços dessas duas manifestações culturais são visíveis no diálogo entre os espaços rurais e os urbanos presentes nos 16
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seus textos. O escritor descreve as paisagens e cenários ricos das áreas rurais, trazendo para o texto os problemas que surgem do contacto intercultural e onde a cultura de origem, sempre dinâmica, pode ser ameaçada ou transformada através da transculturação. Na Introdução a Maka na sanzala (1979), Xitu explica que o seu trabalho se baseia nas técnicas ou práticas da tradição: “Quando me lembro de estampar uma história ou um conto no papel, o sentimento de que me rodeio é convencer-me de que estou diante de ouvintes que aguardam com entusiasmo o momento de me escutar e de me julgar.” (9) No parágrafo seguinte, Xitu mostra a preocupação em recriar o ambiente em que o conto será narrado: “Então arranjo uma posição cômoda para melhor narrar a história”. (9) Na sequência, outra tentativa para recriar a atmosfera e as condições da oratura são apresentadas na afirmação: “E, de seguida, falo-lhes na linguagem mais chã, que é a minha: pobre de adjetivos, de vocabulário, de frases e palavras pomposas, e sem aquele rigor dos sinais de pontuação, porque tudo isso substituo com gestos e partes só minhas.” (9) Xitu usa técnicas linguísticas inovadoras para transmitir o contexto, a performance cultural através da palavra escrita, compensando a perda da performance presente na oratura. A versatilidade vocabular de “‘Mestre’ Tamoda” (1977) analisa as tensões linguísticas e culturais e as ambiguidades que surgem com o processo de transculturação. Misturando a língua portuguesa e o quimbundo, Xitu explora o processo de influência e assimilação dos falantes de quimbundo e as consequências cômicas das ambiguidades das palavras em quimbundo e português. Em “‘Mestre’ Tamoda”, Xitu conta a história de um homem que era mestre da palavra por ter decorado palavras de Ndunda (termo quimbundo para livro gordo ou de consulta) sem ter conhecimento real dos significados das palavras. Tamoda é um jovem que migra para Luanda, a capital de Angola, para trabalhar. Aprende a falar, ler e escrever em português. Enquanto trabalha para um médico, passa o tempo a copiar o vocabulário de um dicionário para melhorar a sua educação. Ao regressar à aldeia natal, leva com ele alguns livros escri17
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tos em português e, como a população só fala quimbundo, ele é desde logo considerado um especialista em língua portuguesa. Os habitantes da aldeia ficam impressionados com o conhecimento de Tamoda e as crianças seguem-no, ávidos de informação e novos vocábulos. As crianças aprendem as novas palavras rapidamente, mas quando as usam em contexto inadequado ou inventam novas palavras, os pais e a professora da aldeia protestam contra Tamoda, as suas capacidades verbais e os seus modos de cidade. Como era de se esperar, Tamoda causa confusão, visto que não sabia como usar as palavras que tinha memorizado ou não as tinha memorizado corretamente. O caso da invenção da palavra “muchachala”, por exemplo, provoca riso no leitor-ouvinte-espectador. A palavra “muchachala” é uma palavra híbrida de espanhol e português, temperada por um aroma angolano. As crianças, motivadas pelo mestre, que para elas é muito mais interessante e comunicativo do que a professora, talvez porque se apresenta mais próximo da experiência da tradição oral, começam a usar e a espalhar o novo vocábulo na comunidade. Mas a palavra relembra “muxaxala,” um termo quimbundo para uma parte baixa do corpo. Os pais indignados e a professora queixam-se às autoridades. Tamoda espelha as tensões culturais causadas pelos novos modos (os da cidade) a penetrar nas culturas tradicionais e é o exemplo dum africano que assimilou as políticas coloniais portuguesas – falar português “correto” era um pré-requisito para ser aceito pela sociedade (branca). Os habitantes da aldeia, humildes e simples, confundem-se com os modos aculturados e a cultura tradicional resiste ao encontro ou confronto com a cultura “invasora”. Na escrita de Xitu o texto literário se junta ao texto oral, numa harmonia perfeita e cheia de sentido de humor. A língua portuguesa híbrida, angolanizada, é uma herança contraditória do colonialismo. Como explica o autor, E bilinguismo, também utilizo muito, e quimbundualizar algumas palavras, aportuguesar algumas palavras, isto é o 18
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meu forte. A minha escrita foi muito influenciada quer pelos acompanhantes e quer pelo meu estar dentro de uma sociedade. Nasci na sanzala, vim para o meio urbano e depois comecei a subir, estudando, lendo, mas nunca esqueci a raiz. Não esqueci, não esqueço. (Xitu: s/d, s/p)
Para Xitu, narrar a nação não é tanto acerca de reivindicar um terreno através da invenção de formas híbridas de linguagem, mas mais sobre escrever acerca das identidades híbridas cultivadas em narrativas que imitam e subvertem o discurso colonial. (Peres: 1997, 49) As suas narrativas apresentam os espaços rurais dos arredores de Luanda como áreas de confrontos linguísticos e culturais entre a tradição e as práticas coloniais, áreas rurais e contextos urbanos, com as zonas rurais identificadas como as verdadeiras guardiãs das práticas culturais reais de Angola. Por sua vez, Luandino Vieira começou a usar a escrita como arma durante o período colonial. Grande parte da sua escrita centra-se nos musseques de Luanda e, através da escrita, Vieira mostra que as diferenças culturais entre colonizado e colonizador existiam e que a identidade cultural do povo angolano não foi apagada pela colonização, sendo visível em todos os aspectos da vida quotidiana. Os musseques descritos nas narrativas de Vieira são zonas de fronteira entre as paisagens culturais rurais e urbanas. O esforço desse escritor para incorporar características da oratura tradicional nas suas narrativas permitiram-lhe criar uma literatura angolana com uma cultura local autêntica. A qualidade oral da escrita de Luandino Vieira transforma as suas narrativas em textos que podem facilmente ser lidos ou contados aos leitores/ouvintes africanos. A recriação ou reinvenção da língua portuguesa nas obras de Luandino Vieira apresenta-se como uma forma de manifestar uma identidade cultural própria de Angola, em especial dos musseques da região de Luanda. O texto literário, escrito em português angolanizado, é utilizado para afirmar a diferença cultural angolana em face de outras culturas africanas de língua portuguesa, mas é também uma 19
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estratégia de resistência por parte do autor que, ao introduzir uma língua local, o quimbundo, na língua portuguesa, está a marcar a diferença face ao colonizador e à sua língua. Incorporando nas suas obras as estruturas narrativas da tradição oral, assumindo o papel de contador de histórias profissional, Luandino mostra o texto oral em conflito permanente com a palavra escrita ao introduzir elementos da oratura na escrita, numa manobra que intenta transmitir a autenticidade africana ao texto. A inovação ou recriação linguística na sua escrita está na simbiose da língua europeia, o português, com a língua local, quimbundo (falado em Luanda e nos arredores), criando uma mistura híbrida que não pretende ser a língua portuguesa falada em Luanda, mas antes um recurso para reduzir o fosso entre a escrita e a voz dos habitantes do musseque, narrando as suas experiências, recriando poeticamente as suas realidades linguísticas e culturais. Luandino introduz palavras em quimbundo no texto em português, adapta palavras quimbundo ao português, inventa palavras híbridas e escreve parágrafos inteiros em quimbundo, usando recursos diferentes para integrar inovações e derivações de palavras – fubeiro, mussequeiro, quimbandices, xinguiladores. Ao contrário de Xitu, que dá a tradução e até explicações para as palavras e expressões em quimbundo usadas no texto, Luandino não traduz as palavras em quimbundo que aparecem nas suas obras – estas aparecem agora num glossário no fim do livro. A ideia é aproximar a palavra escrita da língua oral, falada nos musseques, transmitindo assim as peculiaridades culturais e linguísticas da capital e dos seus habitantes. Para Luandino, a língua popular falada em Luanda é também uma personagem importante nas suas obras, o que o leva a dizer que evitar a norma da língua portuguesa é uma forma de afirmar a diferença cultural que caracteriza o território e o povo: Mesmo na língua portuguesa que era a língua do colonizador, eu podia contar uma estória em português, na língua do colonizador, que qualquer colonizador podia ler, perceber, e ao mesmo tempo, lia e não percebia. E que essa 20
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pequena diferença cultural, legitimava minha reivindicação da autonomia. Temos uma diferença cultural que é diferença política. (Vieira: 2007, 288)
As diferenças culturais transmitidas nos textos de Luandino são esteticamente originais – ele reinventa o código linguístico para descrever a realidade angolana. Para que os seus textos tenham o significado pretendido, a sua única opção foi criar uma língua com a qual o povo pudesse se relacionar, que refletisse a sua identidade. Este “domesticar” da língua é referido por Gloria Anzaldúa na obra Borderlands/La Frontera como descrevendo a condição dos “chicanos”1 nos Estados Unidos da América e que remete para a situação dos angolanos no seu próprio território, apesar da diferença significativa – os angolanos estão no seu país, um país que foi dominado por um poder estrangeiro que impôs aos habitantes locais uma língua europeia. No entanto, Anzaldúa refere a necessidade que os chicanos sentem em criar uma língua que possa estabelecer uma ligação com a sua identidade, capaz de comunicar as realidades e os valores verdadeiros da comunidade, uma língua “bifurcada”, uma variação de duas línguas. (Anzaldúa: 1999, 77) Foi essa necessidade em contexto angolano a que Luandino respondeu, criando, inventando uma “entre-língua” com a qual ele e os seus personagens pudessem se identificar. As obras de Luandino recriam o universo cultural da nação e transformam a literatura num instrumento que transmite a resistência cultural e política do povo, mas nunca esquecendo a noção de identidade cultural. Os seus textos têm espelhado de perto a história dolorosa da colonização e da resistência em Angola mostrando como ele “mina” a língua, difundindo a cultura no texto, tanto no vocabulário como no ritmo, com a sabedoria oral, fazendo do português uma língua capaz de assumir uma experiência particular, uma experiência africana transmitida em uma língua europeia. Como afirmou numa entrevista concedida em 2007, no Brasil, “(…) sempre privilegio a 1
“Chicano” é o termo usado para se referir os mexicanos imigrados nos EUA. 21
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oralidade, o ritmo da palavra. Sobretudo quando estou a escrever como se fosse para ser lido em voz alta”. (Vieira: 2007, 281-282) Um texto profundamente marcado pela oratura é a “Estória da galinha e do ovo”, a terceira estória da obra Luuanda (2004), que mostra a falta de capacidade de Bebeca, com todo os seus conhecimentos de mais-velha, de mediar e resolver a contenda da galinha e do ovo entre duas vizinhas.2 O espaço físico da estória é o musseque Sambizanga em Luanda e a resolução do conflito leva à opinião e intervenção de diversos personagens tipificados, de diferentes grupos sociais e profissionais da Angola colonial – igreja, proprietários e autoridades. No fim, o grupo, salvo de um conflito mais sério pelas crianças, recupera o sentido de unidade e comunidade; o conflito interno termina e a identidade comunitária, simbolizada pelo ovo, é protegida e sobrevive ao incidente. “Estórias” designam narrativas de cunho tradicional e popular cujo modo de narrar espontâneo remete para a tradição oral africana e para as histórias contadas à volta da fogueira da comunidade. Phyllis Peres refere que “estória” é uma forma narrativa que incorpora técnicas orais de contar histórias do missosso quimbundo. Em Luandino, a estória escrita é a textualização da estória oral (Peres: 1997, 22) e, por isso, as suas estórias refletem a vida nos musseques em toda a sua essência: sistema racial, vida quotidiana, organização social, trabalho, folclore, crenças e tradições orais, mas também as narrativas orais dos contadores de estórias tradicionais: a expressividade, a linguagem performativa, a linguagem idiomática, o discurso coloquial e a descrição do estado de espírito das personagens que remetem para o modo ancestral da transmissão oral. As inovações linguísticas de Luandino, além de serem originais e de produzirem um efeito poético, são fáceis de identificar com o 2
Luandino optou por usar o termo “estória” porque este traduz mais fielmente a palavra em quimbundo “missosso” que significa “forma de narrar da oralidade”, história moral ou alegoria, fábula narrativa ou conto. Ver REISMAN, Phyllis. José Luandino Vieira and the ‘new’ Angolan fiction. Luso-Brazilian Review, 24, 1 (1987): 73 (69-78), apud LEITE, Ana Mafalda. Angola. In: CHABAL, Patrick et al. The post-colonial literature of lusophone Africa. London: Hurst & Company, 1996, p. 135.
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falar do povo; o aportuguesamento de vocábulos quimbundo como “bungulando” e “xacateando”, a mistura da estrutura do quimbundo com a do português, ou o uso de modos de dizer/expressões com marcas inconfundíveis de africanidade como “Tinha mais de dois meses a chuva não caía”, “A chuva saiu duas vezes, essa manhã” (Vieira: 2004, 15) e “Puseram-me logo uma chapada” (Vieira: 2004, 48) são disso exemplos ilustrativos. A ruptura3 ou alteração na escrita de Luandino Vieira a partir de Luuanda é considerada por Salvato Trigo como sendo ideológica e linguística: “Ideológica, porque o seu texto inicia verdadeiramente a escrita luandina, tornando-se intervencionista (…) e linguística, porque o seu texto lança as bases para uma profunda africanização da linguagem literária de raiz portuguesa. (Trigo: 1981, 389-390) Num estudo feito sobre Nós, os do Makulusu (1974)4, Russell G. Hamilton enfatiza a importância do uso que Vieira faz da língua quimbundo com o português no seu trabalho, visto que “a língua africana é a expressão simbólica de uma realidade negra omnipresente que jamais poderá ser negada em Angola”. (Hamilton apud Laban: 1980, 181) Não por acaso Nós, os do Makulusu começa com uma expressão dum conto tradicional quimbundo: “…mukonda ku tuatundu kiá, ki tutena kumona-ku dingi kima. O kima tu-ki-sanga, kiala ku tuala um ia.”5 As primeiras linhas do romance referem-se à forma tradicional africana de narrar, com uma linguagem simples, mas recheada de imagens: 3
A “ruptura” aconteceu após o contacto com a obra Sagarana (1946) do escritor brasileiro João Guimarães Rosa (1908-1967). Luandino afirma, numa entrevista anterior (Laban et al.: 1980: 27), que ler Sagarana em 1964 foi “uma revelação”, confirmando a importância de Guimarães Rosa no novo rumo que a sua escrita tomou após Luuanda: “(...) a lição de João Guimarães Rosa: os atropelos que se possam fazer à língua clássica, à língua erudita, no sentido de propor uma linguagem mais popular, têm que ser atropelos que se fazem por conhecimento muito íntimo da língua e não por seu desconhecimento”. (Laban et al.: 1980, 29)
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Obra escrita em 1967, mas publicada pela primeira vez só em 1974.
5 Minha tradução: “Porque de onde viemos nada mais há para ver. O que procuramos está lá para onde vamos.”
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Simples, simples como assim um tiro: era alferes, levou um balázio, andava na guerra e deitou a vida no chão, o sangue bebeu. E nem foi em combate como ele queria. Chorou por isso, tenho certeza, por morrer assim, um tiro de emboscada e de borco, como é que ele falava?: "Galinha na engorda feliz, não sabe que há domingo". (Vieira: 1974, 9)
Tal como Nós, os do Makulusu, também Luuanda inicia com uma frase em quimbundo retirada de um conto tradicional, “Na nossa terra de Luanda passam coisas que envergonham”, num esforço de dar autenticidade às estórias e situações descritas, colocando-as num espaço social e geograficamente definido – os musseques da cidade de Luanda e a zona envolvente. A literatura tem um papel importante no processo de afirmação da identidade cultural africana, particularmente em Angola onde teve uma grande representatividade como instrumento da resistência colonial. Com Luandino Vieira e outros escritores do período colonial, a criatividade manipuladora transformou a realidade linguística e cultural num veículo para afirmar uma identidade cultural coletiva. Voltando a Gloria Anzaldúa e à obra anteriormente referida, opta-se agora por focar a noção de “fronteira”, tanto geográfica, como étnica, linguística e até de gênero literário. No capítulo “La conciencia de la Mestiza/Towards a new consciousness”, Anzaldúa desenvolve a noção de “consciência mestiça”, articulando-a com o conceito de fronteira. A consciência mestiça implica a consciência de fronteira que, no caso de Anzaldúa, remete para a fronteira física entre o México e os Estados Unidos da América. Pretende-se aqui aplicar a noção de consciência mestiça e o conceito de fronteira às vivências e realidades dos escritores africanos de língua portuguesa referidos neste trabalho. A noção de consciência mestiça, associada ao conceito de fronteira metafórica, de raça, etnia, língua, se aplica à situação cultural, histórica e linguística que os escritores contemporâneos têm que enfrentar. O conceito de fronteira remete para um limite fixo, mas nas culturas africanas apresenta-se 24
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como um espaço entre duas linhas6 (porque a fronteira tem sempre dois lados), apresentando-se como local de fluidez que facilita a hibridação, quer linguística, quer cultural. Esta situação da construção de uma consciência mestiça, quer linguística quer cultural, está relacionada com a capacidade de adaptação, de transformação, de reinvenção da realidade africana, marcada por códigos culturais diferentes, quer do colonizador, quer da diversidade cultural e étnica em países como Angola e Moçambique, como demonstram os autores aqui abordados, que usam o texto como forma de resistência para recuperar e reafirmar a identidade cultural do seu país e povo. Se é bonita minha estória, se é feia, vocês é que sabem... (Vieira: 2004, 152)
Referências bibliográficas ANZALDÚA, Gloria. Borderlands. La frontera. The new Mestiza. San Francisco: Aunt Lute Books, 1999. CHABAL, Patrick et al. The post-colonial literature of lusophone Africa. London: Hurst & Company,1996. COUTO, Mia. E se Obama fosse africano e outras interinvenções. Lisboa: Caminho, 2009. Folha de S. Paulo, São Paulo, 18 de Novembro de 1998. HAMILTON, Russell G. Preto no branco, branco no preto – Contradições linguísticas na novelística Angolana. In: LABAN, Michel et al. Luandino: José Luandino Vieira e a sua obra. Lisboa: Edições 70, 1980, pp. 147-187. LABAN, Michel et al. Luandino: José Luandino Vieira e a sua obra. Lisboa: Edições 70, 1980. 6
A noção de borderlands, as terras de fronteira, apresentada por Anzaldúa na obra referida.
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LEITE, Ana Mafalda. Angola. In: CHABAL, Patrick et al. (Orgs.). The postcolonial literature of lusophone Africa. London: Hurst & Company, 1996, pp.103-197. PERES, Phyllis. Transculturation and resistance in lusophone African narrative. Gainesville, Fl.: University Press of Florida, 1997. ROTHWELL, Phillip. Truth, orality and gender in the work of Mia Couto. Cranbury, NJ: Associated University Presses, 2004. TRIGO, Salvato. Luandino: O logoteta. Porto: Brasília Editora, 1981. VIEIRA, José Luandino. Luuanda. Lisboa: Caminho, 2004 [1964]. –––. Nós, os do Makulusu. Lisboa: Caminho, 2004 [1974]. XITU, Uanhenga. Maka na sanzala. Luanda: UEA, 1979. –––. “Mestre” Tamoda e outros contos. Luanda: UEA, 1977. ZABUS, Chantal. The African palimpsest. Indigenization of language in the West African europhone novel. Amsterdam: Rodopi, 2007.
Publicações acessadas pela Internet VIEIRA, Luandino. A literatura se alimenta da literatura. Ninguém pode chegar a escritor se não foi um grande leitor. Entrevistado por Joelma G. dos Santos. Revista Rides, Vol. 21, Nº1, Janeiro 2008. Universidade Federal de Pernambuco. <http://www.ufpe.br/pgletras/Investigacoes/Volumes/ Vol.21.1/a-literatura-se-alimenta-de-literatura_entrevistado_Jose-Luandino-Vieira_art.1 6ed.21.pdf> XITU, Uanhenga. Uanhenga Xitu: O que me preocupa é a situação social do povo. Entrevista de Ana Lopes de Sá. Em: <http://www.uea-angola.org/ mostra_entrevistas.cfm?ID=416>. Acesso em 02/04/2010.
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