Mem贸rias que Eu Guardei de Mem贸ria (Volume 2 - 1942 a 1956)
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A311m v. 2 Albuquerque, Ulysses Lins de, 1889-1979 Memórias que eu guardei de memória: 1942 a 1956, vol. 2 / Ulysses Lins de Albuquerque; organização Terezinha Lins de Albuquerque. – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Letra Capital, 2014. 380 p.: il.; 15,5x23 cm. Sequência de: Memórias que eu guardei de memória : 1889-1941, vol.1 Sumário ISBN 978-85-7785-308-3 1. Albuquerque, Ulysses Lins de, 1889-1979. 2. Escritores brasileiros - Biografia. 3. Brasil, Nordeste - Usos e costumes. 4. Brasil, Nordeste - Política e governo. I. Albuquerque, Therezinha Lins de, 1926-. II. Título. 14-16216
CDD: 869.98 CDU: 821.134.3(81)-94
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Ulysses Lins de Albuquerque
Que Eu Guardei De Mem贸ria (Volume 2 - 1942 a 1956)
Aos 80 anos A meus filhos
Ah, tudo passa. E assim, passam os anos, Sem se sentir que sorrateiramente Vão eles destruindo lentamente Nossa vida, ideais, ledos enganos. Moços, transpomos, lépidos, ufanos, Qualquer barreira que nos surja á frente. Mas, logo a cada passo se pressente Que a fronte já se curva os desenganos. Até que sobre nós as sombras descem Esperanças e sonhos vão fugindo, E de saudade os olhos se umedecem. Apenas, das lembranças que ficaram, (Eu recordo Camões!) Vamos sentindo “A grande dor das coisas que passaram.” Ulysses Lins
Prefácio ............................................................... 9 Apresentação ..................................................... 17 1842...................................................................... 23 1843...................................................................... 25 1944...................................................................... 26 1945...................................................................... 29 1946...................................................................... 37 1947...................................................................... 45 1948...................................................................... 49 1949...................................................................... 51 1950...................................................................... 57 1951...................................................................... 71 1952...................................................................... 96 1953...................................................................... 122 1954...................................................................... 199 1955...................................................................... 301 1956...................................................................... 312 Apêndices..................................................... 321
O SERTÃO E A FLOR DE MANDACARU
O
sertão, como dizia Guimarães Rosa, é surpreendente, “não tem janelas nem portas”, “aceita todos o nomes” e “é do tamanho do mundo...” O bioma da caatinga sertaneja, única no planeta, permite que proliferem em sua flora singular, árvores como catingueiras, marmeleiros, juremas, umbuzeiros, juazeiros, angicos, baraúnas e, caracteristicamente, grande variedade de cactos e bromeliáceas: facheiros, alastrados, quipás, xiquexiques, macambiras e mandacarus, todos espinhentos e elegantemente defensivos. Despojadas de folhas, flores e frutos, durante todo o intenso verão sertanejo, algumas dessas variedades, no período, ostentam um surpreendente verde cheio de seiva, o caso do lendário juazeiro. Outras, entre cardos e espinhos, como o mandacaru, brotam suas flores em pleno verão tórrido, prenunciando as primeiras chuvas do inverno. Por isso a flor do mandacaru é anúncio e esperança de dias melhores; mas é, sobretudo, crisol da raríssima beleza que a natureza adusta do semiárido nos oferece na alameda do jardim sertanejo das flores. Reporto-me, aqui, a Ulysses Lins de Albuquerque que, através da editora Letra Capital, tem agora publicado pelas filhas e filhos dos seus filhos o segundo volume de suas Memórias que Eu Memórias que Eu Guardei de Memória - Vol. 2
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Guardei de Memória: 1942 – 1956. Antes de me reportar ao livro, compartilho com os futuros leitores desse belo texto de memórias um sentimento muito pessoal que vivenciei ao manusear suas páginas e que, igualmente, não consigo separar da boa impressão que me causou a leitura do primeiro livro da sua trilogia Um Sertanejo e o Sertão, Moxotó Brabo e Três Ribeiras, reeditados, em um só volume, pela Itatiaia. Entendo que as chamadas “adversidades” das secas periódicas do semiárido pernambucano – onde se localiza o Moxotó, de Ulysses, e a sua fazenda Conceição –, tal como foram assimiladas pela cultura predatória do colonizador, bem que poderiam se associar aos espinhos adversos dessa variedade de cactos do bioma da caatinga sertaneja. Mas, fruto da atenta leitura da obra ulyssiana, me recuso conjugar o sertão nordestino a cardos e espinhos, especialmente quando me refiro à pessoa, à obra e ao telurismo desse escritor pernambucano. Do mesmo modo que, absolutamente, não faz jus à sua memória a equivocada cultura que, ardilosa e sorrateiramente, teima, ainda hoje, continuar instituindo a seca como inimiga do homem e, portanto, uma catástrofe a ser “combatida”. Ao contrário, quero associar a figura humana de Ulysses a uma estética telúrica que poetiza o sertão, que é seu e de todos nós, povoado de pessoas aguerridas, bordado de rios secos, onde, tratando-se do Moxotó, ecoam o piado dos lambus e o cantochão das seriemas da serra do Jabitacá. Dessa conjunção, emerge o humanista que revisita afetivamente as trilhas da sua infância, pincelando-as com a intensidade das cores da caatinga sertaneja. Um sertão que, pungentemente, emerge da poética de ulyssiana, onde as flores brotam na contramão das semeaduras úmidas dos vergéis e, misteriosamente, florescem alvas, como lírios, entre os agudos espinhos dos mandacarus. A fecundidade da pena de Ulysses reinscreve, assim, um sertão que se transmuda nos anos invernosos, da noite para o dia, da escassez para a fartura, da monotonia para a polifonia, seja da passarada, nas manhãs e no entardecer; seja dos sapos, na madrugada das trovoadas de dezembro. Esse é, portanto, o sertão que renasce na fecundidade de sua trilogia e que reverbera intensamente nessas 10
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Memórias Que Eu Guardei de Memória. Um repositório que ele legou para a intimidade dos seus, mas que, agora, é generosamente compartilhado com uma legião de futuros leitores. Ulysses Lins nos oferece, portanto, o melhor de sua memória familiar, do seu legado político e de suas sociabilidades sertanejas, contribuindo para sacramentar de modo poético aquela aguçada percepção roseana, segundo a qual o sertão é do tamanho do mundo, não tem janelas nem portas e, mais ainda, aceita todos os nomes. Estou seguro que, a partir desse prisma, o sertão que habita em cada um de nós se deixa moldar mediante infinitas possibilidades. E, uma dentre essas virtualidades, é, sem dúvidas, a maneira ulyssiana de perceber, conceber e representar o seu sertão, plasmando-o nas delicadas franjas da florada do mandacaru, que se faz flor na aspereza da natureza, na agressividade dos espinhos, metaforizando o dinamismo da sociabilidade dos homens, na acepção de Graciliano Ramos, em seu clássico Vidas Secas. Um, dentre os significados que sobressai na publicação desse segundo volume de Memórias que Eu Guardei de Memória, é evidenciar, em primeiro plano, a relevância do livro, na compreensão e no desvendamento da história política nacional, regional e local, no período que vai de 1942 – decisivos e difíceis anos do final da guerra e da ditadura do Estado Novo – até o nascer de 1957, momento determinante para os partidos políticos no Brasil, antes e depois das eleições, em especial em Pernambuco, onde o PSD de Agamenon, nos embates com a UDN cleofista e o PTB getulista, perde sua renhida hegemonia na política estadual. Esse é um momento em que a combalida política partidária nacional vive um halo de distensão democrática, onde o debate político passa a ser polarizado pelos discursos do “nacionalismo”, versus “entreguismo” e pela ideologia do desenvolvimentismo, frente a atrofia de uma tímida industrialização nacionalista. Nesse período, o otimismo do pós-guerra acorda o “gigante adormecido” e instaura acalorados debates e urgentes demandas em torno das reformas de base para o país. É nesse clima que as anotações de Ulysses ganham relevância, oferecendo argumentos consistentes para se formular um balanço da vida política nacional e regional, ano a ano, onde é possível situar Memórias que Eu Guardei de Memória - Vol. 2
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atores, partidos e lideranças políticas. É, pois, um relicário pleno de revelações consistentes e de valor histórico, que se perpetua como memória viva e privilegiada dos bastidores da política partidária, mormente do PSD, sob a liderança de Agamenon Magalhães e do seu aliado maior e colaborador, Etelvino Lins de Albuquerque, filho de Ulysses. Essas confidências ganham relevo maior, na medida em que o autor, eleito que fora para o Congresso Nacional, vivendo, portanto, no Rio de Janeiro, longe do ambiente da política local de Pernambuco e do seu Moxotó, podia acompanhar aqueles embates políticos numa posição privilegiada de quem está distante e muito próximo ao Palácio do Catete, centro do poder nacional. É nessa condição que ele municia os correligionários com informações preciosas para sedimentar a interlocução e a liderança partidária do seu filho Lins, quando governava Pernambuco e, logo depois, como integrante da cúpula nacional do PSD. Nesse período, agiganta-se a liderança de Etelvino, ocasião em que a imprensa local e as lideranças políticas nacionais, visando as eleições presidenciais, se referem com reiterada frequência ao “esquema Etelvino”, na tentativa de persuadir a união de forças partidárias, em defesa de um candidato suprapartidário à presidência da república. Nesse sentido, reiteramos que essas anotações, avaliações e impressões do autor de Memórias são extremamente preciosas para se preencher alguns “silêncios” da história política nacional e de Pernambuco, no período, em relação às disputas partidárias, aos acertos e desacertos de alianças, aos favorecimentos e preterições de aliados, às fraturas internas dos partidos e suas consequências para as políticas municipais no Estado, principalmente aquelas eleitorais e interioranas, caso concreto de Sertânia, sua antiga Alagoa de Baixo. Em suas Memórias, o cidadão, o político e o escritor Ulysses Lins de Albuquerque aparece de corpo inteiro, sem esconder suas preferencias pessoais, manifestando os seus desacordos políticos, suas perplexidades cidadãs e, não raro, sua indignação sertaneja com os desacertos da política e com a desfaçatez dos políticos. Do início ao final do livro, formula uma nítida compreensão da importância, da natureza, do lugar e da fidelidade na política. A despeito de ser um tenente coronel da Guarda Nacional, das páginas 12
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do seu livro sobressai um conciliador nato, que se contrapõe aos oligarcas prepotentes, vingativos e inescrupulosos que infestam as políticas municipais, verdadeiros feudos de atravessadores dos direitos cidadãos. A certa altura do livro, referindo-se a uma contrariedade política, perpetrada, certa vez, por um parente seu, anota: “É que, em meio dos meus arrebatamentos (defeito que, por vezes, não posso controlar, pois tenho a sensibilidade quase à flor da pele), uma circunstância qualquer que me fale ao coração, me faz esquecer um ressentimento, até de pessoas estranhas ao meu círculo íntimo.” (p. 145) Nesse sentido, suas observações sobre alguns desses coronéis, oligarcas políticos do próprio interior de Pernambuco – personagens folclóricos, inclusive –, chegam a ser insuspeitas. Ao que se sabe, jamais se valeu da honraria da sua patente para pleitear vantagens, quer como funcionário público, quer como político-congressista, ou até mesmo enquanto simples cidadão. Habilidoso no trato político com os eleitores e os colegas do Congresso Nacional – seu filho Lins sempre lhe foi motivo de vivo orgulho – demonstra que foi bastante difícil atuar como político, sobretudo quando era mister desvencilhar-se dos favores e pedidos pessoais, constantemente solicitados. Assim posto, não é de admirar que, entre um dos biógrafos de sua trajetória, o jornalista pernambucano Garibaldi Sá, enalteça o seu perfil como “alguém que sempre se portara à altura do melhor e mais probo exemplo dos homens públicos sertanejos”. No recinto de sua fazenda Conceição, em Sertânia, sentia-se pouco à vontade quando era abordado por “favorecimentos”, seja por pessoas simples de sua amizade, seja por parentes próximos, como seu tio Napoleão, vulgarmente conhecido na cidade como “Seu Pule”. Nas suas palavras, “... Descansando, digo eu; mas, a verdade é que sempre me chegam visitas, as quais me dão prazer, mas algumas delas me trazem um pouco de atribuição, pois me procuram para remediar casos difíceis – isto me tortura um pouco, em face do esforço que sou forçado a despender para convencer a certas cabeças duras que, o que desejam, não me é possível satisfazer. O maior aborrecimento, entretanto, foi o que me resolveu o velho Napoleão Siqueira (Seu Pule)!”(p. 158) Memórias que Eu Guardei de Memória - Vol. 2
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O presente livro de Ulysses Lins é muito mais que um diário pessoal, um balanço político e uma crônica familiar. É uma lição de vida e de experiência no trato humano. Sabemos que o autor foi iniciado na política por seu pai, já muito cedo, e, ainda bastante jovem, desenvolveu um aguçado senso de observação acerca do perfil cultural do sertanejo, com sua oralidade e seu senso adaptação às agruras do meio onde vive. Conviveu, também, desde criança, com os velhos chefes políticos e fazendeiros da antiga Alagoa de Baixo e, com eles, pôde observar que, além da violência do mando senhorial, esses oligarcas detinham um enorme senso de pragmatismo para enfrentar os embates de viver o sertão e no sertão. Daí que, nele, o aprendizado da arte da conciliação foi algo mais que uma estratégia de afirmação e condução política. Como ele mesmo afirma, “Quantas voltas dá o mundo – penso eu – para convencer-me de que, em política, as mudanças mais desconcertantes se verificam! Por isso, a tolerância deve ser a grande arma do político. Nada de exacerbações. Dar tempo ao tempo é a melhor das táticas para o homem que tiver o infortúnio de ser político – para sofrer injustiças, ingratidões, injúrias e calúnias de todas as espécies” (p. 173). No Sudeste, quando do seu mandato de deputado federal pelo PSD, longe dos filhos e da sua fazenda, sonhava com a companhia deles, suspirando com o alpendre da casa grande, o repouso do guerreiro, onde recuperava as forças físicas e voltava a percorrer os caminhos das lembranças de sua infância. No livro, volta e meia, a Fazenda Conceição é um referencial de boas recordações e afetuosas lembranças... “E eu pensava nos tempos em que todos os filhos pequenos ficavam em casa, despreocupados da vida, cuja realidade encara hoje, sem o direito de se reunirem à sombra da casa da velha Conceição, por exemplo, onde todos os anos venho buscar um refúgio para o meu cansaço de homem que, desde a adolescência – posso assim dizer, pois casei-me aos 18 anos –, venho lutando pela vida como um pescador na frágil barcaça a dançar na crista das ondas!” (p. 159). Como bom sertanejo, nada lhe importava mais do que pisar novamente o solo firme do Moxotó pernambucano, com sua natureza agreste e desafiadora, protagonizada pelo homem do semiárido, nas lides, no sofrimento, nas histórias e resiliências. Nertan Macedo, 14
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referindo-se a Ulysses, dizia que ele “exalava o sertão pelos poros”; por isso, conclui, ele era um “sabedor do sertão”. Podemos dizer que Ulysses está para o sertão como a flor de mandacaru para os espinhos da paisagem adusta. Como ele mesmo afirmava a certa altura do seu livro, “De flores, não foi minha estrada. Muitos seixos e espinhos feriram-me os pés. Decepções sem conta me assaltaram. Na alma conservo cicatrizes que ainda sangram. Mas, quem é que na vida está imune de revezes?” (p. 128). Alguns dos seus contemporâneos, como Nilo Pereira, reconhecem nele “Um homem raro. Um homem de antigos tempos. De palavra dada e cumprida. De carater sempre ereto e firme”. Assim fala quem com ele conviveu. No sertão, voltamos a insistir, a flor dos cactos, como a do mandacaru, além da singeleza de suas formas e delicadeza de suas cores, ela simboliza esperanças. A rusticidade agressiva dos espinhos do mandacaru se contrapõe à fecundidade generosa e graciosa da natureza ao fazer brotar flores, em meio a cardos espinhosos e a inclemência cáustica do sol ardente do verão sertanejo. Não há como negar que o sertão, roseanamente falando, é surpreendente. Como ele sugere, “sertão é dentro da gente” e, “desde o raiar da aurora, o sertão tonteia”. Espinhos e cardos não somente convivem, como podem ser semeadura de flores, acrescentamos. Ulysses, “o sertanejo robusto e ereto”, como dizia Nilo Pereira, além de memorialista, é poesia em pessoa. Aliás, ele se fez memorialista sendo poeta. Por isso, não se acanha de, reiteradamente, contar e cantar a sua dor pela perda de Inah. Como poucos, soube poetizar e ressignificar as dores e alegrias, na artesania de suas palavras. Garibaldi Sá ressaltava, na obra de Ulysses, essa “cicatriz”, ou permanente “ferida”: “Inah, cujo prematuro desaparecimento ele pranteou, numa dor pungente e silenciosa, durante toda a existência”. Espero que o leitor nos dê razão. O fato é que, tanto nessas Memórias que Eu Guardei de Memória – vol. 2, quanto nos demais livros da sua autoria, a sensibilidade poética do sertanejo vem à tona, à flor da pele. Não por acaso, o paraibano José Rafael de Menezes também afirmava que Ulysses Lins é o “admirável sonetista de Inah”, terminando por afirmar que, “Em Ulysses toda sua obra é cântico, registro, presença”. Tem toda razão a escritora dinamarquesa Karen von Blixen, ao referenciar a importância e significado de fazer e contar uma Memórias que Eu Guardei de Memória - Vol. 2
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história, como vemos na artesania poética e na memorialística ulyssiana. Segundo ela, “Todas as mágoas são suportáveis quando fazemos dela uma história ou contamos uma história a seu respeito”. Afirmação lapidar, tanto que, ninguém menos que a humanista Hannah Arendt, utilizou-a como epígrafe do capítulo “Ação”, no seu clássico livro A Condição Humana. Ulysses, contando e narrando suas histórias, fez a catarse de sua dor maior, a dor pungente da perda, sem negar nem se esconder de sua condição humana, muito humana. Daí que ele se esmerou nessa arte de voltar no tempo para revisitar a memória, numa espécie de busca, de acerto de contas com suas dores e esperanças, ora da política, da família, ora do sertão. Dessa viagem ele não voltaria o mesmo. Emerge dos seus escritos, incluindo nessas Memórias que Eu Guardei de Memória, vol. 2, o cidadão comum, chefe de família, que se reconcilia com a vida, com suas dores, suas alegrias, com os seus sonhos, sucessos e fracassos. Igualmente, sobressai o homem público, servidor do bem comum, ator político. Podemos finalmente dizer que, nesse livro, como nos demais outros de sua autoria, revela-se o artesão do tempo, que vive intensa e laboriosamente o seu presente. E que faz, igualmente, do sertão o amálgama e a matéria prima da sua inspiração poéticonarrativa. O sertão nos ensina a conviver com a seca e não combater a seca. Contemplando a beleza e a delicadeza da flor do mandacaru, compreendemos e admiramos mais e melhor a figura humana e plural de Ulysses Lins de Albuquerque. A cultura pernambucana, em especial a cultura política do Brasil, sente-se enriquecida com esse manancial de informação dos bastidores da política nacional e regional. Os familiares de Ulysses estão de parabéns pela iniciativa da publicação desse segundo volume das memórias de uma distinguida família sertaneja do Moxotó pernambucano. Recife, julho de 2014. Antonio Jorge Siqueira Professor da UFPE E-amil: antonio_jorge_siqueira@hotmail.com
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“O problema em aprender com a experiência é que você nunca se forma.” Doug Larson
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m 29 de dezembro de 1979 falecia meu saudoso pai, Ulysses Lins de Albuquerque, na Casa de Saúde São José no Rio de Janeiro. No dia seguinte acontecia o seu velório na Capela Dois do cemitério São João Batista. Antônia Tavares, amiga irmã, chega ao velório e indaga quem faria a encomendação do corpo... Eu digo: estou pensando... Tenho um amigo que posso mandar buscá-lo. Nesse momento ouço Consuelo, minha irmã: “Vamos colocar O Sertanejo e o Sertão nas mãos de pai?” O que realizamos. Esta obra foi o seu evangelho em vida. Finalmente chega o padre João Medeiros Filho, que reza, em sua linguagem nordestina, destacando o homem do sertão, demonstrando profundo conhecimento da obra literária de meu pai. Naquele momento, em suas palavras, a morte tomava a dimensão do eterno e o fazer. Memórias que Eu Guardei de Memória - Vol. 2
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Posteriormente nas arrumações de meus papeis encontrei este texto do ano de 1980: “A morte destaca a vida e dimensiona o viver. E convoca para uma revisão de fatos. Por isso, a morte de meu pai, preenche um vazio da perda física no colorido do seu escrever, pintando um mundo que não vivemos, mas conhecemos, vivendo-o através de um estilo simples, real e poético. Foi o menino do mato, desfrutando da natureza selvagem, onde não sabíamos quem era a natureza “ela ou ele”. Pois trazia a si a força da terra que o governou até os seus últimos minutos. Tornou-se o homem de lutas, fidalgo, “índio” e vertical, saindo do seu chão para outros chãos sem negar e esquecer suas raízes, aperfeiçoando-se até onde o homem pode no longínquo sertão de Pernambuco. O eterno namorado da natureza-mãe, sempre pronto a canta-la quando a “chuva” a fazia florir e a clamar solidário quando o “sol” a castigava. A sua obra é um testemunho desse percurso, fiel e forte para suportar com “estoicismo e Fé” a devastação de uma região que o progresso descobriu, mas não conhece os elementos básicos de sua poesia e tristeza. O seu contato, na sua infância, lhe proveu o espírito de pesquisador, o “antropólogo de hoje”, assimilando e observando as figuras humanas apontadas por ele com fidelidade de que só o amor é capaz. E o mais enriquecedor, para quem quiser estudar aquela região colherá elementos não mensuráveis nas pesquisas caracterizadas do pesquisador atual. Como preservar a poesia, a pureza e o deslumbramento na constatação de uma região pobre e rica? Pobre nos seus recursos naturais, rica na sua alma de sertanejo introvertido e cioso do seu mundo internos! Como tenho medo de pesquisas isoladas, constatadoras de fatos, sem o contorno de onde eles provem! E o grande desejo que os homens de 18
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amanhã têm de apreende a conviver: o progresso da técnica no retrocesso do homem. É história que só o homem é capaz de fazê-la, sem a descrição puramente dos fatos históricos – friso, objetivos e inquisidores.”
No ano anterior, em maio de 1979, havíamos levado meu pai para a Conceição, a sua fazenda querida, terra dos seus antepassados, para comemorar seus 90 anos de vida com os familiares e amigos. Ele na sua fidalguia recebeu a todos com muita alegria. Na sua saída da sede da fazenda usava seu terno branco e sua camisa vermelha e saiu pela porta de trás. Parando, olhou a paisagem no seu horizonte longínquo, a qual lhe revelava o registro interno e eterno de sua visão sertaneja. Após a sua partida, aos poucos, organizei seus arquivos: muitos recortes de jornais, cartas e registros, que foram doados à Fundação Getúlio Vargas, hoje CPDOC. Os livros e objetos que ele colecionava foram depois transferidos para a Conceição, o chão dele. Os cadernos manuscritos “Memórias que Eu Guardei de Memória”, um dos seus mais importantes registros, ficaram com o meu irmão Ulysses que me passou posteriormente. Tais registros foram iniciados no dia de seu aniversário, em 9 de maio de 1952, quando ele completou 63 anos de idade. Um ano depois, suas “Memórias” até 1953, eram concluídas, e nelas passaram a ser registrados fatos da sua vida, seja como político ou como pai de uma grande família ou como protetor de muitos amigos e afilhados. Um arguto observador dos acontecimentos que participava. Ao lê-las fui tomada por grandes emoções. Que luta de vida teve meu pai! Em 2012, com apoio de meus sobrinhos Leonardo e Eduardo, e do meu grande amigo e editor João Baptista Pinto, da Letra Capital, foi editado o primeiro volume dos manuscritos que recebeu o nome de “Memórias que Eu Guardei de Memória” no qual abrange fatos acontecidos no período que vai de 1889 a 1941. Nesse processo de transformar os manuscritos em livro contei com a colaboração de meus sobrinhos Luciano, no início, Memórias que Eu Guardei de Memória - Vol. 2
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e de Leonardo que continuou a frente e, finalmente com a entrada de minha sobrinha Patrícia, filha de Juarez, estamos concluindo a edição da segunda parte das “Memórias” que vai de 1942 a 1956. Enquanto o primeiro volume resgatou passados mais longínquos, que bem descreve o isolamento do sertão de Pernambuco e do sofrimento do seu povo para sobreviver, fatos esses que tanto moldaram a personalidade de meu pai. O segundo volume abrange os anos de 1942 a 1956 com registros dos fatos e acontecimentos da política municipal de Sertânia, da estadual de Pernambuco e da nacional, sendo, nesse “eixo”, meu pai, um homem que vindo do seu torrão natal tão distante, adaptou-se bem ao Recife e depois ao Rio de Janeiro que o recebeu de braços abertos, cidade essa, que aprendeu a gostar desde muito jovem quando veio conhecê-la em 1922 nas comemorações do Centenário da Independência do Brasil. Ao escrever suas “Memórias” meu pai tinha a pretensão de apenas deixar um registro, um legado, para os filhos e netos, fazendo questão de registrar, tal desejo, nos seus manuscritos. Esse “tesouro”, inicialmente patrimônio da família, começou a ser descoberto e cobrado sua publicação, por aqueles que sempre se interessaram pela história do sertão. Sabendo que tais histórias foram escritas por quem as viveu intensamente, mesmo que algumas vezes tenham sido narradas ao sabor de emoções que, ao escrevê-las, ainda não estivessem totalmente amortecidas. Para meu pai palavra dada era palavra empenhada. E na política, para onde a contragosto ele foi levado, sofria com os desencontros de atitudes. Nos anos antes da morte de Getúlio, como deputado federal, lamentava o uso indevido de bens públicos existentes. Recolheu-se da sua vida política em 1955 com a eleição de Juscelino. Viu seu filho Etelvino ser candidato a Presidente da República e a renunciar da candidatura quando Juarez Távora voltou atrás. Não esperava esta atitude do herói que admirava. Presenciou fatos históricos que lamentava. Preocupava-se com o legado inflacionário que o país iria enfrentar. Sofreu com os fatos seguintes à eleição de Jânio e a sua renúncia, absorveu a vinda do Governo Militar em 1964, mas 20
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esperava o retorno à democracia, com recursos necessários para seu desenvolvimento. Vemos hoje o Brasil ainda se debatendo em manter uma democracia. Com a conclusão das edições de “Memórias que Guardei de Memórias”, a gratidão é, e foi, o chão “fértil.” A todos que me ajudaram a chegar até aqui. Agradecer é pouco, analisar todo o seu percurso, na sua serenidade não me compete, mais abriu um leque de sabedoria. Procurei situar os fatos na sua dinâmica, para compreensão daqueles que estão chegando e irão chegar. Para concluir dou-me o direito de assinalar e registrar aqui meu carinho e agradecimento a todos que, de alguma forma, colaboraram para a publicação dessas “Memórias”. Citar nominalmente todos, impossível, tenho receio de omitir alguns, mas, não poderia deixar de mencionar estes nomes, por suas expontâneas e valiosas contribuições:
Leonardo Lins, meu sobrinho, por sua dedicação sem limites, contribuição e ajustes, sem ele esta obra de meu pai não chegaria ao seu desfecho.
Com todo carinho e profundo respeito a Antonio Jorge Siqueira que no seu belo prefácio “O sertão e a flor de mandacaru” me libertou de todas as dúvidas e receios vividos nesse caminhar. Ele, com aguçada sensibilidade, situa e traduz num contexto histórico universal, sociológico e com alma de poeta toda a sua prédica de sertanejo. Não foi por acaso que nasceu em Sertânia, como meu pai.
À antropóloga Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros, por sua contribuição escrevendo o texto das orelhas e do artigo intitulado “Literatura e Memória - O sertão de Ulysses Lins de Albuquerque”, incluído no ‘apêndice’ desta obra. Esse que é de leitura essencial, não só de seus descendentes, mas das novas gerações.
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E por fim, num final de tarde no silêncio do meu apartamento no Rio de Janeiro, estou a observar nuvens diversas no horizonte... Ouço o grito da guerreira silenciosa: – “Minha filha, dificuldades existem e existirão, não as procure, enfrente-as e seja você mesma”. Ser, não é fácil. O tempo, senhor da história faz o tempo de cada um. Homenagem à guerreira silenciosa: Rosa, minha mãe!
Therezinha Lins de Albuquerque Primavera de 2014.
PS: Recife, 26 de setembro de 2014, 3h da manhã. No silêncio da noite e na revelação da vida em seus diversos matizes luminosos, ofuscando visões intraduzíveis no plano humano. Em uma explosão de agradecimentos a tudo e a todos que povoaram a raiz e as raízes do ontem, no hoje e no amanhã, sempre do ser presente e eterno na alegria do existir. Obrigada a meu pai Ulysses e minha mãe Rosa pelo legado de vida. Aleluia, aleluia! Sustente esse coração doído e amassado no dar de ser fiel aos desafios da sobrevivência na sua sabedoria. Obrigado à vida. T. L. A.
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1942 Rio de Janeiro (30/6/1952) Ainda em São Paulo, Lins1 avisou-me que o secretário da Prefeitura de Alagoa de Baixo, José Borges, havia sido nomeado prefeito por Agamenon. Não gostei. Mesmo porque eu achava que o nomeado devia ser um dos nossos amigos dali. Lins, porém, conhecendo o temperamento de Agamenon, receava que, por um motivo qualquer, ele desgostasse um amigo nomeado para o cargo – ou exonerasse-o, como fez com Elpídio Padilha, de Afogados de Ingazeira; Delmiro Freire, em Rio Branco; e Luiz Tenório (Lulu de Aquino,) em Buíque, que foram exonerados sem que lhes fosse dada a menor satisfação! E tratava-se de velhos amigos de Agamenon, sempre solidários com ele, nas horas difíceis do ostracismo e, de repente, foram desconsiderados de uma forma brutal! Lins receava expor um dos nossos amigos do município a uma dessas decepções, e assim, indicava pessoas de fora para a prefeitura, com a devida habilitação para o desempenho das funções. Entretanto, viemos a sofrer uma decepção com José Borges, que forçou Lins a pedir seu afastamento do cargo, conseguindo para ele, entretanto, uma promotoria. E, depois, ele ficou separado de nós. Em seu lugar, ficou respondendo pelo expediente da prefeitura, o respectivo secretário, Djalma Marinho. 1
Apelido, em família, de Etelvino Lins, filho do autor.
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Naquele ano, eu ia sempre a Alagoa de Baixo, onde continuava a advogar (advocacia precária), e de vez em quando me recolhia à Conceição. Tentei a agricultura... mas, esses dois anos foram secos e todo o meu esforço foi perdido. Tomei um pequeno empréstimo (12 contos de réis) ao Banco do Brasil para comprar um gado, a fim de fazer uma experiência. Talvez esse negócio fosse preferível à agricultura... Ali, eu era procurado pelos políticos de alguns municípios vizinhos que iam solicitar-me obséquios, em face do prestígio que me atribuíam junto ao governo, do qual meu filho era secretário de Segurança. E eu os satisfazia, à altura das minhas possibilidades. Mas, assim procedendo, eu não agia por cálculo – como se quisesse preparar o terreno para contar com a solidariedade dessas pessoas, politicamente, mesmo porque estávamos num regime ditatorial e, se viesse a constitucionalização do país, eu não desejava tomar parte em política... Era esta, de fato, a minha disposição de espírito. Tomara nojo da tal “política”! Não me lembro se nesse ano, ou no anterior, meu filho José fez uma festa na fazenda. E convidou muita gente da cidade, que ali afluiu em caminhões e automóveis. Música, a “pancadaria” de Juvenal e Euzébio (pífaros, zabumba, rufo e pratos), danças, “toadas” ao som da viola. Foi um dia grande, na fazenda! E como eu me sentia satisfeito!
Festejo na Fazenda Conceição em 1942.
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Ulysses Lins de Albuquerque
1943 Saldei o empréstimo que tomei ao Banco do Brasil e contraí outro de 44 contos na agência do mesmo banco em Rio Branco, para ficar com um gado que o doutor Jorge de Assis Rocha, do Rio, herdara do pai – o agente fiscal Assis Rocha –, falecido repentinamente em Alagoa de Baixo. O ano ainda foi seco (três anos, assim, seguidos...), de maneira que ainda perdi as plantações que fiz na Conceição. Era para desanimar. Pobre sertão! (Ou melhor, pobres sertanejos!) A cacimba secou... Estava aterrada de lama. Mandei tirar a terra com a qual fiz uma barragem entre a parede da cacimba e a elevação do terreno do lado da casa da fazenda. Antes de retirar a metade do aterro que cobria o “poço” da cacimba, desabou uma trovoada, fazendo-a transbordar. Era quase no fim do ano. Mas a barragem já estava pronta, e as águas nela acumuladas serviam para umedecer a várzea, com reais vantagens para o plantio do arroz, feijão, cana... E, pouco a pouco, a fazenda ia melhorando de aspecto. E o gado aumentava... e as criações (as miunças) também. Eu tomava gosto por aquela vida rústica e, se pudesse, ficaria ali, pois estava enfadado do ruído das cidades e o sol do sertão me retemperava as energias. Aquilo ali era o meu sanatório.
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1944 Houve um inverno regular. Em junho, a família foi para a fazenda. Inclusive Lins, com a mulher e os filhinhos. Muito milho, feijão, melancia... E o arrozal ali na várzea. E o leite e o queijo. Quanta alegria! (E quanta saudade eu sinto hoje daquela reunião de toda a família ali...) Lins ia sempre caçar “asa-branca” no açude de Manuel Joaquim. Os meninos, com as irmãs, saíam a passeio, a cavalo. E, depois, eu ria-me com os comentários alegres de Teresinha: ela contava-me que a Consuelo, montada num jerico, apeou-se em caminho porque o “jegue” não queria andar, e ela, furiosa, apostrofava-o – “Cínico! Sem vergonha! Imbecil!”–, e o pobre burrico calado, pachorrento, sem entender aquele “português” da Consuelo... Quanta gargalhada! Eu ia às vezes a Afogados, São José do Egito, Custódia, a serviço de advocacia. E sempre ia ganhando alguma coisa para equilibrar-me nas despesas que aumentavam. Uma vez, fui até Ouricuri, como advogado de Feliciano Morais numa questão que ele teve com um sócio. Dei três viagens ali, até ser julgada a ação que intentei, na qual foi Morais vitorioso. E assim vivia: da fazenda para a cidade e Recife. 26
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Waldemar, que se formara em Agronomia no ano anterior, fora nomeado para o Posto de Agricultura, em Alagoa de Baixo, e já me auxiliava na fazenda, orientando a plantação de palma para o gado. Alagoa de Baixo mudava de nome por inspiração minha; agora, chamava-se Sertânia. (Rio de Janeiro, 31/06/1952) Lins havia pedido a nomeação de Reginaldo Martins para prefeito do município. Reginaldo formara-se com meu filho José, a quem era muito ligado. Por isso, conseguimos sua nomeação para escrivão da polícia, e, mais tarde, Lins indicou-o para prefeito de Afogados de Ingazeira. Dali, ele vinha para Alagoa de Baixo, onde iniciou o calçamento da cidade. Naquele ano tive um sério aborrecimento com a exoneração de Herondina, filha do meu compadre Engrácio, esposa de Romão Santana, que havia sido feita pelo prefeito José Borges, por despacho de Agamenon, em processo a ele submetido. Aconteceu que ela era agente municipal da Estatística Estadual, e meu compadre Benedito Falcão havia dirigido contra ela dois ofícios ao diretor da Estatística Estadual, o qual, considerando-os ofensivos à sua direção, por duas vezes propôs a exoneração de Herondina, o que foi evitado por intervenção de Lins. Alheio ao que se passava, quando soube de tudo, disse ao compadre Engrácio que aconselhasse a filha a desistir de recorrer àqueles ofícios ao diretor, e este, ao receber o ofício de Herondina (que lhe fizera o governador chegar às mãos,) julgou-se desautorizado e propôs pela terceira vez a destituição de Herondina. E o interventor exarou despacho no processo, autorizando o prefeito a exonerá-la. Ao saber disso, eu já não podia mais evitar o desfecho. Fui a Alagoa de Baixo e procurei arranjar-lhe outra colocação na prefeitura – o cargo de escriturário, que era exercido por Elias, irmão de Romão, indo Elias para outra função. Elias, entretanto, sob a pressão da esposa, não quis ceder o cargo. Memórias que Eu Guardei de Memória - Vol. 2
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Depois, ainda mandei que Herondina requeresse a reintegração no cargo, mas isso não foi possível. Resultado: Romão e ela ficaram zangados comigo... e, mais tarde, me hostilizariam politicamente! Como se eu fosse responsável pelos gestos desatenciosos de Agamenon que, sabendo tratar-se de um caso que nos interessava (pois Romão era nosso amigo), não procurou saber se era possível conciliar as coisas e, sem me dar a menor satisfação, mandava demitir a esposa de um nosso correligionário! Pagava eu, assim, pelo seu ato, contraindo uma inimizade de pessoas a quem deveras estimava – e que não tinham o devido discernimento para compreender que eu não merecia o “castigo” do seu afastamento das minhas relações. E não sabiam que, devido ao que se passava, eu fiquei tão aborrecido que durante dois anos, ou mais, deixei de ir ao palácio...
A causa mais importante que eu patrocinei em Sertânia foi a demarcação parcial do sítio Cancelas, de propriedade de Demócrito de Araújo, filho de Ernani Gomes. O juiz (doutor Ângelo Jordão Filho) julgou procedente a ação por mim proposta, e o tribunal, em grau de apelação, confirmou a sentença de primeira instância. Houve novo recurso, mas o Tribunal de Justiça nos deu ganho de causa. Entretanto, não cobrei honorários, uma vez que devia muitas atenções a Ernani Gomes.
Coisa curiosa: o tribunal havia julgado em sentido contrário, há pouco tempo, uma apelação por mim interposta, em Custódia, da sentença do juiz (doutor Edgar Homem de Siqueira), que julgara improcedente outra ação demarcatória ali intentada, nas mesmas condições da que requeri em Sertânia; isto é: o caso era idêntico ao do sítio Cancelas, que o tribunal decidia agora a meu favor! 28
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1945 Terminara a guerra e, vencidas as nações sob regime totalitário – a Alemanha e a Itália –, o Brasil teria de voltar ao regime democrático. A reação contra a ditadura tomava corpo, ia se espraiando, e as forças da oposição ao governo Vargas anunciavam eleições. E Agamenon foi ao Rio onde o presidente convidou-o para ser ministro da Justiça. E, com o doutor Getúlio, acertou a nomeação de Lins para substituí-lo na interventoria em Pernambuco. (Aliás, por duas ou três vezes, tendo de viajar para o Rio, Agamenon havia o deixado interinamente como interventor federal no estado.) Estávamos no princípio de março. E foi quando começou a agitação, pelo menos no Recife, dos estudantes (chefiados pelos acadêmicos de Direito), contra o governo de Vargas. Parecia tratar-se de um plano de envergadura, visando a revolução. E a estudantada saía às ruas, quebrando os retratos do presidente, existentes em inúmeros estabelecimentos comerciais. O operariado, sob a orientação de alguns dos seus líderes, movimentou-se para reagir contra a sanha dos estudantes. E aconteceu que, no dia 3 de março, houve um choque entre estudantes e operários, na Praça da Independência. E, do tiroteio que houve no conflito, resultou a morte do acadêmico Demócrito de Souza Filho, atingido por uma bala no momento em que estava na escada do Diário de Pernambuco.
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Foi um fato desagradável, especialmente porque a vítima da fatalidade era um estudante de Direito, o que serviu de exploração para os políticos, a verterem “lágrimas de crocodilo” por um moço idealista, que tombava acidentalmente, por um capricho do destino, para ser apontado como um “mártir da liberdade”. Mas, meu filho Lins, que estava em casa, nada teve com o que ocorreu. E, por um infortúnio, sendo o secretário de Segurança Pública, passou a ser apontado como o responsável pelo que acontecera. O Diário de Pernambuco, dirigido por Aníbal Fernandes, passou a explorar o fato de uma forma perigosa. Em face disso, Lins, que ainda não havia assumido a interventoria em caráter efetivo, porque não recebera ainda a comunicação oficial sobre a sua nomeação, tomou a providência de, preservando a ordem pública (que poderia ser alterada em face da atuação do Diário), mandar sustar a sua circulação. Ante essa medida enérgica, os agitadores ficaram desarvorados e tudo voltou à calma e à normalidade. Eu estava na fazenda quando meu filho Waldemar ali chegava para comunicar-me o que ocorria. Segui no dia seguinte para o Recife, de automóvel. No dia 6 (salvo engano), Lins assumia a interventoria, nomeando secretário de Segurança o coronel Viriato Medeiros, que, como militar, homem equilibrado, prudente, muito contribuiu para que fossem amainando as paixões, oriundas das acusações a elementos da Polícia Civil como participantes dos trágicos acontecimentos de 3 de março.
Voltei para a fazenda, contrariado com tudo aquilo. Preocupado com o fato ocorrido justamente ao iniciar-se o governo de meu filho, que, assim, passava a ser vítima das acusações facciosas dos que combatiam o governo Vargas. E que, explorando a mocidade das escolas, outro intuito não tinham senão o de tirar vantagens para a sua política. Visavam o poder... E esperavam que 30
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