SHAKESPEARE E ANTROPOFAGIA: adaptações de Hamlet no cinema brasileiro

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SHAKESPEARE E ANTROPOFAGIA: adaptações de Hamlet no cinema brasileiro


Conselho Editorial Série Letra Capital Acadêmica Beatriz Anselmo Olinto (Unicentro-PR) Carlos Roberto dos Anjos Candeiro (UFTM) Claudio Cezar Henriques (UERJ) Ezilda Maciel da Silva (UNIFESSPA) João Medeiros Filho (UCL) Leonardo Santana da Silva (UFRJ) Luciana Marino do Nascimento (UFRJ) Maria Luiza Bustamante Pereira de Sá (UERJ) Michela Rosa di Candia (UFRJ) Olavo Luppi Silva (UFABC) Orlando Alves dos Santos Junior (UFRJ) Pierre Alves Costa (Unicentro-PR) Rafael Soares Gonçalves (PUC-RIO) Robert Segal (UFRJ) Roberto Acízelo Quelhas de Souza (UERJ) Sandro Ornellas (UFBA) Sergio Azevedo (UENF) Sérgio Tadeu Gonçalves Muniz (UTFPR)


Marcel Alvaro de Amorim

SHAKESPEARE E ANTROPOFAGIA: adaptações de Hamlet no cinema brasileiro


Copyright © Marcel Alvaro de Amorim, 2018 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610, de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem a autorização prévia e expressa do autor. A realização desta pesquisa não teria sido possível sem os fomentos concedido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq (Processo 140559/2012-4) e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES (Processo 99999.011642/2013-00).

Editor João Baptista Pinto Capa L

Projeto Gráfico e Editoração Luiz Guimarães Revisão Do autor

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Letra Capital Editora Telefax: (21) 3553-2236/2215-3781 letracapital@letracapital.com.br


A

construção deste livro foi (e continua a ser) um trabalho dialógico, em que várias vozes dialogaram (e ainda dialogam) na tentativa de construção de modos de se ler o ‘Hamlet’, de William Shakespeare, no cinema Brasileiro. No entanto, duas, dentre todas as vozes aqui refratadas, foram essenciais para o desenvolvimento da pesquisa: as vozes (e todos os discursos a elas relacionadas) de Roberto Ferreira da Rocha e de Vinicius Mariano de Carvalho, respectivamente, orientador e supervisor no exterior da Tese que deu origem a este livro. ‘Literalmente’ falando, sem vocês, esta pesquisa não se realizaria. Por isso, dedico esta obra, fruto direto de nossas conversas, reuniões, leituras conjuntas e ideias ventiladas no ar, a vocês e às suas vozes que, é claro, estão aqui mais presentes do que nunca. Muito obrigado!



Isso talvez tenha a ver com a prática já consagrada de supervalorizar tudo o que vem de fora, notadamente da Europa, aliada a certa desconfiança em relação à nossa capacidade e competência de desenvolver posições e propostas próprias, especificamente moldadas para atender às nossas necessidades e às peculiaridades de nossa realidade. (RAJAGOPALAN, 2013, p. 157)

Uma cultura engole, digere e se alimenta da outra; um tempo engole, digere e se alimenta do outro. Como na boa cartilha antropofágica - que sempre existiu mas só foi devidamente batizada pelos nossos canibais modernistas. Na peça que você se prepara para atuar, o pão de ontem não é necessariamente bolorento, tampouco virou hóstia ou coisa santa com o passar dos séculos. Aqui, o movimento é de ida e volta constante entre tempos de igual valor, que NÃO se respeitam, mas também NÃO trocam cotoveladas, deixando tudo muito mais apetitoso. Impossível ser fiel ao espírito da peça sem tocar a alma do público atual. (LACERDA, 2015, p. 10)



Sumário

P refácio .........................................................................................11 A presentação

Caminhos para se devorar shakespeare.................................15

C a pítulo 1

A crítica shakespeariana: Hamlet na literatura e no cinema................................................................................29

C a pítulo 2 A adaptação como prática de devoração transcultural...........91

C a pítulo 3

Devorando hamlet no cinema brasileiro............................131

C onsider ações

fina is

Tecendo alguns resultados..................................................187

R eferênci as

bibliográfic as ...................................................197



Prefácio Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago. Oswald de Andrade, Manifesto Antropófago, 1928.

O

s estudos shakespearianos brasileiros contemporâneos têm crescido nos últimos anos em ritmo constante. Dentro e fora da universidade, surgem livros, artigos, dissertações e teses que abordam diferentes aspectos da obra do dramaturgo e poeta inglês que nestes quatrocentos e cinquenta anos desde sua morte tornou-se figura de ponta dentro da cultura global, gerada pela disseminação do capitalismo ocidental. É fato que o império britânico subjugou diferentes povos da Terra não só com o uso da força e as estratégias políticas da Pax Britannica, mas também tendo em uma mão a Bíblia do Rei James e na outra a obra completa de Shakespeare. Tendo sido em vida fundamentalmente um homem de teatro, Shakespeare desenvolveu uma obra de reconhecida grandeza artística ainda capaz de influenciar a criação de dramaturgos, encenadores, roteiristas e diretores de cinema e televisão de diferentes nacionalidades e idiomas. Autor e obra estão ligados a um momento particularmente rico da história cultural, quando se dá o surgimento da primeira indústria cultural do ocidente: o teatro elisabetano, empresa capitalista que se auto financiava através da venda de ingressos. A influência da obra de Shakespeare na criação das literaturas nacionais durante o romantismo foi enorme. Muitas dessas literaturas forjaram uma linguagem literária própria através da tradução dos dramas e poemas shakespearianos. E sua presença nos palcos não foi menor, gerando um número enorme de encenações não só em língua inglesa. No Brasil, isso não foi diferente, haja vista a presença do 11


Prefácio

autor inglês nas obras de, por exemplo, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, de Visconde de Taunay, de Aluísio Azevedo e, principalmente, Machado de Assis. No campo teatral, as primeiras encenações de suas obras por aqui foram feitas a partir de adaptações, principalmente francesas. Só na década de 1940, com o surgimento, do que o crítico e estudioso da história do teatro brasileiro, Décio de Almeida Prado, chamou de “moderno teatro brasileiro”, é que as primeiras encenações a partir da tradução do original inglês foram realizadas em terras brasileiras. Estudos de peso sobre a obra de Shakespeare começam a aparecer a partir da segunda metade do século passado. Em primeiro lugar, citemos Shakespeare no Brasil, de Eugênio Gomes, publicado na década de cinquenta. Segue-se A expressão dramática do homem político em Shakespeare (1978), de Barbara Heliodora, a partir da tese de doutorado da autora, defendida na USP, em 1974, que é até hoje um dos mais alentados estudos da obra de Shakespeare escritos no Brasil, por uma das principais tradutoras de sua obra. Antônio Candido, em “A culpa dos reis – mando e transgressão no Ricardo II”, escreveu um instigante ensaio sobre este drama histórico pouco conhecido por nós. Podemos citar ainda os artigos de Marlene Soares dos Santos e Aimara da Cunha Resende, que apresentam abordagens bastante atuais da obra do autor, tendo a segunda também pesquisado adaptações e apropriações da obra de Shakespeare realizadas pela televisão no Brasil, principalmente em telenovelas. É neste contexto de aprofundamento de uma leitura propriamente nativa da obra de Shakespeare, no sentido de dar conta do impacto de sua obra dentro da cultura brasileira, que o trabalho de Marcel Alvaro de Amorim se insere. Esta tomada de posição já fica clara desde o título da obra deste jovem pesquisador: Shakespeare e Antropofagia: Adaptações de “Hamlet” no Cinema Brasileiro, que tem como base sua tese de doutorado defendida no Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada, da UFRJ, em 2016. O núcleo central do trabalho está na leitura crítica de duas 12


Prefácio

adaptações cinematográficas de A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca (c. 1600): O Jogo da Vida e da Morte, de Mario Kuperman, 1970; e A Herança, de Ozualdo Candeias, 1971. Produzidas em um momento especialmente conturbado da história contemporânea brasileira (o momento mais violento da ditadura civil-militar de 1964-1988), e fora do modo oficial de produção de cinema no Brasil (sem nenhuma ajuda da Empresa Brasileira de Filmes, a Embrafilme, produtora dos filmes brasileiros de qualidade, alguns dirigidos pelo luminares do Cinema Novo), essas obras se colocam num terreno de produção independente e marginal por escolha ideológica e estética. A obra de Shakespeare é apropriada e recriada pelos autores a fim de inseri-la dentro dos debates que na época agitavam o Brasil, a questão da distribuição de terra e da reforma agrária e da explosão da violência nas periferias das metrópoles brasileiras. O autor concebe os filmes como “adaptações intertextuais e antropofágicas”. E esclarece que “é a partir do contato entre diferentes culturas, da devoração transcultural do estranho/estrangeiro e de sua reconstrução como um outro, que os significados dos textos são construídos”. Com arcabouço teórico sólido, onde se mesclam a antropofagia cultural, a intertextualidade e o dialogismo bakhtiniano, dentro de uma postura ideológico-crítica de fundo materialista que concebe a criação artística como produção a partir de material estético anterior reciclado para atender às demandas próprias de novas configurações histórico-culturais, num processo contínuo de devoração e transcriação, e com escolhas metodológicas sólidas e coerentes, a obra de Marcel Alvaro de Amorim, é biscoito fino para leitores interessados em entender os meandros da produção, circulação e recepção de objetos culturais na contemporaneidade. Devorem e degustem prazerosamente. Roberto Ferreira da Rocha Professor Associado do Departamento de Letras Anglo-Germânicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro

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A p r e s e n ta ç ã o

Caminhos para se devorar shakespeare Cowards die many times before their deaths, The valiant never taste of death but once. Of all the wonders that I yet have heard It seems to me most strange that men should fear, Seeing that death, a necessary end, Will come when it will come. (II. 2. 32-37)1

De modo geral, a latente recusa das peças em permanecer em um único modo, gênero, linguagem, nação, posição de personagem ou conjuntura histórica é uma das razões pelas quais Shakespeare continua a ser popular.2 (JESS-COOK, 2007, p. 04)

É

fato conhecido pelos biógrafos do ex-presidente da África do Sul, Nelson Mandela, que, em algum momento durante suas quase três décadas na prisão, em Robben Island, o ativista teve acesso ao que hoje chamamos de The Robben Island Bible3. O livro é, na verdade, uma edição das obras completas de William Shakespeare (1564-1616) introduzida na penitenciária por outro condenado, Sonny Venkatrathnam, que a disfarçou com uma capa reproduzindo imagens que celebravam o Festival Hindu das Luzes, convencendo os responsáveis pela prisão de 1 SHAKESPEARE, William. Julius Caesar. Edited by Marvin Spevack. The New Cambridge Shakespeare. Cambridge: Cambridge University Press, [1988] 2003. 2 “More generally, the play’s latent refusal to stay in one setting, genre, language, nation, character-position or historical juncture is one reason why Shakespeare continues to be popular.” [Todas as traduções de textos teóricos apresentadas ao longo deste livro são de minha autoria].

3 Mais informações sobre a história por trás da The Robben Island Bible podem ser encontradas no endereço eletrônico <http://edition.cnn.com/2013/12/06/world/ the-smuggled-shakespeare-book/>.

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