Luciana Nascimento Anélia Pietrani Paulo César Oliveira Organizadores
Riscos da escrita, rastros da memória: homenagem à Professora Lucia Helena
Copyright © Luciana Nascimento, Anélia Pietrani, Paulo César Oliveira (organizadores), 2017 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida por meio impresso ou eletrônico, sem a autorização prévia por escrito da Editora/Autor. Editor João Baptista Pinto
Capa e Projeto Gráfico Luiz Guimarães
Revisão Dos Organizadores
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Sumário
Apresentação............................................................................... 5 Luciana Nascimento, Anélia Pietrani, Paulo César Oliveira
Escritos sobre Lucia Helena Lucia Helena, senão e porquê............................................. 11 Anabelle Loivos Considera Lucia Helena: pesquisadora intelectual.............................. 15 José Luís Jobim Lucia Helena: o saber com sabor....................................... 17 José Mateus Barbosa dos Santos Lições de literatura, lições para viver: Lucia Helena........... 19 Lúcia Bettencourt
Sobrescritas de Lucia Helena Confissões e conficções de Ana Cristina Cesar................... 29 Anélia Pietrani O poder do artefato e o futuro da poesia........................... 46 Dau Bastos
Pra que é que serve uma fotografia como essa?.................. 64 Jorge Fernandes da Silveira Alencar e a conversa cotidiana na sua “solidão tropical”... 68 Luciana Nascimento, Karen Gomes da Silva Nação e mercado capitalista em perspectiva histórica: o legado crítico de Johann Wolfgang von Goethe............. 103 Luiz Barros Montez
De ficções, utopias, viagens e naufrágios: nos rastros de Bruce Chatwin e Bernardo Carvalho........................... 125 Paulo César Oliveira Desenhando um novelo.................................................... 138 Vilma Sant’Anna Arêas
Apresentação
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ucia Helena foi para mim um norte em minha estreia no magistério. Já havia lido alguns de seus textos durante o meu curso de Letras. Quando concluí minha graduação na UFMG, fui ministrar aulas na educação básica, e os livros de Lucia Helena, principalmente Movimentos de vanguarda europeia e Modernismo brasileiro e vanguarda, foram bússolas para minhas aulas de literatura. Posteriormente, já como professora do magistério superior, os livros de Lucia continuaram meus companheiros. Partilhar da companhia de Lucia Helena é sempre certeza de boa conversa que passa do literário e alcança os mistérios entre o céu e a terra. A sua trajetória acadêmica é motivo de orgulho para nós, professores de literatura de safra mais recente. Luciana Nascimento
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ucia Helena abriu-me as portas de sua casa um dia. Diálogo, leitura, conversa, leitura, escrita, leitura, diálogo, escrita, Lucia me abriu assim ao mundo da vida acadêmica. Sua generosidade é, em meu coração e mente, a recordação – na raiz mesma do termo – de todos os dias desde aquele primeiro em que abro-fecho o livro de minha vida. Difícil conseguir de alguém a porta aberta da casa e do mundo – sabemos. Só a gratidão pode responder à generosidade. E agradeço. Anélia Pietrani
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ui o último orientando de Lucia Helena na UFRJ. Ainda não nos conhecíamos e muito timidamente pedi a ela que me orientasse em uma dissertação sobre Raduan Nassar, o que fez com uma generosidade e energia que levei como modelo para minha vida acadêmica e como testemunha de profissionalismo e humanidade. A vida nos aproximou em bons e outros maus momentos, mas um dos melhores foi, sem dúvida, quando tive a possibilidade de retribuir a generosidade de Lucia Helena para com um aluno que não conhecia e em quem confiou. Ajudei-a da melhor forma que pude em seu concurso para Professora Titular da UFF, que brilhante e merecidamente ganhou. Recentemente, fiz um Pós-Doutorado com Lucia e pude atar aquelas duas pontas da vida, agora, não mais como o aluno desconhecido e tímido que a procurou em sua sala do Departamento de Teoria Literária, mas como um amigo, admirador e parceiro de trabalho. Com Lucia Helena, aprendi e aprendo o significado da atividade docente, o valor do estudo e a importância do trabalho. Aprendo com ela que a amizade é um bem inalienável, que nos torna melhores, como profissionais e como seres humanos. Paulo César Oliveira
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om estas nossas três palavras, abrimos o livro em homenagem a Lucia Helena e a apresentamos ao leitor. Nas páginas que seguem, os textos reunidos dão conta de mostrar que sua generosidade intelectual e a busca incessante pelo saber, que em Lucia jamais se separa do sabor, são apenas algumas das imagens que nos remetem à professora, pesquisadora, ensaísta, escritora Lucia Helena. Na pluralidade dessa constante busca, conhecemos a alma de uma mulher plural: o diálogo profícuo com seus pares, alunos e orientandos; a pesquisa científica empreendida com seriedade e dedicação; os prêmios recebidos em sua carreira profissional; a vária e influente produção acadêmica entre livros, artigos, ensaios, resenhas; o magistério em sala de aula e na obra da vida. Assumindo os riscos e retomando os rastros, este livro representa o reconhecimento de todos os que assinaram estes “Escritos sobre Lucia” e estas “Sobrescritas de Lucia”, que reiteram a importância da professora – como ela sempre gosta de ser chamada –, da amiga das letras em diálogo, da pessoa inconfundível Lucia Helena, por sua contribuição para os estudos literários em nossas universidades. Os organizadores 7
Escritos sobre Lucia Helena
Lucia Helena, senão e porquê... Anabelle Loivos Considera1
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ou uma docente apaixonada por docentes que antes. Não tive a sorte de ter sido aluna da Lucia Helena, mas sim de tê-la em minhas bancas de qualificação ao doutorado e na do próprio doutoramento, em 2003 e 2005, no Instituto de Letras da UFF – Universidade Federal Fluminense. Eu, uma leitora enviesada da literatura portuguesa, não precisei teimar muito pra inscrever nas hostes burocráticas da formação da minha banca examinadora uma professora da casa que, entretanto, não era dos “Portugais”... O meu orientador, o coordenador da pós, a moça da secretaria, enfim, Niterói inteira, o mundo todo abria um sorriso largo quando ouvia o nome “Lucia Helena”. Não era difícil cooptar as pessoas quando se sabia que ela estaria lá, que ela imantaria a sala de aula com seu pensamento lúcido e com seu afeto abarcante. E assim foi, nas duas oportunidades em que pude experienciar uma convivência mais aconchegada a ela no âmbito da academia. Lembro-me de ter sido meio que “adotada” pela Lucia Helena como a irmã mais nova da Anélia Pietrani, ela, sim, sua orientanda. Éramos duas meninas vindas da serra fluminense, com o histórico de uma graduação encantada na lendária Faculdade de Filosofia Santa Doroteia, de Nova Friburgo (hoje extinta, infelizmente), que “emplacou” duas egressas no programa de pós-graduação stricto sensu em Letras na UFF, em 1995 e 1996 (Anelinha e eu, respectivamente). Lucia foi uma incentivadora de nossos percursos acadêmicos desde o início, à revelia de todas as admoestações que os canais burocráticos e professores mais apegados aos entraves do sistema nos faziam: já éramos docentes da educação básica e ainda mantínhamos empregos na rede privada, até para podermos financiar nossa formação na UFF; eu ainda tinha o agravante de Doutora em Letras – Literatura Comparada (UFF) e Mestre em Letras – Literatura Portuguesa (UFF), é Professora Associada da Faculdade de Educação da UFRJ, no departamento de Didática.
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morar na longínqua Cantagalo, a 180 km da terra de Arariboia, trabalhar lá, em Nova Friburgo, e, quase no finzinho do mestrado, também em São Gonçalo, numa universidade privada. Cheguei a ouvir que não conseguiria terminar os créditos da pós “como deveria ser”, porque estaria em grande parte privada da dinâmica da vida acadêmica, que pressupunha pesquisa in praesentia em bibliotecas e centros de difusão da cultura e da literatura portuguesas, além da participação constante em congressos dentro e fora do Brasil. Eu intuía espantada, nas falas de certos professores, hoje meus colegas de labuta latteana, certo desprezo pela minha capacidade de “alinhamento” ao projeto do mestrado clássico acadêmico (vejam, naquela época nem se pensava em mestrado profissional, essa conquista importante no processo de formação continuada de professores que se espalhou pelo Brasil, ainda bem!) e um tiquinho de desconfiança na formação que tive antes, numa faculdade isolada, confessional e privada, no interior do Estado do Rio. Cedo, eu soube que eles todos (professores, burocratas e o próprio sistema) estavam me inquirindo: quem é você? Ou, em última e mais belicosa instância: quem você pensa que é? Eu que, com 23 anos, até ali só pensara no que a UFF poderia ser/representar pra mim, passei a refletir sobre o que eu poderia ser pra UFF. E é nesse momento que entra a Lucia Helena na minha vida de estudante, professora da educação básica e provinciana cheia de sonhos e manhas. Entra como voz dissonante dessa paranoia toda aí com cumprimento de metas, prazos, quantificação que se confunde erroneamente com qualificação. E vou contar um pouco mais, porque navegar nessa memória afetiva é justo, necessário e preciso. Lucia nunca foi mulher nem professora de meias palavras. Sempre teve uma espécie rara de ternura firme, que a capacitava a defender como leoa seus alunos e orientandos e chamá-los às contas quando era preciso, sem qualquer desmerecimento de sua práxis pedagógica. Na verdade, eu sempre admirei essa sua contradictio in terminis e intuí desde o princípio, nessa dinâmica aporística das suas falas e sentires e saberes, uma potência absurda, campo fértil pro exercício da escuta sensível e pro debate desassombrado de ideias. Não era à toa que congregava, em torno de si, alunos de 12
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créditos avulsos ou ouvintes esporádicos (como eu, a deslocada...), abrindo maternalmente seu grupo de estudos Nação-Narração para os agregados, desde que eles se propusessem a considerar rugidos, carinhos, fumaça de cigarro e longas e inesquecíveis aulas vespertinas, nos ventos brandos do Gragoatá. As arguições mais generosas, pontuais e inteligentes que eu poderia receber de trabalhos meus vieram da Lucia Helena. Lembro-me do cuidado com a construção do contraponto, da leitura entusiasmada, da emoção que não conspurca a erudição leitora. Via, nas arguições da Lucia, a presença muito forte do modelo de professor-pesquisador que eu gostaria de me tornar: cada marcação do texto, cada interrogação ou exclamação realçada no canto da página me contavam de uma leitura apaixonada, cheia de virgulações, lincada com múltiplas abordagens metodológicas e ensejante de possibilidades incríveis de alargamento. Vale lembrar: Lucia Helena, de sorriso largo, de acolhida larga, de pensamento largo – sem jamais confundir essa largueza de ato e docência com fragmentação improlífica. Quase dez anos depois de conhecer Lucia Helena, por volta de 2005 ou 2006, eu tinha o prazer de “entregar” a ela uma de minhas alunas mais brilhantes, na graduação da mesma Faculdade de Filosofia Santa Doroteia, quando por lá passei como professora de Prática de Ensino de Literatura, a Daniele Ramos. Dani era uma leitora e uma professora muito parecida com a jovem leitora e professora que eu era, quando entrei no mestrado. Amava Machado e Euclides, e foi com um trabalho sobre Machado que se apresentou ao programa de pós-graduação em Letras da UFF. Daí, veio a aprovação e o encontro (desassombrado) com Lucia Helena. Confesso que, na ocasião, experimentei um sentimento de satisfação e compromisso análogos àquela metáfora da leoa-Lucia: formar gente (muito gente) que forma gente que lê o mundo e lê as gentes dá um tesão danado! Senão e por quê... Lucia Helena, nos últimos anos, virou minha amiga de facebook. Deve se horrorizar com as palavras de baixo calão que aquela ex-professorinha de Cantagalo pronuncia, sem reservas, na rede social. Mas curte à beça as fotos e peripécias 13
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da minha leitora-mirim, Aymée, acompanhando o seu processo desassombrado de alfabetização – que começou com a palavra “Batman”. Talvez fique um pouco contente com o fato de suas meninas serranas presentemente fazerem parte dos corpos docentes de importantes instituições formadoras, a UFRJ e o CEFET, como professoras efetivas. Outro dia, ligou aqui pra casa pra saber da minha sinusite. E, uns 40 minutos depois de a gente discutir dores na face, dores na vida e formas de resistência potente a elas, eu falei pra Lucia: “Puxa, eu acho que não te disse isso antes, mas nunca é tarde: eu te amo!” Feliz e grata sou, porque eu pude rugir isso pra ela, com a testa glabra da leoa de Clarice, ainda que pelo rugoso suporte do telefone. Espero que essa crônica seja uma forma desassombrada de dizer isso, mais uma vez, pública e amorosamente.
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Lucia Helena: pesquisadora intelectual José Luís Jobim1
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ucia Helena, em sua longa carreira, atuou com brilhantismo como professora, intelectual e pesquisadora. Graduou-se e doutorou-se em Letras, completando sua formação com estágio pós-doutoral nos Estados Unidos, e lecionou em duas das mais importantes universidades brasileiras, a Federal do Rio de Janeiro e a Federal Fluminense. É pesquisadora amplamente reconhecida, como comprovam as sucessivas bolsas de produtividade em pesquisa concedidas pelo CNPq e as demandas por consultoria de órgãos de fomento e avaliação. Inicio este breve depoimento sobre Lucia, dizendo que estive entre os que assistiram ao seu concurso público de provas e de títulos para professor titular de Literatura Brasileira na Universidade Federal Fluminense, ao qual se submeteu em 1994. Aquele foi o ano em que, após se sair vitoriosa, iniciou um novo percurso que ainda não se encerrou. De fato, Lucia já havia sido docente da UFF em um momento anterior, acumulando funções, mas depois optou por um regime de dedicação exclusiva na Universidade Federal do Rio de Janeiro, regime que a manteve dedicada àquela universidade até a sua aposentadoria na UFRJ, trabalhando sempre no setor de Teoria Literária, que nos anos oitenta tinha como professor titular o nosso ex-orientador de doutorado, Eduardo Portella. Aliás, depois de termos sido colegas na pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ (Lucia já era doutoranda, quando eu era um reles mestrando iniciante...), ela também me deu a honra e o prazer de participar da minha banca de doutorado, em meados dos anos 80. Doutor em Letras (Ciência da Literatura) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com pós-doutorado na Stanford University, EUA. Professor Titular (aposentado) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Professor Associado da Universidade Federal Fluminense. É coordenador do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Literatura da Universidade Federal Fluminense. Lecionou e deu conferências em várias universidades do Brasil e do exterior. Foi presidente da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC).
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Nossa amizade é, portanto, bem anterior à entrada dela na UFF, tendo Lucia desde cedo gerado em mim uma grande admiração por sua inteligência, capacidade intelectual, erudição e maneira afetiva de lidar com as pessoas, traços que manteve ao longo de sua carreira. 1994 foi, como disse antes, o ano em que Lucia retornou à UFF, agora na condição de professora titular, em regime de dedicação exclusiva. Devido a questões institucionais, durante muitos anos, após a aposentadoria do professor Evanildo Bechara, ela foi a única professora titular do nosso Instituto de Letras, tendo por esta razão sempre colaborado nas várias atividades e comissões que demandavam a presença de um docente dessa categoria. Participei com ela de inúmeras bancas de progressão para professor associado na UFF, como “membro externo”, por ser titular na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e pude testemunhar sua atuação sempre desprendida e preocupada em não complicar as coisas simples, especialmente para os colegas. No que diz respeito à formação de recursos humanos para a pesquisa, Lucia também se destacou, tendo levado à defesa 27 mestrados e 16 doutorados, além de ter supervisionado estágios de pós-doutorado na UFF. Finalmente, é importante destacar a quantidade e qualidade da sua produção intelectual: até o momento em que escrevo, foram 107 artigos em periódicos, 15 livros, 52 capítulos de livros, além de uma atuação relevante como crítica literária no país. A sua produção, certamente, paga tributo à contínua autoexigência de aperfeiçoamento profissional, que a fez sempre procurar produzir mais e melhor, muito antes de termos instalado entre nós o sistema norte-americano de publish or perish (publicar ou morrer), que hoje virou norma geral. Na verdade, arrisco-me a dizer que o principal elemento motivador para Lucia Helena não era atender a nenhum sistema de contabilização de produtividade acadêmica, mas uma coisa muito mais enraizada no seu modo de ser: um interesse genuíno pela literatura e pelas questões que a envolviam. Talvez tenha sido este o grande segredo de seu sucesso.
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Lucia Helena: o saber com sabor José Mateus Barbosa dos Santos1
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m um diálogo informal, a professora Luciana Marino do Nascimento segredou-me que estava em curso uma homenagem impressa à ilustre professora Lucia Helena, cujo labor intelectual é alvo de meu caloroso apreço. Sabedora dessa alta deferência, a professora Luciana Marino (uma das organizadoras do volume) convidou-me para fazer parte de tão louvável iniciativa. Minha adesão ao honroso convite foi imediata e deixou-me sobremaneira envaidecido. Descobri a relevância de Lucia Helena para o aprimoramento dos estudos literários há 14 anos, quando eu ainda cursava a graduação em Letras Vernáculas na UFAC. A disciplina Literatura Brasileira I oportunizou esse prodigioso encontro. De pronto, a responsável pela matéria encarregou-nos de expor um seminário sobre um assunto complexo e, ao mesmo tempo, fascinante: os movimentos de vanguarda europeia. Definida a temática, comecei a pesquisar referências bibliográficas concernentes ao assunto proposto. Numa revista de Teoria da Literatura, cujo nome agora me escapa, li, na seção “Resenhas críticas”, uma menção elogiosa a um de seus livros: Movimentos da vanguarda europeia. Essa recensão aguçou-me, de imediato, a curiosidade. Com isso, saí à procura de tão prestimosa obra. Fiquei deslumbrado (ou melhor: saciado intelectualmente!) ao concluir a leitura do material. O texto me chamara atenção pela opulência informativa, agudeza da argumentação e requinte no plano redacional. A autora vale-se de uma linguagem enternecedora, sem cair nas ciladas do simplismo (aspectos encontradiços em nossos mais sonantes escritores). Movido pela riqueza conteudística da encimada obra, busquei coligir outros livros de sua autoria. A inspeção sinalizou uma copiosa e atrativa bibliografia. Do riquíssimo acervo, adquiri al1
Professor de Língua Portuguesa e Literatura do ensino médio no Estado do Acre.
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guns títulos, que faço questão de enfileirar: A cosmo-agonia de Augusto dos Anjos, Escrita e poder, Uma literatura antropofágica e Totens e tabus da modernidade brasileira: símbolo e alegoria na obra de Oswald de Andrade. Por meio dessas valorosas reflexões, felizmente postas à disposição dos estudiosos da literatura, granjeei conhecimentos capitais acerca das temáticas abordadas. Orgulha-me possuir, em minha modesta biblioteca, parte de sua conhecida e RE-conhecida produção intelectual. E, sobretudo, de haver usufruído das sábias e originais lições acomodadas em cada obra. Espero que nossa querida homenageada, cujo elevado Saber já lhe garantiu um lugar de honra nos circuitos culturais do Brasil e do exterior, continue a trabalhar, com o mesmo afinco e competência, em obras que venham a aprimorar o Conhecimento da Literatura.
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Lições de literatura, lições para viver: Lucia Helena Lúcia Bettencourt1
O pensamento que não age é uma traição. Vergílio Ferreira
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as suas numerosas e abrangentes reflexões sobre literatura, a professora Lucia Helena sempre fez questão de não esquecer sua posição de sujeito. Um sujeito histórico, consciente de que, para pensar as manifestações intelectuais, é preciso conhecer nossa posição no mundo político e ético, abrangendo tanto o nacional como o internacional, e colocar em diálogo os pensamentos do passado e do presente para vislumbrar uma verdade que leve a um conhecimento embasado na própria vida, se bem que filtrada pela literatura. Depois de um período em que passou lecionando nos Estados Unidos, ao voltar para o Brasil, em janeiro de 1991, Lucia Helena admitiu sentir-se “estrangeira em [sua] própria terra”. Tratava-se do período que ficou conhecido como era Collor, quando tantas medidas drásticas e arbitrárias foram tomadas e uma parte de nosso patrimônio cultural foi desativada “pela desfaçatez”, conforme registrou no prefácio de seu livro A solidão tropical: o Brasil de Alencar e da modernidade (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006). Desejando compreender melhor o que estava acontecendo ao seu redor, tentando situar-se numa ocasião de crise, Lucia Helena voltou-se para o exame da literatura, mas não a do século XX, já
Doutora em Literatura Comparada pela UFF e escritora, publicou os livros de contos A secretária de Borges (2005) e Linha de sombra (2008), os romances O amor acontece, um romance em Veneza (2012) e O regresso, a última viagem de Rimbaud (2015), bem como os livros de literatura infantil A cobra e a corda (2011), Botas e bolas (2011), O sapo e a sopa (2013) e A oca e a toca (2015). Além de colaborar com jornais e revistas brasileiros e estrangeiros, mantém o blog nadanonada. blogspot.com.br.
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às portas do XXI, e sim aquela do século XIX, quando se propuseram, entre nós, hipóteses sobre a criação de um estado nacional. Essas hipóteses visavam a explicar a passagem de um território colonial ao cenário da modernidade, sem, no entanto, passar por uma revolução, apenas pela imposição da elite que manobrava um povo subalterno, quase sempre sem condições materiais de se manifestar. Nesse exame retroativo, o olhar de L. Helena se desdobra, focando-se ora no passado, ora examinando os acontecimentos contemporâneos, prestando atenção aos fenômenos que, nos anos 90, já haviam começado a marcar e redefinir as relações econômicas, sociais e culturais de um mundo globalizado, ou seja, de um mundo em processo de re-colonização, agora comandado por um conceito elusivo e cambiante de mercado. Relembrando a irônica constatação de Brás Cubas, o famoso personagem de Machado de Assis, de que “Humanitas precisa comer”, a fim de justificar todas as manobras sem ética que dão “ao vencedor as batatas”, Lucia Helena propôs uma pesquisa literária que pudesse explicar o autoritarismo ainda vigente em nossa sociedade. Ao voltar-se para as raízes, para o passado, examinando seja Walter Benjamin e o Romantismo Alemão, seja Robinson Crusoé, o primeiro herói da solidão, tal como foi entendido por Rousseau, ou, ainda, lendo os textos de Alencar, a professora não deixa de perceber que está sofrendo, no século XXI, as consequências desses pensamentos do passado. Procura, então, na contemporaneidade, outras vozes que se juntem à dela, no desvelamento dos artifícios que permitem que essas condições continuem se repetindo não apenas no mundo real, mas no mundo discursivo dos valores que embasam a intelectualidade contemporânea. Encontra em John Maxwell Coetzee um escritor emblemático e volta-se para pensadores do pós-guerra e da pós-modernidade, cujos textos dialogam, respondem e aprofundam suas indagações pessoais. De Arendt a Eagleton; de Paul Ricoeur a Perry Anderson; de Lukács a Jameson, todos comparecem à festa do pensamento que foi (e ainda é) o seu Grupo de Estudos Nação-Narração. Colocando a literatura como ponto de partida para o exame 20
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dos conceitos de sujeito, identidade e nacional, tal como entendidos pelo moderno, e contrastando essas percepções com as novas reflexões e impasses originados pela situação da pós-modernidade, a professora não hesita em voltar à transição do século XVIII para o XIX para compreender as concepções da história, identidade e nacionalidade formuladas por José de Alencar, pioneiro, entre nós, na compreensão de que é nas relações entre História, Memória e Imaginário que se revela o projeto político de um país, formando um painel dinâmico e complexo. No livro que organizou em 2004, Nação-invenção: ensaios sobre o nacional em tempos de globalização (RJ: Contra Capa; DF: CNPq, 2004), L. Helena rodeou-se de um grupo de professores e pesquisadores de relevância para aprofundar o exame dos vínculos entre a literatura e memória e nacionalidade. Trata-se de um primeiro resultado do grupo de estudos em torno de José de Alencar, dirigido por ela. O livro já revela como o escritor e pensador romântico tem valor paradigmático para a atualidade, como bem o demonstraram Danielle C. M. P. Ramos, Luís Filipe Ribeiro e Marcello Peloggio, e a própria Lucia Helena, que destacou O garatuja como exemplo de uma “ficção que creditava a si mesma a invenção do país e de um imaginário através da inscrição de um recorte político no inconsciente do texto” (HELENA, 2004, p. 38). Outros professores tomaram autores diferentes para exame. Em ensaios sensíveis, Gonçalves Dias, Lima Barreto e Machado de Assis tornam-se alvo de estudos, bem como Oswald de Andrade, Graciliano Ramos, Nelson Rodrigues, Ana Cristina Cesar e Ronaldo Lima Lins. Patenteia-se, assim, a vitalidade e a presença da tradição dialogando com as propostas do modernismo e do pós-modernismo, face, sem dúvida, aos prós e contras da globalização. Em 2006, organizado pelas professoras Lucia Helena e Anélia Pietrani, mais um livro sobre o mesmo tema é publicado, ampliando o questionamento anterior e contrastando Literatura e Poder. Sob este título simples e forte, reúnem-se 17 artigos que discutem a palavra impressa, sua capacidade de resistência e de transfor21
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mação. O caminho para uma próxima etapa, porém, já vinha se delineando. É possível notar que a consciência da crise, não só da existência, do confronto entre vida e morte, bem como a do conceito de cultura, já começa a exigir que o intelecto de Lucia Helena procure novas respostas para as diferentes questões propostas pela situação mundial. Assim sendo, no ano seguinte é publicado novo livro: Literatura, intelectuais e a crise da cultura (RJ: Contra Capa; DF: CNPq, 2007). Mais uma vez, a professora reúne cerca de 20 artigos de diferentes professores que abrangem um universo em que a globalização imprime sua marca. Agora, uma autora como Ana Cristina Cesar ombreia com Baudelaire. Hilda Hilst, Chico Buarque e Rubens Figueiredo repartem suas imagens nos espelhos ensaísticos, Mário de Andrade e Adolfo Caminha se singularizam, e Kafka, Alfonso Reyes e Dante Alighieri, entre outros, viajam nas páginas escritas por intelectuais radicados em diversas regiões do mundo. Lívia Reis, Luiz Fernando Valente, Maria da Glória Bordini, entre outros, seja em Niterói, em Providence, ou em Porto Alegre, os intelectuais mostram que a crise será sempre uma oportunidade de renovação e de revisão. Em 2010, Lucia Helena publica mais um livro debruçado sobre a crise cultural, mas também sobre a vida contemporânea. Diz ela: “A vida, ainda que valha mais do que as palavras, não vale sem elas”. Com esta magnífica abertura, o livro Ficções do desassossego: fragmentos da solidão contemporânea (RJ: Contra Capa; DF: CNPq, 2010) demonstra que sua dedicação ao exame da literatura como lições para a vida apenas se torna cada vez mais profunda e urgente, como o próprio discurso vital. Os treze capítulos do livro revalidam sua trajetória de pesquisa. De um lado a literatura, do passado e do presente. De outro, o momento em que vive, sem nunca deixar de perceber as armadilhas e riscos que podem desorientar o trabalho intelectual. Retomando um de seus autores prediletos, John M. Coetzee, Lucia Helena escolhe verificar como, na obra dele, as fronteiras culturais entre homens e animais são desmontadas e examinadas por uma perspectiva pós-moderna, que se indaga sobre a 22
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superioridade de um tipo de raciocínio instrumental sobre outro. As novas questões éticas levantadas nos textos de Coetzee são confrontadas com um problema contemporâneo que nos aflige: a perda. Um sentimento que compassa nossa capacidade de autorreflexão, e também as perdas afetivas, e até as do erotismo. Com a instauração de um fechamento social que beira uma espécie de isolamento pessoal patológico, a sociedade, cada vez mais conectada tecnologicamente, revela-se, paradoxalmente, cada vez menos social e mais individualista. Em março de 2012, se anuncia um outro eixo de pesquisa: “Os intelectuais e as cadeias de papel: reflexão sobre as relações entre literatura, ética e mercado na ficção contemporânea”, a que atualmente a professora se dedica, sempre com o apoio fundamental do CNPq. Atenta e disposta tanto a aprender quanto a ensinar, Lucia Helena destaca-se na vida acadêmica e intelectual com sua obra variada e robusta, várias vezes premiada. Neste meu registro, não pretendo ser mais abrangente, nem me aprofundar mais nos meandros de seu pujante pensamento. Lucia Helena é quase uma força da natureza, que avança e invade nossas vidas com seu rosto sorridente e seu olhar atento e iluminado. Trato aqui apenas de uma pequena parte de sua produção, falando um pouco da época em que nossas vidas se aproximaram graças a uma coincidência de lugares e de tempos. Morei nos EUA na mesma época em que Lucia lá trabalhou e estudou. Estive com ela em algumas ocasiões, e, embora não a tivesse tido como professora, ela não se furtou a me dar orientações e a compartilhar suas ideias com generosidade e entusiasmo. Fiz parte, não oficialmente, do grupo de estudos que ela dirigiu na UFF, por ocasião de meu doutorado, tendo, portanto, acompanhado com olhos ávidos e ouvidos atentos todas as discussões, procurando subsídios para enriquecer minhas pesquisas. Como nossos caminhos fossem traçados paralelamente e meu foco estivesse em outra área de pesquisa, só me beneficiei tangencialmente dos questionamentos desenvolvidos no grupo Nação/Narração. Mesmo assim, tive o privilégio de participar em seminários e de neles apresentar alguns de meus textos, desenvolvidos a partir das 23
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discussões de que participei. As lições que recebi foram muitas, sobretudo lições de vida. A percepção de que é no magistério que a professora Lucia Helena prefere se identificar – “Eu diria que sou, antes de tudo, uma professora, e que eu penso e escrevo porque eu gosto muito de estudar e de aprender”, diz ela em entrevista concedida à Revista Pensares em revista (FFP-UERJ, São Gonçalo-RJ, n.1, p. 203-221, jul-dez 2012) – não invalida o fato de que, com sua capacidade de produção elevada, Lucia Helena jamais se descuidou da investigação ativa e incessante. Publicando desde 1977 (A cosmo-agonia de Augusto dos Anjos. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; João Pessoa: Secretaria de Educação e Cultura da Paraíba, 1984. 132p. [1ª. ed. 1977]), seu universo se ampliou em ondas sempre mais abrangentes. Estudou vários momentos e movimentos literários brasileiros, percebeu os caminhos de reflexão que procuravam unir o Brasil e o mundo, enveredou pelos meandros políticos e trágicos de uma dimensão cada vez mais humana ao cuidar de obras que revelam, cada vez com mais crueza, nossa desumanização face às maquinações políticas do discurso e do pensamento. Constatando que a ideia de nação cede lugar às imposições da globalização, ela procurou encontrar um fio condutor que, unindo variados momentos da experiência humana, trouxesse um caminho de reflexão literária possível de retirar, de sobre nossos ombros, o manto de irrelevância que desejam vestir-nos, para neutralizarem nosso labor literário. Se o mundo se globaliza, se nosso destino humano se torna mais trágico, na sua insignificância, perante os novos valores e comportamentos, as estratégias da reflexão e do desvelamento, sempre presentes nas artes, são nossa possibilidade de resistência e de ressignificação do mundo. Como cronistas e artistas, interagimos com a história e, de suas ruínas, salvamos a memória e ofertamos, como troféus, gritos de escândalo, urdidos entre as páginas de romances e contos. São os grandes professores, entre os quais Lucia Helena se inclui, são os pensadores que não perdem sua curiosidade e o desejo de aprender, aqueles que mantêm a chama do conhecimento viva e relevante, opondo-se ao oportunismo e aos oportunistas que 24
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procuram calar as vozes dissonantes, chamando-as, exatamente, de “inoportunas”. Neste novo recorte de sua obra, ela se debruça sobre as “cadeias de papel” que legitimizam, com sua lógica kafkianamente monstruosa, uma sociedade na qual a manipulação de imagens, o culto de celebridades, a efemeridade das palavras de ordem caminham para projetos autoritários, e para uma tentadora transformação de intelectuais em marqueteiros. Mostrando sua falácia na venda de projetos sociais ilusórios, que não apresentam o embasamento da reflexão densa e consequente, Lucia Helena procura seguir a lição de Theodor W. Adorno: não se deixar imbecilizar nem pelo poder dos outros nem por nossa impotência. O filósofo alemão acredita que essa seja uma missão quase impossível. A professora, aguerrida, sabe que o pensamento, sem ação, pode ser uma traição. Mais uma vez ela arregaça as mangas e se põe a trabalhar. A luta continua, pois a vida – e a literatura – não a deixam esmorecer. Bibliografia de Lucia Helena HELENA, Lucia. Naúfragos da esperança: a literatura na época da incerteza. 2ª. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2016. 160 p. [1ª. ed. 2012]. ______. Ficções do desassossego: fragmentos da solidão contemporânea. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2010. 196p. ______. Nem musa, nem medusa: itinerários da escrita em Clarice Lispector. 3ª. ed. revista e ampliada. Niterói, RJ: EdUFF, 2010. 160p. [2ª. ed. 2010; 1ª. ed. 1997]. ______. A solidão tropical: o Brasil de Alencar e da modernidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006. 234p. ______. Tomás Antonio Gonzaga. Rio de Janeiro: Agir, 2005. 139p. ______. Modernismo brasileiro e vanguarda. 3ª. ed. São Paulo: Ática, 1996. 88p. [2ª. reimpressão, 2000; 2ª. ed. 1989; 1ª. ed. 1986]. ______. Movimentos de vanguarda europeia. São Paulo: Scipione, 1993. 64p. ______. Escrita e poder. Rio de Janeiro: Cátedra, 1985. 206p. ______. Totens e tabus da modernidade brasileira: símbolo e alegoria em Oswald de Andrade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; EdUFF, 1985. 213p. ______. A cosmo-agonia de Augusto dos Anjos. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; João Pessoa: Secretaria de Educação e Cultura da Paraíba, 1984. 132p. [1ª. ed. 1977]. ______. Uma literatura antropofágica. Rio de Janeiro: Cátedra, 1982. 152p.
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Livros organizados por Lucia Helena HELENA, Lucia; OLIVEIRA, Paulo César (Orgs.). Escritores, críticos e leitores fora do lugar: contemporâneos na cena da globalização. Rio de Janeiro: Caetés, 2016. 143 p. ______; OLIVEIRA, Paulo César (Orgs.). Uma literatura inquieta. Rio de Janeiro: Caetés, 2016. 272p. ______ . Literatura, intelectuais e a crise da cultura. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2007. 256p. ______; PIETRANI, Anélia (Orgs.). Literatura e poder. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2006. 235p. ______. Nação-Invenção: ensaios sobre o nacional em tempos de globalização. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2004. 223p.
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Sobrescritas de Lucia Helena
Confissões e conficções de Ana Cristina Cesar1 Anélia Pietrani2
sou uma mulher do século XIX disfarçada em século XX Ana Cristina Cesar, em Inéditos e dispersos
T
omo como epígrafe a este artigo esse poema de Ana Cristina Cesar não como tentativa de encontrar ressonâncias da mulher oitocentista na poesia de Ana, como poderia parecer à primeira vista, afinal nada é o que parece ser em Ana Cristina, e muito menos à primeira vista. O poema serve de mote à reflexão sobre um aspecto que – me parece (é o que tentarei mostrar, ao menos) – repercute um veio romântico em sua poesia: o limite difícil de precisar entre o ser e o disfarçar-se, espécie de entrelugar da confissão e conficção, para se compreender a consciência do estético em uma literatura que é consciência, como a de Ana Cristina Cesar. Confessando-se e conficcionando-se, Ana Cristina apresenta a seu leitor uma forma muito própria de fazer poesia: cartas, diários, eus, anas, tus percorrem o texto da poeta carioca, morta pre-
Apresentado como palestra na mesa-redonda “Romantismo e pós-modernidade: um diálogo possível?”, na Universidade Federal do Ceará, durante o II Encontro Nacional de Estética, Literatura e Filosofia, ocorrido em 2015, este artigo consiste em parte de um subcapítulo, ligeiramente modificado, de minha tese de doutoramento Experiência do limite: Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath entre escritos e vividos, defendida na Universidade Federal Fluminense em 2005, sob a orientação da professora Lucia Helena, e publicada em livro pela EdUFF em 2009. Devo a suas aulas de pós-graduação as leituras instigantes, sempre problematizadoras e enriquecedoras, dos românticos alemães e dos livros de Walter Benjamin e Hannah Arendt, que foram esteio de meu trabalho. 2 Professora de Literatura Brasileira da Faculdade de Letras da UFRJ e Coordenadora do NIELM – Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Mulher na Literatura – FL/ UFRJ. Dentre as publicações, destacam-se O enigma mulher no universo masculino machadiano (2000) e Experiência do limite: Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath entre escritos e vividos (2009), livros que resultaram, respectivamente, do Mestrado em Literatura Brasileira e Doutorado em Literatura Comparada, realizados na UFF sob a orientação da professora Lucia Helena. 1
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cocemente aos 31 anos em 1983. Até se poderia mesmo dizer que, em sua poética, ela se apresenta aos pés do leitor, como no provocativo título de seu livro A teus pés, cuja primeira edição data de 1982. A própria Ana Cristina, em depoimento3 sobre sua obra, ressalta que tentou registrar nesse título a presença de um outro, o interlocutor, a virtualidade de uma segunda pessoa. Isso a retiraria do solipsismo, ao mesmo tempo em que, ela pensa, sugeriria devoção religiosa, humilhação, paixão e um toque de romantismo (Cf. CESAR, 1999b, p. 264). Ana ainda acrescenta que, além de nos dar um “drible”4, o título abre a possibilidade de mobilização e referência ao outro, no âmbito próprio da paixão, do desejo alucinado de se lançar, de que o texto mobilize o outro, no próprio tecer da textualidade. Drible que redobra o sentido e remete tanto à “submissão do sujeito apaixonado ao objeto de sua paixão” quanto à “submissão do poema ao trabalho de leitura do leitor” (MORICONI, 1996, p. 132). Estudando os textos de A teus pés, não pode passar despercebida ao leitor a presença insistente de um destinatário. Há sempre um tu, um você, um ausente, que é convocado a todo momento, interpelado pelo sujeito poético, que sente a necessidade de revelação, confissão, beirando um discurso de até dependência, já que uma resposta do outro é veementemente exigida através do uso da segunda pessoa e dos verbos no imperativo. Uma forma mesma de rasgar o verbo romântico sob o olhar estetizante da palavra poética: é disfarçadamente se confessando que ela se conficciona. E isso não acontece apenas nos poemas escolhidos por Ana para publicação em A teus pés. Também é instigante, nesse sentido, a leitura do grupo de Refiro-me ao depoimento concedido a estudantes e professores participantes do curso “Literatura de mulheres no Brasil”, ministrado pela professora Beatriz Rezende, na Faculdade da Cidade, no Rio de Janeiro, em 6 de abril de 1983. Esse depoimento foi publicado em Escritos no Rio, livro que, desde 1999, passou a integrar a obra Crítica e tradução, publicada pela Editora Ática, que reúne os escritos ensaísticos de Ana Cristina Cesar. 4 “Ele (Waltércio, artista que elaborou a capa da primeira edição de A teus pés) exatamente sacou que ‘a teus pés’ invertia. O que a gente pensa que é ‘A teus pés’ o texto, de certa forma, dribla: ‘Não é isso que você está pensando’” (CESAR, 1999b, p. 264). 3
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poemas intitulado DO DIÁRIO não diário “INCONFISSÕES”, conjunto de dez textos, todos datados, presentes em Inéditos e dispersos, livro publicado originalmente em 1985, a partir da organização de Armando Freitas Filho. Descartando-se o primeiro, que poderia ser definido como uma espécie de prefácio aos demais (conforme apontarei mais adiante) e excetuando-se o penúltimo, intitulado, curiosamente, “Nó”, há oito poemas dessa série que apresentam ao pé a palavra “inconfissões”. Todos têm datas que remontam a outubro, novembro e dezembro de 1968; algumas, o mesmo dia. Chama a atenção, ainda, o fato de que esses poemas foram escritos quando Ana Cristina contava apenas 16 anos. Se aos românticos cabia o eterno desejo de juventude que tudo transforma em intensidade e embriaguez de um começo, para a jovem Ana não seria diferente, como diz Armando Freitas Filho, em prefácio a Escritos no Rio: “por ter sido precoce foi bastante, talvez intuindo o pouco tempo que teria para registrar o esplendor da sua inteligência e da sua vocação” (In: CESAR, 1993, p. 139). Afastemo-nos, porém, do glamour que ronda os poetas que morrem jovens, um veio também bem romântico, e nos aproximemos do diário não diário, das confissões inconfissões, do dito desdito, que nos abrem a possibilidade de estudar, sob uma perspectiva mais abrangente, os textos de Ana Cristina Cesar. No que concerne à sua produção poética, durante um tempo, a crítica a bifurcou em duas linhas, apoiando-se na opinião do poeta Cacaso. Por um lado, sua poesia se constituiria em “uma literatura mais ‘torturada’, de compreensão menos direta, menos imediata, uma literatura mais ‘difícil’”; por outro, em “textos construídos com base em montagens de coisas reais, de ‘brincadeiras’ com correspondência, biografias, diários, documentos, enfim, anotações em geral, todos estes textos profundamente marcados pelos fatos e situações do dia a dia” (PEREIRA, 1981, p. 222. Grifos do autor.). Esta seria a literatura fácil, bem mais ao gosto de sua geração e da do “graduado” classificador Cacaso, o “bom leitor” no dizer da própria Ana Cristina5. “Me lembro de uma frase típica do Cacaso (...) (ele) era o ‘bom leitor’, o ‘classificador’ e, uma vez, eu li (pra ele) um poema meu que eu tinha adorado fazer (...) e o Cacaso olhou com olho comprido (...) leu esse poema e disse assim: ‘É muito bonito, mas
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Outra vertente da crítica6, no entanto, reconhece a dificuldade que existe em insistir nessa dupla diferenciação. Aliás, nada mais romântico do que não se encaixar em gavetinhas de gêneros, estilos e escolas. Nunca é demais reforçar, apesar do transparente apelo à cultura helênica, a ironia que carrega a escolha pelos primeiros românticos alemães do nome Athenäum para uma revista literária, o que também nos faz pensar na poética de Ana Cristina: ser duas, disputar opiniões antagônicas, ser marginal dos marginais, Ana C. não faz escola nem é prisioneira de rótulos. Não se confessa só. Confessa-se conficcionalizando-se. Os dez poemas, por exemplo, que compõem a série DO DIÁRIO não diário “INCONFISSÕES” apresentam conteúdo bastante obscuro, em uma linguagem trabalhada com riqueza de detalhe. Até mesmo a titulação dos textos é sugestiva: “Rompimento”, “Soneto”, “Véspera”, “Fagulha”, “Toalha branca”, “Ante-sonho”, “Sonho”, “Nó”, “Água virgem”. Lidos em sequência, apontam vários caminhos que se encontram ou , borgeanamente, se bifurcam mais e mais, apontando outras direções ou liberdades. Rompimento Nas instâncias do momento zero Um sopro por entre as telhas sai Sombra, cobra, obra, nada quero Para o olho imerso um rasgo vai
não se entende (...) o leitor está excluído’. (...) Aí eu mostrei também o meu livro pro Cacaso e (ele) imediatamente... quer dizer aqueles ‘diários’ da antologia eram dois textos de um livro de cinquenta poemas... (e ele disse): ‘Legal, mas o melhor são os diários, porque se entende... são de comunicação fácil, falam do cotidiano’” (Apud PEREIRA, 1981, p. 229). 6 Maria Lucia de Barros Camargo, em Atrás dos olhos pardos: uma leitura da poesia de Ana Cristina Cesar, discute a caracterização da poesia de Ana Cristina a partir das duas linhas: o “difícil” e o “fácil”. Ao analisar a intensa carga de intertextualidade e desdobramento textual da entrada de diário “21 de fevereiro”, texto publicado em A teus pés que poderia ser um dos que incluiria Cacaso no grupo dos “fáceis”, a ensaísta conclui: “Intertextualidade que reforça a complexidade do texto ao mesmo tempo que desmonta a ideia do diário como ‘texto fácil’, bem ao gosto de sua geração, seja de poetas, seja de leitores, como o demonstrou Cacaso” (CAMARGO, 2003, p. 201).
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Esta nesga súbita que eu vi Este segredo que nunca está Este terremoto que entreouvi São alento e fôlego do ar Ressurge, pedra do abismo dor Reabre o séquito de fagulha Silêncio névoa em mim Vai-se o inútil salmo, o inútil amor Em cada começo o fio e a agulha Em cada som um nome só: o fim inconfissões – 28.10.68 (CESAR, 1998b, p. 37)
“Nas instâncias do momento zero”, primeiro verso do arremedo de soneto “Rompimento”, metaforiza o desbravar da escrita: um sopro que sai, a súbita nesga vista, o terremoto entreouvido, a pedra/ dor ressurgida, a fagulha reaberta, o silêncio. Tudo isso, em sentenças construídas sob/sobre fragmentos, se apresenta como um rompimento e uma tentativa de começo de costura para um fim (valendo a ambiguidade do termo), conforme são revelados (o rompimento? a tentativa?), desde o início do poema mas intensificados nos tercetos, através das paronomásias (“névoa neva”), dos quase ecos (“som/só”; “fio/fim”), do quase anagrama da quase rima (“salmo/amor”). Na sequência de poemas, alimentando os quase “rompimentos”, sob a tensão entre a tradição e a experimentação, continuam aparecendo fingidos sonetos, como “Soneto” e “Véspera”, até que, em “Fagulha”, com o abrir das cortinas, deslancha o eco do “Eu queria” em fogo que abrasa e só vai atenuar-se na última estrofe: racional, ou aparentemente racional, “Eu não sabia/ que virar pelo avesso/era uma experiência mortal” (CESAR, 1998b, p. 41). Mantém-se o eco cheio de concessões no poema “Toalha branca”. Esta esvoaça, de início, para decompor-se, finalmente. É impossível não fazer referência à riqueza gramatical do poema “Ante-sonho”, pelo belo e sugestivo jogo com os prefixos indicativos de anterioridade: ante e pré, em preparação ao poema seguinte “Sonho”, cujas inter-relações estão evidentes, com a continuação, inclusive, do uso de palavras do mesmo campo semân33
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tico: preamar, prelúdio, anuncia, inesperadas. “Preamar”, palavra feminina empregada no masculino por Ana, não significa só maré alta, nesse poema pode também ser lida “pré-amar”. Relacionam-se, portanto, a repentina força do mar e a do amar. As palavras-chave de “Nó”, grafadas em letras garrafais (feto e ermo), aguardam o renascimento em “Água virgem”, último poema da série: Perdi-me no entrelaçar-se de malhas. Entreguei-me no manchar-se de sonhos. Marquei-me no soluçar-se de perdas. Sob o peso deste som um flautim Sob o som deste peso uma queda rachou a chave calou a chuva barrou a chama (chuvisca no centro meu – nenhum grito) inconfissões – dezembro/68 (CESAR, 1998b, p. 46)
Fluxo incessante na perda, na entrega e na marca. Último poema de um diário em que não há confissões nem foram escritos diariamente. Última parada da trajetória da escrita: romper (o clássico), acender (o avesso), pensar (o sonho), desatar (o nó), desvirginar-se na perda. Voltemos, neste momento, ao que considero o poema-prefácio desses textos e ali encontraremos, pela metapoesia, a discussão sobre o parti pris de “ar de confissões íntimas” da poesia de Ana Cristina: 17.10.68 Forma sem norma Defesa cotidiana Conteúdo tudo Abranges uma ana (CESAR, 1998b, p. 36) 34
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Lido assim, tão despretensiosamente, como parece ter sido escrito, esse primeiro texto dessa sequência de poemas merece ser cotejado com o estatuto da poesia romântica descrito por Friedrich Schlegel no fragmento 116 da Athenäum7. A partir dele, é possível tecer considerações pertinentes à forma de escrita de Ana Cristina Cesar, que recupera muitas das indagações do Romantismo: Abrange tudo o que seja poético, desde o sistema supremo da arte, que por sua vez contém em si muitos sistemas, até o suspiro, o beijo que a criança poetizante exala em canção sem artifício. Pode se perder de tal maneira naquilo que expõe, que se poderia crer que caracterizar indivíduos de toda espécie é um e tudo para ela; e no entanto ainda não há uma forma tão feita para exprimir completamente o espírito do autor: foi assim que muitos artistas, que também só queriam escrever um romance, expuseram por acaso a si mesmos (SCHLEGEL, 1997, p. 64. Grifos nossos.).
A normatividade do fazer literário será substituída pela liberdade criadora: que norma há para a forma da poesia? Isso é o que se percebe nos três arremedos de soneto que Ana Cristina compõe para essa sequência de poemas: apesar de aparentarem uma regularidade métrica, esta só é, visualmente, semelhante à do soneto. Assim, ela revela, a partir da aparente ausência de forma, a diversidade de sistemas que compreende a poesia, que é preciso ser defendida cotidiana e diariamente (estaria aí a explicação para o diário não diário?). Ação tão cotidiana que ainda abrange uma bela rima – rica – com ana, grafada em minúsculas, no último verso. Ou que gênero de escrita é suficiente para exprimir o ponto de travessia poetizante-poetizado como “o beijo que a criança poetizante exala em canção sem artifício” de que fala Schlegel? A voz poética entrará em “defesa cotidiana” de um “tudo”, que “por acaso” exporá “uma ana”, seja em grau menor e comum pela inadequação de um uso próprio do nome poetizante, seja pela conA Athenäum foi uma revista finissecular, editada pelos irmãos Schlegel, em três volumes entre 1798 e 1800 (cada um deles dividido em duas partes), cujo conteúdo englobava textos de Novalis (Pólen e Hinos à noite), os fragmentos de Schlegel, seu ensaio Sobre o W. Meister de Goethe e sua Conversa sobre a poesia, uma espécie de paródia aos diálogos platônicos.
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dição “humana” de que se origina o nome poetizado sonoramente: uma ana humana, “por acaso”, como diz Schlegel. A isso se pode acrescentar a fala poetizada de Ana que assim insiste à Fernando Pessoa no arremedo de soneto que tem por título exatamente a palavra “Soneto”: “finjo fingir que finjo /Adorar o fingimento / Fingindo que sou fingida” (CESAR, 1998b, p. 38), pronta para perguntar nos dois últimos tercetos desse poema: Pergunto aqui meus senhores Quem é a loura donzela Que se chama Ana Cristina E que se diz ser alguém É um fenômeno mor Ou é um lapso sutil? (CESAR, 1998b, p. 38).
Distanciando uma ana de Ana Cristina ou, pelo menos, pondo sob tensão a relação e a diferença entre o sujeito da e na poesia – uma ana e a humana –, a poeta confirma que, mesmo que a exposição de si seja um acaso no texto (afinal, um lance de dados jamais abolirá o acaso), ainda assim, este não será mais si mesmo, mas também “por acaso” o “outro” da literatura através da figura do sujeito ficcional. A própria Ana, em depoimento a estudantes e professores participantes do curso “Literatura de mulheres no Brasil”, a que me referi anteriormente, ressalta que, “se você conseguir contar a tua história pessoal e virar literatura, não é mais a tua história pessoal, já mudou” (CESAR, 1999b, p. 262). Se há, nos textos de Ana, a marca da subjetividade, há, também, uma reflexão acerca do fazer poético em sua forma muito própria e “renovadora de flagrar a cotidianeidade – mesclada de lirismo, absurdo e impasses”, o que caracterizaria uma “escrita do impasse”, como define Lucia Helena em resenha crítica a Inéditos e dispersos (HELENA, 1986, p. 22), publicada na revista Belo belo em 1986. Diz Schlegel no fragmento 101 da Athenäum que “[a]quilo que acontece na poesia, ou não acontece nunca, ou acontece sempre. Do contrário, não é verdadeira poesia. Não se pode ser obrigado a acreditar que esteja efetivamente acontecendo 36
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agora” (SCHLEGEL, 1997, p. 62). Ou, como diz Ana no poema “Mancha”, também de Inéditos e dispersos: A poesia é uma mentira, mora. Pelo menos me tira da verdade relativa E ativa a circulação consanguínea (CESAR, 1998b, p. 35).
Como podemos ver, a problemática em torno do conceito de sujeito lírico e das relações entre ficção e real parece ser, no texto de Ana Cristina, uma forma de reforçar o absoluto de que trata a literatura, mesmo se lida como fragmentos da vida e da verdade, mesmo se for a “mentira” de que fala a poeta Ana em “Mancha”. E, entre mentiras e verdades de palavras ingovernáveis, postas sob tensão e relativizadas no domínio de quem as criou, podemos também perguntar, na esteira de Jean Starobinski, “Por que seria preciso dizer-se tão longamente a fim de ser-se?” (STAROBINSKI, 1991, p. 206). A forma de “dizer-se” da poesia de Ana Cristina Cesar, criando reflexividades e sugerindo a interlocução, abre a perspectiva de se estudar o campo do literário sob o viés da representação além do referencial, modulando as formas de conceber a literatura como linguagem criadora de mundo e não como mera transparência. O “ser” garantido pelo “dizer” revela que, na obra literária, “[n]ão estamos mais no domínio da verdade (da história verídica), estamos agora no da autenticidade (do discurso autêntico)” (STAROBINSKI, 1991, p. 205. Grifos do autor.). De toda sorte, são estas as formas de se conceber, mediada pela linguagem, a duplicidade da verdade e/ou do engano na alteridade da literatura, que faz confundir e fundir o ser e a palavra. Meditar sobre o caráter de autenticidade e alteridade da literatura possibilita-nos fazer este estudo interagir com as ideias desenvolvidas por Hannah Arendt no livro Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do Romantismo8. Nele, Arendt Grosso modo, essa obra trata da biografia de Rahel Varnhagen, feita a partir de cartas e entradas de diário organizadas por seu marido e aqui recortadas e comentadas por Arendt. Foi este o primeiro livro de Hannah Arendt, manuscrito em 1933, mas que só veio a público em 1957: depois da Segunda Grande Guerra, portanto, e após a formação do estado de Israel: “a presente biografia foi escrita já com consciência da destruição do judaísmo alemão” (ARENDT, 1994, p. 12). 8
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reconstrói a história de vida de Rahel, uma judia alemã feia (como se dizia), promotora de um importante salão cultural na fervilhante Alemanha daquele período, em que, sob as luzes do final do século XVIII, parecia ter sido assimilada, mas se sabia proscrita. Arendt toma sua biografia como texto e pretexto para analisar a dialética entre o ser humano e sua história pessoal, inserida na História social, por meio de um processo de escavação, de inserção de deduções, de digressão sobre o eu que contracena entre a verdade e o engano, parecendo seguir à risca as palavras de Schlegel do fragmento 27 da Athenäum: “os homens são em sua maioria apenas igualmente legítimos pretendentes à existência. Há poucos existentes” (SCHLEGEL, 1997, p. 51). O encaminhamento ao leitor de potente reflexão acerca da dialética do ser e do dever ser e a investigação do difícil desempenho entre ser e parecer constituem o ponto de confluência entre o livro de Hannah Arendt e o de Jean Starobinski, que proponho para cotejo, com a intuição luminosa de Ana Cristina Cesar: o de escrever no intervalo, com a consciência da tensão entre verdade e mentira quando se opera no campo do ficcional. Para Rahel, a vida e o ser se traduzem pela representação teatral e narrativa de papéis, de discursos, de articulações jamais estáveis. Essa vida como narrativa exige dela “não dizer a mesma coisa a todos, mas a cada um o que lhe era apropriado” (ARENDT, 1994, p. 102). Nesse modus vivendi, associam-se ser e parecer, verdade e imprecisão, a que se entrelaçam versões e visões: como o fato depende da opinião do outro, constata-se que o eu interior assim como o eu social são construções discursivas. “Sem um cenário não se pode viver” (ARENDT, 1994, p. 180), enfatiza Arendt sobre a Rahel que teria sido mestra na arte de representar a própria vida e, para tanto, não deveria contar a verdade, mas exibir a si mesma, revelando-se9 e construindo-se Em carta a David Veit, Rahel lhe pergunta: “Por que não mostra a alguém uma carta minha por inteiro? Isso não iria me incomodar; nada que escrevi precisa ser escondido. Se apenas eu pudesse me mostrar aberta às pessoas como se abre um armário e, num gesto, se mostra as coisas arrumadas em seus compartimentos... Elas certamente ficariam satisfeitas e, vendo-o, também compreenderiam” (Apud ARENDT, 1994, p. 27). Esse é o modo que utiliza para associar a escrita a uma forma de revelação e indiscrição.
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através das cartas. Esse é o ponto a partir do qual Hannah Arendt passa a fazer referência à indiscrição romântica, enfatizando que tanto esta quanto a ausência de vergonha foram fenômenos da época, do Romantismo. Como exemplo, Hannah Arendt cita as Confissões10, de Jean-Jacques Rousseau, que, para ela, teriam sido o primeiro grande modelo de indiscrição em relação a si mesmo, e Lucinde11, de Friedrich Schlegel, em que o autor tenta conciliar a ficção com a reflexão estética, rompendo com os gêneros convencionais. Com o intuito de estabelecer a distinção entre as emoções e as emoções narradas, Arendt ressalta sobre Rousseau que ele “não relatou a história de sua vida nem suas experiências. Meramente confessou o que havia pensado, desejado, querido, sentido no curso de sua vida” (ARENDT, 1994, p. 28), a que se acrescentam a ilação de Starobinski do dizer como garantia do ser e a constatação que faz sobre Rousseau, segundo a qual teria sido ele o que primeiro, na literatura moderna, viveu a experiência do “perigoso pacto do eu com a linguagem” (STAROBINSKI, 1991, p. 207). A própria Rahel percebe e persegue essa concepção da arte ao assinar uma de suas cartas a David Veit como “Confessions de J. J. Rahel” (Cf. ARENDT, 1994, p. 21). Como veio recessivo que ilustra a permanência desse traço em Ana Cristina Cesar, o trecho de uma carta de Ana endereçada a Maria Cecília Londres Fonseca pode ser exemplo de uma Ana missivista que, assim como Rahel, compreende o enlaçamento que a letra faz da verdade e da mentira, da revelação e da falsificação, de que dá conta o caráter “indiscreto” da literatura: É engraçado como a correspondência (não a ausência!!!) dá nostalgias (reparei que me atropelo e gaguejo um pouco e corto paAs Confissões, livro em que Rousseau procura explicar aspectos de sua vida e obra, começaram a ser escritas em 1764 e somente foram concluídas em 1771. Acometido por delírios de perseguição e na tentativa de justificar-se diante do mundo, ele passa a ler alguns excertos de seu texto nos salões parisienses, mas, logo, as leituras públicas são proibidas pela polícia. 11 O romance Lucinde foi publicado em 1799. Nessa obra, Schlegel tenta conciliar a ficção com a reflexão filosófica e estética, rompendo, dessa forma, com os gêneros convencionais. 10
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lavras e anacolutos pintam quando falo). É como se eu pudesse dizer melhor, mais limpo, mais completo, MAIS OUSADO ao escrever. Talvez seja engano. Não adianta, sou fascinada pelas letras (CESAR, 1999a, p. 184. Grifo da autora.).
A ousadia no e do ato da escrita persegue a Ana Cristina ensaísta e preocupada com as questões filosóficas e estéticas que envolvem a literatura, como também se constata em um post scriptum apenso à mesma carta, acerca de um texto que ela inclui e sobre o qual diz nem saber se “isso” pode ser considerado literatura ou não: P.S. Será que isso funciona como literatura? Alguém que não soubesse quem eu sou, não me conhecesse, acharia interessante? Esquisito. A lit. parece ser um lugar de dizer COM OUSADIA que eu não teria “na vida real”. O foco em 3ª. e o discurso indireto livre aparecessem (sic) como perigosos artifícios. Não sei, isso me confunde. Mas por outro lado é tão mais interessante que o “belo em si” de certos poemas... A solução que vejo: é uma forma ainda híbrida (CESAR, 1999c, p. 186. Grifo da autora.).
Mais uma vez, aparece a referência à associação da literatura com a ousadia, como forma de revelação e de indiscrição, como momento e espaço de trabalhar o perigoso artifício linguístico, como num jogo indiscreto e, simultaneamente, ambíguo, lembrando-nos Schlegel: “[t]odos os jogos sagrados da arte são apenas simulacros distantes do jogo infinito do mundo, da eterna obra de arte que se forma a si mesma” (SCHLEGEL, 1994, p. 58). Ou como diz Ana no ensaio “O poeta é um fingidor”12: A limpidez da sinceridade nos engana, como engana a superfície tranquila do eu. A literatura mexe com essa contradição: desconfia da sinceridade da pena e do cristalino das superfícies; entra a fingir para poder dizer; nega a crença na palavra como espelho sincero – mesmo que a afirme explicitamente. Finge o que deveras sente, já se disse. Este texto foi publicado, originalmente, em 30 de abril de 1977, no Jornal do Brasil, na seção “Livros”. Faz parte, atualmente, da compilação de seus textos ensaísticos Crítica e tradução.
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O Romantismo, por sua vez, põe em cena essa discussão: quem é esse eu lírico que se derrama em versos? Será sincero? Reflete o Autor? Mascara? (CESAR, 1999b, p. 202. Grifos da autora.).
O trecho citado confirma a perspicácia de Ana Cristina não só nos aspectos já destacados neste artigo mas também, e principalmente, no fato de perceber a importância do Romantismo como primeiro movimento estético que trouxe à tona tais questões, assim como já observara Walter Benjamin (de forma inaugural e, obviamente, muito mais consistente e sistemática) em sua tese de doutoramento O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão. Trazendo à baila questões intrincadas como a crítica a um modelo tradicional de razão e respaldando-se nos textos dos românticos de Jena, especialmente, Schlegel e Novalis, Benjamin parte do pressuposto de que a arte – e não exclusivamente o “eu” – foi colocada no ponto central da reflexão, com o Romantismo, que deve ser compreendido não apenas como estilo de época mas como questão filosófica ou visão de mundo13 (Cf. BENJAMIN, 1999, p. 48). Isso é um fato importante, na medida em que a arte assume autonomia e passa a ser compreendida em si e para si como uma unidade. Sobre esse aspecto, podemos citar o antológico (porém, marcado pela peculiar obscuridade de Schlegel) fragmento 206 da Athenäum, aliás referido pela própria Hannah Arendt, após concluir que nem as Confissões nem Lucinde são histórias de uma vida. Diz Schlegel: “Um fragmento tem de ser como uma pequena obra de arte, totalmente separado do mundo circundante e perfeito e acabado em si mesmo como um porco-espinho” (SCHLEGEL, 1997, p. 82). Também a este respeito, cf. Michael Löwy e Robert Sayre, em Revolta e melancolia: o romantismo na contramão da modernidade, que ampliam o conceito de Romantismo para além de uma concepção basicamente estilístico-literária e, como visão de mundo, o definem como uma forma de crítica à modernidade e à civilização capitalista moderna. Para eles, este é o papel do romântico: “o romantismo é, queiramos ou não, uma crítica moderna da modernidade. O mesmo é dizer que, embora se revoltem contra ele, os românticos não poderiam deixar de ser profundamente formados por seu tempo. Assim, ao reagirem afetivamente, ao refletirem, ao escreverem contra a modernidade, estão reagindo, refletindo e escrevendo em termos modernos. Em vez de lançar um olhar do exterior, de ser uma crítica oriunda de um ‘alhures’ qualquer, a visão romântica constitui uma ‘autocrítica’ da modernidade” (LÖWY & SAYRE, 1995, p. 39. Grifos dos autores).
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A curiosa imagem do porco-espinho, comparado ao fragmento e à obra de arte, é reveladora de uma duplicidade: daquilo que aponta para todas as direções livremente e daquilo sobre o qual tudo incide. Tanto remete a um outro como recebe dele, metaforizando, dessa forma, a completude em si mesmo, parecendo estar, ao mesmo tempo, sempre pronto a defender-se com seus espinhos. Nessa potencialidade de revelar-se e reconverter-se em um ser íntimo, estaria o principal pressuposto da concepção de arte romântica. Fechado em si, a inatividade do porco-espinho, e da obra de arte, é, no entanto, apenas aparente. Na contramão de uma sociedade marcada pela rapidez, pelo volátil e pelo efêmero, estar em si, estar em fantasia, estar em imaginação e em pensamento, refletindo-se a si mesmo e sobre si mesmo é estar em plena atividade, porque só assim, em alto grau de reflexão, a liberdade é ilimitada, ainda que isso só seja possível dentro de uma solidão absoluta: “alguns preferem contemplar quadros de olhos fechados, para que a fantasia não seja perturbada” (SCHLEGEL, 1997, p. 76). Nesse caso, sim, compreende-se o “totalmente separado do mundo circundante”; aqui, sim, a literatura funciona como “simulacro distante do jogo infinito do mundo”14. É na dialética entre a expansão infinita da fantasia e a constatação de sua especificidade que a literatura cria seu espaço e seu momento, até porque é com o Romantismo e seu despudor que, diriam Walter Benjamin e Hannah Arendt, se inaugura o questionamento sobre um conceito de verdade e de razão. O Iluminismo, diz Arendt, “elevou a razão ao status de autoridade, (...) declarou como capacidades supremas do homem o pensamento e o que Lessing chamava o ‘pensar por si próprio’” (ARENDT, 1994, p. 20). Como a razão iluminista não se basta, uma questão se abre: como libertar-se? Através do isolamento, do entrincheirar-se sobre o seu próprio eu, do pensar a partir da reflexão, a própria Hannah responde. Pensar por si próprio, pensar sobre si próprio, Reúno aqui expressões-chave do fragmento 206 da revista Athenäum e do trecho da página 58 da edição brasileira de Conversa sobre a poesia e outros fragmentos, a que aludi linhas anteriores neste artigo.
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fantasiar(-se), confessar(-se), imaginar(-se) fazem parte do processo da “infinitude da reflexão como infinitude realizada do conectar: nela tudo devia se conectar de uma infinita multiplicidade de maneiras” (BENJAMIN, 1999, p. 36). Compreendida como desdobramento infinito, a reflexão não pressupõe continuidade e sim um constante conectar (daí advém o termo benjaminiano “médium-de-reflexão”15 para definir a crítica), porque, discordando de Fichte, Schlegel não a compreende como uma infinitude vazia que contenha sempre o mesmo, mas sim como a que se desdobra, cada vez mais múltipla, em algo fundamentalmente novo: O romantismo fundou sua teoria do conhecimento sobre o conceito de reflexão, porque ele garantia não apenas a imediatez do conhecimento, mas também e na mesma medida, uma particular infinitude do seu processo. O pensamento reflexivo ganhou assim, para eles, graças a seu caráter inacabável, um significado especialmente sistemático que induz que ele faça de cada reflexão anterior objeto de uma nova reflexão (Benjamin, 1999, p. 32).
Definida como desdobramento infinito, compreendida como plena, múltipla, sempre pronta ao conectar e reconectar-se, a reflexão, finalmente, sai do âmbito exclusivo da filosofia e adentra a literatura. É a arte em seu pensamento reflexivo que se volta para si mesma de olhos fechados para o mundo mas de olhar atento a ele, tal qual o porco-espinho de que fala Schlegel, tal qual o fragmento e seu dialeto feito pólen e semente a abrir-se a fecundações e germinações (bem românticas, não?), conforme pensou Novalis. Reflexionsmedium, em alemão, tanto pode ser vertido para “médium-dereflexão” ou “médium-da-reflexão”, em português. Segundo Benjamin, “[c]om este termo é designado de maneira resumida o todo da filosofia teórica de Schlegel (...). A reflexão constitui o absoluto e ela o constitui como um medium. Schlegel em suas exposições, por mais que não tenha usado a própria expressão ‘medium’, depositou uma grande importância na conexão uniforme e constante no absoluto ou no sistema, ambos interpretados conforme a conexão do real não na sua substância (que é em toda parte a mesma), mas nos graus do seu desdobrar manifesto. Assim ele diz: ‘A vontade (...) é a faculdade do Eu de multiplicar-se ou de reduzir-se a si mesmo até um máximo ou um mínimo absolutos; uma vez que esta é livre, ela não tem nenhum limite’. Ele dá uma imagem clara para esta relação: ‘O voltar para si, o Eu do Eu, é a potenciação; o sair de si, a extração da raiz quadrada na matemática’”(BENJAMIN, 1999, p. 45-6).
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Disfarçadamente confessional, Ana Cristina conficciona-se em sua poesia e traz ao limite o jogo com a palavra, com a fantasia criadora, com a reflexão sobre a arte e o papel da arte. Uma ana ressoando humana se faz na sua conficção, por meio de um eu que se revela de viés, por acaso; por meio de uma fala que é silêncio, de uma confissão que não se confessa. “Em vez dos rasgos de Verdade”, embarca “no olhar estetizante” (CESAR, 1998a, p.141), a que acrescenta à Walt Whitman em seu romance (romance?) Luvas de pelica: Amor, isto não é um livro, sou eu, sou eu que você segura e sou eu que te seguro (é de noite? estivemos juntos e sozinhos?), caio das páginas nos teus braços (...) Te amo, e parto, eu incorpóreo, triunfante, morto (CESAR, 1998a, p. 141-2).
“Não quero mais a fúria da verdade.” É assim que Ana Cristina entra na disfarçada página de diário “21 de fevereiro”. Ela não precisa mais da verdade ao dizer-se e, na desleitura de Manuel Bandeira, completa: “Belo belo. Tenho tudo que fere.” (CESAR, 1998a, p. 106). A bela e ferina mulher do século XIX em Ana Cristina Cesar se faz também porco-espinho na poesia do eu incorpóreo e do pensamento reflexivo românticos, disfarçando-se, apenas se disfarçando, em século XX, porque é – ainda é – romântica. Referências ARENDT, Hannah. Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do Romantismo. Tradução de Antônio Trânsito e Gernot Kludasc. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão. Tradução, prefácio e notas de Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras, 1999. CAMARGO, Maria Lucia de Barros. Atrás dos olhos pardos: uma leitura da poesia de Ana Cristina Cesar. Chapecó: Argos, 2003. CESAR, Ana Cristina. Ana C. – Correspondência incompleta. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999a. ______. A teus pés. São Paulo: Ática, 1998a. ______. Escritos no Rio. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Brasiliense, 1993. ______. Inéditos e dispersos. São Paulo: Ática, 1998b.
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Riscos da escrita, rastros da memória: homenagem à Professora Lucia Helena ______. “Depoimento de Ana Cristina Cesar no curso Literatura de mulheres no Brasil”. In: Crítica e tradução. São Paulo: Ática, 1999b, p. 256-273. ______. “O poeta é um fingidor”. In: Crítica e tradução. São Paulo: Ática, 1999c, p. 202-203. HELENA, Lucia. “O texto insólito e emocionante de Ana Cristina”. Belo belo, nº. 4. Rio de Janeiro, p. 22-23, jan-mar, verão/1986. LÖWY, Michael e SAYRE, Robert. Revolta e melancolia: o romantismo na contramão da modernidade. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 1995. MORICONI, Italo. Ana Cristina Cesar: o sangue de uma poeta. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; Prefeitura, 1996. NOVALIS. Pólen. Tradução, apresentação e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Iluminuras, 2001. PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. Retrato de época: poesia marginal anos 70. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1981. PIETRANI, Anélia Montechiari. Experiência do limite: Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath entre escritos e vividos. Niterói: EdUFF, 2009. SCHLEGEL, Friedrich. Conversa sobre a poesia e outros fragmentos. Tradução, prefácio e notas de Victor-Pierre Stirnimann. São Paulo: Iluminuras, 1994. ______. O dialeto dos fragmentos. Tradução, apresentação e notas de Marcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1997. STAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
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O poder do artefato e o futuro da poesia Dau Bastos1 A Lucia Helena, cujo ensaísmo me inspira profundamente.
Em pleno ano de 2014, Gustavo Bernardo publicou um volumoso livro intitulado A ficção de Deus, no qual não faz qualquer profissão de fé, preferindo assumir-se como ateu suave, ou seja, incapaz de acreditar, mas respeitoso e até admirador da crença alheia. Seu interesse pelo tema decorre de que “toda a arte nasce da religião” (p. 21) e de que a divindade é “a suprema ficção da humanidade” (p. 340). Atribuir origem sagrada à criação humana equivale a colocar em xeque as pretensões iconoclastas da literatura moderna e, em contrapartida, legitimar qualquer que seja a blasfêmia estimulada pela diferença, estabelecida por Kant ainda em 1790, na Crítica da faculdade do juízo (1993), entre beleza e bondade. Por sua vez, assimilar Deus como a mais ousada das ficções é desfazer do dogma e, ao mesmo tempo, reduzir todas as outras ficções a produtos menores dessa faculdade fértil chamada imaginação. Em A ficção, Karlheinz Stierle também parte do mito e, entre as demais formas de ficção arrojadas, inclui a propriedade privada, “quimera objetiva que, no entanto, como Rousseau demonstra no Émile (1762), se transformou no fundamento da sociedade burguesa” (2006, p. 62). De fato, quem garante, por exemplo, que um imóvel documentado em nosso nome realmente nos pertence? A ficção maior (Deus)? Não, apenas o burocrático cartório em que a escritura foi registrada. Na verdade, a mente fabrica ficção movida por uma necessidade tão vital quanto aquela que o corpo tem de respirar. Assim, atribui algum sentido ao que acontece antes e depois da vida, da mesma forma que viabiliza a execução mesmo dos gestos mais 1
Escritor e professor de Literatura Brasileira da UFRJ.
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simples da existência. Ao encontrarmos um conhecido, por exemplo, o cérebro antevê (portanto, ficcionaliza) o movimento de esticar a mão com que o cumprimentamos. Daí a ideia de ser humano algum escapar à condição de ficcionista. Essa inevitabilidade levou o fundador da ciência moderna – Francis Bacon – a propor, como antídoto para os extravios causados pela indomável imaginação, o experimento. Acontece que, conforme afirma Wolfgang Iser, desde o momento em que essa operação “tem como finalidade uma descoberta esperada mediante a antecipação” (2013, p. 155), depende de uma construção mental, isto é, de uma ficção. Incapaz de compreender o funcionamento do cosmo e as razões de ter vindo à luz, a pessoa jamais aprenderá muito sobre a realidade e, em aparente coroação de tantas limitações, sequer consegue desvendar sua própria natureza. Ainda segundo Iser, esta última insuficiência é que leva o ser humano a se encenar, de modo a conceber o inacessível, sem, claro, que este se arvore em existente. É essa ficção sem firmamento e sem doutrina que encontramos configurada nas obras de arte. Presente em todos os tempos, essa necessidade específica de ficção varia bastante quanto à maneira como é satisfeita. Sua produção e sua recepção sofrem interferências de fatores tão distintos quanto as circunstâncias históricas, o rol de artefatos colocados à disposição dos criadores e a forma como o território da estética está sendo partilhado pelas artes. A proposta deste ensaio é refazer sucintamente o percurso empreendido pela poesia e pela prosa de ficção brasileiras desde a década de 1840 até a atualidade. Assim, poderemos levantar a irônica hipótese de os escritos em versos encontrarem no computador a possibilidade de recuperar o espaço e o prestígio de que usufruíam antes da consolidação do romance nos trópicos. Nosso périplo respeita a cronologia e a geografia, mas se pretende menos historiográfico do que teórico, portanto é forçosamente lacunoso e ziguezagueante. Tenta equilibrar o abstracionismo do enfoque de buscas estéticas empreendidas em determinados períodos com a concretude da avaliação de mudanças suscitadas 47
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pelos novos meios de desenvolvimento e escoamento da ficção. Sempre em prol da imanência, a argumentação se ancora igualmente em obras de autores marcantes do Brasil e do exterior. Entre eles, destaca-se Machado de Assis, que teve a carreira influenciada pela reorganização dos gêneros literários e explorou exemplarmente várias frentes de escrita. Sua presença é essencial à abertura e ao fechamento da argumentação, a cuja diacronia oferece ainda o benefício de imunizar-se contra a espúria ideia de evolução do fazer artístico.
Imprensa: a popularização do romance Machado de Assis despontou no mundo das letras aos quinze anos, com o “Soneto à Ilma. Sra. DPJA”, publicado no Periódico dos Pobres. Dez anos depois, lançou seu primeiro livro, o volume em versos Crisálidas. Considerado versejador promissor pela mídia de então, foi chamado de poeta inclusive por Carolina, ao anunciar o noivado à Condessa de São Mamede. No entanto, vivia-se o desenvolvimento da prosa artística em solo nacional, conforme atesta o sucesso retumbante de A moreninha (1844), publicado originalmente em folhetim, portanto colocado ao alcance de um grande número de pessoas. O êxito de público de Joaquim Manuel de Macedo nos permite chamar a atenção para o poder da prensa. Esse artefato viabilizou a existência do único meio de comunicação de massa da época, o jornal, que encontrou na ficção a possibilidade de manter uma seção a tal ponto contrastante da aridez das notícias que figurava como uma espécie de oásis. Claro, a questão dos gêneros literários vai muito além da discussão sobre o papel desempenhado por aparelhos, utensílios e máquinas: como sabemos, o romance havia iniciado a luta pela sua afirmação, como escrito democratizante, ainda na Idade Média; e, no século XIX europeu, já arrolava muitos best-sellers em seu histórico. Assim, a enfática defesa do cultivo da prosa literária nos trópicos, empreendida por José de Alencar em 1856, é mais uma prova de que o subdesenvolvimento e o anacronismo frequen48
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temente fazem par. De toda maneira, o autor pôde provar a pertinência de sua tese porque contou com a ajuda do equipamento de impressão. A aparição, na forma de folhetim, de O guarani (1857) levou o Visconde de Taunay a afirmar que “o Rio de Janeiro em peso, para assim dizer, lia”. Fenômeno semelhante se registrava em São Paulo, onde cada capítulo era devorado com emoção nas repúblicas de estudantes, em seguida o Diário do Rio virava objeto de uma disputa impaciente, “e pelas ruas se viam agrupamentos em torno dos fumegantes lampiões da iluminação pública de outrora – ainda ouvintes a cercarem ávidos qualquer improvisado leitor” (TAUNAY, 1923, p. 85). Vemos, portanto, que O guarani teve uma carreira meteórica porque a gráfica rodava o periódico com uma agilidade que possibilitava a manutenção do interesse quanto ao desenrolar da história. Além disso, imprimia exemplares em quantidade suficiente para atingir um bom número de brasileiros alfabetizados, os quais, além de satisfazerem a própria necessidade de narrativa, liam o episódio em voz alta, possibilitando que compatriotas iletrados também tivessem acesso ao conteúdo. Macedo inspirou Alencar, que era admirado por Machado, que teve na tipografia de Paula Brito a possibilidade de ganhar algum dinheiro e conhecer autores mais velhos, que lhe conseguiram as primeiras colaborações para jornais e revistas. Em meio aos textos machadianos veiculados pelos periódicos, há muitos poemas, mas nem de longe em número que rivalize com a verdadeira avalanche de escritos em prosa, que, além de especialmente favoráveis à transmissão do ceticismo do autor, passaram a contar com uma acolhida extraordinária em todas as latitudes, inclusive no Brasil. Os analistas da obra completa de Machado costumam sublinhar o brilho de várias de suas composições em versos, mas tendem a concordar que parte delas se ressente do excesso de narratividade. Ficcionista dedicado e exitoso a ponto de conseguir colocar o romance brasileiro “em diálogo com as vozes decisivas da literatura ocidental” (MERQUIOR, 1996, p. 209), nosso autor imprimiu cada vez mais densidade filosófica a seus poemas, con49
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tudo não incluiu, entre as muitas antecipações de que foi capaz, a tentativa, feita pela poesia ao se ver destronada, de aprofundar suas diferenças formais em relação à prosa e, assim, ocupar um lugar inconfundível. Viventes de um tempo em que o audiovisual detém um poder imenso, nem sempre lembramos que, até o século XIX, o ser humano satisfazia a necessidade de narrativa basicamente por meio do teatro e de material impresso. Machado acompanhava de perto as artes cênicas e chegou a escrever algumas peças, que, entretanto, se mostraram muito cerebrais para satisfazer a expectativa média dos espectadores, então acabaram deixadas de lado. Já em jornal e livro, o autor cuidava inteiramente da relação com o leitor, daí conseguir conduzi-lo experimentos afora. A essa facilidade se soma o fato de ambos os veículos terem conquistado cada vez mais público, afinal podiam circular à vontade, ser lidos a qualquer momento e passar por várias mãos sem aumento de preço. No presente, a ficção aparece nos periódicos apenas na forma desse escrito híbrido chamado “crônica”. Contos e romances são veiculados tão somente em livro, que custa caro e, para oferecer uma boa dose de narrativa, demanda muito mais tempo do receptor do que a imagem em movimento. Dado à independência e avesso a fazer concessões, Machado dificilmente se contentaria, caso fosse vivo, em escrever roteiro, que quase sempre visa ao grande público e, para chegar à tela, necessita passar por uma intermediação ainda mais incisiva do que aquela que suas peças precisariam sofrer para ser encenadas. Mas talvez faça sentido nos perguntarmos se, caso estreasse com seu soneto nos dias de hoje, o criador de Capitu não ficaria tentado a priorizar a poesia. A cogitação nasce da constatação de que a pressa a que somos submetidos e os meios de produção de que dispomos são bem mais propícios à escrita, veiculação e recepção de textos curtos. Prova disso encontramos no espaço mais frequentado da atualidade – a internet –, onde abundam páginas de poesia bastante populares. Evidentemente, qualquer retrospectiva que façamos no próprio âmbito da literatura nos leva a desconfiar dos prognósticos 50
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que o presente estimule a fazer. A intuição que deu origem ao surgimento destas páginas se recobre ainda mais de incerteza pelo fato de ser aventada por mim, que, além de priorizar a ficção em escrita, análise e aula, nunca publiquei verso, tampouco ensaio sobre poesia. Agora, da mesma forma que tendemos ao fracasso sempre que nos acreditamos dotados de bola de cristal capaz de antever os caminhos da sempre nebulosa subjetividade, não podemos desconsiderar o poder dos artefatos de interferirem na criação. Pensando assim, sugiro deixarmos a imprensa para trás e passarmos em revista o daguerreótipo, o cinematógrafo e o televisor, até chegarmos ao computador – a meu ver, suficientemente forte para, independente da competência e do cacife do analista, ajudar a pensar o horizonte promissor que se abre para a poesia.
Daguerreótipo: alavanca da pintura Em 1839, a tradicional instituição francesa Academia das Ciências celebrou a invenção do daguerreótipo, registrado pelo físico e pintor Louis Jacques Mandé Daguerre. Origem daquilo que posteriormente ficaria conhecido como máquina fotográfica, o aparelho se popularizou a grande velocidade, possibilitando que pessoas completamente inábeis para o desenho e a pintura pudessem captar imagens muito nítidas do real. Hoje em dia, o aumento da escolaridade, a complexificação da visão de mundo e a difusão de informações técnicas são alguns dos fatores a levarem muita gente a aproveitar as facilidades oferecidas pela tecnologia digital para realizar o pendor humano para a mimese. A própria página pessoal de Facebook constitui uma galeria de fotos que, ao terem a captação antecedida do que se costuma chamar de pré-produção e a veiculação precedida de uma escolha pautada em critérios, se mostram estetizadas e utilizadas como elementos importantes da narrativa protagonizada pelo internauta. Igualmente importante à tematização desenvolvida aqui é relembrar a crise a que a invenção do daguerreótipo levou a pintura. Como não podiam rivalizar com o equipamento no tocante à repro51
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dução das imagens que a natureza oferece gratuita e nitidamente aos sentidos, os pintores temeram perder a razão de existir. Entretanto, em 1874 (portanto, três décadas e meia depois do início da popularização da máquina fotográfica), deram um passo gigante no sentido da volta por cima: a exposição com que inauguraram o Impressionismo, um movimento desde sempre prestigioso, dado a devolver ao mundo não o dito real, mas o resultado trabalhado de suas marcas na interioridade – dimensão de que máquina alguma jamais disporá. O Impressionismo foi o ponto de partida de um processo de desrealização que se chamou Expressionismo ao tratar a subjetividade menos como instância acolhedora e transformadora dos dados vindos do exterior do que como a própria fonte das figuras. Sua radicalização se deu no Abstracionismo, que abriu mão inclusive do desenho, deformado ou não, de pessoa, animal ou coisa. A chegada ao não figurativo equivale ao máximo de abertura do espectro de possibilidades de criação do pintor, que, desde então desobrigado de dar mais algum passo no sentido da abstração, ficou à vontade para combinar livremente os elementos pictóricos. Conforme afirma Anatol Rosenfeld (1969), o processo de desrealização vivido no domínio da pintura se expandiu ao campo artístico como um todo. Encontrou correspondência, além disso, em descobertas que lhe foram coetâneas, como aquelas registradas por Mallarmé em suas Notes, que, publicadas ainda em 1869, afirmaram textualmente que “todo método é uma ficção” (1945, p. 851). Dessa maneira, desmontaram a aposta, feita no século XVII por Descartes, na possibilidade de se banir a imaginação do campo da ciência. Ora, se Bacon, Descartes, Locke, Hume e outros pensadores não deveriam temer a imaginação – afinal, em vez de fonte de extravio, ela é fundamental ao conhecimento –, que dizer dos poetas, que sempre a tiveram como faculdade predileta? O autor do emblemático Um lance de dados jamais abolirá o acaso, publicado originalmente em 1897, a valorizará ao máximo, ao defender a ideia de que a ficção não precisa de nexos com o real, podendo ser buscada na própria linguagem. Assim, a poesia adentrou o século 52
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XX flertando tão ardorosamente com a desreferencialização quanto a pintura abstrata. Anatol Rosenfeld diz ainda que as diferentes esferas são autônomas, porém nutrem uma relação de “interdependência e mútua influência”, certamente estimulada pela existência de uma “unidade de espírito e sentimento de vida que impregna, em certa medida, todas essas atividades” (1969, p. 76). É possível que, mesmo sem os influxos decorrentes do esforço de se reinventar empreendido pela poesia e pela pintura, todas as artes acabassem privilegiando o ensimesmamento. Só não podemos deixar de ver o daguerreótipo como estopim de iniciativas que, além de mudarem consideravelmente a pintura, inspiraram o mundo artístico como um todo.
Cinematógrafo: estímulo ao romance experimental A fotografia é um recorte da realidade e, como tal, convida nosso espírito a localizar, no espaço e no tempo, a cena visualizada. É estática, sim, mas supõe um antes e um depois. Mais que isso, basta ser produzida em quantidade e segundo uma sequência para facultar a veiculação de uma ação. O cinematógrafo, lançado em 1895 pelos irmãos Lumière, possibilitou a captação de imagens a uma proximidade tal entre si que, durante a exibição, o acontecimento retratado parece se desenrolar diante de nossos olhos. A capacidade de documentar foi explorada desde as primeiras filmagens, ainda que a imagem em movimento haja esperado o advento da televisão para, beneficiando-se de uma velocidade de transmissão que possibilita a difusão de reportagens até mesmo ao vivo, revolucionar definitivamente o jornalismo. Além disso, o cinematógrafo logo cedo se mostrou extremamente viável ao registro e à veiculação de narrativas ficcionais, que, descompromissadas em relação à atualidade, não têm necessariamente data de validade. Realizados a partir de tramas concebidas por um roteirista, enriquecidas por uma equipe multifacetada e transmitidas de uma maneira que não requer sequer leitura, os filmes oferecem extensos entrechos em menos de duas horas. Nada mais natural que o 53
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cinema suplantasse o romance como principal fonte de ficção. Aos escritores restou a alternativa de fazerem movimento semelhante ao de poetas e pintores, ou seja, de buscarem, na própria linguagem, os recursos de diferenciação que justificassem a preservação do gênero. Claro, da mesma forma que nem todo pintor surgido depois da invenção do daguerreótipo se dedicou à desrealização, muitos autores do século passado (e mesmo do presente) optaram por continuar cultivando expedientes que, mesmo desenvolvidos pelo romance, não somente foram incorporados pelo cinema como passaram a caracterizar o filme comercial. Entre eles, destacam-se mecanismos de conexão entre um segmento e outro vistos como banais já nos folhetins, o encarrilhamento de uma verdadeira profusão de eventos e outros apelos que, sem maniqueísmo nem exagero, associamos à receita para se produzir best-seller. A reação à perda de espaço para o cinema encontrou combustível nas propostas das vanguardas europeias, que desde o Futurismo preconizaram o desrespeito dos marcos espaciotemporais, a implosão da sintaxe, a subversão da semântica, a libertação das palavras, a criação de neologismos e a adoção de várias outras medidas harmonizadas à proposta de Mallarmé de se produzir ficção a partir da linguagem, e não do mundo. Com suas semelhanças e diferenças, o romance e o poema se irmanaram desde o momento em que passaram a nascer não da reprodução de fórmulas, e sim da vontade de extrair seiva dos próprios elementos formais. O primeiro romance brasileiro a levar às últimas consequências o que Antonio Candido e José Aderaldo Castello chamaram de “nova estética” (1968, p. 9) certamente foi Memórias sentimentais de João Miramar, lançado em 1924. Ao longo de seus muitos fragmentos, Oswald de Andrade (2010) semeia nonsense, explora a polissemia, oferece esboços de poemas à guisa de capítulos, põe em cruzamento uma grande variedade de discursos e, de quebra, canibaliza a estética cinematográfica. Assim concebida, essa ficção se afastou de tal maneira do feitio corriqueiro das narrativas que continua pouco lida, ainda que seja unanimemente reconhecida como divisora de águas nos trópicos. Con54
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forme demonstra Haroldo de Campos (1964) no ensaio/prefácio “Miramar na mira”, esse livro teve seu espírito disseminado em muitas obras que o sucederam, a começar por Macunaíma, de 1928, segundo reconheceu o próprio Mário de Andrade em carta a Manuel Bandeira datada de 1927. Na verdade, tem-se a impressão de que todos os escritores do século XX com um mínimo de conhecimento da história do romance tentaram, na imbatível síntese de Jean Ricardou, passar da “escrita de uma aventura” para a “aventura de uma escrita” (1971, p. 32). Grosso modo, o não narrativo do romance equivale ao não figurativo da pintura. Entre aqueles que buscaram essa confluência insistentemente, destaca-se Clarice Lispector (1973), que chegou a usá-la para estruturar Água viva, composto de meras insinuações de cenas inundadas por avalanches de especulações sobre a vida e a criação, verbalizadas por uma protagonista-narradora que não é escritora, e sim pintora abstracionista. É de se levar em conta que, por mais que os gêneros e as artes tenham desenvolvido diferentes maneiras de aproximação, cruzamento e, às vezes, até fusão, o próprio receptor exige o respeito a determinadas balizas. Nesse sentido, pode-se dizer que a expectativa mais comum é que a abstração seja inversamente proporcional à extensão do texto. Mesmo quem é dado a apreciar escritos experimentais há de concordar, por exemplo, que a leitura desse misto de prosa e poesia chamado Catatau, lançado por Paulo Leminski em 1975, é um exercício dos mais árduos. Quanto mais o relemos, mais apreciamos o jogo mediante o qual a carência de eventos é compensada pela fulguração da linguagem, porém fazer a primeira travessia inteira do parágrafo único, de mais de duzentas páginas, que o constitui requer um ânimo e uma concentração de que raramente dispomos. A existência de experimentos como Um lance de dados jamais abolirá o acaso (1897), Ulysses (1922), Pauliceia desvairada (1922), Memórias sentimentais de João Miramar (1924), Grande sertão: veredas (1956), Água viva (1973), Galáxias (1984) e muitos outros mantém a abstração, a desreferencialização, a autorreflexividade e outros traços novecentistas no horizonte de poetas e 55
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prosadores. Essa relação logicamente não tolera a cópia que, digamos, assimilasse um desses marcos como inaugurador de uma espécie de prole. Porém, pode tanto suscitar a produção de um texto igualmente retumbante quanto estimular o cultivo do que, pedindo licença a Machado, poderíamos chamar de instinto de radicalidade. Em repetição de movimento feito ao final dos parágrafos dedicados ao daguerreótipo, convém cogitar da possibilidade de, mesmo sem o surgimento da imagem em movimento, a experimentação haver assumido o primeiro plano também no domínio do romance. Afinal, a famosa virada linguística foi um fenômeno muito mais abrangente do que a mera emergência da sétima arte. Só não podemos esquecer que o cinema empurrou o conto, a novela e o romance para um cantinho parecido com aquele a que eles próprios haviam relegado a poesia. Para sobreviver, a prosa de ficção precisou viver um processo de reinvenção semelhante àquele enfrentado (a duras penas e com resultados magníficos) pela pintura.
Televisor: a narrativização da vida A televisão possibilitou que, em vez de precisar sair de casa para encontrar a ficção na sala de cinema, a pessoa a recebesse no próprio lar. Por sua importância comercial, cultural e política, o novo meio de comunicação se aperfeiçoou e se expandiu a uma velocidade vertiginosa. No continental Brasil, chegou em 1950 e, apenas duas décadas depois, já marcava presença em praticamente todos os municípios. A essa altura, o percentual de iletrados continuava escandaloso, porém bem abaixo dos índices que, no século XIX, levavam Machado ao desespero. Todavia, a necessidade de narrativa passou a ser satisfeita menos pelos jornais e livros do que pelo cinema e a televisão. Ao fundamentarem suas transmissões na combinação entre imagem e som, a tela e a telinha praticamente prescindem de texto, portanto não impõem ao receptor a necessidade de ler. Um dos efeitos colaterais dessa salutar democratização do acesso a fa56
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tos e ficções é estimular indiretamente a permanência de boa parte de nosso povo no estágio do analfabetismo funcional. A televisão se dispôs a preencher todas as brechas da agenda cotidiana. Dos noticiários aos seriados, passando pelos programas de auditório e culminando nas telenovelas, a diversão se oferece ao longo do dia e da noite, sem exigir qualquer esforço mental. Mesmo os telejornais são ágeis, apresentados por profissionais bem produzidos e editados de modo a não deixarem o telespectador sequer piscar. A atenção prolongada do grande público é fundamental ao financiamento do entretenimento, que, para se manter gratuito, depende da venda em massa dos produtos dos patrocinadores. A estetização incide sobre toda a programação – inclusive os anúncios –, mas descolada da inquietude que marca historicamente a arte e, na verdade, dedicada ao subserviente papel de fazer os mais questionáveis conteúdos atingirem o nível da espetacularização. É lugar-comum que a televisão tem contribuído sobremaneira para a virtualização da existência e promovido uma espécie de arrumação na maneira de as pessoas conceberem e contarem histórias. A popularidade do veículo depende da repetição ininterrupta de um script muito próximo daquele utilizado desde o tempo das cavernas, ao qual se fazem ajustes pautados menos pela criatividade do que pelo afã de dilatar o alcance e prender a atenção. Assim, ao serem repisados na mente do telespectador, o roteiro e a edição televisivos acabam criando uma espécie de padrão narrativo. Entre os programas, interessa-nos sobretudo a telenovela, devido à sua semelhança com aquilo que o romance não quis mais ser desde a invenção do cinematógrafo. Como ninguém escapa à aparição, nos mais diferentes recintos, de flashes dessas tramas extensas e trepidantes, todos sabemos que invariavelmente decalcam os folhetins do século XIX. De minha parte, comecei a ficar constrangido de repetir esse paralelo sem jamais haver visto mais que cenas esparsas, então resolvi assistir a cada um dos capítulos de Império, que se desenrolou de julho de 2014 a março de 2015. Admito o prazer, experimentado ao longo desses oito longos meses, de saber que, à noite, 57
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viveria mais uma sessão de fuga do real. Mas, além do mal-estar causado pelo conservadorismo da abordagem das questões sociais, dava nos nervos a frequência com que se recorria a malabarismos que matariam de vergonha mesmo um Balzac ou um Alencar. A título de significativa curiosidade, o período de instalação e afirmação da televisão em nosso país correspondeu aproximadamente àquele de publicação das narrativas de Guimarães Rosa, que, como sabemos, levou a uma espécie de ápice a experimentação com a linguagem literária. É o que se pode depreender da afirmação, feita por Sérgio Sant’Anna, de que Grande sertão: veredas é “um dos grandes livros da humanidade. É tão perfeito que fechou o próprio caminho. Guimarães é terminal” (2007b, p. 172). Mas talvez o comentário mais revelador da importância do trabalho do mineiro se encontre na depreciadora afirmativa, feita por Ferreira Gullar (1958), de que não havia conseguido passar da septuagésima página de Grande sertão: veredas, pois o livro começara a lhe “parecer uma história de cangaço contada para linguistas”. Em 2006, durante a coleta de entrevistas para o livro Papos contemporâneos 1, tive a tristeza de constatar que o talentoso maranhense persistia no pensamento. Perguntei, então, que ficcionistas brasileiros eram de seu agrado. Ele passou algum tempo vasculhando a memória em busca de um nome, para, ao final, citar, um tanto vagamente, Jorge Amado... Até a entrevista, eu acreditava que a famosa frase fosse mais uma dessas deturpações a que, por superficialidade ou má-fé, a imprensa submete certos depoimentos. A reiteração literal das palavras, pelo próprio poeta, depois de quase meio século de acúmulo de uma fortuna crítica que elevara o romance de Rosa à merecidíssima condição de monumento, me deixou tão chocado e constrangido que cortei o tópico da versão da conversa trazida a lume. Contudo, o incidente ficou martelando em minha cabeça e acabou me levando a escrever o ensaio “Guimarães Rosa: sombra ou sol da posteridade?” (2007a), no qual levanto a hipótese de o mineiro haver harmonizado tão bem ficção e poesia que os autores que o sucederam se dividem entre o reconhecimento de sua condição de insuperável e a impossibilidade de digerir o fato de ele ter 58
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aparecido antes. Talvez a obra rosiana seja o melhor resultado da pressão que o cinematógrafo exerceu sobre os escritores brasileiros até o presente. Os ficcionistas surgidos depois da imagem em movimento se situam em pontos variados de uma escala que vai da pasteurização à experimentação. O objetivo de agradar ao dito grande público e a falta de consciência literária levam muitos escritores a se entregarem passiva e concordantemente ao poder avassalador do roteiro reproduzido à exaustão pelo cinema comercial e pela televisão. Na contramão dessa corrente dada à moleza e à banalização, encontram-se os autores que, além de lutarem contra a formatação do próprio cérebro por Hollywood e pela Globo, tentam aproximar seus escritos das artes em que a aposta na peculiaridade e o investimento em diferenciais se mostraram via fecundas de enfrentamento da crise, como a pintura e a poesia.
Computador: uma janela para a poesia O daguerreótipo, o cinematógrafo e o televisor suscitaram o surgimento de novas especialidades artísticas, possibilitaram o desenvolvimento de técnicas de produção inéditas e reconfiguraram o campo da criação. Entretanto, mantiveram em mão única a relação que consiste em alguém inventar algo e oferecer à fruição do público. Já o computador veicula praticamente todas as formas de arte e, como se não bastasse, é um meio dos mais eficazes e polivalentes de produção. Mostra-se ideal para tornar conhecidos os quadros de uma exposição, propagar imagens estáticas e em movimento, difundir música, reproduzir textos e assim por diante. Além disso, incita o usuário à criação, ao disponibilizar recursos para fotografar, filmar, compor, escrever e editar. Em síntese, contribui decisivamente para o embaralhamento dos papéis de produtor e receptor. Passado quase meio século da famosa aula inaugural do teórico da literatura Hans Robert Jauss na Universidade de Constança, podemos dizer que o artefato possibilitou a superação mesmo do 59
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otimista prognóstico da Estética da Recepção, que sempre viu o leitor como capaz não somente de recriar a obra, mas de ampliar continuamente o horizonte de ficcionalidade. O ganho de atividade estimulado pelo computador certamente explica, ao menos parcialmente, que um percentual cada vez maior de receptores virem autores. No Brasil, a quantidade de ficcionistas e poetas em atividade é tão grande que nenhum pesquisador, por mais antenado e empenhado que seja, consegue mapeá-los inteiramente. Perceptível em todas as áreas, o fortalecimento do receptor assume contornos especiais nas letras, como decorrência de o computador estimular vivamente a escrita. Se antes das redes sociais o e-mail já havia substituído o telefonema pela troca de mensagens redigidas, agora o menos escolarizado dos internautas precisa alinhavar um certo número de palavras em seus posts. Mesmo um país pouco dado à leitura como o nosso parece agraciado com uma última oportunidade de erradicar o iletramento. Mais que isso, vê o imaginário nacional enriquecido por textos literários que, oriundos de diferentes regiões, circulam virtualmente por todo o planeta. No tempo em que as limitações técnicas impunham que as tiragens dos livros fossem altas, a produção gráfica era dispendiosa, portanto os autores dependiam de editoras com capital, geralmente situadas no Sudeste. Hoje, a possibilidade de imprimir poucos exemplares por vez contribui para a existência de um vasto rol de projetos editoriais de pequeno porte Brasil afora. Assim, poetas e ficcionistas não precisam se mudar para o Rio de Janeiro ou São Paulo, não têm que fazer concessões de cunho comercial para ver seus textos em circulação e, se quiserem, podem realizar os mais arrojados sonhos experimentais. Com o computador, o autor pode até mesmo se autopublicar: escreve, diagrama e bola a capa, em seguida envia o arquivo diretamente para a gráfica. Paralelamente, mobiliza amigos e conhecidos pelo Facebook, no qual reproduz trechos da obra e comentários dos leitores de primeira hora, além, é claro, de fotos do lançamento. É de se imaginar o efeito positivo de tais facilidades sobre a diversificação dos textos. É justamente a facilidade de publicação levada a seu máximo 60
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que nos possibilita cogitar de um tempo em que assistiremos ao contrário do que ocorreu no momento em que Machado dava os primeiros passos de sua carreira literária: o desbanque do romance pela poesia. Basta pensar que as páginas pessoais de Facebook oferecem mecanismos de diagramação que permitem seu uso como suportes de textos que, todavia, em nome da boa acolhida, convém serem curtos. Não são poucos os poetas, por exemplo, que publicam seus versos paulatinamente e, ao final de certo período, têm em circulação toda uma coletânea. Evidentemente, o possível retorno da poesia a primeiro plano não significará o fim do romance, de resto bastante praticado no Brasil contemporâneo. É de se frisar tão somente que, com raríssimas exceções explicadas pela sociologia da literatura, as narrativas longas que ainda conseguem grande público apenas repetem fórmulas que, incutidas nas mentes pelo cinema e pela televisão, desmerecem o que poderíamos chamar de ficção moderna: aquela que, experimental pelo menos desde Dom Quixote (1605), precisou, a partir do advento do cinematógrafo, radicalizar como meio de preservar sua especificidade. Entre os ficcionistas nacionais atentos a essa história e dispostos a desenvolver um projeto particular, aqueles que contam com o reconhecimento da crítica podem até proporcionar algum prestígio às editoras pelas quais são publicados – mas não necessariamente dão lucro. À luz da demonstração de força demonstrada pelos diferentes artefatos, talvez não seja absurdo imaginar que as novas gerações de ficcionistas refratários ao circuito comercial comecem a priorizar a escrita de contos tão curtos que caibam inteiramente num post, ou seja, antes da desencorajadora inscrição: “Ver mais”. Como o número limitado de vocábulos é um convite tentador para que o autor recorra a elipses e outros recursos capazes de fragmentar o texto, talvez os gêneros se fundam de vez. Seja como for, neste momento, em que ainda especulamos sobre a possibilidade de o romance, a novela e o conto conseguirem fazer uso realmente otimizado da internet, já se registra uma quantidade impressionante de sites de poesia muito frequentados. Um deles, inaugurado em 1999, ostenta a incrível marca de mais 61
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de cinco mil visitas diárias, o que soma quase dois milhões de comparecimentos ao ano. Dedicado basicamente aos clássicos da poesia brasileira, comprova que o internauta assimila bem mesmo textos considerados desconcertantes, desde que se componham de poucas palavras. Dados dessa natureza fazem pensar que, caso fosse de nosso tempo, Machado possivelmente teria um blog. Cioso de sua independência e sempre disposto a colocar em circulação seus textos, aproveitaria a boa dose de liberdade ainda cultivada na internet para levar longe sua tendência a fundir crítica e criação. Com seu faro prodigioso e sua capacidade de dialogar com o leitor, logo perceberia que a pressa que nos subjuga e a máquina que nos escraviza oferecem, entre outras compensações, a possibilidade de revalorização dessa preciosidade chamada poesia. Referências ALENCAR, José de. O guarani. [1857]. São Paulo: Ática, 1996. ANDRADE, Mário de. Pauliceia desvairada. [1922]. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1987. ______. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. [1928]. Rio de Janeiro: Garnier, 2001. ANDRADE, Oswald de. Memórias sentimentais de João Miramar. [1924]. São Paulo: Globo, 2010. BASTOS, Dau. “Guimarães Rosa: sombra ou sol da posteridade?” In: ALMEIDA, José Maurício Gomes de; FARIA, Maria Lucia Guimarães de; SECCHIN, Antonio Carlos & SOUZA, Ronaldes de Melo e (orgs.). Veredas do sertão rosiano. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007a, p. 73-85. BASTOS, Dau (org.). Papos contemporâneos 1. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da UFRJ, 2007b. BERNARDO, Gustavo. A ficção de Deus. São Paulo: Annablume, 2014. BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. CAMPOS, Haroldo de. “Miramar na mira”. In: ANDRADE, Oswald de. Memórias sentimentais de João Miramar. São Paulo: Difel, 1964, p. 9-46. ______. Galáxias. [1984]. São Paulo: Editora 34, 2011. CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. “Modernismo”. In: CANDIDO, Antonio & CASTELLO, José Aderaldo. Presença da literatura brasileira: história e antologia. I: das origens ao realismo. São Paulo: Difel, 1968, p. 7-33.
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Riscos da escrita, rastros da memória: homenagem à Professora Lucia Helena CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote. [1605]. Tradução de Viscondes de Castilho e Azevedo. Porto Alegre: L&PM, 2005. GULLAR, Ferreira et al. “Escritores que não conseguem ler Grande sertão: veredas”. Leitura. Rio de Janeiro, jul.-dez. 1958, p. 50-8. ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário. [1991]. Tradução de Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013. JOYCE, James. Ulysses. [1922]. Tradução de Caetano Galindo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. [1790]. Tradução de Valério Rohden e António Marques. Rio de Janeiro: Forense, 1993. LEMINSKI, Paulo. Catatau. [1975]. São Paulo: Iluminuras, 2010. LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Arte Nova, 1973. MACEDO, Joaquim Manuel de. A moreninha. [1844]. São Paulo: Ática, 2000. MALLARMÉ, Stéphane. “Notes”. [1869]. In: MALLARMÉ, Stéphane. Œuvres complètes. Paris: Gallimard, 1945. ______. Um lance de dados jamais abolirá o acaso. [1897]. Tradução de Haroldo de Campos. In: CAMPOS, Augusto; CAMPOS, Haroldo & PIGNATARI, Décio. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 1991, p. 148-73. MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira. [1977]. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. RICARDOU, Jean. Pour une théorie du nouveau roman. Paris: Seuil, 1971. ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. [1956]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. ROSENFELD, Anatol. “Reflexões sobre o romance moderno”. In: ROSENFELD, Anatol. Texto/contexto I. São Paulo: Perspectiva, 1969, p. 75-97. SANT’ANNA, Sérgio. “O artista tem que ser corajoso”. In: BASTOS, Dau (org.). Papos contemporâneos 1. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da UFRJ, 2007b, p. 165-77. STIERLE, Karlheinz. A ficção. Tradução de Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Cadernos de Mestrado da UERJ, 2006. TAUNAY, Visconde de. Reminiscências. São Paulo: Melhoramentos, 1923.
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Pra que é que serve uma fotografia como essa? Jorge Fernandes da Silveira1
Assi como a bonina, que cortada Não correu muito tempo que a vingança Antes do tempo foi, cândida e bela, Não visse Pedro das mortais feridas, Sendo das mãos lascivas maltratada Que, em tomando do Reino a governança, Da minina que a trouxe na capela, A tomou dos temidos homicidas; O cheiro traz perdido e a cor murchada: Do outro Pedro cruíssimo os alcança, Tal está morta a pálida donzela, Que ambos, imigos das humanas vidas, Secas do rosto as rosas, e perdida O concerto fizeram, duro e injusto, A branca e viva cor, co a doce vida. Que com Lépido e António fez Augusto. Lus., III, 134 Lus., III, 137 Mestre em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Doutor em Letras Vernáculas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Possui Pós-Doutorado pela Brown University, EUA. Atualmente é Professor Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro na cadeira de Literatura Portuguesa.
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Se a foto vale de lágrimas fonte nova a mesa é o túmulo de pedra branca e fria dos amantes em série. Abraão e Sara (o Rouxinol e a Cotovia Julien e Florence Edward Cullen e Bella Swan) são imagens Adriana e Eucanaã Ele Proeta2∗ assentado sobre o ofício cantante à maneira sentimental das mortais feridas vampiro ou anjo torto em pele de demônio um tom cinzento no costume do pescoço ao calcanhar roto de não tocar o már more em ondas salgado do chão Ela Cantautora de cores entre cortada mão na mão prenda minha à gaúcha jaz ao peito feraz phallica traz de Inês a faca na perna pontiaguda asinha
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Professor e poeta
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Para que serve uma fotografia como esta que nos olha?3 Talvez num presente de nomes em tempos sombrios retirante re tornado refugiado
os nomes de Eucanaã Ferraz e de Adriana Calcanhotto sobrepostos a nomes do nosso imaginário amoroso sirvam para entender o que diz Slavoj Žižek, leitor de Jean-Claude Milner, leitor de Alain Badiou: O nome vale apenas até onde vão as divisões que ele provoca. Se não houver engano, [p]or outras palavras – e repito as de Ruy Belo a A Margem da Alegria – trata-se de inês e trata-se de pedro/ ou pedro tratará talvez mais uma vez de inês. Se o reconhecimento dos Amantes do Mondego, Pedro e Inês, na fotografia for equivocado, somos vítimas do que Milner diz ser a função do reconhecimento ideológico errôneo: ele encobre a verdadeira dimensão do que vemos. Ou, Dos Nomes, como escreve Fiama Hasse Pais Brandão Nomeamos os nomes e nunca as criaturas ou as coisas. Essas recebem apenas o eco. Todavia tornam-se únicas e são vistas no seu próprio tempo. 27 de julho de 2016
Uma fotografia como essa, do inédito SOBRIMAGENS, serve neste livro, sobretudo, como homenagem à minha querida Amiga Lucia Helena, com quem ministrei, na Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ nos anos 80, cursos de Literatura Brasileira e Literatura Portuguesa.
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Sobre a imagem “Pra que é que Serve uma Fotografia como Essa?”. Leitura da notícia com a foto, publicada em O Globo de 25/07/2016: “Memórias musicais – Inventário de belezas – o poeta e ensaísta Eucanaã Ferraz organiza o baú de letras de Adriana Calcanhotto [Pra que é que serve uma canção como essa?], dividindo por temas as canções que ‘sobrevivem’ sem melodia.” Sobre os fragmentos grifados no poema: verso 3, “de pedra branca e fria”, poema “A Nave de Alcobaça”, Metamorfoses, de Jorge de Sena; versos 4 e 8 “Abraão e Sara são imagens”, Noites de Inês-Constança, texto para o teatro de Fiama Hasse Pais Brandão; versos 9 e 10, Ofício Cantante, título da poesia reunida de Herberto Helder; verso 10, Sentimental, título do sexto livro de poemas de Eucanaã Ferraz; verso 12, “anjo torto”, emblemática imagem do sujeito no “Poema de Sete Faces”, de Drummond; verso 24, “(inês a faca)”, poema em Novas Cartas Portuguesas de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa. Julien (Maurice Ronet) e Florence (Jeanne Moreau) são os amantes de Ascenseur pour l’ Échafaud (Ascensor para o Cadafalso), filme de Louis Malle, de 1958, em que o crime perfeito de amor é literalmente descoberto pela revelação de fotografias suas entre beijos e abraços; a obra-prima da Nouvelle Vague está em exibição no Cine Clube Arte 1 Clássico, no tempo em que releio os nossos amantes imaginários no elenco de penas shakespearianas e doces vampiros pós-modernos romântico-crepusculares. A citação de Milner está em Slavoj Žižek, Vivendo no fim dos Tempos, São Paulo, Boitempo, 2014, p. 80, 81.
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Alencar e a conversa cotidiana na sua “solidão tropical” Luciana Nascimento1 Karen Gomes da Silva2
Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La glace est rompue; está começada a crônica. Machado de Assis, Gazeta de Notícias, 1877
Introdução A crônica é o texto que se associa, por excelência, ao fator tempo, a começar pela etimologia da palavra. De acordo com a mitologia grega, Chronos, o deus do tempo cronológico, devorava seus filhos para que não se realizasse a profecia do oráculo, que Graduada em Letras pela UFMG, Doutora em Teoria e História Literária pela UNICAMP, Bolsista de Produtividade em pesquisa do CNPq-PQ2. Docente de Fundamentos da Cultura Literária Brasileira junto ao Departamento de Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ. Docente do Programa interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da UFRJ, atuando na linha Discurso e Transculturalidade. Autora de livros e ensaios na área de Letras, com enfoque para as questões relacionadas à cidade e ao discurso literário. Membro do conselho editorial das Editoras Multifoco e Letra Capital. Publicou e organizou diversos livros, tais como: A cidade de papel; Saúde, linguagem e imaginário – volumes 1 e 2; Caligrafias sobre Saramago; Catálogo de referência de literatos juristas; Múltiplos olhares sobre a linguagem, a arte e a ciência; Mosaico da cultura brasileira; Caleidoscópios da cultura brasileira; Mulheres em revista; Cartografias urbanas; Tempo de ensaio – volumes 1 e 2; Tempo de ler e ensinar – volumes 1 e 2; A cidade e as letras; Cartografias da civilização. 1
2 Graduada em Letras Português-Francês pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professora de língua francesa em cursos livres. A sua monografia de conclusão de fim de curso versou sobre José de Alencar e a modernidade no Brasil.
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postulava que Chronos seria destronado por um deles. Como seu próprio nome diz, a característica principal desse gênero textual é o relato de fatos que acontecem no momento, que pode vir acompanhado de recursos narrativos ou na forma argumentativa, caracterizando-se por uma defesa do ponto de vista de quem escreve. Geralmente estruturada em um texto curto com linguagem simples, a crônica pode ter personagens ou não e atinge a todas as faixas etárias. O cronista pode tanto dissertar, quanto narrar com ironia, e muitas vezes com humor, o cotidiano de pessoas e os fatos culturais e políticos, assim como também pode apresentar um protesto. Tudo serve de inspiração para seus autores, que levam ao mesmo tempo informação e divertimento a seus leitores. Isso porque a crônica tem o poder de tratar de assuntos sérios acerca do que está ocorrendo no momento de maneira mais informal, como se fosse uma simples conversa. A informalidade, o teor de conversa cotidiana, o humor sutil constituem-se em formas escolhidas e utilizadas pelo cronista para passar as informações, o que cria um laço com o leitor, o qual vem por sua vez a se identificar com o texto. Por esse motivo, a crônica acaba por ter uma durabilidade maior que a esperada pelo autor. Esse gênero “popular” ensina a seu leitor a ter intimidade com a palavra, de forma que o texto não se disperse e sim ganhe notoriedade, ao mesmo tempo em que o público é valorizado. De acordo com Antonio Candido, em “A vida ao rés-do-chão”, a crônica é o texto que fala ao seu leitor: “sua perspectiva não é a dos que escrevem do alto da montanha, mas do simples rés-do-chão” (1992, p. 4), ou seja, a crônica está bem perto do leitor, apresentando uma “ligação direta com a vida das pessoas, favorecendo seus valores, mesmo quando passa em grande estilo para os livros”. A primeira crônica no Brasil pode ser atribuída à carta de Pero Vaz de Caminha a D. Manuel, o então rei de Portugal, na qual o escrivão fez uma narração do que via nas terras recém-descobertas. A categorização é bem discutível, mas pode daí ter nascido um cronista, pois, segundo Jorge de Sá em seu livro A crônica, foi a partir dessa descrição que foi registrado o circunstancial. Na Europa do século XV, Fernão Lopes já havia dado um 69
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“ar” interpretativo às crônicas Del-Rei D. Pedro, Del-Rei D. João I e Del-Rei D. Fernando. Porém, no Brasil, foi apenas no século XIX que ela ganhou espaço nos folhetins com a junção entre literatura e jornalismo. Com seu sucesso de público, a crônica junto à literatura passou por várias transformações até os dias atuais. Tendo começado com o folhetim, ou seja, um artigo de rodapé de jornal, onde se encontravam notícias sobre política, notas sociais, artísticas, literárias, a crônica alcançou grande proporção e veio a receber mais espaço. Com o tempo, esse gênero ganhou relevo e destaque nas informações e comentários, tendo como objetivo divertir seu público e espalhar a poesia. Assim foi com a série escrita por José de Alencar, intitulada Ao correr da pena, publicada no Jornal Correio Mercantil, de 1854 a 1855. A crônica de Alencar se firmou no Brasil, dando-nos, inclusive, a impressão de que tal gênero teria surgido no Brasil, tamanho o sucesso conquistado, como bem afirmou Antonio Candido. No texto “A vida ao rés-do-chão”, Candido nos fala das mudanças intelectuais por que o Brasil passou depois da crônica: Num país como o Brasil, onde se costumava identificar superioridade intelectual e literária com grandiloquência e requinte gramatical, a crônica operou milagres de simplificação e naturalidade, que atingiram o ponto máximo nos nossos dias, como se pode ver nas páginas deste livro (1981, p.16).
No Brasil, vários autores se consagraram e deram prestígio à crônica, entre eles: Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Rubem Braga. Na contemporaneidade, os autores tomam como referencial não só os problemas sociais, como também os temas esportivos, para produzirem uma reflexão sobre a realidade social, política, econômica, artística. Sobre o tom informal da crônica, Jorge de Sá afirma que isso se deve à rapidez da notícia, que tem seu interesse perdido em pouco tempo, de acordo com a pressa do leitor. Para Sá, “a notícia nasce, envelhece e morre a cada 24 horas” (1985, p. 10). Relacionam-se, portanto, a pressa de viver e de escrever. A crônica, apesar de ser considerada “um gênero” menor, tem maior proximidade com 70
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diversos leitores por sua linguagem mais simples, está mais perto da realidade do povo num determinado momento e quase sempre toma o humor como ingrediente para mostrar tal realidade. Como esse gênero textual em sua origem não tem grande durabilidade, pois é transitório, traz em seu corpo uma efemeridade cercada de poesia e humor. Como produto de inovação e de um acelerado processo de urbanização, a crônica proliferou na imprensa, passando pelos fatos cotidianos à vida social dentro da concepção do modernus, ou seja, o fazer hoje, o estar na ordem do dia. Júlio Ramos assinala que o jornalismo, de certa forma, delimitou o espaço nacional e auxiliou na proposta de consolidar a nação em fins do século XIX: O jornalismo não é apenas um agente de consolidação do mercado – fundamental para o conceito moderno de nação –, mas também contribui para produzir um campo de identidade, um sujeito nacional, inicialmente inseparável do público leitor do jornal (2008, p.108).
O jornal já não era mais o mesmo, agora tinha o propósito de converter todos em leitores. Estava em constituição uma nação que poderia utilizar o jornal como uma ferramenta para “a formação da cidadania”. No final do século XIX, a crônica e o jornal estavam enraizados na modernização, pois a palavra era a representação da vida de milhares de pessoas, e a escrita da vida urbana moderna era desejada pelo leitor. Ramos também relata que a crônica e o jornal são espaços essenciais para a modernização do final do século: A crônica – como o próprio jornal – é um espaço enraizado em vias de modernização, no final do século. Isso ocorre, precisamente, porque a autoridade (e o valor) da palavra do correspondente se baseia em sua representação da vida urbana, de alguma sociedade desenvolvida, para um destinatário desejante – em alguns momentos também temoroso – dessa modernidade (p.131).
Independentemente de estar em jornais ou livros, a crônica tem o poder de tematizar a realidade de maneira divertida ou não, 71
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com a finalidade de prender a atenção do leitor aos seus próprios valores, que por sua vez tem acesso à verdade com um “toque” de literatura, mesmo que esse toque não seja carregado de romance e cenários bonitos. Por ser a imprensa um fenômeno moderno, a crônica explora a oralidade para a crítica à sociedade e à política de seu momento, visando transmitir elementos da vida cotidiana de um determinado lugar a todos. A mudança do suporte do jornal para o livro representou uma forma de eternizar a crônica, implicando, inclusive, em uma modificação na prática de leitura e na atitude do leitor. Refletindo sobre a passagem do mundo do jornal para o mundo do livro, podemos recorrer à imagem que Rubem Braga utiliza como metáfora para a transitoriedade do jornal – a tenda cigana, conforme nos descreve Jorge de Sá: “Nossos ofícios são bem diversos. Há homens que são escritores e fazem livros que são verdadeiras casas, e ficam. Mas o cronista de jornal é como o cigano que toda noite arma sua tenda e pela manhã a desmancha e vai” (1985, p.17). No Rio de Janeiro dos 1800, José de Alencar, em seu projeto de “escrever o Brasil”, fixou uma identidade e ocupou seu espaço na “Cidade das Letras”, tendo se dedicado tanto à escrita de romances, como também à de peças de teatro e crônicas nos jornais, como bem atesta Lucia Helena em Solidão tropical: o Brasil de Alencar e da modernidade: Quando Alencar se inicia no jornalismo e na literatura, na década de 1850, o Brasil ainda tentava despregar-se de aspectos da estrutura colonial que penetraram nas relações políticas e econômicas do país escravocrata. O Brasil, mesmo independente desde 1822, mostrava-se apegado à centralização do poder e permanecia vinculado a elites formadas no mundo português e em geral vinculadas à geração coimbrã de 1790, à qual pertencera o patriarca José Bonifácio de Andrada e Silva (2006, p. 104).
João Roberto Faria, em seu ensaio “A semana em revista”, assinala que Francisco Otaviano, conhecendo o talento de Alencar e tendo sido seu amigo de faculdade, o convidou para o cargo de redator-gerente no jornal Diário do Rio de Janeiro, onde permaneceu de outubro de 1855 a julho de 1858. Com um pouco de 72
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literatura e jornalismo, Alencar foi capaz de passar a seus leitores as principais ideias da semana. Mesmo sem muito espaço para a literatura nos folhetins, ele sempre dava espaço ao sonho, à fantasia e às descrições da natureza, uma vez que era apaixonado pelo “jornalismo leve que lhe dava a possibilidade de exercitar o estilo” (FARIA, 1992, p. 303). O autor destaca as admirações de Alencar diante dos acontecimentos na cidade do Rio de Janeiro, a então capital do Império, a qual recebia os influxos do modelo parisiense. Alencar também elogia a extinção do tráfico de escravos e as ideias liberais. Nas crônicas da série Ao correr da pena, publicadas no Jornal Correio Mercantil no período de 3 de setembro de 1854 a 8 de julho de 1855, as quais escolhemos para estudo neste artigo, é possível acompanharmos a transformação do Rio de Janeiro naquele momento, como também a vida urbana que se encontrava num período de franca prosperidade. Tudo isso foi testemunhado por Alencar. O folhetinista não só exaltou o progresso da cidade, como também constatou os desacertos do que julgava não estar correto, exigindo modificações. É por esse veio que o livro de Lucia Helena, A solidão tropical: o Brasil de Alencar e da modernidade, toma o lugar de grande referencial teórico-crítico neste trabalho, uma vez que a autora retira os já desgastados rótulos do escritor, compreendendo-o como um intelectual que viveu os compassos e descompassos de uma modernidade periférica.
José de Alencar: a pena na Cidade das Letras A três de setembro de 1854, José de Alencar, então com 25 anos, estreava a série de crônicas Ao correr da pena. O autor, desde sua infância, demonstrava admiração pela literatura ao ler velhos romances para sua mãe e tias. Nascido em Mecejana, Ceará, em 1 de maio de 1829, era filho de José Martiniano de Alencar, senador do império, e de Ana Josefina. Em 1838, migra para a Bahia e depois para o Rio de Janeiro, onde estudou no Colégio de Instrução Elementar. Com 14 anos, vai para São Paulo, onde termina o curso secundário e ingressa na Faculdade de Direito 73
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do Largo de São Francisco. Formado, começa a advogar no Rio e, convidado por Francisco Otaviano de Almeida Rosa, passa a colaborar com o Correio Mercantil e também a escrever folhetins para o Jornal do Comércio. As cartas sobre a Confederação dos Tamoios começaram a lhe dar destaque, tendo sido publicadas por Alencar em 1856 no Diário do Rio de Janeiro, sob o pseudônimo Ig. Nesses textos, ele criticava o poema épico de autoria de Domingos Gonçalves de Magalhães, o favorito do Imperador e considerado o chefe da literatura brasileira. Como fazia duras críticas, ele optou pela ficção, uma vez que era um gênero livre e permitia que ele se expressasse como queria. No mesmo ano, em 1856, ele publicou seu primeiro romance, Cinco minutos, no ano seguinte publicou em folhetins O guarani, que alcançou grande popularidade. A partir disso, ele escreveu romances indianistas, peças teatrais, romances urbanos, regionais, históricos, crônicas, escritos políticos, estudos filosóficos, poesias e polêmicas literárias: O jornal, no século XIX brasileiro, exerceu uma importante função na formação e consolidação das letras no país. Órgão divulgador da literatura francesa que chegava nos paquetes e logo era traduzida nos rodapés dos jornais, a imprensa também funcionou como divulgadora dos novos escritores nacionais, como o próprio Alencar e ainda serviu de palco para polêmicas e debates literários que talvez não tenham se repetido mais na história da literatura brasileira (CÂNDIDO, 2009, p. 215).
A sua atuação como intelectual na “Cidade das Letras” foi profícua. Além de ter sido um escritor de uma vasta obra, Alencar teve grande atuação na vida política. Foi redator-chefe do Diário do Rio de Janeiro no ano de 1855, foi também várias vezes eleito deputado geral do Ceará pelo Partido Conservador, foi ministro da justiça de 1868 a 1870, só não conseguiu ser senador, o que o fez dedicar-se à literatura. Dedicando-se à literatura, Alencar escreveu vários romances sobre a natureza do Brasil. Desse modo, ele descrevia sua terra ainda recém “libertada” e contava sua história, a fim de fazer valer o nascimento de uma nação independente. 74
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Em Como e porque sou romancista, José de Alencar aponta o substrato de suas leituras desde a juventude, destacando que o contato com o gênero romanesco surgiu em sua infância, quando ganhou o posto de leitor em seu seio familiar. Daí surge talvez uma possível influência: Esta mesma escassez, e a necessidade de reler uma e muitas vezes o mesmo romance, quiçá contribuiu para gravar mais em espíritos moldes dessa estrutura literária, que mais tarde deviam servir aos informes esboços do novel escritor. Mas não tivesse eu herdado de minha santa mãe a imaginação de que o mundo apenas vê as flores, desbotadas embora, e de que eu somente sinto a chama incessante, e essa leitura de novelas mal teria feito de mim um mecânico literário, desses que escrevem presepes em vez de romances (Alencar, 2005, p. 29-30).
No texto José de Alencar e o romance no Brasil, Hebe Cristina da Silva nos mostra que Alencar também teve influência romanesca quando se mudou para São Paulo, pois teve então contato com obras de célebres autores como Balzac, Alfredo de Vigny, Chateaubriand e Victor Hugo. Nessa ocasião, era a literatura moderna que tinha seu gênero definido como “poema da vida real”, com o qual Alencar se identificava bastante. A partir dessa influência se achou bem preparado para seguir esse molde e revelou isso em vários momentos em suas obras, com as quais teve o intuito de mostrar “os problemas da vida real”, de forma que parecia não haver ruptura entre o romance e o mundo real, como na passagem de A viuvinha, em que Alencar desejava mostrar a cidade do Rio de Janeiro naquele momento tanto na parte construída pelo homem (com inspiração parisiense) como em sua beleza natural: Jorge ganhou a rua da Lapa, seguiu pelo Passeio Público, e dirigiu-se à Praia de Santa Luzia. Quando Jorge chegou ao lugar onde hoje se eleva o Hospital da Misericórdia, esse lindo edifício que o Rio de Janeiro deve a José Clemente Pereira, o horizonte se esclarecia com os primeiros clarões da alvorada. Um espetáculo majestoso se apresentava diante de seus olhos; aos toques da luz do sol parecia que essa baía magnífica se elevava do
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seio da natureza com os seus rochedos de granito, as suas encostas graciosas, as suas águas límpidas e serenas. Era o templo do suicídio (ALENCAR, 1992, p. 14).
No que se refere à sua vasta produção romanesca, Alencar “escreve a nação” (para utilizarmos a expressão de Lucia Helena em outro ensaio) em suas diversas facetas, tematizando as várias fases da história do Brasil. O autor recorre aos romances indígenas para misturar mitologia indígena com o início de uma identidade nacional e com isso adjetiva o perfil do Brasil no século XIX, com total ciência das necessidades de seu país e o que acontecia no meio internacional, o que trazia grandes inspirações para suas imaginações no momento em que criava suas obras e transcrevia as belezas de sua terra natal, misturando a natureza com a cidade: “Desse modo, ficam latentes os impasses entre o público e o privado na construção do Estado-nação dos oitocentos” (HELENA, 2006, p. 115). Em A solidão tropical, Lucia Helena destaca a importância do projeto de Estado do Império para o romance romântico, de caráter nacionalista, durante o século XIX, o que resultou em uma profunda reflexão sobre o nacional. Nesse sentido, Alencar apoderou-se de metáforas e palavras ambíguas em seus romances para mostrar as mais variadas faces do Brasil em forma de romance: a reflexão sobre a literatura brasileira do século XIX pode apreender uma correlação entre a nação-Estado, o texto literário e o império, o que nos permite empreender uma reflexão em torno da metáfora da casa como forma de representar [o nacional] por meio da escrita (HELENA, 2006, p. 104).
Ainda na obra de Lucia Helena é destacado que, em obras de Alencar como Iracema e O guarani, era revelada a identidade do Brasil de acordo com seu ponto de vista. Esses romances indianistas mostravam os verdadeiros nativos da terra se “defendendo” de um povo estranho que chegara para lhes impor uma nova realidade sem se preocupar se era isso que eles queriam. A preocupação nesses romances era também mostrar a nova identidade cultural que 76
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se formava, na tentativa de se igualar aos países europeus, por isso o autor descrevia a paisagem da natureza brasileira. O objetivo era marcar bem a geografia que, mesmo livre de seu colonizador, ainda se prendia às imposições do velho continente. As narrativas alencarinas tinham a finalidade de “resolver conflitos culturais contínuos” (HELENA, 2006, p. 168), as histórias amorosas eram ricas em metáforas que sinalizavam problemas sócio-políticos durante o imperialismo. A solidão tropical nos mostra um projeto de América que tenta “defender seu espaço”, através da literatura e aponta os romances de Alencar, especialmente O guarani, Iracema e Ubirajara, como importantes obras que defendem as raças e classes a fim de preservar interesses do Brasil. Alencar, ao tematizar o Brasil em sua cartografia literária, lança mão da retórica romântica de sua época, fixando na sua escrita a nacionalidade literária. Segundo Eduardo Vieira Martins em “O monstro de Horácio”, Alencar não tinha muita experiência como jornalista antes de assumir as crônicas de Ao correr da pena, pois tinha somente três artigos publicados na revista Ensaios literários e mais alguns em jornais da corte. Mesmo com sua pouca experiência, ele aceita escrever as crônicas e as faz com muita excelência. No início, Alencar tem algumas dificuldades em relação ao cumprimento do tempo para entregá-las, porém depois se adequa ao novo estilo de escrita e os cumpre muito bem. Com a responsabilidade em suas mãos de narrar fatos acontecidos durante a semana, de maneira tão livre e sem regras, ele aproveita a oportunidade para expor todo o movimento da corte, seja no teatro, na política ou nas noites brasileiras. Esse boletim dominical aos poucos ganha espaço e Alencar narra desde um simples passeio pela praia a um fato político importante que pudesse refletir na vida de todos os brasileiros. São diversos acontecimentos dentro de uma mesma “revista”. Ignorar qualquer um deles deixaria “um buraco” em seu trabalho. Deixar de narrar algum fato seria como pular aquele dia da semana, não importando o tamanho do impacto com a notícia. Eduardo Vieira Martins bem destaca essa versatilidade de Alencar em uma de suas crônicas:
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Para dar uma ideia da variedade de temas que podiam dividir o mesmo rodapé, basta lembrar que o artigo que maldizia o criador do folhetim narrava a inauguração do Jockey Club e do Instituto dos Cegos, além de dar as últimas notícias trazidas pelo “paquete de Southampton”: a guerra da Crimeia; considerações acerca do “governo constitucional” motivadas pela notícia de distúrbios violentos no Egito (MARTINS, 2005, p. 79).
Eduardo Vieira ressalta que, em sua “liberdade temática e formal”, Alencar “muitas vezes adentrava a província da literatura”. Ele lançava mão de sua habilidade de escrever mais a possibilidade da versatilidade dentro da revista dominical e assumia formas de “romance, contos de fadas ou fantástico”. Nesse momento, a linguagem já não é tão simples e um eu poético invade Alencar, que por sua vez torna sua crônica mais estilística, “um anúncio do futuro romancista”. Narra situações que se passam no Rio de Janeiro com tom literário e assim pode anunciar (mesmo sem saber) sua assinatura em futuras obras literárias de grande sucesso: É possível que o leitor já familiarizado com o romance de Alencar seja tomado, vez ou outra, por uma sensação de déjà vu ao percorrer seus folhetins. Além dos pontos levantados por aqueles pesquisadores, uma rápida vista de olhos por Ao correr da pena revela outros temas caros ao autor. O casamento por interesse, fulcro da intriga de Senhora, é discutido nos folhetins de 10 de junho (no qual a mulher chega a ser comparada com uma “letra de câmbio”) e de 28 de outubro de 1855; a ideia de que o Natal é uma festa campestre, desenvolvida numa cena de O tronco do ipê, está nas crônicas de 24 de dezembro de 1854 e de 8 de janeiro do ano seguinte; e a paixão pelos pequenos pés femininos, mola da ação de A pata da gazela, na de 3 de novembro de 1854 e na de 13 de maio de 1855 (MARTINS, 2005, p. 82).
Alencar demonstra em suas crônicas uma grande admiração pelo escritor francês Balzac, o qual já fazia sucesso com suas obras que narravam o cotidiano dos franceses de todas as classes. Talvez esse autor possa ter inspirado o cronista brasileiro a fazer romances seguindo seu modelo, como a obra Cinco minutos:
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A referência ao autor da Comédia humana na crônica de 1854 mostra que o jovem jornalista continuava fiel às suas impressões de estudante e que, dois anos antes da publicação de Cinco minutos, talvez já pensasse num ensaio de romance seguindo o modelo balzaquiano (MARTINS, 2005, p. 88).
Os fatos acontecidos no Rio de Janeiro naquela época eram narrados nas crônicas de Alencar de maneira mais clara, para que seus leitores os pudessem entender, e também muitas vezes de maneira poética, para dar ao texto uma estética graciosa e literária. No entanto, isso não diminuía sua importância e, quando alguns relatos eram rememorados, eles assumiam a importância de fatos históricos. Tudo isso contribuiu para inspirar suas obras, pois a maioria, se não todas, de alguma maneira mostrava fatos importantes que estavam acontecendo ou que já tinham acontecido no Brasil recém-desgarrado de seu colonizador. Em resumo, Eduardo Vieira nos mostra que Alencar, mesmo quando cronista de um rodapé de jornal, se preocupava com a história da corte, revelando-nos indícios fortíssimos de seu lado romancista. Ou seja, suas crônicas tiveram “um papel de alicerce” para sua carreira de escritor de romances, cujos principais temas relacionavam-se, de um modo geral, à dificuldade da transição de um Brasil recém-descolonizado buscando seu espaço, o que mais tarde teria um valor inestimável para a cultura brasileira.
Ao correr dos acontecimentos e dos fatos A série de crônicas intituladas Ao correr da pena foi publicada no jornal Correio Mercantil. Nessas crônicas, publicadas entre 3/09/1854 e 8/07/1855, Alencar passava em revista os principais acontecimentos ocorridos na semana anterior, utilizando um estilo leve, trocadilhos e jogos de palavras. Luís Viana Filho destaca que Alencar, em seus textos da série, tratava dos mais diversos temas possíveis: Festas, espetáculos, acontecimentos políticos, reuniões, negócios, grandezas e misérias, tudo passava pelo espírito vivaz, pronto a 79
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transformar o fato num comentário. Devia falar do dia a dia, mas não podia ser vulgar (1979, p.48).
https://www.google.com.br/search?q=josé+de+alencar&espv=2&biw=1366&bih=643& source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwiQ6_ eMht_ NAhUFhJAKHbl-DMEQ_ AUIBygC#imgrc=APXqf9hZofm
Alencar justifica o título de sua série com um pequeno conto, em que diz que uma pena corre sobre o papel, do mesmo modo que uma fada corre para fazer algo fantástico, ou seja, o que ele vem a escrever não é qualquer coisa, é algo que pode ajudar e alertar ao próximo, assim como as fadas ajudam ao próximo em seus contos. Essa relação entre ele e a fada dura mais de um ano e nesse decorrer há uma forte cumplicidade entre ele e sua “aliada”, para que os escritos saiam de maneira coerente e eficaz e o público possa “aplaudir essa relação”: Um belo dia, não sei de que ano, uma linda fada, que chamareis como quiserdes, a poesia ou a imaginação, tomou-se de amores por um moço de talento, um tanto volúvel como de ordinário o são as fantasias ricas e brilhantes que se deleitam admirando o belo em todas as formas. Ora, dizem que as fadas não podem sofrer a inconstância, no que lhes acho toda a razão; e por isso a fada de meu conto, temendo a rivalidade dos anjinhos cá deste mundo, onde os há tão belos, tomou as formas de uma pena, pena de cisne, linda como os amores, e entregou-se ao seu amante de corpo e alma (ALENCAR, Correio Mercantil, 03/09/1854).
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Sua primeira crônica da série Ao correr da pena, publicada no dia 03 de setembro de 1854, começa com uma metáfora, em que diz que uma bela fada se transformou numa bela pena de cisne e se aliou a um jovem talentoso para fazerem escritos maravilhosos. Assim nomeou sua série de Ao correr da pena a partir de um pequeno conto, que justifica seu início nessa nova etapa de sua carreira. Alencar inicia essa crônica citando rapidamente o motim que estava havendo em Madri na Espanha naquele momento, depois critica um tenor do teatro londrino e conta a resposta do público ao show. Ressaltando a evolução de Paris frente ao Brasil, por meio de uma ambiguidade, Alencar cria uma personificação do Brasil como uma criança que está aprendendo a falar por si só e reivindicando o que lhe é de direito. Finda sua crônica com um convite a um baile beneficente: Decerto, a causa desta demonstração a favor de Mário não foi unicamente a sua bela voz de tenor e a sua presença agradável, mas também a influência da Favorita, que ainda nos desperta tantas emoções e na qual os parisienses, mais felizes do que nós, vão recordar atrasados ouvindo a Stoltz, que se esperava devia cantar no primeiro meado de agosto na ópera de Paris (ALENCAR, Correio Mercantil, 03/09/1854).
Nessa primeira crônica da série, Alencar mostra bem a sua intenção sobre o que quer passar para o leitor através de seus escritos. Encena uma conversa e, utilizando a linguagem popular, relata fatos políticos tanto nacionais quanto internacionais, do mesmo modo que fala de cultura, se aproximando do leitor e ganhando credibilidade no momento em que fazia essa “ponte”. A linguagem mais simples ganha notoriedade do público, à medida que o autor chama a atenção para problemas e fatos que o país atravessa, além de correlacioná-los com o que se passa no exterior. Essa “inovação” ganha proporção e vai se destacando com o tempo. Assim, é percebido o interesse do país em crescer e ser ainda mais independente, o que faz Alencar escrever cada vez mais dessa forma e a crônica alencarina passar a ser notada por toda sociedade carioca da época: 81
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Falemos sério. – A independência de um povo é a primeira página de sua história; é um fato sagrado, uma recordação que se deve conservar pura e sem mancha, porque é ela que nutre esse alto sentimento de nacionalidade, que faz o país grande e o povo nobre. Cumpre não marear essas reminiscências de glória com exprobrações pouco generosas. Cumpre não falar a linguagem do cálculo e do dinheiro, quando só deve ser ouvida a voz da consciência e da dignidade da nação (ALENCAR, Correio Mercantil, 03/09/1854).
Alencar mostra a seu leitor uma diversidade de fatos que aconteceram naquela semana. Assim, passa de um assunto a outro sem comprometer a seriedade das notícias, mostrando aos leitores que, no rodapé de um jornal, podem se encontrar fatos importantes, não importando se o assunto se passa aqui no Brasil ou em um país da Europa. Mesmo sem muita experiência nesse ramo de crônicas, Alencar já na primeira promete aos leitores boas informações. Em sua segunda crônica, do dia 17 de setembro de 1854, Alencar começa falando sobre primavera e tudo que a acompanha, como por exemplo, a poeira, o calor, os casamentos, as moléstias etc. Ele exalta a estação como o quadrante mais fabuloso de todo o ano, em que as pessoas apreciam a beleza das flores que a natureza lhes proporciona, enquanto também saboreiam em conjunto os prazeres diversos dessa estação, como o bom rendimento para alguns comerciantes e proprietários de residências em locais mais frescos. Alencar fala também sobre os eventos culturais da cidade, com o conhecimento de quem assiste aos espetáculos: Que importa que o sol esteja de icterícia, que a Charton enrouqueça, que as noites sejam frias e úmidas, que todo o mundo ande de pigarro? Isto não quer dizer nada. Estamos na primavera. Os deputados, aves de arribação do tempo do inverno, bateram a linda plumagem; a Sibéria fechou-se por este ano, os buquês de baile vão tomando proporções gigantescas, as grinaldas das moças do tom são perfeitas jardineiras, a Casaloni recebe uma dúzia de ramalhetes por noite, e finalmente os anúncios de salsaparrilha de Sands e de Bristol começam a reproduzir-se com um crescendo animador (ALENCAR, Correio Mercantil, 17/09/1854).
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Essa crônica destaca com muito louvor um pouco do que acontecia nas noites primaveris cariocas e as consequências de uma palavra mal-entendida, ou seja, o autor conta uma realidade de um evento que não deu certo utilizando o humor e, como pretexto, o comentário sobre a chegada da estação tão querida por todos. No trecho a seguir, se destaca um evento noturno que acontecia na época e a palavra que causou tanta confusão naquela noite, de acordo com Alencar: Esta semana já começamos a sentir salutares efeitos de tua benéfica influência! Vimos uma estrela do belo céu da Itália eclipsada por uma moeda de dois vinténs, e tivemos a agradável surpresa de ouvir o 1º ato do Trovatore e um epeech da polícia, tudo de graça. Alguns mal-intencionados pretendem que a noite não foi tão gratuita como se diz; mas deixai-os falar; eu, que lá estive, posso afiançar-vos que o espetáculo foi todo de graça, como ides ver. A autoridade policial depois de participar que ficava suspensa a representação e que os bilhetes estavam garantidos, sendo, por conseguinte aquela noite de graça, como esta notícia excitasse algum rumor, declarou formalmente, e com toda a razão, que se acomodassem, porque a polícia, quando tratava de cumprir o seu dever, não era para graça (ALENCAR, Correio Mercantil, 17/09/1854).
No dia 24 de setembro de 1854, era anunciado através das crônicas de Alencar que o Jockey Club tivera sua primeira corrida de cavalos em uma manhã linda de domingo e a sociedade recebera o convite para um evento nobre que marcaria a classe favorecida da época. É narrado também que o Jockey não estava tão bem preparado para o evento: “Seria também para desejar que se tratasse de melhorar a quadra (sport) com as inovações necessárias para comodidade dos espectadores” (ALENCAR, Correio Mercantil, 24/09/1854). No entanto, tudo deu certo e o evento fez sucesso naquela manhã de domingo. Nessa ocasião, Alencar aproveita a crônica para fazer críticas a respeito do que ele acha inconveniente e dar sua opinião sobre como poderia ser melhorado. O autor cita também a abertura de instituição humanitária a qual era 83
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desejada já havia um tempo, e nesse mesmo trecho ele aproveita mais uma vez para exaltar seu desejo de um Brasil mais próximo de países como França e Estados Unidos: “Devemos esperar do zelo das pessoas a quem foi confiada a sua administração que em pouco conseguiremos resultados tão profícuos como têm obtido a França e os Estados Unidos” (ALENCAR, Correio Mercantil, 24/09/1854). As influências da Europa sobre o Brasil no século XIX eram as mais variadas. Principalmente a classe mais favorecida fazia questão de frequentar lugares requintados, usar trajes importados, bem como se imitava o tipo de música e os lazeres parisienses. Contudo, não era só a alta sociedade que queria imitar o “belo” do velho mundo. Os “revolucionários”, se é que podemos chamá-los assim, tinham também interesse em ver o Brasil como um país europeu e, por isso, eles se inspiravam em grandes escritores como Balzac, que foi um grande nome na França, tendo tematizado em seus romances o problema social e político, como o mau uso do dinheiro público, a hipocrisia familiar etc. Ainda nessa crônica, Alencar revelava seu dom de escrever comentando sobre como era a vida de quem escrevia folhetins e sobre a fuga das regras que estes tinham, enquanto fazia alusão à carta de Horácio, que expressa o problema da liberdade de expressão do autor em escrever ou pintar independente do gênero. Horácio, em sua Carta aos Pisões, afirma que o autor deve expressar o cotidiano, ser crítico, mostrar o princípio do saber, a fonte do bem escrever. Com isso, Alencar faz uma intertextualidade de suas crônicas com o texto de Horácio, pois se identifica com o que ele diz. É uma felicidade que não me tenha ainda dado ao trabalho de saber quem foi o inventor deste monstro de Horácio, deste novo Proteu, que chamam – folhetim; senão aproveitaria alguns momentos em que estivesse de candeias às avessas, e escrever-lhe-ia uma biografia, que, com as anotações de certos críticos que eu conheço, havia de fazer o tal sujeito ter um inferno no purgatório onde necessariamente deve estar o inventor de tão desastrada ideia (ALENCAR, Correio Mercantil, 24/09/1854).
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O autor abordou também acontecimentos da Europa, notícias recém-chegadas ao Brasil através do paquete. Sobre seu país natal e a cidade onde habitava naquele momento, Alencar critica a baixa qualidade do teatro e o desconforto dos frequentadores durante os espetáculos, exceto o lugar da aristocracia, que deve estar sempre bem colocado em relação a todos. Nessa crônica, fica clara a indignação do autor com o descaso com que o público é tratado, já que o pagante assiste ao espetáculo em condições desconfortáveis e nem sempre consegue ver nitidamente o que se passa no palco. Em outras palavras, de que serve pagar para ir ao teatro e não conseguir tomar conhecimento nitidamente do que se passa ali, tão perto? “Este expediente, acompanhado da severa inspeção na venda e recepção dos bilhetes, restituirá a ordem tão necessária num espetáculo onde a presença de Suas Majestades e de pessoas gradas exige toda a circunspeção e dignidade” (ALENCAR, Correio Mercantil, 24/09/1854). Em primeiro de outubro do mesmo ano, Alencar começa sua crônica anunciando que não a fez, porém deixa claro logo na introdução que há um propósito no “novo modelo”, o modelo epistolar, de seus escritos, que pode ser tão relevante quanto o folhetim acostumado por todos: “mas tenha paciência, e lembre-se que o acaso é um menino cheio de caprichos que nos dirige a seu modo, sem ter ao menos a delicadeza de nos consultar de vez em quando” (ALENCAR, Correio Mercantil, 1/10/1854). Então, tenta se justificar e depois acaba por narrá-las de diferentes maneiras. Fala de sua preguiça dominical e cronicamente descreve a segunda-feira preguiçosa de todos. As justificações vêm desde os meios religiosos até os políticos: Os nossos velhos da era antiga diziam que não havia domingo sem missa, sem segunda-feira sem preguiça. A primeira parte deste provérbio tem sofrido nos últimos tempos alguma modificação, principalmente a respeito dos redatores dos grandes jornais, que substituíram à missa o folhetim (ALENCAR, Correio Mercantil, 1/10/1854).
Novamente o cronista fala um pouco de seu papel. Entretanto, agora de outra maneira, ele utiliza outro gênero para isso, pois 85
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ao começar sua crônica deixa claro que está escrevendo uma carta e não uma crônica, como de costume dominical. O cronista tem essa liberdade e Alencar sabe muito bem como mesclar os gêneros, por isso ele é capaz de passar informações a seu público sem se prender a uma “forma” obrigatória, inovando assim seus escritos, mesmo que seja pela sua falta de experiência no ramo jornalístico, o meio de se comunicar com seu leitor. Ele conta como está sua cabeça numa segunda-feira de muita preguiça. Nesse momento, aproveita o entrelace de gêneros e pensa no que viu e fez durante a semana, em como aplicará isso no seu trabalho, porém ele já trabalha suas informações em forma de carta, ao que parece, sem perceber, no entanto, com tudo em mente, pois pensar em o que e como escrever já é um passo para o trabalho do escritor. Alencar, nessa “carta”, trabalha como cronista o tempo todo. Utiliza a mistura de gêneros textuais para narrar sua semana particular sem deixar de fora os acontecimentos da cidade, nem o que pensa sobre qualquer evento. No final, esclarece que, como qualquer outro cronista, fez seu trabalho de forma livre, particular com seus pontos de vista, mostrando a seu público a essência de uma boa crônica e suas várias faces. Essa mistura de gêneros permite aos cronistas falarem de maneira mais clara e próxima de seu leitor. Alencar estabelece uma grande rede intertextual, ao citar Galileu, a Bíblia, as leis feitas por deputados sem conhecimento do dia a dia da população. Ele concatena essas ideias, de modo que seu texto seja lido por seus leitores de maneira clara: Os antigos tinham razão. E estou certo que, se Josué vivesse no nosso século, havia de adotar o anexim português, e, pedindo licença a Galileu, todos os domingos à meia-noite faria parar o sol até terça-feira, para assim poder bem saborear o dia consagrado à preguiça, sem temer a claridade importuna que de madrugada, isto é, às desoras, vem bater-nos nas pálpebras, como um credor impertinente que não compreende a verdadeira organização do crédito (ALENCAR, Correio Mercantil, 1/10/1854).
No dia 12 de novembro de 1854, Alencar narra em sua crônica de número X que não há motivo para os brasileiros reclama86
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rem, pois o paquete de Southampton chegou com notícias sobre a guerra no Oriente entre a Rússia e a Turquia, cujo motivo decorreu da expansão russa no Mar Negro e que durou três anos. Ele conta que o leitor pode finalmente saber sobre alguns episódios dessa guerra como “o de uma batalha em campo raso, o da passagem de um rio, o da morte de um general e da fugida de um príncipe à unha de cavalo” (ALENCAR, Correio Mercantil, 12/11/ 1854) e que depois eles o comentariam cada um de sua maneira. Sobre a discussão quanto ao calembur que se deu por causa da tomada do Rio Alma, Alencar preferiu não fazer suposições em sua crônica e seguiu com a notícia de que os europeus mandaram ao Brasil uma cantora de excelente reputação para tornar mais agradáveis as noites brasileiras. Alencar não deixa de fazer as críticas sobre o teatro onde ela se apresentará, ao falar da iluminação “brilhante” e da poeira. Até esse ponto Alencar se põe neutro no que diz respeito aos comentários da guerra do Oriente e depois aproveita a novidade quanto à vinda da cantora para falar do desrespeito dos dirigentes do teatro para com seu público, que frequenta o lugar a fim de se divertir e precisa lidar com uma estrutura que deixa a desejar. Alencar também relata a falta de valorização dos empresários brasileiros com seu público e artistas, comparando-os com os europeus, exaltados o quanto pode e merece. Na visão de Alencar, isso é um descaso com seu povo que paga para prestigiar o artista e não encontra uma estrutura decente: Enquanto os empresários europeus se matam e se esforçam por contratar boas cantoras, ensaiar as melhores óperas, e adquirir pintores cenógrafos para satisfazer o público e dar-lhe espetáculos que agradem, nós descobriremos o meio de poupar todo este trabalho inútil e dispendioso (ALENCAR, Correio Mercantil, 12/11/1854).
Ao falar sobre a administração no que se refere à limpeza pública, Alencar narra que houve uma melhora nas ruas da cidade, pois antes era nítida a lama e os charcos, agora a vigilância está ativa. A indignação é clara quanto ao descaso com a população e 87
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o narrador demonstra muita esperança de ter um governo que se preocupe com o bem-estar. A nova ornamentação de Notre Dame de Paris também é assunto que Alencar expõe nessa crônica, ao descrever o luxo e a elegância da igreja. Após expor a beleza da igreja de Notre Dame, nosso autor descreve os progressos da Rua do Ouvidor e não deixa de citar o quanto o povo brasileiro se deslumbra com as belezas parisienses a ponto de ornamentar uma galeria inteira como as de Paris e sugere um salão para um rendre-vous, pois há carência de tal, ainda mais pelo fato de até aquele momento não existir um clube. Nesta como em outras crônicas, Alencar aponta vários problemas, como os culturais e os de pavimentação, e não deixa de comparar a corte daquela época com a Europa tão evoluída e tão disposta a “brigar” por melhorias pelo seu povo. No fundo, um dos objetivos de Alencar era este: “brigar” pela corte brasileira que tinha potencial para se igualar às cortes europeias. No dia 17 de dezembro de 1854, Alencar inicia sua crônica de número XV ironizando o teatro lírico: “Por enquanto, em falta de melhor, falemos do teatro lírico” (ALENCAR, Correio Mercantil, 17/12/1854). O cronista enfatiza a falta de criatividade no elenco de peças em cartaz, tendo em vista que o público dava grande importância às modas e às produções europeias. Alencar assinala que várias matérias criticavam esse teatro e sugere que ele seja interrompido durante um mês, para que cantores e funcionários se restabeleçam e possam voltar aos trabalhos. Nesse trecho, fica clara a indignação de Alencar com os produtores do teatro, que não têm consideração com seu elenco e principalmente com o público, que os sustenta. Alencar afirma que o Brasil poderia ter grandes artistas, entretanto não havia estrutura nem investimentos, apenas o descaso do governo em relação à possibilidade de um teatro brasileiro. Mais uma vez, ficava claro que, quando se tratava de algo que não era para o conforto próprio do governo, o investimento era quase zero, como no caso do Conservatório de Música. O autor assinala que haveria grandes possibilidades de termos vários talentos dentro do Brasil, porém era necessário investimento: 88
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A escassez dos recursos é a primeira causa do pouco desenvolvimento que tem tido o Conservatório. Os auxílios concedidos por meio de loterias estão hoje reconhecidos como pouco eficazes, principalmente correndo elas com longo espaço. Fora preferível que o corpo legislativo votasse uma dotação anual, com a qual o governo poderia contar para ir melhorando gradualmente esta instituição (ALENCAR, Correio Mercantil, 17/12/1854).
Ainda nessa crônica, Alencar nos mostra o começo da cidade de Petrópolis e o anúncio de novas cidades que surgem da mesma forma que a cidade que o imperador D. Pedro I não conseguiu desfrutar, por causa de sua abdicação. Depois de negociações de dívidas, finalmente D. Pedro II pôde apreciá-la com a família real, principalmente durante os verões. Alencar narra a comodidade da viagem da família real em boa estrada, sublinhando que a tranquilidade dessas cidades é por pouco tempo, pois logo a corte descobriria os prazeres das novas cidades serranas. A viagem desta corte é a mais cômoda possível. Vai-se até Sampaio em barca de vapor; o resto é um agradável passeio de duas léguas e meia, que se pode fazer de carro, por uma excelente estrada. Reúne, portanto, todas as condições, a comodidade, a rapidez e a segurança (ALENCAR, Correio Mercantil, 17/12/1854).
Na segunda e última parte dessa crônica, Alencar escreve sobre a celebração do aniversário do Instituto Histórico do Brasil no Paço Imperial, onde se reuniu grande parte da aristocracia brasileira e todos assistiram a um ato solene e com formalidade. Na ocasião, foram apresentados resumos de trabalhos realizados durante o ano pelo Sr. Dr. Macedo, o então primeiro secretário. Dessa maneira, Alencar termina a segunda parte dessa crônica. Na crônica de número XVII, publicada no dia 31 de dezembro de 1854, Alencar narra o fim do ano com muito bom humor. Ele começa contando que, quando ia começar a escrever, bateram em sua porta exatamente naquele momento mais importuno para um escritor, pois o distraía da primeira ideia. No entanto, quem o importunava era o ano de 1854, um velho que vinha se despedir e fazer alguns relatos do que tinha conquistado e não, enquanto 89
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estava de passagem. Alencar passa com excelência a seus leitores o episódio com todo o humor que a crônica permite. Segue um trecho da conversa entre Alencar e o velho ano de 1854: – Meu amigo, a boa vontade só não basta. Os homens estão hoje muito positivos; exigem fatos. – Passo a apresentá-los. – Então vamos a isso: espere, deixe-me preparar o papel para tomar meus apontamentos. Agora estou às suas ordens. – Em primeiro lugar, senhor, mencionarei a estrada de Mauá, o primeiro caminho de ferro que se construiu no Brasil. Isto é uma glória que ninguém me pode roubar; um fato pelo qual a posteridade me abençoará. – Concordo, sim, senhor; mas que contas me dá das promessas brilhantes da estrada de ferro do Vale do Paraíba, que já se devia estar construindo? – A culpa não é minha; foi herança que recebi e negócio que já vinha um pouco transtornado. Entretanto, eu organizei a companhia do Juazeiro, e dei começo aos seus primeiros trabalhos. – Bem, escrevo cá nos meus apontamentos as estradas de ferro; passemos ao mais. – O senhor lembra-se que fui eu que primeiro empreguei toda a solicitude no asseio e limpeza da cidade... – Basta, basta!... Por aí advirto-lhe que vai mal. A respeito de limpeza e de asseio da cidade, temos contas a ajustar; o senhor comprometeu-me horrivelmente (ALENCAR, Correio Mercantil, 31/12/1854).
O cronista aproveita ainda o momento para expor problemas que o governo não deu solução naquele ano e que vinham de outros anos, como a iluminação a gás e sua cobrança excessiva e não satisfatória. E, para findar essa crônica, Alencar fala sobre o teatro que, por mais um ano, não recebeu o merecido cuidado, pois suas condições continuavam péssimas, “sobrevivendo” a chuvas e ventanias, um descaso com o povo da corte que paga para assistir aos espetáculos. Mais à frente, já em 13 de maio de 1855, Alencar escreve sua crônica de número XXX. Nela ele diz que está indisposto para escrever e propõe uma conversa, pois esta é mais agradável e útil, citando Esopo: “a palavra é a melhor e também a pior coisa 90
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que Deus deu ao homem”, a que ainda acrescenta Alencar: “Ora, para fazer valer este dom, é preciso saber conversar, é preciso estudar profundamente todos os recursos da palavra. A conversa, portanto, pode ser uma arte, uma ciência, uma profissão mesmo” (ALENCAR, Correio Mercantil, 13/05/1855). Com isso, se percebe que é relevante saber que a palavra pode ser tanto boa quanto ruim, de acordo com o modo como a usamos. Ele cita várias maneiras de conversas e chega à política falando do incômodo do ministério com as câmaras e da solução para esse “mal-estar”, que seria recorrer à conversa. Em uma alusão à Idade Média e a como os exércitos antigos resolviam suas guerras, ele cita em específico Roma e Alba e o combate dos Horácios e Curiáceos, em que os Horácios ganham depois de os Curiácios pensarem que já haviam ganhado a guerra. Alencar demonstra preocupação com a política da época, pois à sua vista os governantes não se entendem como deveriam e faltam princípios aos homens: Os princípios desapareceram; as opiniões se confundem, as convicções vacilam, e os homens não se entendem, porque falta o pensamento superior, a ideia capital, que deve traçar a marcha do governo. A política e a administração, deixando de ser um sistema, reduziram-se apenas a uma série de fatos que não são consequência de nenhum princípio, e que derivam apenas das circunstâncias e das necessidades do momento (ALENCAR, Correio Mercantil, 13/05/1855).
No trecho acima, a preocupação de Alencar com a desordem está explícita. Para ele, uma crise chega à corte, por isso vê a necessidade de um novo partido, com novas pessoas, as quais possam começar “de baixo” e com ideias novas, para – quem sabe – valorizar o país. Após as críticas à precariedade da política, o autor encerra sua crônica voltando a falar do que o agrada, ou seja, as noites embaladas por bailes e gente bonita, que se encontra com o objetivo de buscar um pouco de diversão e espalhá-la entre os mais bem vistos da sociedade. 91
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No mês de maio no dia 20 do ano de 1855, Alencar segue com sua crônica de número XXXI. Nesta, ele comenta uma triste catástrofe que acontecera, um terrível incêndio durante um baile em um salão elegante, que foi reduzido a cinzas. Esse episódio triste foi assunto durante uns três dias, porém passados esses dias o assunto foi esquecido. Após o incêndio, segue uma semana de chuva na cidade do Rio de Janeiro sem grandes acontecimentos. Na mesma crônica, Alencar fala sobre uma exposição com produtos dos Estados Unidos em oferecimento a suas Majestades: Nesta mesma noite teve lugar a reunião da Sociedade Estatística na sala onde se achavam expostos os produtos industriais dos Estados Unidos, que o Sr. Fletcher oferecera a Suas Majestades e algumas corporações científicas desta corte. Havia muita coisa a admirar naquela pequena exposição especialmente pelo que toca à fotografia, aos trabalhos de cromolitografia, e às cartas geográficas feitas pelo novo sistema da gravura sobre cera (ALENCAR, Correio Mercantil, 20/05/1855).
Essa exposição trazia grandes novidades, com engenharias contemporâneas, pelas quais Alencar não escondeu sua admiração. A exposição também revelava os interesses políticos entre as Américas, que ao ver de Alencar seriam bastante interessantes para ambas as nações. Como a política do Brasil continuava insatisfatória, acreditar em algo melhor fazia bem, mesmo que a realidade do governo em relação ao povo e à cidade fosse bem crítica. No início da crônica de número XXXII, escrita no dia 27 de maio de 1855, Alencar expõe seu ótimo senso de humor com mais um pequeno conto, em que narra que está na casa de um amigo pronto para começar a escrever quando a pena e o tinteiro se rebelam e não querem mais trabalhar, exigem a palavra e Alencar a contragosto resolve ouvi-los já que não há outra saída, pois, quando viu que aquela pena não voltaria a trabalhar e resolveu pegar outras, a reação delas foi a mesma, todas em nome de sua classe. Com o passar da hora, Alencar resolve ir para sua casa escrever com sua pena e sua amiga de tantos momentos, porém a decepção foi inevitável, ela também declarava guerra a seu tintei92
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ro: aquele casal que se encaixava perfeitamente no passado já não queria juntar-se para um bom escrito. Foi então que Alencar resolveu desfazer-se de seu tinteiro, e a senhorita pena voltou feliz a fazer aquilo que sabia de melhor. Nesse momento, o autor começa a descrever um dia lindo e calmo na baía de Botafogo. Logo após, Alencar falar sobre a fartura da mesa na casa do senhor Teixeira Leite. Ele se encanta com a beleza de uma mesa farta e lembra que todas as diferenças acabam ali, pois qualquer pessoa necessita do alimento, seja rico ou pobre, bonito ou feio. É neste lugar onde se vê que sem o alimento o ser humano não produz nem reproduz: Sans pain et sans vin, l’amour n’est rien, diz Brillat Savarin, que é autoridade na matéria. Portanto não é de admirar que, depois do toast, todos os rostos se animassem, o sorriso se expandisse nos lábios, e a galanteria se tornasse mais amável e afetuosa. A minha poesia, a pouca que tenho, aproveitou o primeiro olhar que passou e foi refugiar-se nuns belos olhos que ela conhece, até que passassem as reflexões humorísticas que faziam trabalhar o meu espírito. E ela tinha razão. Numa mesa de jantar, a menos que não se tenha perdido a razão, declaro impossível a menor dose de poesia. Neste lugar tudo se nivela, tudo se iguala. O rei e o mendigo, o rico e o pobre, a moça bonita e a mulher feia, todos têm fome (ALENCAR, Correio Mercantil, 27/05/1855).
A importância da imprensa e seu poder de rápida difusão materializam a “liberdade de pensamento e consciência”: “Esta árvore é a liberdade; a liberdade de imprensa, que há de existir sempre, porque é a liberdade do pensamento e da consciência, sem a qual o homem não existe; porque é o direito de queixa e defesa, que não se pode recusar a ninguém” (ALENCAR, Correio Mercantil, 27/05/1855). Alencar fala sobre toda a importância da imprensa, diz também que se sente à vontade para escrever muito mais coisas pequenas, no entanto acaba sua crônica misteriosamente, dizendo que é necessário parar com seus escritos. No dia 17 de junho de 1855, Alencar escreve sua crônica de número XXXV. Ele começa narrando que fora assistir a uma apresentação e dizendo que recebera uma carta. Enquanto cami93
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nha, pensa na importância desse tipo de escrito, no quanto a carta aproxima pessoas a qualquer distância, que muitas vezes nem se conhecem ou se conhecem o suficiente para se amarem, e pensa ainda nos mais variados tipos de notícia que esta folha de papel pode conter, sejam boas ou ruins. Logo após, Alencar faz um jogo de palavras para dizer que agora se tem a constituição, um nome que é mais sério que “carta”, e não permite relação com nomes de jogos de sorte ou azar, ou seja, as cartas de baralho. Naquele momento, houve uma reorganização ministerial que dividia opiniões, mas Alencar elogia o novo ministro, o Sr. Wanderley. Também ressaltava a importância de cada um olhar pela pátria e sacrificar-se por ela, uma vez que ela faz o mesmo pelo interesse do povo. O autor da crônica segue falando de política e depois muda o assunto para a arte na noite brasileira. A seguir, Alencar volta a falar sobre a carta que recebera no início da crônica. Inicialmente, ele tem uma suspeita de ser uma carta escrita por uma mulher, pois nela há versos carinhosos escritos em francês. Também lhe passa pela cabeça uma grande suspeita de que pode ter sido escrita por alguém do sexo masculino querendo promover seus escritos. Então, ele sugere que, se alguém descobrir, compartilhe com ele essa curiosidade ou, caso o autor ou autora dos versos continue em anonimato, que lhe mande “mais bons versos como estes”. Ele encerra sua crônica falando do Ginásio e de sua nova excelente aquisição, uma artista, e de novos artistas que virão da Europa para enriquecer as noites brasileiras. Em sua crônica XXXVI, escrita no dia 24 de junho de 1855, Alencar narra sobre um concurso que acontecera na zona sul e alegrou muita gente naquele domingo. Ele conta também sobre um evento beneficente que envolve artistas franceses e do possível agrado por parte desses artistas às variedades de gêneros musicais, uma vez que naquele momento a preferência era apenas por um gênero musical, o italiano, e relata a educação do público diante de um espetáculo em que a artista sente por saber que não é a preferida naquele momento. Alencar segue sua crônica aproveitando-se da exposição do modelo de vestido de casamento da Imperatriz Eugênia, à qual 94
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muitas moças iam para apreciá-lo e os rapazes para ver as moças e cortejá-las, e faz uma comparação com a eleição para senador, em que todos os homens podiam ser candidatos, porém teriam que ser aceitos pelo povo, caso contrário não conseguiriam ir adiante. Assim eram esses rapazes com as moças. Todos cortejavam todas, no entanto elas decidiam uma possível aproximação. Na verdade, Alencar usou esse exemplo para falar como os senadores chegavam ao cargo: O mesmo sucede com a vaga de senador. Um homem qualquer que tem quarenta anos, seja ou não filho de uma província, tenha ou não a afeição dos povos de certas localidades, sem consultar os votantes, apresenta-se candidato, enche o correio de cartas. Se a província mostra não se importar com a sua candidatura, o homem de quarenta anos toma igualmente uma resolução, renuncia à eleição a que tinha direito (ALENCAR, Correio Mercantil, 24/06/1855).
Por ironia do destino, 14 anos após a publicação dessa revista, Alencar já estava na carreira política e candidatara-se ao cargo de senador do Império, porém não conseguiu o cargo, pois o então imperador D. Pedro II não o escolheu por ser muito jovem ainda. Mais adiante, Alencar seguiu demonstrando sua indignação com um correspondente do Jornal do Comércio ao contestar a respeito dos espetáculos líricos no Teatro S. Pedro de Alcântara, aos quais ele se referira anteriormente. O correspondente contestou esses espetáculos, porque a atual empresa lírica deve ter privilégio. Alencar revelou seu ponto de vista em defesa da variação de novos gêneros, pois do contrário o que prevaleceria era o monopólio, e se o governo o concedeu era um ato inconstitucional e não útil ao público. Alencar encerra a crônica convidando o povo para festividades tradicionais e dizendo que, como prometido, recebera mais uma carta “misteriosa”. Confirma que a assinatura agora deve ser lida em francês, elle, não conta o conteúdo escrito, mas mostra os versos “encantadores”. 95
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No dia 8 de julho de 1855, Alencar escreveu sua última crônica no jornal Correio Mercantil e inicia dizendo que, para não ficar doido, seria necessário sair da cidade ou ficar dentro de casa e comentou o modo como as pessoas se cumprimentavam nas ruas, pois os cordiais “Bom dia!”, “Boa tarde!” ou “Boa noite!” não se usavam muito, só se falava em negócios e política, o que deixava alguns constrangidos e outros bem satisfeitos. Esse assunto político se prorroga um pouco mais na crônica e depois Alencar diz que ainda tem muitos assuntos agradáveis para falar como a ida ao teatro para ver o benefício do Gentile, pois o público demonstrara grande satisfação com o espetáculo e a cantora Charton cantara como nunca: Mas temos muita coisa agradável sobre que conversar, e não vale a pena estarmos a gastar o nosso tempo com esta questão de jornais. Enquanto senadores, deputados, empregados públicos, desembargadores, negociantes e capitalistas correm à praça para saber a cotação das ações, vamos nós para o teatro ver benefício do Gentile. O público deu-lhe todas as demonstrações de apreço e simpatia; os ramos de flores e os versos choveram dos camarotes, e a Charton cantou melhor do que ela mesma costuma cantar. É um pouco difícil, mas é verdade. Há certas noites em que se conhece que não é a obrigação que a faz cantar, mas a inspiração, um movimento espontâneo, uma necessidade de expansão (ALENCAR, Correio Mercantil, 08/07/1855).
Alencar continua sua crônica comentando acerca da alegria que o teatro de comédia oferece às moças, afirmando que esse mérito é todo delas e pede a elas que não deixem de interagir com o teatro cobrando aos artistas o que lhes falta. Seguindo sua crônica, Alencar volta a falar de política, agora para dizer o quanto fez bem o Partido Liberal à imprensa e ao júri. Fala também da necessidade de avaliar os fatos sem colocar em primeiro lugar os interesses pessoais, assim como é quase tudo na política, desde sempre. Alencar expõe esse pensamento para mostrar ao seu leitor que todos devem se conscientizar a respeito da política em tudo que ela servirá: 96
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Foi ele que nos deu, e que tem defendido ardentemente o júri e a imprensa; foi ele que primeiro proclamou o princípio das incompatibilidades, das eleições diretas, da independência do poder judiciário, que iniciou todas estas reformas que hoje se trata de realizar (ALENCAR, Correio Mercantil, 08/07/1855).
Após mostrar a importância da conscientização política, ele diz que é hora de se despedir de sua pena, a sua amiga de todo esse tempo de folhetinista do jornal Correio Mercantil, sua confidente de todos os momentos, sejam eles bons ou ruins. Em suas palavras, nota-se uma grande tristeza, pois essa separação pode ser para sempre e já sente falta do tempo em que fizeram tantas coisas juntos, de momentos inesquecíveis e íntimos. Ele é consciente de que muitos esquecerão sua eterna amiga, porém ele jamais a esquecerá. Assim, com esse sentimento de tristeza, Alencar e sua pena escrevem as últimas palavras nesse jornal onde puderam transmitir aos seus leitores notícias importantes tanto brasileiras quanto internacionais, principalmente da Europa, o centro do mundo naquele momento. Alencar fez um bom uso de suas crônicas, pois através delas pôde expressar seus sentimentos em vários momentos políticos e artísticos por que o Brasil passava. Com uma prosa bem leve e satisfatória, ele dialogava diretamente com seu público, mostrando-lhe o momento atual sem esconder de seu povo o que realmente ele merecia saber. Alencar encerra essa série Ao correr da pena, sem dar muitas explicações do porquê da interrupção.
Considerações finais Em síntese, este trabalho teve por objetivo mostrar a face do cronista José de Alencar, ao transmitir ao leitor fatos cotidianos relatados com excelência, visando sempre seu público, que era seu principal incentivo. As crônicas assumiram grande significado para a sociedade brasileira. Embora escritas em um rodapé de jornal, elas mostravam os acontecimentos mais relevantes da semana, e isso era algo inovador e necessário naquele momento, pois, a partir do século XIX, ficaram mais fortes as cobranças para que o 97
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Império do Brasil tivesse um projeto de Estado que privilegiasse o povo e as suas necessidades. O fato de as crônicas assumirem uma forma mais livre e de o autor poder se movimentar nelas da maneira como preferisse as tornava mais agradáveis de ler. Essa inovação na escrita deu tão certo que permitiu a Alencar, quando saiu do Correio Mercantil por ter se irritado com a censura imposta ao seu último artigo, entrar pouco tempo depois no Diário do Rio de Janeiro e continuar com sua carreira de folhetinista e com sua série Ao correr da pena. Em suas revistas, a preocupação de Alencar era sempre chamar a atenção dos brasileiros para três pilares fundamentais, desde aquela época até os dias de hoje: ele relatava a vida noturna da corte, a política e a vida social. No que diz a respeito da vida noturna, dentro do mundanismo daquele momento, escrevia sobre bailes, festas e reuniões; já acerca da política, tratava dos revezamentos de partidos e ministérios, apontando aspectos que poderiam ser melhorados na corte, especialmente no que se referia à saúde e educação dos brasileiros. No tocante à vida social, apresentou relevante crítica sobre a cultura teatral, principalmente os espetáculos líricos, que eram os mais requisitados naquela época. Alencar fez de suas crônicas um gênero misto que, apesar de terem a princípio pouca importância, com o tempo ganharam notoriedade, graças à sua pluralidade. Todas as semanas, o autor incrementava seus escritos com poesias e contos, uma espécie de diferencial das demais notícias, o que propiciava um diálogo direto e rápido com o leitor. A cada crônica, uma inovação, uma maneira de chamar a atenção do leitor. Alencar se mostrava um cronista de conhecimento vasto, como exige a função. O “novo Proteu”, que surge nas notícias de rodapé com o dom de mudar as coisas através da linguagem, consegue chamar a atenção de seu leitor até mesmo com suas notícias frívolas. Essa mistura de linguagem na adesão a esse novo gênero forma uma “salada”, a qual se pode nomear de Salade à la mode Alencar, o que constituía cardápio saudável para seus leitores, pois fortalecia de conhecimentos e sabedorias, ou seja, tudo de que necessitava aquela sociedade dos 1800 para um bom crescimento. 98
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Imagens de alguns exemplares do Correio Mercantil com o rodapé de Ao correr da pena
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Referências ALENCAR, José de. “Ao correr da pena”. Correio Mercantil. Rio de Janeiro: 18541855. ______. Como e por que sou romancista. Campinas-SP: Pontes, 2005. ______. A viuvinha. In: Cinco minutos e A viuvinha. São Paulo: Ciranda Cultural, 2009. CANDIDO, Antonio. “A vida ao rés-do-chão”. In: ______ et al. A crônica: o gênero, sua fixação e transformações no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; Campinas: Ed. UNICAMP, 1992, p. 13-22. CÂNDIDO, Weslei Roberto. “José de Alencar e o processo de formação do campo intelectual brasileiro do século XIX”. Revista Iluminart, IFSP, Sertãozinho, v. 1, n. 2, p. 117-138, 2009. FARIA, João Roberto. “Alencar: A Semana em Revista”. In: CANDIDO, Antonio. (org.). A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; Campinas: Ed. UNICAMP, 1992, p. 301316. HELENA, Lucia. A solidão tropical: o Brasil de Alencar e da modernidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006. ______. “Escrevendo a nação”. In: Literatura e diferença – Anais do IV Congresso Abralic. São Paulo: ABRALIC, 1995, p. 525-530. MARTINS, Eduardo Vieira. “O monstro de Horácio”. In: A fonte subterrânea: José de Alencar e a retórica oitocentista. São Paulo: EDUSP, 2005, p. 78-98. RAMOS, Júlio. Desencontros da modernidade na América Latina. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. SÁ, Jorge de. A crônica. São Paulo: Ática, 1985. SILVA, Hebe Cristina da. “José de Alencar e o romance no Brasil”. Moara – Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPA, n. 21, p. 67-88, 2004. VIANA FILHO, Luís. A vida de José de Alencar. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.
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Nação e mercado capitalista em perspectiva histórica: o legado crítico de Johann Wolfgang von Goethe1 Luiz Barros Montez2
É
pouco mais do que uma obviedade dizer nos dias de hoje que a obra de Goethe é não somente extensa, mas também multifacetada, transitando por diversos campos disciplinares. Por conseguinte, supor que essa extensa obra se estrutura em torno de uma ideia filosófica fundamental seria um equívoco que o próprio Goethe fazia questão de rejeitar, por exemplo, quando falava sobre o Fausto, sua obra-síntese que o ocupou por quase 60 anos. Interrogado por Eckermann a respeito de uma possível ideia subjacente à obra, o poeta responde: Como se eu mesmo soubesse e pudesse expressar isto! Do céu, passando pelo mundo até o inferno – em caso de necessidade já seria algo; mas isto não é uma ideia, e sim um trajeto da ação. E, além do mais, que o diabo perca a aposta e que o homem, apesar de grandes deslizes, almeje continuamente o melhor e possa se salvar, isto é decerto um bom e efetivo pensamento, que esclarece muito, mas não é uma ideia em que se baseie o todo e cada uma das cenas em particular. 3
Este trabalho foi originalmente apresentado no Seminário Nação e Narração, realizado em dezembro de 2015, no Instituto de Letras da UFF, sob a coordenação de Lucia Helena. 2 Professor Associado da Faculdade de Letras da UFRJ, Doutor em Língua e Literatura Alemã pela Universidade de São Paulo (1999), com Pós-Doutorado na Universidade de Viena (2009-2010). Coordena o Grupo de Pesquisa LIEDH – Linguagem e Discursos da História, credenciado junto à Fundação Biblioteca Nacional (www.letras. ufrj.br/liedh). É membro de diversas sociedades científicas, entre as quais a ABEG – Associação Brasileira de Estudos Germanísticos. Desenvolve pesquisas sobre relatos de viajantes alemães no Brasil nos séculos XVIII e XIX, sobre o Iluminismo, Sturm und Drang e Romantismo. Tradutor do alemão para o português de obras literárias e crítico-literárias, além de diversos relatos de viajantes dos séculos XVIII e XIX. 3 “Als ich das selber wüßte und aussprechen könnte! Vom Himmel durch die Welt zur Hölle – das wäre zur Not etwas; aber das ist keine Idee, sondern Gang der Handlung. Und ferner, daß der Teufel die Wette verliert und daß ein aus schweren 1
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Mais adiante, o poeta detalha: Quando eu quis, no entanto, como poeta, apresentar qualquer uma ideia, o fiz em pequenas poesias, onde podia predominar uma decidida unidade e aquilo que pudesse ser contemplado de cima; [...] O único produto de grande abrangência, onde estive consciente de ter trabalhado na exposição de uma ideia radical, seriam no caso as minhas Afinidades eletivas. O romance tornou-se com isso accessível à compreensão; mas não direi que ele tenha se tornado melhor! Ao contrário, sou da opinião de que, quanto mais incomensurável à compreensão é a produção poética, tanto melhor.4
Ampliando a categorização de Georg Lukács, um dos melhores intérpretes de Goethe no século passado, para quem a qualificação do Fausto de Goethe como “produção incomensurável” não é para a história da literatura uma definição, mas sim um problema, podemos dizer o mesmo do conjunto de sua obra. Por reconhecer esse caráter problemático da obra goetheana, impõe-se aqui previamente um esclarecimento. O título que (de maneira muito pretensiosa) dei a esta palestra – “Nação e mercado capitalista em perspectiva histórica: o legado crítico de Johann Wolfgang von Goethe” – tem, como se vê, dois hemisférios. O primeiro hemisfério tem nos termos “nação” e “mercado capitalista” suas balizas mais evidentes. Porém – e talvez frustrando algumas perspectivas entre vocês – ao invés de abordar em que medida a obra de Goethe trata criticamente desses temas, procedo aqui com a perspectiva exatamente inversa, isto Verirrungen immerfort zum Besseren aufstrebender Mensch zu erlösen sei, das ist zwar ein wirksamer, manches erklärender, guter Gedanke, aber es ist keine Idee, die dem Ganzen und jeder einzelnen Szene im besonderen zugrunde liege” (GOETHE, 1986, p. 588). 4 “Wollte ich jedoch einmal als Poet irgendeine Idee darstellen, so tat ich es in kleinen Gedichten, wo eine entschiedene Einheit herrschen konnte und welches zu übersehen war (...). Das einzige Produkt vom größeren Umfang, wo ich mir bewußt bin, nach Darstellung einer durchgreifenden Idee gearbeitet zu haben, wären etwa meine ‚Wahlverwandtschaften‘. Der Roman ist dadurch für den Verstand faßlich geworden; aber ich will nicht sagen, daß er dadurch besser geworden wäre! Vielmehr bin ich der Meinung: je inkommensurabler und für den Verstand unfaßlicher eine poetische Produktion, desto besser“ (Idem ibidem, p. 589).
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é, destaco como e em que medida o processo histórico alemão, que assentou na Alemanha as bases concretas do “mercado capitalista” e engendrou o conceito de “nação alemã” – para usar aqui um termo foucaultiano da Arqueologia do saber (1969) –, repito, destaco como esse processo histórico alemão constituiu discursiva e simbolicamente o escritor Johann Wolfgang von Goethe como personagem-chave para a cultura alemã, e como, no cadinho de sua extensa produção, cristalizou, em meio a sua obra “incomensurável”, muitas vezes através de uma drástica desistoricização e da criação de mitologemas, enfeixados sob a designação de “classicismo”, alguns elementos que até hoje determinam a história de sua recepção, tanto na Alemanha quanto no Brasil. Como se vê, a minha pretensão aqui parece ser mais presunçosa ainda que o título da palestra! Na verdade, vamos baixar a bola: faço aqui apenas um breve passeio por alguns aspectos dessa problemática, não somente em função da exiguidade do tempo, mas fundamentalmente em função da complexidade desta empreitada, que certamente é trabalho para mais de uma pessoa.
O fim da Kunstepoche (Época da Arte) Podemos tomar como ponto de partida de nossa exposição o período imediatamente posterior à morte de Goethe, ocorrida em março de 1832, com a idade de 82 anos (ele nasceu em agosto de 1749), e a sua repercussão na vida literária da época após a “revolução de julho” de 1830 na França. Os depoimentos, testemunhos e mesmo diversas passagens ficcionais que apresento a seguir dão uma dimensão de como Goethe havia sido transformado em uma inelutável referência histórico-literária no período. Para a geração de intelectuais ativos no início dos anos de 1830, a morte de Goethe foi percebida por vezes como alívio. Por exemplo, assim se manifesta Alexander von Ungern-Sternberg em seu romance Eduard, de 1833:
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Sim, grande morto, nós te chamamos agora de volta, tua morte é a nossa vida! Nós sofremos e suspiramos sob a tua radiante grandeza; nada é mais incômodo do que suportar uma grandeza, e tu nos imputaste fartamente esta carga. Nossa vida foi uma eterna luta contra a tua luz, e aqueles que procuraram te combater da forma mais ácida te elogiavam! Não é agradável passar despercebido, e nós passamos despercebidos! [... O] velho e nobre cantor está morto! Não há mais diferença de estamentos e de espíritos; somos todos pequenos, felizes, livres e iguais! Ó século magnífico!5
As avaliações críticas do personagem e de sua obra resvalam com frequência em apreciações subjetivas em que ressaltam mais idiossincrasias do que quaisquer análises objetivas. Vejamos mais uma citação, extraída das Reisenovellen de Heinrich Laube, de 1834: Nunca amei Goethe, mesmo quando compreendi que ele era o nosso maior poeta. Um traço egoísta atravessa seu rosto e sua vida, traço que exclui o amor de meu coração, ainda que seja, como diz Heine, o traço egoísta na boca de Júpiter. [...] Ele nunca sentiu algo daquele entusiasmo humano e belo com o qual morreram as melhores pessoas da história universal.6
Vamos examinar aqui um pouco mais de perto o mais importante autor alemão da época da Junges Deutschland, Heinrich Heine. “Ja, großer Toter, wir rufen dich jetzt zurück, dein Tod ist ja unser Leben! Gelitten und geseufzt haben wir unter deiner strahlenden Größe; es ist nichts so unbequem, als Größe zu ertragen, und diese Beschwerde hast du uns reichlich aufgeladen. Unser Leben war ein ewiger Kampf gegen dein Licht, und die dich am giftigsten zu bekämpfen suchten, die lobten dich! Es ist nicht angenehm, übersehen zu werden, und wir wurden übersehen! [...] der alte, adlige Sänger ist tot! Es gibt keinen Unterschied der Stände und der Geister mehr; wir sind alle klein, glücklich, frei und gleich! O herrliches Jahrhundert!” (Apud HERMAND, 1979, p. 21). 6 “Ich habe Goethe nie geliebt, selbst dann nicht, als ich es einsah, daß er unser größter Dichter sei. Es geht ein egoistischer Zug durch sein Gesicht und sein Leben, welcher für mein Herz die Liebe ausschließt, mag es auch, wie Heine sagt, der egoistische Zug um den Mund des Jupiter sein. [...] Er hat nie etwas von jener humanen, schönen Begeisterung empfunden, mit welcher die besten Menschen der Weltgeschichte gestorben sind” (Ibidem, p. 24f). 5
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Anos antes da morte de Goethe, Heine, mesmo rotulando-o em uma carta de 1827 como um “criado de aristocratas”7, distanciou-se em certa medida da maior parte das avaliações críticas provindas da “Jovem Alemanha”, bastante contaminadas pela unilateralidade no julgamento. Mesmo assim, Heine foi um dos críticos mais proeminentes de Goethe, possivelmente por ter conhecido melhor o poeta e sua obra do que boa parte dos autores daquela geração, particularmente por ter acompanhado de perto a biografia do poeta de Weimar e por ter observado atentamente os comentários tanto de seus seguidores como de seus adversários. Desde 1816, passou a ler continuamente Goethe e procurou inclusive estabelecer contato pessoal com o poeta. A este Heine enviou, ao final de 1821, o seu volume de poemas que acabara de publicar, aduzindo em carta as seguintes palavras: Eu teria centenas de motivos para enviar a Vossa Excelência minhas poesias. Quero mencionar tão-somente um: eu o amo. Acho que esse é um motivo suficiente. Minhas poetações [Poetereyen], eu sei, ainda têm pouco valor; somente aqui e ali se poderia encontrar algo vistoso com condições de serem oferecidas. Durante muito tempo tive dúvidas sobre a essência da poesia. As pessoas me diziam: pergunte a Schlegel. Este me dizia: leia Goethe. Isto o fiz honestamente, e, se me couber algo correto, sei a quem devo agradecer. Beijo a mão sagrada que mostrou a mim e a todo o povo alemão o caminho para o reino dos céus, e subscrevo-me obediente e devoto, H. Heine.8
HEINE, Heinrich. Briefe 1815-1831. Bearbeiter Fritz H. Eisner. H. H.: Säkularausgabe. Bd. 20. Berlin: Akademie-Verlag. Paris: Editions du CNRS 1970, p. 302, carta a Moses Moser, 30. 10. 1827. 8 “Ich hätte hundert Gründe Ew Excellenz meine Gedichte zu schicken. Ich will nur einen erwähnen: Ich liebe Sie. Ich glaube das ist ein hinreichender Grund. – Meine Poetereyen, ich weiß es, haben noch wenig Werth; nur hier und da wär manches zu finden, woraus man sehen könnte was ich mahl zu geben im Stande bin. Ich war lange nicht mit mir einig über das Wesen der Poesie. Die Leute sagten mir: frage Schlegel. Der sagte mir: lese Göthe. Das hab ich ehrlich gethan, und wenn mahl etwas Rechts aus mir wird, so weiß ich wem ich es verdanke. Ich küsse die heilige Hand, die mir und dem ganzen deutschen Volke den Weg zum Himmelreich gezeigt hat, und bin Ew Excellenz gehorsamer und ergebener H. Heine” (Ibidem, p. 46, carta a Goethe, 29. 12. 1821). 7
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Goethe não respondeu a essa carta. Se ela foi sincera ou antes correspondia a convenção das cartas que procuravam obter a bênção dos poetas consagrados com a finalidade de ser apadrinhado, é difícil dizer. O fato é que Heine mandou o mesmo volume com as mesmas palavras para Ludwig Uhland, Wilhelm Müller, Adam Oehlenschläger e Ludwig Tieck! Logo depois de sua viagem ao Harz, Heine visitou Goethe em outubro de 1824 e foi recebido com bastante distância. O poeta de Düsseldorf manifestou sua decepção após o encontro com o escritor em várias cartas, ainda vários meses depois do encontro, nas quais, entretanto, começava a se comparar com o poeta de Weimar. Vejamos como exemplo a sua carta ao amigo Rudolf Christiani de 26 de maio de 1825: Apavorei-me até o fundo da alma com a aparência de Goethe, com o rosto amarelo e parecido com uma múmia, a boca desdentada em movimento assustado, toda a figura como a imagem da decrepitude humana. Consequência, talvez, de sua última enfermidade. Apenas o seu olho estava claro e brilhante. Este olho é a única coisa notável que Weimar possui atualmente. [...] Em muitos traços reconheci o Goethe para quem o mais elevado é a vida, o embelezamento e a manutenção desta, bem como de tudo aquilo que tem realmente aspecto prático. Ali senti claramente o contraste desta natureza com a minha, para a qual tudo o que é prático é desagradável, e que no fundo menospreza a vida, e teimosamente a devota à Ideia. É de fato a minha cisão interior que põe a minha razão em permanente luta contra a minha inclinação inata ao devaneio [Schwärmerei]. Agora eu sei também exatamente por que os escritos de Goethe no fundo repugnam sempre a minha alma, ainda que eu os venere em termos poéticos, e ainda que a minha visão de vida habitual coincida com a sua maneira de pensar. Encontro-me, portanto, em verdadeira guerra com Goethe e com os seus escritos da mesma forma que minhas visões de vida encontram-se em guerra com as minhas inclinações inatas e com as secretas movimentações de minha alma.9 “Über Göthes Aussehen erschrak ich bis in tiefster Seele, das Gesicht gelb und mumienhaft, der zahnlose Mund in ängstlicher Bewegung, die ganze Gestalt ein Bild menschlicher Hinfälligkeit. Vielleicht Folge seiner letzten Krankheit. Nur sein
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Mais adiante, ainda em 1825, em carta a Moses Moser, Heine detalha melhor sua relação com Goethe: No fundo, [...] eu e Goethe somos duas naturezas que têm que se repelir em sua heterogeneidade. Ele é de berço e tranquilamente um bonvivant [Lebemensch] para quem o gozo da vida é o máximo, e que talvez sinta e pressinta a vida em certos momentos para e na Ideia e o pronuncie em poesias, mas que nunca concebeu esta profundamente, e menos ainda a viveu. Eu, ao contrário, sou de berço um sonhador [Schwärmer], isto é, um entusiasmado até o sacrifício pela Ideia, e sempre impelido a mergulhar nela; mas, em contrapartida, concebi o prazer da vida e encontrei satisfação nisso, e agora trava-se em mim a grande luta entre a minha clara razoabilidade, que aprova o gozo da vida e recusa todo o entusiasmo do sacrifício como algo tolo, e entre a minha inclinação pelo devaneio, que se revela frequente e inadvertidamente com violência, e que me carrega novamente lá para baixo, ou talvez seja melhor dizer lá para cima, para o reino ancestral; pois ainda se coloca a grande questão se o sonhador, que devota a sua vida à Ideia, não vive melhor e mais feliz em um momento do que o Senhor von Goethe ao longo de todos os seus 76 anos de vida de contentamento egoísta.10 Auge war klar und glänzend. Dieses Auge ist die einzige Merkwürdigkeit die Weimar jetzt besitzt. [...] In vielen Zügen erkannte ich den Göthe, dem das Leben, die Verschönerung und die Erhaltung desselben, so wie das eigentlich praktische überhaupt, das Höchste ist. Da fühlte ich ganz klar den Contrast dieser Natur mit der meinigen, welcher alles Praktische unerquicklich ist, die das Leben im Grunde geringschätzt und es trotzig hingeben möchte für die Idee. Das ist ja eben der Zwiespalt in mir daß meine Vernunft in beständigem Kampf steht mit meiner angeborenen Neigung zur Schwärmerey. Jetzt weiß ich es auch ganz genau warum die göthischen Schriften im Grunde meiner Seele mich immer abstießen, so sehr ich sie in poetischer Hinsicht verehrte und so sehr auch meine gewöhnliche Lebensansicht mit der göthischen Denkweise übereinstimmte. Ich liege also in wahrhaftem Kriege mit Goethe und seinen Schriften, so wie meine Lebensansichten in Krieg liegen mit meinen angeborenen Neigungen und geheimen Gemüthsbewegungen” (Ibidem, p. 199, carta a Rudolf Christiani, 26. 5. 1825). 10 “Im Grunde [...] sind ich und Göthe zwey Naturen die sich in ihrer Heterogenität abstoßen müssen. Er ist von Haus aus ein leichter Lebemensch dem der Lebensgenuß das Höchste, und der das Leben für und in der Idee wohl zuweilen fühlt und ahnt und in Gedichten ausspricht, aber nie tief begriffen und noch weniger gelebt hat. Ich hingegen bin von Haus aus ein Schwärmer, d. h. bis zur Aufopferung begeistert für die Idee, und immer gedrängt in dieselbe mich zu versenken, dagegen aber habe ich den Lebensgenuß begriffen und Gefallen dran gefunden, und nun ist in mir der große Kampf zwischen meiner klaren Vernünftigkeit die den Lebensgenuß billigt
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Aqui, percebemos com total nitidez como aquilo que chamamos há pouco de “incomensurável” na obra de Goethe provocou no maior poeta alemão depois dele um sentimento misto de profunda admiração, mas também de profundo desprezo. Para Heinrich Heine, a obra de Goethe configura uma referência tão grandiosa que o seu conceito de “Kunstperiode”, por ele usado pela primeira vez na resenha à obra “A literatura alemã de Wolfgang Menzel”, em 182811, para designar todo um período na vida literária alemã, passou a balizar a visão histórico-literária de diversos outros autores. O termo “Kunstperiode” (o Período da Arte) baliza ainda hoje diversas obras sobre a história da literatura alemã. Dou como exemplo o livro famoso organizado por Wolfgang Beutin (2008), usado em nossos cursos de Graduação, e republicado em repetidas tiragens pela editora alemã Metzler. Toda essa apreciação da obra de Goethe foi determinada não somente pelo seu conjunto, objetivamente considerado, mas também pelo que representava a vida literária na Alemanha após 1815. O campo literário tornara-se um espaço de ação objetivamente disputado por forças políticas que há muito não se contentavam mais com o papel contemplativo em que os autores a encerravam. Pouco a pouco os jovens escritores passaram a pleitear para o campo literário a luta aberta contra a opressão política. Após 1806, com a consolidação da vitória napoleônica sobre os alemães e a dissolução definitiva do Sacro Império Romano Germânico, avolumaram-se as tendências nacionalistas que iam ocupando os espaços literários. Entretanto, a pugna no campo literário contra o invasor francês – diga-se de passagem que com características und alle aufopfrende Begeistrung als etwas Thörigtes ablehnt, und zwischen meiner schwärmerischen Neigung, die oft unversehens aufschießt, und mich gewaltsam ergreift, und mich vielleicht einst wieder in ihr uraltes Reich hinabzieht, wenn es nicht besser ist zu sagen hinaufzieht; denn es ist noch die große Frage ob der Schwärmer, der selbst sein Leben für die Idee hingiebt, nicht in einem Momente mehr und glücklicher lebt als Herr v. Göthe während seines ganzen 76jährigen egoistisch behäglichen Lebens” (Ibidem, p. 205, carta a Moses Moser, 1. 7. 1825).
HEINE, Heinrich. “Rezension zu Die deutsche Literatur von Wolfgang Menzel. 2 Theile. Stuttgart, bei Gebrüder Frankh, 1828”. Disponível em https://www.uni-due.de/lyriktheorie/texte/1828_heine.html, acesso em 13 de maio de 2017.
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frequentemente reacionárias e antissemitas – metamorfoseou-se, após 1815, em resistência crescente ao estado de opressão exercido pelas próprias camadas aristocráticas que perpetuavam estruturas políticas oriundas do feudalismo. Nesse campo, pouco a pouco surgiram e proliferaram ideias anticapitalistas e classistas, isto é, proto-socialistas. Nesse ambiente, as concepções gradualistas de Goethe, hauridas de suas concepções científico-naturais e transplantadas para a sua visão de sociedade, profundamente avessa à ruptura e a saltos revolucionários, mostravam-se absolutamente reacionárias aos olhos das novas gerações de escritores e particularmente dos intelectuais da chamada Junges Deutschland. Para essas novas gerações, tanto os primeiros românticos como os seus opositores declarados (Goethe, Schiller, Humboldt, Hegel, Herder e mesmo um Jean Paul já resignado politicamente) produziam uma literatura elitista, incapaz de qualquer impacto sobre as camadas populares, à qual para a Junges Deutschland caberia o papel de transformar e de superar a opressão política e social vigente. De fato, suas obras tinham pequeno alcance em termos de público leitor, e para isso certamente contribuíam seus ideários estéticos e literários sofisticados e incompreensíveis para a grande massa de leitores.
Aspectos do mercado editorial Mas, olhando o período histórico com olhares materialistas, não poderíamos evidentemente entender a recepção da obra de Goethe exclusivamente a partir das concepções estético-literárias do grand monde literário alemão do período. Os livros, de um modo geral, não eram tão acessíveis como imaginamos hoje em dia. Em uma cidade como Hamburgo, somente em 1820 um livreiro chamado Perthes passou a exibir livros em sua loja e a vendê-los. Antes disso, e ainda bom tempo depois, os livros novos só existiam sob encomenda, quando só então eram cortados e encadernados. Ou seja, eram caros. Até meados do século XIX, as bibliotecas dispunham somente de livros científicos, e não de “beletrística”. Essa “beletrística” só era disponível a as111
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sinantes de almanaques, livros de bolso, jornais específicos. Além disso, a censura, que durou até 1848, também teve seu papel decisivo. Em termos quantitativos, era escassa a recepção dos “clássicos” nos palcos, em contraste com August Wilhelm Iffland e Ausgust von Kotzebue, que realizavam centenas de apresentações por ano. Ernst Raupach (1784-1852) destacou-se como dramaturgo do Teatro Imperial em Berlim, com a realização de 1837 apresentações. Des Knaben Wunderhorn (A cornucópia do menino, de Achim von Arnim e Clemens Brentano), coleção de Volkslieder, foi umas das poucas exceções de sucesso entre as publicações dos autores românticos no século XIX. Alguns autores como Ludwig Tieck, E.T.A. Hoffmann e Joseph von Eichendorff vendiam relativamente bem quando suas obras se prestavam a depreciações, mesmo que enganosas, como “romantismo de mágica ou de horror”, “de florestas” ou “de fantasmas”. O que se liam eram trivializações dos clássicos (de Goethe, Schiller a Novalis) levadas a cabo por autores que retraduziam os “clássicos” para o grande público. Também o modelo de ensino ginasial e universitário proposto por Wilhelm von Humboldt não logrou de forma alguma mudar esse estado de coisas. Ao contrário, os clássicos tornaram-se ali objetos de uma decoreba inconsequente de textos canônicos. No fundo, o projeto de emancipação pela cultura foi sempre um projeto elitista, inclusive pelo século XX adentro. E a canonização desses clássicos, que operou um desarraigamento de autor e obras de seu contexto histórico, transformou o projeto de cultura e da Bildung em seu contrário, como bem o mostra a apropriação nacional-socialista do passado e da obra de Goethe e Schiller.
O legado literário de Goethe antes e depois de 1848 Se quisermos compreender a recepção da obra de Goethe na historiografia da literatura alemã do período que se convencionou chamar de Vormärz, que faz referência ao período anterior à explosão revolucionária de março de 1848, precisamos evidenciar alguns aspectos fundamentais na obra de Goethe, particularmente 112
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presentes em sua polêmica com toda a geração romântica sua contemporânea. Na ânsia de simplificar as coisas, ou, em alguns casos, com a intenção de mistificá-las mesmo, os historiadores costumam rotular Goethe como “romântico”. Com isso, apagam certos aspectos da visão estética e filosófica de nosso autor que colidem frontalmente com a weltanschauung romântica. Por outro lado, o problema da “classificação” da obra de Goethe também não se resolve com o recurso ao epíteto de “autor clássico”. Como veremos, a funcionalização da expressão “Classicismo de Weimar” – já tradicionalmente empregada em inúmeras histórias da literatura alemã para designar o interregno de pouco mais de 10 anos de intensa colaboração teórico-literária entre Goethe e Schiller, entre 1794 e 1805, ano da morte deste último – se apoia igualmente numa mistificação dos fatos. Portanto, para tornar mais clara essa questão, é necessário delinear, ainda que brevemente, em que consiste a antinomia “clássico” versus “romântico” na cultura literária alemã à época de Goethe. Então, inicialmente, nos perguntamos: o que veio a ser o “Romantismo”? Esse movimento designou uma ação estética, literária e filosófica sistemática por gerações que se entendiam como parte de um movimento universal. Na prática, o Romantismo significou, na virada do século XVIII para o XIX, na Alemanha e depois em diversos países na Europa e no mundo, uma ultrapassagem dos limites do iluminismo, no sentido da profunda superação dialética de alguns de seus aspectos mecanicistas. Do ponto de vista da teoria do conhecimento, os românticos, apoiados em Fichte e em Schelling, estabeleciam uma (con)fusão mística entre o eu conhecedor e o mundo conhecido. Se essa (con)fusão, por um lado, representa a ilusão da vivência de uma totalidade transcendente, por outro ela abriu caminho, no terreno na estética, a processos de produção e recepção literárias absolutamente inovadores. A subjetivização absoluta do conhecimento (que rompeu com a realidade empírica concreta, repudiando-a como falsa objetividade porque despida de legalidade própria, ou que, quando muito, aceitava “ironicamen113
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te” as leis próprias da natureza e da vida social como uma espécie de concessão provisória) abriu caminho – por vias frequentemente tortas – à superação da teoria do conhecimento do iluminismo de então, que separava de forma estanque sujeito e objeto. Ernst Cassirer escreve em A filosofia do iluminismo12 sobre a inflexão sofrida pela ciência que, até finais do século XVII, subordinava todo e qualquer conhecimento científico-natural a algum dos grandes sistemas filosóficos vigentes. O século XVIII é o da comprovação empírica movida pela vida prática. É o século em que o mundo empírico aparece como um “estar aí”, como um oceano de fatos naturais cuja interpretação e análise não mais precisam ser sancionadas previamente por algum “sistema” filosófico pré-existente. Tal inflexão representou uma grande conquista, mas de certa forma levou a ciência ao polo oposto, ou seja, a uma excessiva despreocupação com todo evento que não estivesse envolvido, em termos práticos e utilitários, no fenômeno empiricamente estudado. Esse aspecto da prática científica, hoje banalizado pela vida moderna, de separar o objeto de investigação, decompô-lo, analisá-lo e descrevê-lo, para em seguida dali extrair leis científicas válidas para materiais e condições idênticas, empurra permanentemente para um segundo plano a reflexão sobre a vida social e moral como sistema. Como corolário, empurra também para um segundo plano o papel do sujeito na constituição de todo e qualquer objeto no processo de conhecimento. A realidade é unidimensional, o objeto está ali, pronto, mesmo que na escuridão de nosso desconhecimento, e, para obtê-lo, bastaria lançarmos luz sobre ele, que ele apareceria pleno, não problemático. De certa forma, foi contra esse estado de coisas que se insurgiu toda uma geração de filósofos alemães, de Kant, Fichte, Schelling, Hegel e Goethe. O Romantismo irrompeu em meio a essa ampla reflexão com alternativas igualmente contemplativas, místicas e estetizantes à questão do conhecimento. Mas, paradoxalmente, ao proporem a arte como a “remontagem” do mundo e de seu significado, propunham a vivência estética ativa como única alternativa autêntica para a inessencialidade engendrada pelo capitalismo, por ser ca12
Cf. especialmente p. 65-134.
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paz de juntar numa totalidade, ainda que metafísica e passadista (manifestada, por exemplo, na saudade que a primeira geração de românticos sentia por um passado medieval, mesmo que totalmente idealizado), juntar, eu dizia, o que a vida moderna separou. À clássica questão da relação entre sujeito e objeto no conhecimento, o Romantismo “apenas” propôs a supressão do objeto concreto, sensível, subsumindo-o de forma idealista ao domínio do sujeito onipotente, através da “imaginação criadora”. Dessa forma, o Romantismo significou, em alguns de seus traços essenciais, a recusa pura e simples dos paradigmas fundamentais do racionalismo. Para tanto, apoiou-se por vezes no misticismo mais retrógrado, que a primeira geração romântica de Jena, e particularmente Novalis, derivou num declarado reacionarismo político e na defesa intransigente do primado da religião como reação às propostas de um estado e de uma vida pública laicos vindas da revolução francesa. Mas a atitude filosófica romântica, em última análise anti-iluminista, também deriva paradoxalmente numa práxis literária que assume paradigmas literários inovadores, que rompem com alguns limites formais e abrem caminho a um potencial descritivo do fenômeno humano até então inexplorado. Hoje é uma banalidade dizer que o Romantismo traz para a prática literária o inconsciente, antecipando Freud e a psicanálise. Quando se fala de Romantismo, portanto, há que se enfrentar esse complexo de paradoxos. Nos marcos desse complexo, a obra de Goethe possui, sem sombra de dúvidas, pontos programáticos comuns com o Romantismo. Mas as coisas não são tão simples, e é preciso investigar a cada momento de seu percurso literário aquilo que ora o aproxima ora o afasta dos românticos de seu tempo. Tal como no caso do filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel, também foi em boa medida graças ao pensamento de matriz marxista que a obra de Goethe foi resgatada do panteão chauvinista em que lhe havia confinado a historiografia oficialista, antes mesmo do período de governo de Guilherme II (entre 1888 e 1918), governo caracterizado pelo reacionarismo político e pelo militarismo. Por exemplo, os estudos de Georg Lukács sobre a obra de Goethe, 115
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particularmente a partir do início dos anos de 1930, sublinham fundamentalmente a atitude do poeta, tanto mais notável em sua maturidade, de oposição decidida aos aspectos por ele considerados irracionais e inconsequentes da geração romântica na Alemanha. A obra de Lukács de 1948, A destruição da razão, que leva como subtítulo “A trajetória do irracionalismo alemão de Schelling a Hitler”, estabelece um fio condutor entre o ideário da primeira geração romântica e o fascismo nazista. Essa obra tem sido vista exclusivamente a partir de seus aspectos problemáticos e particularmente de alguns exageros verbais, mas, com frequência, se perde de vista a correção fundamental de seu eixo argumentativo. E, exatamente por deslocar o problema filosófico central, substituindo a contradição fundamental entre “materialismo” e “idealismo” pela contradição entre “racionalismo” e “irracionalismo”, o autor de A destruição da razão foi duramente acusado de sabotar o “marxismo-leninismo”, construído como doutrina de estado pela ortodoxia soviética e por seus corifeus no mundo todo, inclusive no Brasil. Às enormes dificuldades linguísticas e editoriais, que formam por assim dizer “barreiras naturais” ao ingresso no Brasil de certa crítica sobre Goethe e sua época, somam-se as dificuldades teóricas e os abismos de preconceito gerados ao longo de décadas pelo envolvimento direto e indireto dessa crítica com o mundo ideológico do “socialismo real” que, como sistema político concreto, deixou de existir. Por conta disso, o “materialismo histórico” como instrumento de análise do fenômeno literário passou à defensiva. Os seus brilhantes expoentes teóricos no século 20 – como o já mencionado Lukács, mas também Adorno, Marcuse, Bloch, Benjamin e Bakhtin, entre inúmeros outros – infelizmente pagam hoje por crimes que não cometeram. Tratamos brevemente do “Romantismo”. Como mencionamos há pouco, sua antítese tradicional na historiografia literária é o “Classicismo”. No cerne desse último conceito, embute-se a funcionalização do conceito de “educação estética”, razão que sela a parceria de Goethe e Schiller a partir de 1794. O que vem a ser o projeto schilleriano de “educação estética”? Em sua gênese, o ideal da formação literária do público leitor, 116
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tal como expresso nas famosas Cartas sobre a educação estética de Friedrich Schiller, apoia-se, nas palavras de José Guilherme Merquior, numa subversão do preceito de Kant do juízo estético “totalmente desinteressado”. No livro Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin (1969), Merquior explica o interesse expresso de Herbert Marcuse pelo projeto de Schiller. Esse interesse reside precisamente no fato de Schiller ter aproximado o domínio do estético “à vizinhança deformadora da realidade”, com vistas à sua tentativa de “criação de uma nova humanidade”. Com isso, Schiller põe por terra a “distância estética” proposta por Immanuel Kant em sua obra Crítica da faculdade do juízo. Como sabemos, Kant formula nessa obra a categoria do “belo como instância desinteressada”. Ao reaproximar-se não somente da existência estética do objeto representado, mas igualmente de sua existência real e de suas consequências morais, Schiller subverte Kant e vai inspirar Goethe ao longo de toda a redação de seu mais importante romance de formação, ou Bildungsroman: Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (de 1796). Neste, os personagens atravessam um profundo processo de mudança e aprendizagem, e toda a sua estrutura ficcional propõe-se ao leitor como alternativa ao mundo real em que este se encontra. Friedrich von Hardenberg, mais conhecido como Novalis (1772-1801), após um processo inicialmente contraditório de recepção dessa obra de Goethe, acaba reconhecendo que o romance é essencialmente antirromântico. Em vista desse reconhecimento, Novalis concebeu o seu próprio romance (que restou inacabado) Heinrich von Ofterdingen, escrito entre 1799 e 1800, como uma espécie de antítese ao “projeto sociológico” de Goethe. A obra de Novalis foi escrita, segundo o seu autor, não somente com a intenção de se opor à “secura” e ao “vazio poético” do Meister de Goethe, mas como reação oposta ao projeto pedagógico de Goethe e de Schiller. O que marca decisivamente os livros que compõem os Anos de aprendizado de Goethe é a renúncia ao voluntarismo subjetivo, à ideia de que “querer é poder”. Anos mais tarde, no romance Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister (Wilhelm Meisters 117
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Wanderjahre, versão definitiva de 1829), obra fundamental da maturidade de Goethe, o autor irá aprofundar a ideia de renúncia (Entsagung), de forma muito mais acabada em termos de reflexão. Os que renunciam, pensa ali Goethe, não o fazem com frustração, mas sim absolutamente conscientes da dialética entre a vontade do empreendimento e a possibilidade de sua realização. Talvez em decorrência de um forte componente subjetivo, mais claramente presente no início da versão inicial do ciclo, os Anos de aprendizado, o livro tenha sido acolhido inicialmente com muitos aplausos por Friedrich Schlegel e por Novalis. Só que tempos depois, em seu Heinrich von Ofterdingen, Novalis repõe, de forma diametralmente oposta à de Goethe, a questão da dialética entre a liberdade e necessidade. No romance de Novalis, a relação entre os dois termos polares se apresenta muito menos mediatizada do que no romance de Goethe. Em Novalis, não se verifica a oposição entre a vontade pura, a liberdade humana e os fins que a ela se interpõem. Não existem mediações entre o desejo de realização e a realização propriamente dita; na obra, as barreiras ou os obstáculos inexistem. Em outras palavras, a filosofia de Novalis é redutora no que diz respeito à vida empírica, na qual se dá a tensão, que qualquer pessoa, por menos culta que seja, sabe que existe em qualquer sociedade humana entre o querer e o realizar. Em Novalis, tudo se resolve ou se subsume na vontade humana, na ideia de que “querer é poder”. O mundo é pura realização poética, é somente na poesia que ele adquire sua legalidade. Em suma, o Heinrich von Ofterdingen é uma resposta poético-filosófica de Novalis aos Anos de aprendizado de Wilhelm Meister de Goethe, obra em que este resolveu precisamente tematizar centralmente a relação entre a ação teleológica e a contingência na vida social. A obra de Novalis é um romance-tese que praticamente reduz a quase nada o que é casual, o que é contingente. O narrador não se abandona à realidade, não a reelabora num esforço poético tão intenso quanto o fizera Goethe nos Anos de aprendizado. Daí o que afirmei há pouco: o romance de Novalis não representa uma alternativa autêntica ao Bildungsroman de Goethe, pois 118
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ele é a própria negação de sua essência pedagógica. Em Ofterdingen, não há o que aprender: há o relato de uma experiência única, infinita, sem resistências, sem contratempos, sem concessões à vida empírica. Para encerrar esta longa digressão sobre o Romantismo, precisamos então aclarar o conceito com o qual a atitude romântica é confrontada: o conceito de “clássico”. Como dissemos há pouco, a expressão “Classicismo de Weimar” se apoia numa mistificação dos fatos históricos. E essa expressão pode se apresentar como falaciosa quando é tomada como a designação de um hipotético “estilo de época” especificamente alemão, como somos levados a acreditar quando lemos certos compêndios de história da literatura alemã. O fundador dessa tradição foi um historiador alemão de nome Georg Gottfried Gervinus (1805-1871), autor do compêndio História da literatura poética nacional dos alemães13, em 5 volumes, publicada entre 1835 e 1842. Nessa obra, Gervinus busca uma “historização estrita” e sistemática do passado literário alemão e, ao referir-se à “década clássica” da colaboração entre Schiller e Goethe, levanta a tese, discutível, mas muito elucidativa, de que o Classicismo de ambos os autores teria sido algo maior e mais importante do que Goethe e Schiller considerados individualmente. Ao fazê-lo, Gervinus tentou fixar de forma consistente (e bem sucedida, por sinal) um estilo de época que mal esconde o seu viés nacionalista e liberal tipicamente alemão pré-1848: o recurso ao período de Weimar como alternativa “pacifista” às agitações dos operários que começam a pipocar em terras alemãs, cujo emblema mais trágico foi a revolta dos tecelões da Silésia de 1844 e, por fim, os levantes de março de 1848 em Viena e em Berlim.
Alguns exemplos dessa apropriação após 1871 O caráter “incomensurável” com o qual Goethe definiu sua própria obra pode ser lido como uma espécie de confissão de suas próprias heteronomias e incongruências. É precisamente o caráter heteronômico de sua obra que permite a sua apropriação por reOs cinco volumes estão disponíveis em https://de.wikisource.org/wiki/Georg_ Gottfried_Gervinus, acesso em 13/5/2017. 13
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presentantes de tendências políticas mais díspares. Após a fundação do Império Alemão em 1871, por exemplo, Hermann Grimm (filho de Wilhelm Grimm e sobrinho de Jakob Grimm), partindo de um viés chauvinista e reacionário, nega qualquer nexo entre o Iluminismo e o Classicismo alemão. Fausto é funcionalizado em sua crítica como dominador que cumpre um destino nacional. Fausto torna-se herói no período imperialista de Guilherme II (de 1888 a 1918), um mito que vai sobreviver até a época do nazismo. Coisas parecidas são agitadas após a derrocada da Alemanha, em 1918, e a fundação da frágil “República de Weimar”, que vai ser demolida a partir da nomeação de Hitler como chanceler da Alemanha em 30 de janeiro de 1933. Durante o período nazista, entre 1933 e 1945, e mais concretamente a partir de 1939, quando Hitler dá a ordem para a agressão à Polônia e, com isso, dá início à Segunda Guerra Mundial, trechos da obra de Goethe são frequentemente usados em transmissões radiofônicas como propaganda do belicismo e do “suprematismo racial” alemães. Por outro lado, a esquerda também toma posição no debate. Já nos anos 1869, Karl Grün e Moritz Müller falam de um “Goethe socialista”, o que é criticado por Friedrich Engels, parceiro de lutas de Karl Marx; no início do século XX, Heinrich Mann ataca o culto nacionalista e imperialista a Goethe de então, antecipando os expressionistas, e particularmente Bertolt Brecht, que ataca o uso da obra goetheana na Era Guilhermina. No após-guerra, a esquerda dos dois estados alemães fundados em 1949 discutem a herança de Goethe e de sua obra. No estado socialista (na DDR), os marxistas se dividem sobre a aceitação de Goethe como representante da “burguesia progressista”, no bojo da discussão sobre o que seria “herança literária burguesa” na construção do socialismo. Como mencionamos mais atrás, Georg Lukács destaca-se nessa discussão, com os seus estudos sobre Goethe, que vão situá -lo como precursor do humanismo alemão. Particularmente em seus Faust-Studien (de 1940), Lukács irá apontar para os insights de Goethe que ultrapassam mesmo a própria problemática do socialismo, e isso é solenemente ignorado pelos detratores do filósofo húngaro; Hanns Eisler, compositor do hino nacional da DDR e 120
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intelectual de grande expressão, ataca, em Johann Faustus, obra de 1952, a imagem oficial de Fausto na DDR, comparando-a com a imagem utilizada na Era Guilhermina; Walter Ulbricht, dirigente comunista máximo da Alemanha socialista, refere-se ele próprio à segunda parte do Fausto de Goethe em discurso de 1962, obra sabidamente complexa e que, por isso mesmo, é hoje somente lida por especialistas e historiadores da cultura alemã: Somente mais de 100 anos depois, quando Goethe teve que largar definitivamente a sua pena, os operários e camponeses, todos os trabalhadores da RDA, começaram a escrever com o seu trabalho esta terceira parte do Fausto, com sua luta pela paz e pelo socialismo (ESENWEIN, 1999, cd-rom).
Na Alemanha Federal (BRD), a esquerda procurou articular nos anos 1970 a obra de Goethe com o movimento estudantil. Nesse Estado, o debate sobre a herança do escritor no seio da intelectualidade de esquerda foi talvez menos intenso, mas não menos significativo para a história da sua recepção em território alemão.
Conclusão Para concluir, eu tentei evidenciar nesta palestra que a obra e a personalidade de Goethe não se deixam descrever através de modelos histórico-literários simplistas. Se tomarmos como exemplos os seus romances, escritos ao longo de toda sua vida, teremos grande dificuldade em definir o autor como personalidade literária homogênea. Mas, em meio a uma trajetória não tão retilínea e tão isenta de fraturas e contradições, como quer certa tradição historiográfica, não somente entre os alemães, mas também em nosso meio acadêmico, podemos, contudo, divisar na trajetória literária de Goethe uma continuidade fundamental. O autor busca evidenciar os limites da autonomia humana enquanto espécie constituída na e pela vida social. No Werther, a infelicidade que acomete o protagonista não é uma espécie de enfermidade de um tempo particular, mas própria do ser humano. A natureza é o refúgio ético alternativo ao artificialismo das regras morais e ao mundo social 121
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de regras rígidas e tirânicas. Recaindo na mais profunda anulação de si mesmo diante de sua realidade demoníaca, Werther sucumbe. O romance As afinidades eletivas representa uma espécie de intermezzo entre as duas versões do Wilhelm Meister. Neste romance, o ser humano tenta quase em vão subtrair-se ao destino. Tal como a Werther, o demonismo traga Otília inexoravelmente. Há uma espécie de fatalismo que, de certa forma, reduz toda autonomia a pó. Já no ciclo das três versões do Wilhelm Meister, Goethe coloca no centro de sua composição a saga de um indivíduo que, partindo de uma intenção pré-concebida, refaz, através de idas e vindas, o seu próprio roteiro, vendo-se ao final completamente modificado pela sua experiência ativa. Poderíamos, da mesma forma, encarar a extensa saga autobiográfica, compilada pelo velho Goethe a partir de 1810, como uma espécie de historiografia de si mesmo homóloga aos seus romances de formação. Nessa autobiografia, o protagonista – ele próprio – sofre profundas transformações, em meio a um mundo que se transforma com não menos intensidade. Embora frequentemente atravessada por certa estilização de sua trajetória, e pela tentativa de controle de sua autoimagem para a posteridade, Goethe propõe em seu projeto autobiográfico – isto para mim é fora de dúvida – incitar um diálogo entre o leitor e seu tempo cujo escopo é muito menos a confissão pessoal em si, e muito mais a tentativa de apreensão do mundo histórico em que o poeta viveu. Pouco importa se em outros momentos Goethe põe em dúvida o seu próprio relato histórico, e, até certo ponto, pouco importa se ele tenta embelezar e mistificar para as gerações posteriores a sua biografia, apagando nela suas neuroses, suas incongruências, suas contradições; o que nos interessa é sua postura fundamental como escritor, a maneira como ele encara o domínio do poético: sem a prevalência do poético não pode haver escrita da verdade, mas, de maneira perfeitamente simétrica, sem a realidade, sem a interação com o mundo concreto, vivido empiricamente, também não pode haver construção da verdade. Por essas e outras razões, fica cabalmente descredenciada toda crítica que tenha pretendido ou pretenda ainda aprisionar a obra 122
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de Goethe de forma unilateral, enfiando-a na camisa de força de qualquer denominação simplificadora, seja como “clássico”, seja como “romântico”, seja como um precursor do socialismo, seja como poeta “avesso” à luta de classe. Nesse sentido, Goethe representa um desafio inesgotável e atual à crítica e à historiografia literária, inclusive no Brasil. Referências BEUTIN, Wolfgang et al. Deutsche Literaturgeschichte von den Anfängen bis zur Gegenwart. 7. Auflage. Stuttgart/Weimar: J. B. Metzler, 2008. CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. 3ª. ed.. Tradução de Álvaro Cabral. Campinas: Editora da Unicamp, 1997. ESENWEIN, Jürgen von & GERLACH, Harald. Johann Wolfgang von Goethe. Zeit – Leben – Werk. Weimar: Stiftung Weimarer Klassik, 1999, cd-rom. FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. 8ª. ed. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2016. GERVINUS, Georg Gottfried. Geschichte der poetischen National-Literatur der Deutschen. 5 Bände, Leipzig 1835-1842. Disponível em: https://de.wikisource.org/ wiki/Georg_Gottfried_Gervinus, acesso em 13/5/2017. GOETHE, J.W. von. Faust I/II. Urfaust. Aufbau Verlag, 1986. ______. Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. 2ª. ed. Tradução de Nicolino Simone Neto. São Paulo: Editora 34, 2009. ______. Wilhelm Meisters Wanderjahre oder die Entsagenden. Hamburg: Tredition, 2012. HEINE, Heinrich. Briefe 1815-1831. Bearbeiter Fritz H. Eisner. H. H.: Säkularausgabe. Berlin: Akademie-Verlag/ Paris: Editions du CNRS 1970, V. 20. ______ . “Rezension zu Die deutsche Literatur von Wolfgang Menzel. 2 Theile. Stuttgart, bei Gebrüder Frankh. 1828”. Disponível em https://www.uni-due.de/ lyriktheorie/texte/1828_heine.html, acesso em 13 de maio de 2017. HERMAND, Jost (Hrsg.). Das junge Deutschland. Texte und Dokumente. Stuttgart: Reclam, 1979. KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. 3ª. ed. Tradução de Valério Rohden e Antônio Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. LUKÁCS, Georg. Die Zerstörung der Vernunft. Der Weg des Irrationalismus von Schelling zu Hitler. Berlin/Weimar: Aufbau Verlag, 1988. ______. El asalto a la razón. La trayectoria del irracionalismo desde Schelling hasta Hitler. Barcelona/México: Grijalbo, 1968. ______. “Faust-Studien”. In: ______. Goethe und seine Zeit. Berlin: Aufbau Verlag, 1953, p. 168-260.
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De ficções, utopias, viagens e naufrágios: nos rastros de Bruce Chatwin e Bernardo Carvalho Paulo César Oliveira1 Qualquer estrada, esta mesma estrada de Entepfuhl, te levará até ao fim do mundo”. Mas o fim do mundo, desde que o mundo se consumou dando-lhe a volta, é o mesmo Entepfuhl de onde se partiu. Na realidade, o fim do mundo, como o princípio, é o nosso conceito do mundo. É em nós que as paisagens têm paisagem. Por isso, se as imagino, as crio; se as crio, são; se são, vejo-as como às outras. Para que viajar? Em Madrid, em Berlim, na Pérsia, na China, nos Polos ambos, onde estaria eu senão em mim mesmo, e no tipo e gênero das minhas sensações? A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos não é o que vemos, senão o que somos. Bernardo Soares, em Livro do desassossego
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abe-se que Fernando Pessoa, quando bem jovem, foi um admirador do escritor Thomas Carlyle (1795 – 1881). De acordo com os pesquisadores do poeta português, por volta de 1904, aos 16 anos, durante o período em que viveu na África do Sul, Pessoa teria travado o primeiro contato com a obra de Carlyle. O escritor escocês afirmava que, para se entender o sentimento nacional, era preciso abolir as fronteiras espaciais e temporais, uma ideia que pode ter influenciado, em alguns aspectos, a poesia pessoana. A concepção de uma nacionalidade imaginada e criada por uma força e vontade subjetivas é bem demarcada por Pessoa na imagem da “estrada de Entepfuhl”, cujos significados de princípio e fim, Doutor em Letras pela UFRJ e professor-adjunto de Teoria Literária da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde coordena o Mestrado em Estudos Literários e leciona no Mestrado Profissional em Letras. É autor de Poéticas da distensão (Manaus: Edições Muiraquitã, 2010) e organizador de Escritores, críticos e leitores fora do lugar (Rio de Janeiro: Caetés, 2016, em parceria com a Drª. Lucia Helena), dentre outras obras. Líder do Grupo de Pesquisa CNPq “Poéticas da distensão” e vice-líder do Grupo CNPq “Nação e narração”. Bolsista do Programa Prociência da FAPERJ/UERJ.
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partida e chegada, dentro e fora desafiam certas categorias dicotômicas manifestas nas contradições com que a modernidade viria a se confrontar. Como arte exemplar de um mundo que paulatinamente vai se esvaziando da experiência – matéria cara ao universo da arte de narrar, conforme nos apontou Walter Benjamin, em “O narrador” (2004) –, o romance, mais do que a poesia seria um primeiro sintoma desta experiência que se vai perdendo e que anuncia a vitória de uma era de individualismos. No percurso histórico do romance, o tema da viagem exerce um papel preponderante na imaginação criativa dos autores que ficcionalizaram a aventura colonizadora. Das pioneiras páginas de Daniel Defoe à consagração do tema da viagem, com Joseph Conrad, o romance inglês terá sido um dos que mais páginas dedicou à empreitada desbravadora, tematizando a mobilidade como princípio de reflexão ficcional determinante, uma vez que, na aventura da modernidade, navegar é um imperativo; desbravar e conquistar são condições essenciais para a consolidação da hegemonia das grandes potências, que estabeleceram um modo de existência muito bem representado na fala da personagem Marlow, narrador da famosa novela Coração das trevas (CONRAD, 1994; 2008), que, por meio de uma singular imagem do processo colonizador, assim traduziu a ideia da conquista: A conquista da terra, que antes de mais nada significa tomá-la dos que têm a pele de outra cor ou um nariz um pouco mais chato que o nosso, nunca é uma coisa bonita quando a examinamos bem de perto. Só o que redime a conquista é a ideia. Uma ideia por trás de tudo; não uma impostura sentimental, mas uma ideia; e uma crença altruísta na ideia – uma coisa que possamos pôr no alto, frente à qual possamos nos curvar e oferecer sacrifícios... (CONRAD, 2008, p. 15).
A viagem da modernidade, como se vê, na exemplar reflexão de Marlow, foi sendo empreendida no compasso de uma navegação difícil por águas turbulentas. Fernando Pessoa percebe, pela metáfora de Entepfuhl, que a estrada que leva o indivíduo a novas e lucrativas rotas marítimas e comerciais é a mesma que conduz o eu ao eu, ou à sua solidão essencial. No fim das contas, solidão é o 126
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termo que se ajusta à modalidade ativa que determina o fim último de toda viagem: a finitude. Vamos aonde nosso corpo, nosso desejo nos leva ou consegue levar; somos caminhantes em um espaço-tempo de um mundo e de uma vida limitados. A viagem última é sempre a da solidão do corpo inerte, que culmina com a vitória da morte. Chegar ao fim da viagem é, de certa forma, deixar morrer o que ficou para trás, sendo que no porvir nos depararemos com os resultados e efeitos de tudo o que pudemos viver. Deste modo, toda viagem encerra o mesmo princípio e fim, como a estrada pessoana-carlyleana nos quer recordar. Nesta pequena amostra de textos ficcionais que aqui abordaremos, aquele tema da estrada e da viagem, bem intuído por Fernando Pessoa, encontra na professora e crítica brasileira Lucia Helena (2012a; 2012b; 2010) uma interlocutora à altura. Helena retoma a questão do desassossego, que o poeta português havia consagrado de forma antecipatória e a traduz para o hoje, dando-lhe cores e matizes inesperados, trazendo à cena crítica elementos que matizam a reflexão do poeta lusitano. Nove noites, de Bernardo Carvalho (2002), e O vice-rei de Uidá, de Bruce Chatwin (1987), são duas obras escolhidas com a finalidade de estabelecer um diálogo entre a proposta inaugural de Pessoa e a reformulação crítica de Helena. Carvalho e Chatwin são dois exemplos de uma cadeia extensa de escritores que chamamos em outros trabalhos de migrantes (OLIVEIRA, 2012a; 2012b; 2015), e sua escrita, igualmente migrante, guarda pontos de contato que aqui esmiuçaremos. Partiremos, inicialmente, de um desses elementos, precisamente, da relação entre a questão do trágico e da identidade, relacionadas por Lucia Helena às formas do desassossego – tanto aquelas que perpassam os versos e a prosa pessoanos, quanto as que se desdobram nas inquietudes da vida contemporânea – que determinam algumas passagens produtivas através das quais a literatura pode ser lida: Primeiramente, o desassossego [...] se vincula ao pensamento sobre a polis e ao gênero trágico, tais como foram concebidos pela tragédia ateniense do século V antes de Cristo. Em segundo lugar, o desassossego se articula ao itinerário da construção do eu e 127
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da intimidade, na arte e no pensamento ocidental, desde o século XVIII, quando se trata, pela primeira vez, da literatura como algo teórico em si mesmo, ou seja, como fingimento, ficção. Seu vínculo com o pensamento trágico prende-se ao fato de que para os trágicos a verdade não é exclusividade de uma só figura da razão. A racionalidade é múltipla, ela não se opõe como bem sabe e diz Pessoa, em “Autopsicografia”, ao comboio de rodas chamado coração. Para os tragediógrafos e os pensadores trágicos, a razão não é algo único e fechado em si mesmo, mas a racionalidade é algo plural e até mesmo ambíguo (HELENA, 2012b, p. 66).
Como se vê, a ideia que Pessoa expressa (“É em nós que as paisagens têm paisagem. Por isso, se as imagino, as crio; se as crio, são; se são, vejo-as como às outras”) na estrada que termina e começa no eu encontra, na passagem extraída da obra de Lucia Helena, uma possibilidade de diálogo singular. Helena historiciza a questão do desassossego ao pensar as formas do trágico articuladas à trajetória do eu e da intimidade – dois elementos caros à constituição de nosso tempo presente. Ela nos ensina que não podemos transpor a concepção trágica dos gregos para o mundo contemporâneo, já que o contrato social constituído e consolidado – e a nós legado – após a Revolução Francesa e o Iluminismo requer uma noção de cidadania e nação que seria estranha aos gregos, que não superdimensionavam o eu, não eram monoteístas, nem concebiam as noções de família, intimidade e individualidade da forma como os românticos as idealizariam e nos legariam (Cf. HELENA, 2012b, p. 67). Em nossa dupla de ficcionistas, vemos que suas obras apontam para algumas dessas considerações, visto que seus textos procuram dialogar com um punhado de questões contemporâneas que dizem respeito principalmente à condição do indivíduo na modernidade, a partir de uma poética migrante que privilegia a viagem, o nomadismo, o individualismo e a inquietude como temas predominantes, sem esquecer o chão histórico em que suas prosas pisam de forma bastante característica. Essas questões, de certa forma, apontam um caminho destoante do progresso e da razão imantados a partir da visão esclare128
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cida do século XVIII, o que os pensadores e escritores românticos bem perceberam quando opuseram ao progresso uma leitura libertária do mundo centrada na valorização do indivíduo em seu afã de liberdade. Na prosa aqui estudada, os personagens Buel Quain, de Nove noites e Francisco Manoel da Silva (inspirada na vida do brasileiro Francisco Félix de Souza), em O vice-rei de Uidá, se assemelham de muitas maneiras, assim como Carvalho e Chatwin possuem muitos pontos de contato em relação às narrativas que criam. Deslocamento e inquietude marcam as figuras de papel que ambos criaram, bem como o fato de que, como escritores migrantes, sua prosa os impulsiona a percorrer a própria rota das viagens literárias e reais que tematizam. Lendo-os como escritores migrantes, podemos surpreendê-los na plena posse das benesses da mobilidade prometida nos estatutos da modernidade, à vontade que estão no campo intelectual de que participam. Sua prosa, no entanto, revela um desconforto frente ao mundo enclausurado em que suas figuras de papel se movem. Esse desconforto também se estende à própria matéria narrativa que eles nos entregam. Chatwin e Carvalho se aproximam daquilo que seus textos narram de várias maneiras, especialmente quando se autoficcionalizam nas tramas que desenvolvem – ou quando, por conta de uma relação metacrítica que estabelecem, inserem na escrita obras frutos de suas pesquisas, documentos, narrativas autobiográficas etc. –, a ponto de se tornarem personagens de seus próprios textos, o que não se deve confundir com a busca por um espelhamento do real em sua poética. Não há reflexo do real em suas obras, antes, há jogo com o leitor, conclamado a pensar a costura textual formada por um misto híbrido de biografia, autobiografia, autoficção, relato histórico e imaginação criadora. Além disso, os dois autores dialogam entre si e com vários outros escritores, formando um clã de artistas que se visitam e remetem uns aos outros, seja diretamente ou por meio das associações possíveis que seus leitores fazem. A prosa de Carvalho, por exemplo, remete à de Chatwin, tanto no nível da economia textual, na qual mantém elementos de diálogo com a obra do inglês, quanto na escolha da autoficção e da experiência etnográfica a que se lança. Não sem razão, Nove 129
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noites pode ser lido como um romance da antropologia, ao passo que a obra de Chatwin se revela própria de um escritor-etnógrafo, uma espécie mestiça de artista (híbrido, nômade), que incorpora a aventura da viagem à vida cotidiana, trazendo a experiência para o cerne da matéria vertente de sua escrita – aquela que, como a estrada de Entepfuhl, vai de si para si, conforme nos esclareceu Fernando Pessoa. O alcance dessas observações não é pequeno. Nas obras escolhidas dos dois ficcionistas, podemos encontrar algumas marcas discursivas que vão ao encontro dessas afirmações. Nove noites ficcionaliza a traumática passagem do antropólogo Buell Quain pelo Brasil, onde desembarca, no Rio de Janeiro, em 1938, com a finalidade de estudar, a princípio, os índios karajá, plano que altera quando muda o rumo de sua pesquisa na direção dos inacessíveis e quase extintos índios trumai, projeto mais ambicioso e de grande dificuldade de execução e que, como se verá, tornou-se para o jovem cientista uma obsessão vã. Sua expedição foi marcada por percalços, alguns incontornáveis, que culminaram na indisposição com órgãos governamentais (lembremos que vivíamos sob a ditadura do Estado Novo) e na volta forçada ao Rio de Janeiro, em fevereiro de 1939, resultando na interrupção de sua pesquisa. Esses eventos abalaram o antropólogo, tido como um sujeito de estado de espírito instável. Buell Quain se suicidou em 2 de agosto de 1939, aos 27 anos, após nova incursão às terras dos índios, desta vez, nos domínios dos krahô. O mistério que ronda sua morte permanece como um dos grandes segredos da antropologia brasileira e é esse enigma que leva o narrador-personagem a uma jornada igualmente repleta de percalços, por conta de sua obstinação em restaurar a verdade dos fatos. O ponto de partida de sua busca é um artigo de jornal que tratava, na verdade, das cartas de um outro antropólogo, Curt Nimuendajú, cuja morte ocorrera também em circunstâncias misteriosas, até hoje não esclarecidas. Neste artigo, o nome de Buell Quain aparece como um adendo aparentemente sem grande importância para o caso de Nimuendajú, ilustrando apenas um exemplo de cientista vitimado em nossas terras. Uma questão que se coloca para o leitor e os demais personagens com quem o narra130
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dor investigador entra em contato é o motivo de seu interesse por Quain. Para a antropóloga Mariza Corrêa, que escreveu a matéria de jornal a que o narrador personagem teve acesso e que o motivou a pesquisar o episódio, ele diz que seu interesse era literário, o que a narrativa desmente, e os leitores saberão. O escritor revela que deixou a antropóloga pensar que o real motivo da entrevista era escrever uma ficção. Sabemos ainda que o romance que temos em mãos foi possível somente após o narrador se dar conta de que sua busca pela verdade sobre o suicídio de Quain fracassaria. Esta consciência a que chega ao fim da narrativa faz com que ele opte por escrever uma ficção e não uma reportagem. Sob esta capa de desencanto e frustração se observa, através de um jogo intenso que denota uma poética da busca do outro que é na verdade busca de si, uma relação entre fracasso e narrativa. A questão do fracasso se torna, então, uma espécie de modus operandi da narrativa. A ficção, em Nove noites, nasce do projeto fracassado do narrador investigador, que é levado a revolver as ruínas da história e escovar a história a contrapelo para que a verdade brilhe. Como dissemos, malogrado o projeto jornalístico-investigativo, a decisão de escrever uma obra de ficção acaba ganhando sentidos e confere ao literário um lugar no pensamento sobre o mundo. Ao mesmo tempo interessado em remover os entulhos autoritários que soterram os fatos em busca de uma resposta, mas ciente de que a esse telos impossível somente a literatura pode se lançar, a fim de que uma compreensão mais abrangente dos mistérios do mundo e do homem seja possível, o narrador decide por um romance, e o teor daquilo que ele ficcionaliza situa a obra na contramão do progresso estipulado no contrato social e que a arte romanesca bem sabe e pode costurar. Ao estudar os textos de Clarice Lispector e Graciliano Ramos, em A hora da estrela e Vidas secas, respectivamente, Lucia Helena (2010; 2006b) já nos apontava esse percurso sinuoso, desde Daniel Defoe, que vai culminar no naufrágio da esperança, o qual, no entanto, jamais é sinônimo de niilismo ou ceticismo e sim matéria de pensamento, combustível para uma reflexão contundente e fundamental à atividade crítica. Ao analisar essas duas 131
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narrativas do fracasso e sobre “fracassados”, Helena apanha o motivo da resistência, ainda que inconsciente, como elemento norteador de Fabiano e Macabéa. Expostos às iniquidades do mundo, eles ainda conservam em seu ser uma centelha de ética que os faz perdoar, relevar, dar a outra face, mesmo diante de uma realidade que os põe ao rés do chão. Atentando com segurança para a história, Helena nos ensina que as duas obras nos remetem a uma questão antiga, “a dos impasses dos homens diante de seu destino, ou do que chamam como tal, em face dos elos de uma tradição que se encontra recalcada, por exemplo, no nordeste do início do século XX, quando se tenta uma modernização inadequada” (HELENA, 2006b, p. 145). Lembremos que é justamente neste período (1938-1939), em uma década marcada pela ditadura Vargas, que também a narrativa de Nove noites se move, a exemplo do texto de Ramos. Recordemos ainda que a Macabéa de Lispector chega ao público no ano da morte da escritora, no igualmente ditatorial período do regime militar pós-64. Como o romance de Quain, Vidas secas e A hora da estrela são narrativas híbridas: o primeiro é uma espécie de romance de armar, misto de contos que se tornam narrativa romanesca, mas que podem ser lidos separadamente; o segundo, uma narrativa que não se decide pelo que irá contar, nem como o fará: seria a história de Macabéa, ou do narrador Rodrigo S. M? Quantas possibilidades de títulos seriam necessárias para que a obra exista? Nove noites é, da mesma forma, um texto híbrido, como vimos. A pesquisa que Quain pretende desenvolver também se concentra em um tempo-espaço no qual a modernidade se mostra em sua face sombria, a exemplo de Lispector e Ramos. Carvalho ficcionaliza o que sobrou das comunidades indígenas, algumas em extinção, como a tribo dos trumai, e essa face desumana do capital sintetiza bem a inquietude da escrita frente aos rumos perversos de uma modernização claudicante. Assim como Lucia Helena (2006b) revela, na leitura alegórica de uma insuspeita Clarice Lispector, uma ética que é, ao mesmo tempo, desalienante e crítica – já que a escritora consegue, de forma não panfletária, descoser a ordem vigente quando denuncia, 132
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por meio de suas personagens, um mundo arruinado, de estilhaços que não podem ser colados –, a leitura de Carvalho nos mostra que, embora o escritor-viajante tenha à sua disposição os meios de subsidiar suas viagens e, assim, melhor construir sua obra, sua missão jamais é tranquila. O texto que produz é corrosivo: nele se denuncia uma globalização vendida como fábula e que esconde uma outra globalização, de face perversa, fruto dos processos de exploração colonial que emerge do texto de Carvalho e nele predomina. Tanto é assim, que a ficção de Nove noites, ao final, só pode nos apresentar uma coleção de fracassos: de Buel Quain, que, por não suportar o peso de sua existência nem as vicissitudes da vida, se suicida; do narrador-personagem, que igualmente vê suas tentativas de desencobrimento da verdade do passado recair na vala comum do malogro; do escritor autoficcionalizado, cujo projeto se assemelha ao de seu personagem-narrador e que entrega aos leitores uma narrativa em ruínas, sem possibilidade de um desfecho esclarecedor ou minimamente satisfatório que sacie a curiosidade de seu público; e dos leitores, que terão frustradas suas tentativas de organizar o texto para dar algum sentido de verdade à matéria vertente do romance, que nada lhes entrega ou concede, ao final. Vinga, portanto, a possibilidade de o jogo ficcional se abrir a outras discussões, aí sim, colocando na mesa do leitor as cartas para que ele possa escavar no mapa ficcional as passagens que conduzem a um progresso de leitura revelador da força dos saberes que somente a literatura tem condições de arregimentar. No romance de Carvalho, reverberam possíveis diálogos com a questão que Lucia Helena levanta em seu A solidão tropical (2006a, p. 11): “Como pode um brasileiro encontrar-se consigo mesmo?” – novamente, a estrada de Entepfuhl se mostra ponto de partida e chegada. Pois não seria o presente da narrativa de Nove noites uma grande ficcionalização sobre nosso mundo moderno, no qual vivemos e de onde olhamos para nosso passado de espoliação e repressão colonial, manifesta hoje na sanha roedora de nossas ratazanas políticas e econômicas – representadas no Congresso pelos defensores da família tradicional, adeptos da tortura e religiosos de ocasião que ocupam os espaços mesquinhos do favor 133
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e do conchavo, fazendo da coisa pública uma extensão de sua sanha pessoal? Os índios de Nove noites são sobreviventes de um processo de aniquilação e segregação das diferenças que se observa também na sorte dos negros, das mulheres e dos pobres, de modo geral (pobre é categoria que perpassa a maioria dos indesejados e excluídos pela agenda da globalização, como os homossexuais, os imigrantes, os apedrejados pela intolerância religiosa ou os recusáveis de todas as cores, fracas, credos e orientação sexual). É assim que funciona a máquina de olhar de Helena, em A solidão tropical, obra que revela muito de nossa época desassossegada, seja quando a autora vai ao século XIX buscar um Alencar pouco visitado, ou quando ela, ao retornar ao Brasil da era Collor, vinda dos Estados Unidos, se faz testemunha de uma pátria arruinada (Cf. HELENA, 2006a, p. 11-15), o que a leva a perguntar de que modo a literatura pode – será que ainda pode? – nos fazer entender o porquê de o autoritarismo se repetir “com tanta avidez e eficiência”, traduzindo-se nos dias de hoje pelos nomes de globalização e neoliberalismo, acrescidos fortemente de “doses de angústia” e “inquietação” (HELENA, 2006a, p. 15). A crítica praticada por Helena nesta obra também se faz através de um hibridismo que convoca memória, depoimento, biografia, autobiografia, análise literária, história para compor um mosaico de temas que faz vibrar o século XIX no século XXI, a exemplo da lição de Walter Benjamin, quando propôs que escovássemos a história a contrapelo. Em O vice-rei de Uidá, algo semelhante aos procedimentos de Carvalho ocorre. Também ali um suposto autor sai em campo para revelar a verdade dos fatos de vida de um sujeito histórico, o brasileiro Francisco Félix de Souza – no romance de Chatwin chamado Francisco Manoel da Silva –, mas os percalços desta busca, que muito se assemelham aos contratempos de Buel Quain, o fazem desistir da ideia de uma biografia em favor da forma romance: “O material que levantei se revelou, porém, tão fragmentado que decidi modificar os nomes das personagens principais e escrever um trabalho de pura ficção” (CHATWIN, 1987, p. 12). Esta passagem, ao contrário do que ocorre com o romance de 134
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Carvalho, que apanha o fato e o insere no texto ficcional, é assinada por Bruce Chatwin no “Prefácio” à edição brasileira de O vice-rei de Uidá. Chatwin nos conta ainda que visitou o Benim (antigo reino do Daomé, na época em que Souza viveu) duas vezes, a primeira em 1971, quando o país ainda mantinha o antigo nome, em busca de dados para suas pesquisas. Da segunda vez em que retorna, em 1975, seis anos depois e já com a finalidade de escrever uma biografia do traficante de escravos, o brasileiro Francisco Félix de Souza, o país já havia sido rebatizado para República Popular do Benim, três anos após um golpe militar que instaurou o regime socialista. Chatwin foi confundido na ocasião com um mercenário, vindo inclusive a sofrer torturas físicas, mas voltou do Benim com a espinha dorsal da biografia que, como vimos, deu origem a um romance, o que se explica no nível de uma verossimilhança fingida, pela insuficiência dos dados coletados. A opção pela ficção revela aos leitores os poderes mais amplos do discurso literário e sua eficiência em colocar as questões do mundo, criticando o prisma da racionalidade cujo fim é chegar a uma verdade impossível. Liberto da pretensão de uma explicação coerente e totalizante, o discurso literário ainda assim encontra-se atado ao real, que ele explora e do qual desconfia, claro, mas como uma espécie de forro do bolso de uma calça, que podemos colocar para fora, mas ainda assim permanece atado a um dentro. Como em Nove noites, a opção pelo romance livra o suposto autor autorrepresentado em O vice-rei de Uidá de ceder aos rigores da comprovação histórica, ao mesmo tempo em que o libera para operar nas brechas do ficcional, deixando ao leitor inúmeras passagens por onde possa trilhar. Para Lucia Helena, a categoria das passagens [...] estabelece novos horizontes para as fronteiras, os limites e a própria crise, uma vez que suplementa o radicalismo da ruptura, permitindo um contágio entre o antes e o depois, ou o velho e o novo, numa convivência tensa, porém bastante mais rica do que aquela em que se elimina um dos termos da oposição (HELENA, 2010, p. 180).
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Por meio dessas passagens, podemos caminhar, não com segurança, mas cientes das bermas da estrada, de seus percalços, e de que os caminhos que nos levam ao outro muitas vezes nos fazem chegar até nós mesmos. Com Chatwin, temos ciência de que a ignomínia da escravidão é um fato histórico que vitimou milhões de negros e que ela se repete, em proporções maiores ou menores, nos massacres de Ruanda, na epidemia de Aids que dizima o continente africano e/ou nas inúmeras doenças, como o ebola, que se alastra pelas terras vilipendiadas daquela região. Esses mecanismos, que Lucia Helena estudou e vem estudando em obras recentes, coloca o crítico frente aos impasses de um modo de ver o texto literário que não desconhece as relações entre ficção e o real, mas que não compreende a obra como uma tela onde se cola a paisagem como a reproduzi-la. As palavras de Lucia Helena bem sistematizam essa busca por uma literatura que, se “emagreceu”, como ela mesmo diz, por conta de seu desprestígio na cena contemporânea, deve tomar, entretanto, para si, a função de representar o irrepresentável, com isso deixando de lado a ilusão mimética e a analogia para mostrar-se como “lugar de passagem” em que “se encena o estado agônico da linguagem sempre em transformação”. Desta maneira, a crítica e professora pode propor, enfim, pensar a literatura como “inquietude e fragmento; um dizer entre o silêncio e a escrita, entre o vazio e o pleno, entre a ruína e a ruminação” (HELENA, 2012, p. 69). As narrativas de Bruce Chatwin e Bernardo Carvalho, sob este prisma conceitual que depuramos de Helena, ganham músculos, porque propiciam a abertura de passagens em que a ruminação do passado, ainda que de lá só cheguem a nós ruínas, pode iluminar exemplarmente o nosso presente para que possamos reconstruir, ainda que precariamente, um futuro que promova a convivência possível. O texto literário, fruto do trabalho do escritor, se alia, no ato da leitura, ao trabalho do crítico, pois ambas, crítica e criação, são atividades complementares, voltadas ao mundo da vida, no qual sabemos haver muito horror e iniquidade. No entanto, esse é o nosso único chão, e é nele que teremos que construir os pilares de um novo edifício que consiga abrigar as possibilidades éticas e 136
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humanas expressas nas políticas de amizade, hospitalidade e solidariedade, sem as quais a humanidade do homem será apenas um pálido reflexo daquilo que poderíamos ser e não conseguimos. Referências BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ___. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 197-221. (Obras Escolhidas, v. 1). CARVALHO, Bernardo. Nove noites. São Paulo Companhia das Letras, 2002. CHATWIN, Bruce. O vice-rei de Uidá. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. CONRAD, Joseph. Heart of darkness. London: Penguin, 1994. ______. Coração das trevas. Trad. Sergio Flaksman. Posfácio de Luiz Felipe Alencastro. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. HELENA, Lucia. Náufragos da esperança: a literatura na época da incerteza. Posfácio de Maria da Glória Bordini. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2012a. ______. O livro do desassossego e o desassossego contemporâneo. In: GUIMARÃES, Mayara R. No meio-dia verde do agora: formas do contemporâneo na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2012b, p. 63-76. ______. Ficções do desassossego: fragmentos da solidão contemporânea. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2010. ______. A solidão tropical: o Brasil de Alencar e da modernidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006a. ______. Nem musa, nem medusa: itinerários da escrita em Clarice Lispector. 2. ed. revista e ampliada. Niterói, RJ: EdUFF, 2006b. OLIVEIRA, Paulo César Silva de. A gloriosa tradição em crise. Rio de Janeiro: In: HELENA, Lucia; OLIVEIRA, Paulo César S. Escritores críticos e leitores fora do lugar: contemporâneos na cena da globalização. Rio de Janeiro: Caetés, 2016b, p. 45-58. ______. Escrita (d) e viagem: memória, história e cultura na ficção contemporânea. Recorte, Três Corações, MG, Unincor, v. 13, n. 1, jan.-jun. 2016a, p. 1-18. ______. Experiência e história nas narrativas de Edmund White, Bernardo Carvalho e Milton Hatoum. Letras & Letras, Cascavel, PR, Unioeste, v. 16, n. 33, 2015, p. 131-148. PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. Composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Organização Ricardo Zenith. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
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Desenhando um novelo1 Vilma Sant’Anna Arêas2
– Como é que se faz uma poesia tão bonita? – Não é difícil, é só ir dizendo. Clarice Lispector, em Perto do coração selvagem
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as páginas de Perto do coração selvagem, livro de estreia de Clarice Lispector, encontramos em germe grande parte do que foi desenvolvido em sua obra no correr do tempo, à semelhança de modulações a partir de um tema. O centro irradiante do conjunto, “vertigem imóvel” segundo Alexandre Eulálio (1989, p. 12), foi definido por Antonio Candido (1970, p. 126) como o “ritmo de procura” de uma narrativa em incessantes tentativas de se aproximar dos motivos que persegue. Um pouco mais tarde, a própria escritora definiu seu estilo como “uma procura humilde” (1964e, p. 144). A dificuldade de realização desse projeto se explica pela composição multilinear da ficção clariciana3, situada entre os limites da vida administrada, incessantemente criticada, e a despersonalização, região espectral onde habitam seus demônios, seus bichos, suas raízes, uma destas – em “Amor”, conto de Laços de família 4 – vinda tortuosamente de La nausée. Texto originalmente publicado em Europe – Revue littéraire mensuelle, nº 10031004, nov/déc 2012, com o título “Une prose tentée par le grotesque et la poésie”. 2 Possui graduação em Letras Anglo-Germânicas pela Universidade do Brasil, Mestrado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Doutorado em Letras pela Universidade de São Paulo e Pós-doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é Professora Titular na Universidade Estadual de Campinas, trabalhando principalmente com Literatura Brasileira, Crítica e Interpretação e Literatura Portuguesa. 3 “Meu enleio vem de que um tapete é feito de tantos fios que não posso me resignar a seguir um fio só”, diz a protagonista de “Os desastres de Sofia”, em A legião estrangeira (LISPECTOR, 1964b, p. 11). 4 Clarice Lispector, “Amor”, em Alguns contos, Rio de Janeiro, Ministério de Educação, 1952, p. 29-41 (republicado em Laços de família, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1960, p. 21-33). 1
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Perto do coração selvagem expõe as razões dessa busca e pode ser tematicamente compreendido como o processo de amadurecimento de uma jovem que aspira à carreira literária – e aqui será impossível não ouvirmos a ressonância, já indicada no título, de The portrait of the artist as a young man, pois ambos os escritores trabalham com as vicissitudes do despertar da consciência artística em jovens sensíveis. Os personagens, Stephen e Joana, habitam um tempo anterior à criação, purificando-se das relações velhas, dos preconceitos e das instituições sociais, enquanto se preparam para a elaboração da obra. Talvez insatisfeita quanto ao resultado de seu livro, Clarice faz a si mesma a promessa de realizar-se “no futuro”, uma vez terminada “a longa gestação da infância”. As últimas palavras do romance, dentre os acordes solenes do De profundis, afirmam que nada poderá detê-la: “de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo” (1963, p. 172ss). O fio que sustenta a trama oscilante da narrativa é composto das dúvidas quanto a dificuldades de composição. Perto do coração selvagem, à semelhança de A maçã no escuro, “A quinta história” ou A hora da estrela, narra o percurso de alguém escrevendo o escrever. No correr do texto, a escritora discute e rejeita as convenções da tradição, sejam elas sentimentais, ou convencionalmente sinceras, melodramáticas, ou aquelas ingenuamente confiantes nas possibilidades da expressão: “no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que digo” (p. 17). Desse modo, a escritora busca novas soluções estéticas, sentindo-se ao mesmo tempo atraída por receitas do passado, o que cria uma tensão perceptível e às vezes difícil de ser resolvida. Conforme afirma João Adolfo Hansen (1989, p. 112) em relação a A hora da estrela – mas a observação vale para outras obras da escritora –, “como o Machado de Memórias póstumas ou o Rosa de Grande sertão: veredas, A hora da estrela é obra não-obra, fraturada, e só funciona quando emperra”. Isto é, quando não avança, quando não muda de assunto. O dilema da escrita pode ser também entrevisto numa carta 139
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de Clarice a Fernando Sabino em 1946, ao descrever o “estilo empoeirado”: uma espécie de estilo que está sempre sob nosso estilo e que é uma mistura de leituras meio ordinárias da adolescência [...] uma mistura de grandiloquência que é na verdade como a gente já quis escrever (mas o bom gosto achou com razão ridículo) (2001, p. 66).
No início da carreira, Lispector parecia não ver distinção entre poesia e prosa, ambas eram “sensações”, motivo pelo qual o Diário de Pernambuco, segundo ela, rejeitou seus escritos de menina. Mais tarde, sua descoberta de Katherine Mansfield, “que era estranha e tão familiar” (PEREZ, 1960, v. 2, p. 75), deve ter sido baseada nessa afinidade: ao lado de Virginia Woolf, Mansfield pretendia explorar as virtualidades da prosa após conhecer o trabalho de Chekhov, substituindo a narrativa de acontecimentos sequenciais por sensações5. Para Lispector, a mudança era mais intuitiva que teórica, e a espontaneidade com que Joana-menina recita seus poemas ao pai parecem ser a prova disso. Ao ouvi-los, ele pergunta: “Lindas, pequena, lindas. Como é que se faz uma poesia tão bonita?” “Não é difícil” – responde ela – “é só ir dizendo” (1963, p. 10). “A mensagem” retrabalha essas questões em outro tom, mas de forma reveladora, porosa, não compacta, numa superposição de camadas, forma que incide sobre os demais textos de A legião estrangeira6. Publicado no mesmo ano de A paixão segundo G.H., o impacto deste livro levou o primeiro a ser “inteiramente abafado”, segundo palavras de Clarice7. Penso que as dificuldades objetivas de A legião estrangeira contribuíram para tal desatenção, pois o livro pode parecer caótico ou casual diante da estrutura nítida de Cf. Valery Shaw, The short story, a critical introduction, London/New York, Routledge, 1983, especialmente o capítulo 5. 6 As duas seções do livro, intituladas “A legião estrangeira” e “Fundo de gaveta”, completam-se embora de forma assimétrica. Considero a separação delas, compondo livros diferentes a partir de 1977, um equívoco, para dizer o mínimo, por isso citarei sempre a edição de 1964, sem fazer caso de tal separação. 7 Entrevista dada a Affonso Romano de Sant´Anna e Marina Colasanti, no MIS, Museu da Imagem e do Som, Rio de Janeiro. Cf. a última transcrição da entrevista em Outros escritos (org. Teresa Montero et al), Rio de Janeiro, Rocco, 2005, p. 148. 5
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A paixão segundo G.H. Trata-se de uma obra partida em duas, “A legião estrangeira” e “Fundo de gaveta”, sentidas comumente como desconexas. Entretanto ambas mantêm pontos estreitos de encaixe, desdobrando-se “Fundo de gaveta” em equívocos, mortes e perplexidades, textos de circunstância, vizinhos a outros altamente poéticos. Além disso, abriga gêneros variados: uma peça de teatro, crônicas insufladas de poesia, segundo certa tradição brasileira, e o que podemos chamar de “anotações radicais”, que compõem um pequeno orgánon sobre a expressão literária. Se não estou enganada, é a partir de então que, nos melhores textos da autora, essa violência se casa ao que ela denomina “fracasso”, selo do “indizível”, que pode ser também “o que não presta”, sem esquecer que “o que presta também não presta”8, isto é, rejeita-se aqui o caráter dogmático da interpretação que nega o problemático da experiência artística. “A mensagem”, que também significa “experiência”, diz o conto, não deixa de aludir a circunstâncias contextuais que podem fornecer a chave para o sentido, às vezes nublado, do texto. Por exemplo, chamam a atenção a impaciência e o desagrado de Clarice quando lhe perguntavam se havia alguma vez escrito poesia. Negava sem hesitação. Apesar disso, na entrevista no MIS, afirmou: “todo mundo parece que começa com poesia, não é? Eu andei escrevendo umas folhas, mas jogava tudo fora, porque não prestavam” (2005, p. 164). Talvez esta seja a única referência clara que tenhamos sobre o assunto. Apesar disso existem outros indícios. Por exemplo, na resenha em que analisou Perto do coração selvagem (Diário Carioca, 12 de março de 1944), Lúcio Cardoso escreveu: “Clarice Lispector é poetisa e alguns de seus poemas já passaram por minha mão: têm a mesma qualidade e o tom das melhores páginas de Perto do coração selvagem” (apud GOTLIB, 1995, p. 182). No mês seguinte, em 15 de abril, uma jornalista da Folha Carioca, Luíza Barreto Leite, declarou que “Clarice Lispector, a romancista de Perto do coração selvagem, publicará um livro de poesias”. O livro, portanto, estava pronto à espera da publicação. Infelizmente desapareceu sem deixar traço. E por quê? 8
Clarice Lispector, em introdução a “Fundo de gaveta”.
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Sabemos que a escritora havia mostrado seus poemas a Manuel Bandeira, que a desencorajara. Pouco tempo depois, ele se lastimou numa carta de 23 de novembro de 1945 (in LISPECTOR, 2002, p. 78-9), quando preparava sua Antologia dos poetas brasileiros bissextos, publicada no ano seguinte: “Se eu tivesse comigo aqueles poemas seus que você me mostrou um dia, incluiria você também. [...] Até hoje tenho remorso do que disse a respeito dos versos que você me mostrou. Você interpretou mal as minhas palavras”. Em 25 de novembro de 1947, Bandeira escreve a João Cabral de Melo Neto (BANDEIRA, 1958, v. 2, p. 1438), comentando a coleção que este último pretendia publicar: “com os poemas do Cardozo e os da Clarice Lispector a sua coleção adquire de saída uma grande classe”. Em seguida, aconselha o amigo a publicar também “os grandes bissextos”. Mas a escritora deve ter negado o envio dos poemas, talvez já prometidos, e Cabral escreve a ela, na sequência: “Só lamento é não começar com alguma coisa sua. O próprio Manuel Bandeira [...] me havia escrito: ‘Se sua impressora começa com Clarice Lispector, que melhor começo pode desejar?’ Agora, só me resta esperar [...] que seus belos romances deixem tempo para essas coisas portáteis que pretendo imprimir” (in LISPECTOR, 2002, p. 180). Parece que o mistério fica assim esclarecido: depois da crítica de Bandeira, Clarice desistiu da poesia, negando-se a enviar as referidas “coisas portáteis”, tanto para a antologia dos poetas bissextos, quanto para a coleção de Cabral, dois anos depois. A nós só restam os poemas de Joana-menina no início de Perto do coração selvagem, quadrinhas nas páginas finais do livro (1963, p. 146-7), a confissão de que publicara pequenos trechos e “algum poema” em A manhã9, bem como a rítmica marcação de muitos de seus textos. Além disso, não podemos esquecer que a estrutura de A paixão segundo G.H. se apoia no leixa-pren da poesia medieval. A escritora jamais mencionou publicamente a crítica de BanCf. carta a Fernando Sabino, enviada de Berna, em 8 de fevereiro de 1947 (in 2001, p. 84). Ela se refere aos textos intitulados Children´s corner, que emigram para “Fundo de gaveta”, mas não fica claro se o jornal é A manhã ou O jornal.
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deira, e se ela é relembrada aqui diz respeito exclusivamente à interpretação de passagens controversas da obra. Por exemplo, em “A mensagem”, lemos as referências extremamente violentas de dois adolescentes à poesia escrita pela geração anterior. O confronto é reforçado na introdução à segunda parte do livro (“Fundo de gaveta”), quando declara seu interesse pelo inacabado, pelo malfeito, pelo que “desajeitadamente ensaia um pequeno voo e cai sem graça no chão” versus “a casa limpa, a mesa posta, com cada coisa em seu lugar” de Manuel Bandeira, marcado aqui como seu contrário. Como A legião estrangeira, “A mensagem” também não inspirou atenção, certamente por sua composição sentida como desconjuntada, ao misturar sátira, o maravilhoso e narrativa de formação, com os dois protagonistas envolvidos num processo de amadurecimento para se tornarem escritores10. Contudo, a violência da crítica à poesia da geração anterior é muito eloquente no conto. Conforme acontece nas histórias calcadas no maravilhoso, os espaços do conto parecem a princípio se delinear em oposições claras, mas não demoram a se confundir, principalmente pelo ziguezague entre narrador e personagens: aquele, em meio a ironias, torna claro o que estes complicadamente negam, numa estrutura semelhante à de um jogo de esconde-esconde, afirmando-se por negativas, semeando pontos-cegos – talvez o outro lugar da entrelinha –, o que confere ao texto uma espécie de perturbação semelhante à dos jovens, transferindo ao leitor a mesma instabilidade. Apesar disso, podemos considerar três momentos na narrativa, cada um desenvolvendo um tema: o primeiro, o mais longo (1964b, p. 34 a 41), caracteriza-se pela busca do sentido sexual e literário da vida, configurando o que Albérès (1966) chamou de “epopeia íntima” do romance entre 1920 e 1950, mais ou menos a época desses primeiros escritos. O périplo dos jovens é vivido confusamente. Quanto ao sexo, eles o negam por temê-lo, no que são desmentidos pela narrativa, que usa figuras obsessivamente Leyla Perrone-Moisés é uma exceção ao silêncio. Cf. “A fantástica verdade de Clarice”, em Flores da escrivaninha, São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 159-177.
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sexuais. Fica claro para o leitor que a obsessão é dos jovens, seja rasurando a diferença de gênero (por ser inteligente, a moça “foi condecorada com o título de homem”); seja pela tortuosa convicção da própria indiferença, “como se fossem homossexuais do sexo oposto”; pela afirmação de que detestavam a poesia “como se fosse sexo”; e pelo fracasso de cada encontro “como se numa cama se desiludissem”. Além disso, se achavam “sinceros” contra a “grande mentira alheia”, convictos de que “falavam a mesma língua”, mas até nisso se enganavam, porque apenas usavam o jargão dos adolescentes da época. É nesse momento que se esclarece a absoluta oposição entre o mundo desses patéticos adolescentes e o dos outros, isto é, o dos “adultos” e “espiões”, o mundo corrupto dos “mais velhos”, que desejavam “caçá-los” para a “normalidade”; ou, de forma injuriosa, o mundo dos “viciados”. O conflito é tipicamente adolescente, mas os termos em que surge são excessivos, fazem desconfiar. E é a existência desse horror que lhes impede a salvação pela poesia11, pois quando nasceram já existia a palavra poesia publicada com o maior despudor nos suplementos de domingo dos jornais. Poesia era a palavra dos mais velhos. E a desconfiança de ambos era enorme, como de bichos [...]. Eles já tinham sido por demais enganados para poderem agora acreditar. De tão longamente ludibriados, vaidosos da própria amargura, tinham repugnância por palavras, sobretudo quando uma palavra –como poesia – era tão esperta que quase exprimia, e aí então é que mostrava mesmo como exprimia pouco (1964b, p. 39).
A longa citação pretende sublinhar o peso dessa crítica demolidora, limpidamente transcrita pelo narrador de forma direta e crua, mas sem se afastar demais da duplicidade exacerbada dos adolescentes, que na “repugnância” pela poesia não fazem mais que confessar a paixão por ela. Se não viam claro o que desejavam, apesar de “afogados de ideal”, é que na verdade suspeitavam que eram “impostores”, não se podia confiar muito neles. O narrador 11
Em itálico no original (1964b, p. 38).
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se apressa em nos explicar que eles se usavam no exercício de uma iniciação às avessas, isto é, ensaiavam “um com o outro o modo de bater asas para que enfim – cada um sozinho e liberto – pudesse dar o grande voo solitário que também significaria o adeus um do outro” (p. 37). Estavam, portanto, como Joana, condenados à solidão, mas não para a ardente construção do futuro. E, quando finalmente se sentem “maduros como uma gota dágua” para a separação, encontram a “esfinge”, símbolo da “plenitude da angústia”, na figura de uma casa antiga e abandonada numa rua de Botafogo. Trata-se do segundo momento da narrativa (p. 41-46). Esse encontro é um acontecimento que transformará a relação dos jovens com o mundo. Abala-se o caráter analítico da parte inicial por meio da distorção própria do grotesco. A narrativa ganha as tintas da paródia burlesca, desanimando qualquer interpretação, pois a esfinge não tem enigmas nem segredos: “Eu sou enfim a própria coisa que vocês procuravam, disse a casa grande. E o mais engraçado é que não tenho segredo nenhum, disse também a grande casa” (p. 44). A improbabilidade faz as descrições se sucederem de forma incontrolável e obscura: a casa era “um sobrado como quem leva a mão à garganta”, era uma “catedral do medo solidificado”; tinha um “ar de estrangulamento”, um “silêncio de enforcado tranquilo” etc. Mas o caos qualificativo encontra afinal a laçada que associa a surpreendente esfinge à primeira parte, numa meia alusão à geração dos “traidores” e “espiões”, pois era uma “coisa secular e já esvaziada de sentido”, era uma coisa “vinda do passado”, com “a potência de um cego”, com “olhos vazios de estátua”, enquanto os jovens esperavam pelo futuro: “Oh, Deus, dai-nos nosso futuro!”, “Oh, Deus, não nos deixeis ser filhos desse passado vazio, entregai-nos ao futuro” (p. 46). Mais que isso e aproximando-se cada vez mais do centro inflamado do conto, “a casa simbolizava alguma coisa que eles jamais poderiam alcançar”, mesmo que levassem a vida inteira buscando a “expressão”, que por sua vez significava mero passa145
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tempo, “divertimento, amargo e perplexo, mas divertimento”, cuja função era provocar o afastamento da “perigosa verdade”. Talvez aquela fosse a explicação da impostura, pois desejar o destino de escritores significava pura questão de sobrevivência12. Assim, como poderiam entender a mensagem que eles mesmos tinham provocado? “‘Rende-te sem condição e faze de ti uma parte de mim que sou o passado’ – dizia-lhes a vida futura” (p. 46). Seria aquela a mensagem? Mas o narrador nada esclarece, imitando impudicamente o “estilo empoeirado” dos adolescentes. Dessa vez – e nos aproximamos do desfecho (p. 46-50) –, ambos são capturados, completando uma metamorfose que já se vinha anunciando, e que acaba por atirá-los em polos irreconciliáveis. A moça se animaliza, grunhindo, correndo para pegar o ônibus “como um macaco de saia curta”, embora tivesse ganhado de repente dois seios, batom e ruge; caminha “esquiva na sua humildade [...] o corpo pressentindo a submissão” (p. 47-8). Por seu turno, a metamorfose do rapaz vai em sentido contrário: faz gestos “como se ele fosse os outros”; era parte da “maçonaria dos homens”, olha a moça “com olhos pornográficos”, concluindo que “mulher servia mesmo era para outra coisa”; sente-se livre e orgulhoso, “sou homem, disse-lhe o sexo em obscura vitória [...], ser homem se alimentava mesmo daquele vento [...]. O mesmo vento de poeira que fazia com que o outro ser, o fêmeo, se encolhesse ferido” (p. 48). Se não podemos confiar nas interpretações do conto jocosamente sugeridas pelo narrador, o “acontecimento” exige a interpretação, pois transforma a escala do narrado ao abandonar o pacto inicial com o leitor. Se a esfinge sem segredos fez os jovens desistirem da busca, entregando-se aos “outros”, algo neles permitiu a desistência. Algo incompreendido? Ao examinar a compreensão problemática da arte a partir da modernidade, diz Adorno (1982, p. 147): “as obras falam como as fadas nos contos: queres o incondicional, pois será teu, mas Para as noções de “vida” e “sobrevivência” em Clarice Lispector, cf. José Américo Motta Pessanha, “Clarice Lispector: o itinerário da paixão” (1965), em Remate de males, n. 9, p. 181-198, 1989.
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incognoscível”. Outros fossem os tempos, os jovens talvez se salvassem, pela existência da poesia e não de sua banalização. Aliás, a metamorfose dos jovens é tão violenta quanto a transformação da poesia em despudorada “palavra poesia” publicada nos suplementos dominicais. Clarice dedilhou esse tema por toda A legião estrangeira, desdobrando suas variações, das quais escolho os pontos extremos no tempo, isto é, a velhice e a primeira infância. Em “Os obedientes”, por exemplo, os personagens são um casal de meia-idade. Jamais se rebelaram, destruíram uma vida que não era “concreta”, mas “uma vida de sonho”, isto é, uma vida de irrealidade, “uma vida de mau poeta” (1964d, p.102). “Como num soneto, era obediência por amor à simetria. A simetria lhes era a arte possível” (p.104). À mulher, “reserva militar e sustentáculo de nossa obediência” (p. 105), só resta o suicídio. Assim, como em “A mensagem”, a discussão da poesia é o verdadeiro tema do conto, e o desfecho, de igual modo, trágico e grotesco. No extremo oposto, encontramos “Desenhando um menino”, texto situado ambiguamente entre a crônica e a poesia. A ele sou conduzida pela última palavra dita pelo rapaz de “A mensagem”, ao encerrar apelativamente o texto: “mamãe”. E tudo se passa agora entre um bebê e sua mãe. O bebê aprende rápido que “é inteiramente mágico chorar para ter em troca: mãe”. “Ele trocará todas as possibilidades de um mundo por: mãe. [...] E sua segurança é saber que tem um mundo para trair e vender, e que o venderá” (1964f, p. 209). Cuidando do filho amorosamente, a mãe pensa: “Um dia o domesticaremos em humano, e poderemos desenhá-lo. Pois assim fizemos conosco e com Deus. O próprio menino ajudará sua domesticação: ele é esforçado e coopera. Coopera sem saber que essa ajuda que lhe pedimos é para o seu auto-sacrifício” (p. 207). Agora temos o sentido inteiro do que surge truncado no final de “A mensagem”, isto é, a desistência da integridade e pureza sonhadas na adolescência em relação à literatura. Numa só palavra, a domesticação da sensibilidade. Estamos no avesso das promessas finais de Perto do coração selvagem, o “acontecimento” já aconte147
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ceu, nenhuma palavra servirá de consolo ao fracasso da “procura humilde” a que Clarice desde sempre se votou. Referências ADORNO, Theodor. Teoria estética. [1970]. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1982. ALBÉRÈS, René Marill. Métamorphoses du roman. Paris: Éd. Albin Michel, 1966. BANDEIRA, Manuel. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1958. 2 v. EULÁLIO, Alexandre. “No Rio, com Clarice Lispector”. [1961]. Remate de Males – Revista do Instituto de Estudos da Linguagem, UNICAMP, Campinas, nº 9 (org. Berta Waldman e Vilma Arêas), p. 11-13, 1989. GOTLIB, Nádia Battella. Clarice, uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995. HANSEN, João Adolfo. Uma estrela de mil pontas. Língua e literatura – Revista do Departamento de Letras da USP, São Paulo, ano XIV, vol. 17, p. 107-122, 1989. JOYCE, James. The portrait of the artist as a young man. [1916]. New York: The Modern Library, 1928. LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. [1943]. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1963. ______. “Amor”. In: Laços de família. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1960, p. 21-33. ______. A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1961. ______. “Os desastres de Sofia”. In: A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1964a, p. 9-29. ______. “A mensagem”. In: A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1964b, p. 34-50. ______. “A quinta história”. In: A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1964c, p. 91-94. ______. “Os obedientes”. In: A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1964d, p. 99-105. ______. “Escrever, humildade, técnica”. In: A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1964e, p. 144. ______. “Desenhando um menino”. In: A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1964f, p. 206-210. ______. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1964. ______. A hora da estrela. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1977. ______. Cartas perto do coração (correspondência com Fernando Sabino). Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2001. ______. Correspondências (org. Teresa Montero). Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
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Esta obra foi impressa na Oficina de Livros para a Letra Capital Editora. Utilizou-se o papel Pólen Soft 80g/m² e a fonte Sabon LT Std corpo 11.5 com entrelinha 14.7. Rio de Janeiro, julho de 2017