Curitibanas e outras histórias

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CURITIBANAS E OUTRAS HISTÓRIAS



Marina Amaral

CURITIBANAS E OUTRAS HISTÓRIAS


Copyright© Marina Amaral, 2018 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610, de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem a autorização prévia e expressa do autor.

Coordenação Editorial Roberto Muggiati

Editor João Baptista Pinto

Capa Rian Narciso Mariano

Projeto Gráfico Luiz Guimarães

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

A515c Amaral, Marina Curitibanas e outras histórias / Marina Amaral. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Letra Capital, 2018. 160 p. : il. ; 14x21 cm.

ISBN 978-85-7785-591-9

1. Amaral, Marina. 2. Mulheres - Curitiba (PR) - Biografia. 3. Autobiografia. I. Título. 18-49457

CDD: 920.72 CDU: 929-055.2

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária CRB-7/6439

Letra Capital Editora Tels: (21) 3553-2236 / 2215-3781 vendas@letracapital.com.br


Para minha mãe e meu pai. Jean-Pierre, Leozinho, Otávio, Bel e Maria. O livro é em memória do Ivan, da Lurdes, do meu saudoso sobrinho João Luiz e do meu afilhado Marcos. Para o Ivan (filho do Ivan) e para a Theresa Christina (meus afilhados de Batismo, ele, e ela de Crisma). Agradecimentos: Roberto Muggiati, Beatriz Padilha e Célia Leal.



PREFÁCIO

Uma espiã na casa do amor Roberto Muggiati

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onheci Marina menina, já nobre curitibana, com aquela nobreza da alma, no seu caso reforçada pela linhagem. Menina do colégio Nossa Senhora de Sion, vizinho do palacete de arquitetura exótica da sua infância. Nossa família morava no Edifício Marina, propriedade de Ivan Ferreira do Amaral, pai da Marina, na Alameda Dr. Carlos de Carvalho, uma das inúmeras alamedas sem álamos, sem uma árvore sequer, outro daqueles insondáveis mistérios de Curitiba. Não, o nome dela não foi inspirado na canção de Dorival Caymmi, que veio pouco depois. Mas a Marina adolescente dava a impressão de que Caymmi é que tinha se inspirado nela: “Marina, você já é bonita com o que Deus lhe deu...” – ouço até hoje estas palavras na doce voz de Dick Farney. Acompanhei de perto a gestação destes novos velhos contos e me orgulho muito deles. A tal ponto que me apossei do papel de prefaciador antes que surgisse outro aventureiro. Pensei em intitular esta introdução de A paixão passa por Paciência, referindo-me à Combray

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fluvial das férias da jovem Marina, inspirado no conto Paciência: não é o fim do mundo, de uma brevidade e conteúdo chocantes. Mas, saindo do particular para o universal, lembrei-me do romance de Anaïs Nin, A Spy in the House of Love, que li em 1957, três anos depois de publicado, literalmente ilhado durante três dias em Florianópolis, com o aeroporto fechado por causa das chuvas. Por essa época, em Curitiba, Marina e eu fomos colegas na Aliança Francesa e fizemos os exames da Université de Nancy, nos quais ela passou com menção honrosa. O livro da prova era Le Rouge et le Noir, aquele romance desesperadamente romântico de Stendhal: já estávamos, Marina e eu, devidamente contagiados pelo vírus da literatura. Viver de literatura nestes tempos caóticos é difícil, quase impossível. Sobrevivendo como jornalista – eu – como mãe de família e mulher de executivo – ela – conseguimos a duras penas exercitar a pena maior, a da ficção, e publicar algumas sofridas páginas de memórias, contos e romance. Estes contos de Marina Amaral são enganosos na sua simplicidade. A linguagem pode ser simples e direta, mas os relatos mergulham fundo na natureza humana. E, embora Marina tenha deixado Curitiba há muitas décadas, levam em si toda a carga cultural e emocional de uma das capitais mais intrigantes do Brasil. A Curitiba que era Cidade Sorriso, mas depois ficou conhecida pela sua Boca Maldita. A República de Curitiba de hoje, capital 8

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da Lava-Jato. Eu diria, para criar uma referência ainda curitibana, que de certa forma os contos de Marina são o yang luminoso que se opõe ao yin sombrio dos contos de Dalton Trevisan. O leitor vai reparar que algumas histórias são apresentadas em duas ou três versões: é a maneira de expor melhor o processo criativo da escrita de Marina, como os Études dos pianistas românticos, as alternate takes num disco de jazz, ou as diferentes tomadas de cena de um filme. Um ponto importante: a narradora destas histórias é uma mulher. Ela atravessou oito decênios de mudanças comportamentais que mexeram radicalmente com a sociedade. Mas foram mudanças ainda lentas e frustrantes para o “segundo sexo”, que acorda de novo agora, para uma investida mais auspiciosa em defesa de seus direitos e de seus desejos. Travada no âmago do seu ser por um Establishment machista, Marina mostra nestes contos como a mulher se defende, cria recursos para fazer valer sua vontade, finge que se dobra para dominar a situação – enfim, um arsenal de manhas e artimanhas femininas que acabam dando o troco ao gênero oposto, opressor. Tolstói dizia “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia.” Coisa parecida disse Otto Lara Resende numa carta a Marina, escrita em 1977: “Seja Você. Só isso. Tudo que for pessoal acabará interessando aos outros. Será universal. O que fala de um ser humano fala a todos os seres humanos; como também fala de todos os seres humanos. Só isso justifica o esforço e a MARINA AMARAL

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dor (porque dói) de escrever, de buscar, de, como dizia Drummond, ‘lutar com palavras.’ ” Marina seguiu ao pé da letra o conselho do Otto. Foi à luta com as palavras e foi fiel a si mesma. No seu intenso trabalho de bricolagem literária, ela monta pacientemente, com estes contos em miniatura, um imenso puzzle afetivo, um painel sentimental que remete, em última análise, à tragicomédia humana. Caros leitores, não hesitemos: vamos todos correndo às curitibanas de Marina.

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PAI POETA Seja, no entanto, a vida transitória, Há um quê que fica após que não termina e conta aos outros a ancestral memória. Bendita sejas tu afeição, só tu fazes nossa glória, só tu ficas após sob as ruínas. Ivan Ferreira do Amaral


Sumário Desencontros.....................................................................15 As três mais belas...............................................................19 O Almirante e o afilhado..................................................22 A cristaleira do Almirante................................................24 No meio da ladeira............................................................28 Os restos de Alice..............................................................32 Resumo de Roseli..............................................................35 Coração de paulista...........................................................37 A prima – duas versões: 1 A prima.................................40 2 Paciência: não é o fim do mundo.................................44 Uma irmã dadivosa...........................................................46 A filha do alemão...............................................................48 A teus pés............................................................................51 Olhos verdes.......................................................................55 Bolero..................................................................................58 Verde...................................................................................60 Curitibanas: Agridoces lembranças do passado............62 Volta ao lar.........................................................................69 Aliança Francesa................................................................72 Primos e primas.................................................................74 Heranças do Positivismo..................................................76


Seis filhos de Quinco.........................................................78 Verônica 1: A vingança da polaquinha...........................82 Verônica 2: Escândalo na Terra dos Pinheirais.............85 Verônica 3: Filho sob encomenda...................................88 Sachês de coração..............................................................90 La Donna è Mobile............................................................96 A criança prematura.........................................................99 Paredes invisíveis............................................................ 101 Manual de um sedutor................................................... 104 A vida numa redoma..................................................... 107 Mãe é para estas coisas................................................... 110 Recuperando o tempo perdido..................................... 113 Um marido tratante....................................................... 115 “Provem o brigadeiro!”.................................................. 117 Loura, alta, de olhos azuis............................................. 120 Um segredo desvendado............................................... 122 Ora bolas.......................................................................... 126 “Besame mucho”............................................................. 129 Erro de pessoa................................................................. 133 A autora! A autora!......................................................... 135 O tempo perdido e o tempo redescoberto.................. 140



Desencontros

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le a conheceu num concurso de saltos na Sociedade Hípica Paranaense. Seu coração disparou. Voltou a encontrá-la num jantar em que seus pais recebiam políticos e empresários do Brasil inteiro, vindos para as festividades do centenário da emancipação do Paraná. Ministros e governadores. Música ao vivo, com o melhor conjunto daquela época. Juscelino Kubitschek, já sondado para ser o candidato à presidência, tirou-a para dançar. “Como poderei viver, sem a tua, sem a tua companhia”. Bem diferente das jovens que conhecia, ela ajudava a receber. Participava da conversa. Inteiramente à vontade para os seus precoces quinze anos, serviu o café e, a pedido da mãe, tocou dois noturnos de Chopin. Ele não teve mais nenhuma hesitação. Queria casarse com ela. Mas, apesar da pouca idade, ela já estava comprometida e o “noivo particular” logo pressentiu o perigo. As furtivas trocas de olhares entre sua prometida e o convidado não deixavam dúvidas. Ela, também, fora atingida pelos acintosos galanteios do carioca. Na despedida, de viagem marcada para os Estados Unidos, ele suplicou-lhe que o esperasse. Durante cinco anos, entre idas e vindas, namoricos de ambos os lados. Muitas cartas apaixonadas. A família dele, a princípio foi contra. Ele tinha apenas vinte anos e MARINA AMARAL

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pouca experiência da vida. Acharam que deveria “viver”. Mandaram-no para a Europa. “Viveu”. Ela continuou a escola normal, o curso de música e também uma correspondência da Faculdade de Nancy. Deu aulas na Aliança Francesa, foi a muitas festas e até pensou que não conseguiria nunca viver longe de sua terra. Com o pai, presidente de um clube, não se furtava de ir a bailes e concertos. Sempre acompanhada pelo irmão que, diga-se de passagem, censurava seu comportamento. Mas os dois já sabiam que nada os separaria. Claro que houve tentações. Nuvens escuras e muita maledicência. Finalmente, com as bênçãos das duas famílias, noivaram durante um ano. Ela desistiu do sonho de menina: ser advogada como o pai. Quem sabe mais tarde... Casaram. Ele conseguiu duas passagens numa companhia de aviação com incríveis promoções. E foi sem susto que tomaram aquele avião tão antigo. Em Nova Iorque, hospedaram-se num hotel de trinta dólares. O dinheiro contado não dava para restaurantes caros nem boates da moda. Piqueniques no quarto, asas de andorinha em China Town, alguns museus, missa na Catedral de Saint Patrick. Na volta ao Brasil, foram morar com os pais dele. Logo ganharam um terreno, e começaram a construção da casa. Os fins de semana, quase sempre em Cabo Frio, onde um tio os hospedava. Ele e os amigos partiam para pescarias em alto mar. Vento, água salgada entrando pela boca e pelo nariz. Risadas e palavrões. Ela ficava em 16

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casa. Deitada na cama larga, passava dias e dias lendo romances ingleses e franceses Aprendeu a gostar daquele tio misterioso e de seus autores prediletos: Wilde, Gide e Marcel Proust. Sonhava de olhos abertos. Tanto a aprender. Quando os homens voltavam das pescarias, exaustos e famintos, traziam olhos de boi, pargos e cavaquinhas, mais tarde preparados no único restaurante da praça. Bebiam cerveja e muita caipirinha. Contavam das proezas no mar e na cama. Ela se calava. À noite, amor. Novas descobertas. Os filhos só vieram depois de alguns anos. A casa já pronta para recebê-los. Responsabilidades. Promoções no trabalho. Mais dinheiro. Assédios femininos Para ela, vacinas e gargarejos; noites mal dormidas. Cansaço. No país, instabilidade: Jânio Quadros, eleito por esmagadora maioria, prometera “varrer a corrupção”. Ao condecorar Che Guevara, deu mostras de aproximação com Cuba e outros países do bloco socialista. Abandonado pelos antigos aliados, renunciou ao mandato. Até hoje sem explicação seu gesto desatinado. Ameaças de esquerdização. Muita gente transferindo o dinheiro para outros países. Em tempos de crise, faltavam alimentos; longas filas nos supermercados. Ele queria variar. Reclamava: chega de bife com batatas fritas. Sempre a mesma comida sem graça... Por que não cavaquinhas grelhadas ou rãs à provençal?” Decepcionada, ela achou que era hora de procurar MARINA AMARAL

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