Teorias da Ação
Ana Clara Torres Ribeiro
Teorias da Ação
Copyright © família Ana Clara Torres Ribeiro, 2014. Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem a autorização prévia por escrito da Editora, poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados.
Editor: João Baptista Pinto Editoração: Rian Narcizo Mariano Capa: Francisco Macedo (Sobre desenho de Ana Clara Torres Ribeiro)
Preparação de originais: Fábio Tozi e Naila Takahashi Revisão: Comissão Organizadora
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ R369t
Ribeiro, Ana Clara Torres, 1944-2011 Teorias da ação / Ana Clara Torres Ribeiro. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Letra Capital, 2014. 23cm. ISBN 9788577852680 1. Ação social. 2. Sociologia. I. Título.
14-11621 CDD: 361.7 CDU: 364-4
Letra Capital Editora Tels.: 21 2224 - 7071 | 2215 - 3781 www.letracapital.com.br
Nota Preliminar É com muita felicidade e emoção que assumimos a organização dos originais das transcrições do curso Teorias da Ação da Professora Ana Clara Torres Ribeiro que compõem este livro. Trata-se de uma tarefa delicada, coberta de enormes responsabilidades e esperamos, humildemente, tê-la cumprido. O texto é memória e projeto de uma sublime lição acontecendo, herança e devir de um pensamento atual, um livro-lição, pois o que nos ficou, como alunos, foram lições de método. Aconselhamos ao leitor apreciar o texto que segue como se ouvisse a Professora Ana Clara, deixando-se levar, portanto, pelos ritmos e compassos de suas aulas. Em alguns momentos, o leitor poderá se deparar com passagens aparentemente descontínuas que, todavia, reencontram-se numa espiral ascendente de reflexões. Como a Professora afirma durante este percurso, ela não obrigava a si própria a seguir rigidamente o programa delineado, valorizando, antes disso, uma comunicação efetiva. Tampouco, suas reflexões foram retilíneas, pois o diálogo predominou neste ambiente. É importante sublinhar que se trata de um curso oferecido para geógrafos, assumindo assim, por vezes, um caráter introdutório aos temas, aos conceitos e às problemáticas da Sociologia e da Ciência Política. Ficamos felizes em poder, de alguma maneira, tornar esse precioso registro acessível a um público mais amplo, socializando a sua proposta das Teorias da Ação, resultado de um longo trabalho intelectual. O curso foi ministrado entre os dias 18 e 22 de novembro de 2002, na UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas), graças ao convite efetuado pela Professora Dra. Maria Adélia de Souza, então Professora do Departamento de Geografia do Instituto de Geociências da Unicamp, e responsável pelo projeto de pesquisa,
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financiado pela FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do estado de São Paulo), no qual o curso se inseriu. A transcrição foi possível a partir do esforço de muitas pessoas, todas participantes dessa semana. Assim, cabe destacar, primeiramente, a iniciativa de Maria do Fétal (in memoriam) em gravar, em fitas K7, o curso e dividir as tarefas de transcrição e de Naila Takahashi, que também gravou, em Mini Discos (MD), parte significativa dele. As transcrições foram realizadas por Eneida Ramalho de Paula (Geógrafa pela PUC-Campinas), Nilo Américo Rodrigues Lima de Almeida (Geógrafo, Professor Adjunto da UFPE), Naila Takahashi (Geógrafa pela UNICAMP), James Humberto Zomighani Júnior (Doutor em Geografia Humana pela USP), Virna Carvalho David (Mestre em Geografia Humana pela USP), Pablo Ibañez (Doutor em Geografia Humana pela USP), Fabíola Lana Iozzi (Geógrafa e Doutora em Ciências pela Faculdade de Medicina da USP) e Fábio Tozi (Doutor em Geografia Humana pela USP). Posteriormente, no ano de 2005, ainda em Campinas e pela iniciativa de Eneida Ramalho de Paula, foi realizado o trabalho de organização das transcrições (ouvindo novamente as gravações) e revisão do texto, executado por ela mesma, por Fábio Tozi e por Naila Takahashi. O texto resultante desse trabalho tem sido matéria de reflexão para inúmeros estudantes, possibilitando, acreditamos, ampliar os debates entre a Geografia Nova e a Sociologia. Finalmente, em 2014, Francisco Ribeiro, companheiro de Ana Clara Torres Ribeiro, em um ambicioso e generoso projeto de preservação da memória e difusão de sua obra, incluiu estes registros entre os textos a serem publicados. Assim, o curso Teorias da Ação pôde tornar-se este livro-lição. Preocupados com a integridade das ideias, em sua forma e conteúdo, procurou-se preservar, na sua versão escrita, a originalidade e o estilo da fala da Professora Ana Clara, ainda que em casos específicos a qualidade da gravação tenha limitado a transcrição. Houve alguma alteração da linguagem falada para fins de adaptação à ex-
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pressão escrita, mas sempre procurando manter a autenticidade e o vigor do discurso. Os momentos em que a audição e a compreensão foram comprometidas, especialmente nas perguntas e comentários do público, estão indicados por [?], ou pela expressão [inaudível], outras interrupções no áudio são indicadas por [...]. Observações acrescentadas à ideia original, situando melhor alguma palavra ou expressão da fala, são referenciadas entre colchetes, e expressões orais são indicadas entre aspas. Todas as notas de rodapé são de nossa responsabilidade e referenciam, igualmente, as obras e autores com os quais a Professora dialoga, trazendo algumas informações relacionadas às personas e aos eventos mencionados. Por esse motivo, não se adotou a usual expressão [N.O.]. Tivemos, para esta tarefa, o apoio e o rigor de Carin Carrer Gomes (Mestre em Geografia pela USP). Este é um trabalho que percorre tempos e espaços distintos, criando e recriando encontros e relações, revivendo, assim, o espírito acadêmico solidário defendido pela Professora Ana Clara. Ele marca, também, o primeiro encontro dos “meninos e meninas de Campinas”, como ela carinhosamente nos chamava, com a Professora Ana Clara. Depois desse, muitos outros se seguiram e se seguem, nas lições de método para a compreensão das ações e na conjunção com as ideias de um futuro melhor. Seguimos sendo alunos da Professora Ana Clara e esperamos que a nossa ousadia depositada neste livro-lição seja vista como uma homenagem à nossa grande Professora. Saudades...
Fábio Tozi e Naila Takahashi São Paulo e Cajazeiras, abril de 2014
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Prefácio A redação deste prefácio está repleta de saudade, afeto e respeito. É com imensa emoção que tento elaborar este texto denominado Prefácio, a pedido de Francisco Rubens de Mello Ribeiro, marido de Ana Clara, feito há alguns dias atrás serena, mas firmemente. Privilégio irrecusável! Diferentemente dos demais Prefácios que tive a alegria de escrever, este vai para além do privilégio da primeira leitura do prefaciador. Ele se inspira muito antes disso, em conversas, compartilhamentos e desígnios entre a autora desta obra e desta prefaciadora, na minha participação do curso dado por Ana Clara na UNICAMP em novembro de 2002, no diálogo profícuo e profundo que ele fez crescer entre nós e, agora, na releitura das transcrições do curso dado. Não é fácil prefaciar uma obra in memoriam, quando lembranças e desafios desfilam na mente sabendo não existir a menor possibilidade da construção de novas cumplicidades. Prefaciar esta obra densa, singular, não apenas pelo seu conteúdo excepcional, mas, sobretudo, pelas circunstâncias que os caríssimos leitores verão em seguida, não é algo simples! Circunstâncias das nossas vidas – da autora e minha – de nossas práticas acadêmicas e militantes, cada uma a seu modo. Necessariamente passa pela minha memória um filme! Do conhecimento que tive da existência de Ana Clara através de Milton Santos e da insistência deste para que eu passasse a acompanhar as reflexões dessa socióloga brilhante, inovadora, revolucionária e capaz de conversar com a Geografia. A USP não desenvolveu muito o hábito, até hoje, de reconhecer o Outro, como diria minha amiga-irmã, como costumávamos nos tratar mutuamente! E na Sociologia então, nem se fale!
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Fazendo uma conferência no Instituto de Medicina Social na UERJ, em tempos idos, substituindo Milton Santos, tive a oportunidade de conhecer pessoalmente Ana Clara. Daí em diante sempre busquei acompanhar sua produção acadêmica e científica, beber em seus ensinamentos, pedindo também a meus alunos que o fizessem. Possibilitadas ou não pela generosidade de Milton Santos em nos tornar companheiras na Academia, a verdade é que dali em diante, sempre dialogamos. Ana Clara sempre prestigiou com sua presença e reflexões a todos os eventos para os quais eu a convidei. O último deles, em 2006, foi propiciado pela PUC de Campinas, proferindo a Conferência de abertura dos Colóquios Impertinentes sobre as Teorias da Ação, correspondendo para ela a uma Segunda Edição das suas reflexões sobre tais teorias. Para mim era o início concreto de um diálogo entre uma socióloga e uma geógrafa, iniciadas em metodologias construtoras de projetos libertários. Daí eu tê-los chamados de Colóquios Impertinentes. Eu dialoguei efetivamente com a obra e os ensinamentos de Ana Clara, a partir do curso da UNICAMP, para que num futuro que imaginávamos próximo, pudéssemos, além da sua obra sobre as Teorias da Ação, produzir um diálogo entre a Sociologia e a Geografia, tendo como mediadora a obra de Milton Santos. O tempo da vida não nos possibilitou isso, seja pela sua intensidade, seja pela sua crueldade... Depois dos Colóquios, seguimos para a realização, com um pequeno grupo de colegas professores e alunos, para um seminário fechado, sui generis, num delicioso final de semana prolongado, movido pela discussão acadêmica, em um hotel fazenda em Espírito Santo do Pinhal, no alto da Mantiqueira. Discussões profundas, acaloradas, aprendizagens sobre o mundo do presente, sobre o Brasil, que permanecerão inesquecíveis na memória daqueles que por lá estiveram conosco. Nossas metodologias de trabalho se combinavam tanto no entendimento epistemológico e no método, quanto na práxis. Rigor, ação, a busca do conhecimento profundo sobre os processos de desigualdades socioespaciais. Sempre fomos irredutíveis!
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Essa mútua respeitabilidade fomos construindo ao longo do tempo: na diretoria da ANPUR, quando Milton presidente, eu secretária executiva e ela no Conselho Fiscal. Em bancas de teses de meus alunos, para as quais eu sempre a convidava, nos Comitês e Conselhos das agências com as quais sempre colaboramos, como membros eleitos. E nos eventos que no Rio de Janeiro ou em São Paulo, ambas organizávamos. Mas o que me emociona, até hoje, sempre foi o companheirismo de Ana Clara nas discussões que porventura eu provocava por ocasião de debates públicos sobre temas dizendo respeito à problemática urbana brasileira, seja nas nossas associações científicas, das quais ela sempre pacientemente participou, seja em circunstâncias políticas graves, onde precisávamos defender com firmeza, clareza e competência pareceres que emitíamos sobre projetos de pesquisa e que sempre autorizávamos a identificação de nossos nomes. Inesquecíveis viagens fizemos a algumas localidades brasileiras para defender pareceres que dávamos a projetos encaminhados à FINEP, da qual fomos ambas consultoras. Privilégio o meu de poder conviver em diferentes circunstâncias com Ana Clara. Não fora esse percurso, teria sido difícil trazer Ana Clara para nos brindar com um curso importantíssimo sobre as Teorias da Ação, na UNICAMP, dias antes da minha demissão dessa Universidade. Respeito mútuo, possibilidade de diálogo e aprendizagem e, claro, a imensa generosidade de minha amiga-irmã de aceitar meu convite e abrir espaço em sua intensa agenda de trabalho. Serei, como sempre fui, eternamente grata a Ana Clara Torres Ribeiro por essa sua disponibilidade. Sou grata também a meus amigos e maravilhosos alunos de direito e de fato que me ajudaram a organizar algo digno da nossa convidada: a geógrafa Eneida Ramalho de Paula, Naila Takahashi, James Humberto Zomighani Júnior, Nilo Lima, Virna Carvalho David, Pablo Ibañez, Fabíola Lana Iozzi e Fábio Tozi. Destaco apenas, homenageando a todos, Maria do Fétal, aluna de fato naquele momento, não de direito, alma de muita coisa que
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fizemos naqueles tempos, impiedosamente assassinada em São Paulo, no ano passado, exatamente pelo sentido que deu à ação em sua vida. Maria foi o símbolo daquele evento e daquele período. Penso que meus alunos concordarão comigo. Mas nem tudo estava apenas nas mãos da comissão organizadora: dependíamos também da Administração da Universidade e do Instituto de Geociências, do interesse dos alunos e colegas convidados, enfim... das circunstâncias. Felizmente decidimos, com nossos próprios meios gravar o curso sob a batuta de Maria do Fétal e, agora soube também, de Naila. Não fora isso não poderíamos estar usufruindo dessa densa reflexão de Ana Clara. E, mais, tudo o que fizemos foi produto de trabalho coletivo: a organização do curso, a gravação, o apoio da FAPESP, a transcrição das aulas... Práticas que sempre levamos adiante na academia para fazer aquilo que acreditávamos... Mais um ponto de encontro com a prática acadêmica da autora desta obra. Homenagem à sociologia praticante de Ana Clara Torres Ribeiro! A montagem desse curso foi feita com Ana Clara a partir de suas aulas no IPPUR, fortalecendo para a finalidade que queríamos, ambas, o diálogo com a Geografia. Disso resultou o programa do curso, cujo desenvolvimento é objeto desta obra. Quando sugeri a Ana Clara que pensasse no sistema de ações, que consta da definição de espaço geográfico proposta por Milton Santos, eu não imaginava que ela já vinha fazendo isso há tempos e que já havia organizado uma disciplina no IPPUR para tratar desse tema. Ela mesma nos revela em seu texto que chegou às teorias da ação depois de 20 anos de árduo trabalho! E também nos revela que seu método de construção das teorias decorre tanto das suas atividades puramente intelectuais quanto de sua militância junto aos movimentos sociais, especialmente o Movimento Nacional pela Reforma Urbana. Então, esse percurso vai fundamentar uma problematização que orientará inclusive suas pesquisas no LASTRO – laboratório que fundou com seus alunos na UFRJ, como bem nos demonstram Cátia Antonia da Silva, Ivy Schipper, Luís Cesar Peruci do Amaral e
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Vinícius Carvalho Lima, em seu interessante texto Ana Clara Torres Ribeiro e a sociologia em diálogos: um pensamento vivo que orienta leituras de mundo1. Com maestria ela vai escolhendo os fundamentos das teorias da ação num percurso da Sociologia, acompanhada de seus grandes pensadores. E assim organiza seu curso em cinco Sessões organicamente tratadas, revelando do seu ponto de vista, o processo de constituição das suas Teorias da Ação. Logo na Sessão I do Programa a “Ação política para além da reprodução e dos limites institucionais” é tratada. Para tanto ela se faz acompanhar de Maquiavel, Marx e Gramsci para fundamentar o sentido da ação política, primeira das muitas que examinará durante todo o curso. “Assim, a ação política está para além da reprodução, ela é projetada para além da reprodução, ou seja, para além da coisa como ela está agora, das relações sociais como elas estão desenhadas neste momento. Isto se reproduz. Em grande parte a nossa vida transcorre em mecanismos de reprodução, a família é isso; a igreja, em grande parte, é isso; os governos, em grande parte, são reprodutores do mesmo: controla, reproduz. Então a problemática da ação política está para além da reprodução, e esta possibilidade de estar para além da reprodução é aberta por Maquiavel”, interpretação que hoje nos soa como vaticínio de Ana Clara, há mais de uma década, para muitas das questões que hoje nos preocupam! “A circunstância é essa, mas eu tenho que ler a circunstância para além dela mesma. Eu posso projetar a ação reflexivamente, eu posso querer romper esta forma de vida, esta estrutura societária. Isto significa que a ação política está para além da reprodução, ela é pensada para além da reprodução, para além dos limites institucionais; logo, ela é pensada para além do Estado no seu formato atual, para além dos mecanismos jurídicos conforme estão constituídos agora. Então, a primeira grande Publicado em REDD – Revista Espaço de Diálogo e Desconexão. Araraquara, v. 4, n. 1, jul/ dez. 2011.
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frente de reflexão da ação é de natureza política”2, nos ensinava Ana Clara. Nesta Sessão ela nos deixou claro que precisará trabalhar com as ideias de totalidade e processo, já iniciando seu diálogo com a Geografia Nova e nosso conceito de espaço geográfico, uma totalidade em movimento, uma indissociabilidade entre sistemas de objetos e sistemas de ações, como propôs Milton Santos. Na Sessão II vai tratar do que denominou “Os demônios e os deuses da modernidade, ação racional e racionalização”, trazendo à baila para se juntar aos anteriores autores, Weber e Durkheim, continuando a elaborar sobre a ação política. E Ana Clara ensina aos geógrafos, em seu curso, que “A unidade analítica para Max Weber era a ação, a ação social. Como Weber é o autor mais maltratado no Brasil, porque os professores de graduação em Sociologia dizem que existem três pais fundadores: Marx, Durkheim e Weber. Todavia, ensinam apenas os dois primeiros, e Weber é deixado de lado. Porque, evidentemente, Weber é muito mais difícil e surge misturado ao funcionalismo durkheimiano ou ao marxismo, sem que as pessoas o saibam”. Fiel ao seu rigor no uso do método crítico e ao profundo conhecimento que detinha de toda teoria sociológica, Ana Clara não perde a oportunidade de comentar sobre a leitura weberiana particular de uma dada Sociologia da USP! Para isso e como argumento poderoso nos introduziu na coletânea sobre os estudiosos de Weber, organizada por Jessé de Souza, da UNB, curiosamente denominada de “O Malandro e o Protestante”. Mas esta é uma outra história... Ana Clara nos revela a grande preocupação de Weber com a modernidade: “Ele tinha medo, realmente, desse processo de racionalização do Ocidente que levaria à impossibilidade de vidas plenas. São vidas altamente racionalizadas, marcadas pela exacerbação da razão, em que a ação é conduzida de uma maneira extremamente controlada para alcançar certos fins, destruindo a emoção e a possibilidade de atualização das tradições culturais. Então, há perda, uma perda violentíssima.” 2
O grifo é nosso.
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Caminho interessantíssimo, por exemplo, para compreendermos o genocídio dos pretos na periferia de São Paulo, objeto de intensa e crescente campanha liderada pelo povo do Hip-hop... Caso contrário, como fazê-lo? Examinar razão e emoção, já nos alertava também Milton Santos em “A natureza do espaço”, sua obra magistral, tão cara e conhecida de Ana Clara! Na Sessão III vai trabalhar com “A centralidade da ação: cotidiano, espaço banal e senso comum”. Seus autores convidados, além de Milton Santos que estará presente em todos os momentos desse diálogo foram Agnes Heller, Michel de Certeau, Michel Foucault, entre outros por ela referenciados em aula. Aqui nossa autora exibe com maestria o conhecimento refinado sobre a obra de Milton Santos e sua intencionalidade, resolvida teórica e politicamente com o sentido dado ao “território usado” que ela nos sugere denominar de “território praticado” e aquele de “espaço banal”, espaço de todos, de todas as ações, trazido de François Perroux para a Geografia, por Milton Santos. Aqui a dimensão existencial dos pobres aparece em cheio, com a conquista da vida em cada dia. Cotidiano e sobrevivência são categorias que também explicam a vida nas periferias sempre ampliadas das grandes metrópoles. Na Sessão IV do programa proposto, nossa Professora tratou da “Produção do Social – atos banais, atos radicais”, antecipando há mais de uma década, aquilo que viveríamos nos dias de hoje, seja com o Movimento Passe–Livre, iniciado em junho de 2013, seja com os “rolezinhos” e o uso do território seja ele público ou privado, o povo na rua convocado pela internet, representando todos os sujeitos indignados com alguma coisa, contra ou favor do que aí está, militantes, black-blocs, provocadores profissionais, enfim toda gente que decidiu, finalmente, manifestar-se. Anúncio do que temos na Geografia chamado de Período Popular da História, estimulados por Milton Santos. Nesta Sessão Ana Clara se faz acompanhar por Howard Becker, Michel Maffesoli e Norbert Elias. Na Sessão V do Programa do curso e no seu desenvolvimento, foi elaborada a questão “A sociedade controlada: estratégia e táti-
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ca, acomodação e resistência” dando continuidade à compreensão dessa contemporaneidade. A quarta e quinta Sessões do Programa do curso ministrado por Ana Clara em Campinas, estarão mais vinculadas, àquilo que Gramsci chamava de revolução passiva. “O que era a revolução passiva para Gramsci? Como tratá-la? Parece-me, eu creio, que aquilo que nós estamos vivendo hoje seja uma revolução passiva. E o que é a revolução passiva? A revolução passiva, para Gramsci, era o seguinte: veja a revolução russa...” Esmiuçando a reflexão baseada nesse conceito de Gramsci, onde a “a revolução passiva está vinculada à ocidentalização, à percepção de que a mudança ainda está em curso, mas de uma forma completamente distinta, com grande penetração dos mecanismos de racionalização das relações sociais, de ocidentalização das sociedades que ainda têm referências orientais, como é o caso do Brasil e como era o caso italiano, e agora não mais, mas na época de Gramsci, sim. São sociedades não completamente ocidentalizadas” nos alertava Ana Clara. E como tinha razão!!!! Como agir diante de uma sociedade controlada, como aquela em que vivemos hoje, dadas inclusive as características deste período histórico denominado de técnico-científico-informacional? Eis os comentários de nossa homenageada: “‘Como você resiste se acomodando’, também é uma frase de Milton Santos, como você resiste se acomodando e como se acomoda para resistir. Isto é a revolução passiva, analisada por Gramsci. Como você se move estrategicamente, acomodando-se para resistir e resistindo dentro dos processos de acomodação obrigatórios? Essa é a última volta. Nós começamos pela ação política, que eclode ao longo de toda a modernidade, passamos àquilo que acontece no final dos anos 60 do século passado, que é a valorização crescente do próprio tecido social para a ação social, para posteriormente rever a ação política, já com esta outra leitura, que é uma leitura da transformação da ação para compreender, simultaneamente, os limites e as necessidades da ação política hoje”. Imaginem os leitores como foi rico, necessário e contemporâneo esse curso! Ele está nesta obra em estado bruto, como se estivés-
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semos ao vivo assistindo as aulas de Ana Clara, nos idos de novembro de 2002. Publicar estas transcrições de um curso tão denso foi uma excelente ideia do Francisco e que apoiamos desde a primeira hora. Lamentável que Ana Clara com todo seu rigor não tenha tido tempo para dar a forma que certamente daria a esta que julgo, seria a sua grande obra. Que ela e seus alunos nos perdoem pela impertinência de apoiarmos essa publicação! É o mínimo que nós que fomos seus alunos nessa empreitada poderíamos fazer, colaborando com o desígnio de sua família, para homenageá-la in memoriam. Recebi, num recado telefônico dado graças à amabilidade de minha querida colega Julia Adão a notícia do falecimento de Ana Clara. Estava eu cumprindo mais uma das árduas, mas prazerosas missões que a vida me confiou: participar da construção da UNILA – Universidade da Integração Latino-americana, em Foz do Iguaçu. Vi a notícia tardiamente e não pude prestar minha homenagem à minha amiga-irmã no dia de sua partida. Nem, posteriormente, quando o IAB do Rio de Janeiro, por sugestão de um outro grande colega e nosso amigo – de Ana Clara e meu – Jorge Valadares, decidiu homenageá-la. Para essa ocasião, enviei um texto, repleto de saudades, carregado de carinho e respeito a minha colega, amiga e irmã. Mais uma vez não pude comparecer... o tempo insistiu em ser perverso conosco! Refletia eu, então, sobre o significado de Ana Clara e sua obra para todos nós. Retomo aqui, finalizando este Prefácio, meus sentimentos e reflexão de então. Os geógrafos brasileiros e, muito especialmente os geógrafos paulistas vinculados à Geografia Nova, sempre serão eternamente gratos a Ana Clara pela sua disponibilidade de diálogo sempre mantido conosco e pelas inúmeras vezes que esteve em São Paulo ou em Campinas compartilhando seus ensinamentos. Sempre me socorro na obra de Ana Clara para desvendar problemas de pesquisa cujo diálogo entre a Geografia, a Sociologia e a Ciência Política se faz necessário.
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Mas foi no desvendamento de meus problemas de pesquisa e de orientações de mestrados e doutorados na USP, buscando compreender as desigualdades socioespaciais pelas formações territoriais e pelo uso do território – categoria de análise social – proposta pelos geógrafos, época em que mais dialoguei com Ana Clara nos seus últimos anos de vida. Entendendo o espaço geográfico como sinônimo de território usado, esse espaço banal, abrigo de todos, de todas as pessoas, de todas as instituições, de todas as organizações, constituído pelos lugares – esse espaço do acontecer solidário, é que conseguimos estabelecer um diálogo fértil e longo, eterno podemos agora dizer. Resultado concreto do nosso diálogo durante o curso Teorias da Ação. Participando da nossa vida acadêmica em São Paulo, Campinas ou mesmo no Rio de Janeiro, no IPPUR, onde sempre solicitei a meus orientandos que fossem assistir e participar das atividades por ela organizadas, conseguimos compartilhar saberes, dificuldades, lutas políticas e definição de projetos de futuro. No último e-mail que trocamos, aproximadamente dois meses antes de sua partida, começávamos a organizar sua presença na UNILA, para nos ajudar na discussão das grades curriculares e projetos de pesquisa voltados para este fantástico e sociodiverso continente latino americano. Senti seu entusiasmo com esse convite e a quantidade de ideias que tinha, ela que conhecia os problemas latino americanos como ninguém, mas especialmente pela sua militância intelectual a eles devotada. A UNILA perdeu essa preciosa colaboração, mas guarda com alguns dos geógrafos que lá estão os ensinamentos de Ana Clara que, certamente, transmitirão a seus alunos. A Geografia Nova sempre manteve com Ana Clara e sua produção intelectual um diálogo cotidiano e permanente, especialmente para aprofundar o conhecimento geográfico. Sinto imensas saudades de nossos diálogos sartreanos, fundados numa busca incessante pela existência digna, compartilhada e solidária no sentido mais precioso e digno dessa palavra. Não é sem razão que, em seu maravilhoso texto intitulado “Território usado e humanismo
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concreto: o mercado socialmente necessário” ela escancara, na citação de abertura do texto, sua sensibilidade de pianista e artista intimamente relacionadas a este filósofo da liberdade, um dos maiores pensadores do século XX e inspirador profundo da Geografia Nova, Jean-Paul Sartre: “Por muito tempo sufoquei nos vales, as planícies me prostravam; eu me arrastava sobre o planeta Marte, a gravidade me esmagava; bastava-me subir em cima de uma toca para reaver a alegria: reconquistava o meu sexto andar simbólico, volvia a respirar o ar rarefeito das Belas Letras, o Universo se escalonava aos meus pés e toda coisa solicitava humildemente um nome; atribuí-lo era ao mesmo tempo criá-la e tomá-la. Sem essa ilusão capital, eu jamais teria escrito” (Sartre, As palavras, 1963, p. 45). Minhas pesquisas e do conjunto de meus orientandos sentem a ausência dessa interlocutora em nosso trabalho cotidiano. Sua compreensão do nosso labor, seu diálogo nos fortalecia. Ela nos compreendia quando afirmávamos que o espaço é social, instância social, categoria social de análise e não palco frio das localizações, como se estas também não fossem sociais, mas apenas geométricas! Não só a Geografia, mas também a Sociologia do século XXI perderam muito com a partida de Ana Clara. No entanto seus ensinamentos e seus textos dessa sociologia generosa, humanista e revolucionária que ela produziu aí estão. Seus alunos todos – os dela mesma e os nossos, todos, difundirão sua forma de pensar a Sociologia, o Brasil, a América Latina numa dedicação obstinada e dedicada a compreensão dos processos solidários da vida dos necessitados, habitantes dessa nação “passiva”, sem contabilidades financeiras extraordinárias, constituída por “homens pobres e lentos do planeta”. Nação totalmente voltada para a Política, nos lugares que insistentemente e instantaneamente cria auxiliada que é pela compreensão generosa e atualizada através da sua prática e vivência cotidianas, da difusão do meio técnico, científico e informacional, apoio essencial para o acesso da informação que é fundamento da Política. Estes são os elementos contemporâneos da constituição da nova racionalidade do mundo, a racionalidade política, aceleradamente
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percebida “pelos de baixo”, contrariamente à racionalidade econômica ainda ardorosa e perversamente mantida como fundamento das ações “dos de cima”. Assim nos ensinou ela, nesse diálogo precioso que insisto em destacar também neste prefácio: “Em primeiro lugar, não se trataria, apenas, de apreender o território como a condição material do Estado moderno, ou seja, de sua soberania na definição e na defesa de uma determinada forma de sociedade. Esta leitura permanece indispensável frente à natureza dos conflitos contemporâneos associados à exploração de recursos estratégicos e às necessidades de legitimação da ação política. Porém, junto a esta leitura, emerge outra compreensão do território, expressiva da vida de relações, mais próxima da Nação (ou nações) do que do Estado”, naquele texto acima referido, sobre o humanismo concreto e o território usado, uma das suas preciosidades. Exemplo de intelectual pública, de pesquisadora refinada e competente a Professora Ana Clara Torres Ribeiro nos ajudava a compreender essa geografia em seus territórios de resistência, especialmente aqueles das grandes cidades pobres do Brasil. Ana Clara, irmã e amiga deixou um enorme vazio no pensamento crítico competente brasileiro. Eu os convido a vivenciar um pouco disso tudo, nesta obra viva, pois falada em estado puro por Ana Clara, em seu curso ministrado na UNICAMP, no final de 2002. Viva a eternidade dos justos! Saudades Ana Clara, minha amiga-irmã! Campinas, março num verão intenso de 2014. Como se fora o Rio de Janeiro e seu clima característico. Maria Adélia de Souza Professora Titular de Geografia Humana da USP.
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Programa do curso O curso valoriza os processos e as práticas na análise da sociedade, partindo da ideia nuclear de que as alterações na base técnica da vida coletiva expressam (e exigem) mudanças nas orientações da conduta e em sentidos da ação social. Trata-se da busca de diretrizes teórico-conceituais que articulem condições objetivas e subjetivas da transformação social, associando cultura e política. A atual ênfase na ação expressa mudanças nas relações societárias, em aceleração a partir dos anos 1960. A ênfase na ação surge nas abordagens que procuram valorizar a produção social da própria sociedade. Assim, pode ser afirmado que as teorias da ação correspondem a um âmbito analítico dedicado ao fazer da sociedade (ao “fazer sociedade”) e à questão do sujeito.
Sessão I - A ação política para além da reprodução e de limites institucionais: Maquiavel, Marx e Gramsci (18/11) Indicações bibliográficas: GRAMSCI, Antonio. Obras Escolhidas -Volume I. Lisboa: Editorial Estampa, 1974. Capítulo II: “A ciência e o príncipe moderno”. MAQUIAVELLI, Nicolo. O príncipe. Tradução, prefácio e notas de Lívio Xavier, incluindo a introdução de Isaiah Berlin “A originalidade de Maquiavelli”. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000 [1513]. MARX, Karl. O 18 Brumário de Luis Bonaparte. São Paulo: Ed. Escriba Ltda, 1968 [1852].
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Sessão II - Os demônios e os deuses da modernidade: ação racional e racionalização (19/11) Indicações bibliográficas: WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. Tradução de Leônidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota. São Paulo: Editora Cultrix, 1970 [1918/1919?]. Capítulo: “A política como vocação”. WEBER, Max. Economia y sociedad. Tradução de José Medina Echeverria et al. México: Fondo de Cultura Económica, 1997 [1922]. Primeira Parte: “Teoria das categorias sociológicas”, Capítulo I: “Conceitos sociológicos fundamentais”.
Bibliografia complementar: DIGGINS, John Patrick. Max Weber: a política e o espírito da tragédia. Tradução de Liszt Vieira e Marcus Lessa. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1999. Capítulo 5: “A ação humana e seu sentido”. MARRAMAO, Giacomo. Céu e terra: genealogia da secularização. Tradução de Guilherme Albeno Gomez de Andrade. São Paulo: Fundação Editora UNESP, 1997. Parte II: “Origem e destino do moderno: a controvérsia sobre a secularização no século XX”.
Sessão III - A centralidade da ação: cotidiano, espaço banal e senso comum (20/11) Indicações bibliográficas: CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes do fazer. Tradução de Ephrain Ferreira Alves. Petrópolis: Editora Vozes, 1998 [1980]. Primeira Parte: “Uma cultura muito ordinária”. HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1972.
22 Programa do curso
SANTOS, Boaventura de Sousa e AVRITZER, Leonardo. “Para ampliar o cânone democrático”. ln: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.) Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
Sessão IV - A produção do social: atos banais, atos radicais (21/11) Indicações bibliográficas: BECKER, Howard S. Uma teoria da ação coletiva. Tradução de Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977. Capítulo: “As Regras e sua Imposição”. ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Tradução de Vera Ribeiro, revisão técnica e notas de Renato Janine Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1994 [1939]. Parte I: “A sociedade dos indivíduos”. MAFFESOLI, Michel. A transfiguração do político: a tribalização do mundo. Tradução de Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Sulina,1997. Capítulo I: “O político e seu duplo”; Capítulo II: “A socialidade alternativa”; Capítulo V: “O ‘nós’ comunitário”.
Sessão V - A sociedade controlada: estratégia e tática, acomodação e resistência (22/11) Indicações bibliográficas: BOSOER, Fabián e LEIRAS, Santiago. “Posguerra fría, ‘neodecisionismo’ y nueva fase del capitalismo: el alegato del Príncipe-gobernante en el escenario global de los 90”. ln: BORON, Atllio A., GAMBINA, Julio e MINSBURG, Naum (comp.). Tiempos violentos: neoliberalismo, globalización y desigualdad en América Latina. Buenos Aires: CLACSO/EUDEBA, 1999.
Programa do curso
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GRÜNER, Eduardo. “La astucia del león y la fuerza del zorro” In: BORON, Atílio A. (comp.) La filosofia política clásica: de la Antiguëdad al Renascimiento. Buenos Aires: CLACSO. 1999. WERNECK VIANNA, Luiz. “O ator e os fatos: a revolução passiva e o americanismo em Gramsci”. In: Dados, Vol.38, N.2. 1995. WERNECK VIANNA, Luiz. “Caminhos e descaminhos da revolução passiva à brasileira”. In: Dados, Vol.39. N.3. 1996.
Sumário
Introdução.............................................................................27 Sessão I - A ação política para além da reprodução e de limites institucionais: Maquiavel, Marx e Gramsci .........57 Sessão II - Os demônios e os deuses da modernidade: ação racional e racionalização ................................................103 Sessão III - A centralidade da ação: cotidiano, espaço banal e senso comum..................................................175 Sessão IV - A produção do social: atos banais, atos radicais.....227 Sessão V - A sociedade controlada: estratégia e tática, acomodação e resistência........................................................271
Introdução Professora Dra. Maria Adélia de Souza: – Essa visita da professora Ana Clara foi inserida dentro de um projeto de pesquisa que se chama “Dinâmica do Lugar e o Mundo do Café”. É um projeto de pesquisa para tentar entender como funciona o lugar no mundo contemporâneo, financiado pela FAPESP, sob minha responsabilidade, que vem sendo desenvolvido em Espírito Santo do Pinhal, aqui na nossa região de Campinas. No contexto desse projeto de pesquisa, e para entender a dimensão do lugar na perspectiva da obra do Professor Milton Santos, foi que eu insisti com Ana Clara para que viesse nos visitar ainda este ano e nos falasse sobre as Teorias da Ação, trabalho que vem fazendo pioneiramente, na Academia brasileira. A Professora Ana Clara é uma interlocutora de longa data da obra de Milton Santos, talvez uma das pessoas que melhor conheça a obra do Professor3, fora da Geografia, como socióloga que é. Eu tenho a impressão de que nós teremos uma semana de muita alegria, de reencontro com a Ana Clara, de reencontro com a obra de Milton Santos e de construção, de continuação – como dizíamos vindo para cá –, do pensamento do Professor que eu acho que é o que precisamos fazer e o que devemos fazer, nós, que achamos que a obra dele tem um significado fundamental para a construção do Brasil, desse Brasil novo que estamos querendo fazer. Eu quero pedir desculpas por esse imenso atraso, mas, vou pedir licença à Ana Clara também, pois é importante que a comunidade se informe a respeito do que acontece na vida acadêmica. Eu me atrasei para buscar a Ana Clara no hotel porque recebi, hoje cedo, vários telefonemas – como já havia recebido na semana passada quando 3
Ao longo do texto, Milton Santos é, frequentemente, chamado de “Professor”.
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estava no Nordeste –, da direção da Universidade [UNICAMP] que pretende agora no dia 20 de Novembro, dia da Consciência Negra, fazer uma homenagem ao Professor Milton Santos dando seu nome a uma praça. Parece-me que é essa praça que fica próxima ao [restaurante] “Sujinho”, ao lado do Instituto de Geociências, se bem entendi. Eu fui convidada pelo Chefe de Gabinete do Reitor, em nome do Reitor [Carlos Henrique de Brito Cruz], a fazer uma saudação ao Professor no ato da inauguração da praça. Eu disse ao Chefe de Gabinete – vou me encontrar com ele às duas horas –, que achava importante que a UNICAMP se lembrasse de um intelectual do porte do Professor Milton Santos, mas que, no entanto, a minha forma de homenagear o Professor é outra, não é com praças, mas com a difusão da sua obra, e que eu lamentava que a UNICAMP tenha se decidido a dar o nome do Professor a uma praça, mas nunca tenha se decidido a comprar os seus livros e a sua obra pelos quais eu batalho desde o dia em que cheguei aqui. É a homenagem que eu faço ao meu amigo. Portanto, eu não irei inaugurar praça alguma. A melhor maneira que temos de homenagear o Milton na semana da Consciência Negra é assistir ao curso da Ana Clara e é dizer a essa Universidade que o melhor jeito de homenagear os seus professores é respeitar os seus professores. Disse eu também ao Chefe de Gabinete que exatamente por conta desse desrespeito é que eu estou me demitindo da UNICAMP no dia 29 de novembro [de 2002]. Então, foi em péssima hora que resolveram homenagear o Professor Milton Santos. As instituições precisam entender, sobretudo a instituição universitária, que o maior valor que uma universidade tem são seus professores e é preciso que alguém comece a respeitá-los. Por isso, o Octavio Ianni me ligou, o Chefe de Gabinete me ligou e isso foi atrasando a minha saída de casa para buscar a Ana Clara no Hotel. Pedimos desculpas a vocês que tiveram a gentileza de esperar, uma hora e meia. É um enorme atraso! De qualquer modo, eu estou muito feliz de ter a Ana Clara aqui, estou muito feliz de podermos, todos nós, homenagear o Milton na semana da Consciência Ne-
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gra, embora ele dissesse que virou branco para poder ser Professor Titular da USP... Mas Milton tinha uma forma muito particular de encarar a vida e de encarar as coisas. Para mim, mais importante do que ter sido um grande geógrafo, Milton Santos foi uma pessoa que me ensinou muito sobre a vida, sobre o rigor. Acho que não estou traindo os princípios do meu amigo, nem a nossa amizade, nem a dedicação que ele tinha ao país, sendo rigorosa com as formas nada elegantes de lidar com a memória e o nome de Milton Santos. As homenagens ao Milton eu fiz a ele em vida, não tenho mais que homenageá-lo morto. A homenagem que presto a ele morto é fazendo esse tipo de atividade, é dando curso aos professores da rede municipal, aqui em Campinas. Um sacrifício enorme para mim que não disponho de muito tempo. Mas toda quinta-feira tenho o maior prazer em dar aula aos professores de Geografia da rede municipal em um projeto que o Toninho [Prefeito de Campinas Antônio da Costa Santos]4 havia proposto e que conseguimos, finalmente, realizar com o apoio e ajuda de colegas dirigentes da Secretaria Municipal de Educação e o entusiasmo de muitos colegas professores, que nos assistiam respeitosamente. Aqui na UNICAMP, há três ou quatro anos, foi trazida pela Professora Emília Rutkowski, nossa colega do curso de Arquitetura, a proposta de criação de uma cátedra Milton Santos. A Cátedra não saiu, mas a Praça sim! Ana Clara, faça o favor... Muito obrigada por estar aqui, acho que vamos nos divertir à beça nesses dias. Professora Dra. Ana Clara Torres Ribeiro: – Eu espero que sim, que nós possamos nos ver no diálogo e também na reflexão da sociedade contemporânea. Eu agradeço muitíssimo o convite à Maria Adélia e vejo como ela a continuação e o aprofundamento do nosso diálogo nessa oportunidade, sinto-me feliz. Nós somos 4
Prefeito de Campinas (PT) assassinado em 10 de setembro de 2001.
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irmãs nas obras de Milton Santos, precisamos alargar isto e eu creio, como ela, que a homenagem correta ao Professor Milton Santos é reconhecê-lo como Professor. Eu sempre digo que não tive muitos, que não chamo qualquer um de Professor, mas sempre chamei Milton Santos de Professor: – “Professor, como vai?”, era assim que eu falava ao telefone com ele, muito frequentemente. Gostava de chamá-lo de Professor porque eu penso que ele era de fato Professor: Professor de Geografia, de Filosofia, de História da Ciência, de Epistemologia e de vida. Ontem ainda, conversando com Maria Adélia, eu disse: – “Milton nos ensinou a reconhecer a opressão e a discriminação nos seus mais diferentes formatos e, muito especificamente, no ambiente universitário. Acredito que ele jamais gostaria de ser um membro circunstancial usado e manipulado de acordo com os desígnios dos outros; muito ao contrário, ele tinha o desígnio da própria existência, tinha seus projetos, sabia muito bem por que estava no mundo. E a forma de nós o homenagearmos, eu creio, é realmente seguindo os projetos. O projeto de Milton Santos não está concluído, e jamais poderia estar, ele tem que ser continuado. Isso significa muito empenho intelectual e muito diálogo interdisciplinar”. Eu acredito que a minha contribuição nesta tarefa advém do conhecimento da obra [de Milton Santos], e a busca do diálogo, mas a partir Sociologia; eu me sinto confortável na minha identidade de socióloga. De vez em quando dizem: – “Ana Clara, você é uma geógrafa”, e eu digo: – “Não sou não, eu não conheço suficientemente a teoria da Geografia para ser uma geógrafa; eu conheço a teoria da Sociologia”. Eu digo conhecer no sentido de poder tomar decisões autônomas, pois eu penso que isso é conhecer efetivamente teoria, quando você de fato escolhe – sigo esta orientação e não sigo aquela outra –, e me sinto confortável para fazer esses movimentos na Sociologia, mas não me sinto igualmente confortável na Geografia. Eu realizo um diálogo com a obra de Milton Santos, pois ela é supradisciplinar na medida em que ela é filosófica, um estudo filosófico, político, metodológico, epistemológico: situa-se em um patamar
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que é o patamar da existência, um patamar do homem e as suas circunstâncias, um patamar de valores, um patamar de projetos para o futuro da sociedade e projetos da sociedade para o futuro e isto ultrapassa cada uma das disciplinas. Logo, eu entendo que o diálogo se dá sim nos temas, mas ele acontece sobretudo por meio das visões de mundo, pois é deste modo que nós podemos efetivamente reconhecer os nossos companheiros e compreender plenamente quais são as funções sociais da ciência e, nesse nível, é possível sim ver qual é a tarefa conceitual, qual é a tarefa empírica que um diálogo interdisciplinar ou transdisciplinar efetivamente obriga. Então, creio que é nesse sentido que nós podemos ver a instauração de um diálogo com a obra de Milton Santos e vamos fazer esse diálogo por meio da problemática da ação social. Milton Santos trabalhava, em “A natureza do espaço5” – antes também, mas sobretudo nesta obra –, a questão ontológica do espaço, a bidimensionalidade do sistema técnico e do sistema de ação, compreendendo o sistema técnico como o espaço herdado em articulação com o sistema de ação que também é espaço. Assim, o sistema de ação é uma entrada analítica diretamente vinculada, no meu modo de ver, à problemática da existência e à questão do projeto. Então, se nós olhamos a problemática do espaço por meio do sistema de ação nós temos sim um grande diálogo a ser construído com as Ciências Sociais em geral, não apenas com a Sociologia, mas também com a Ciência Política e a Antropologia; e também com a Psicologia, se nós pensarmos em outro conceito proposto por Milton Santos que é o conceito de psicoesfera. Logo, existe uma face da problemática do espaço, da ontologia do espaço, que é citada, trabalhada teórica e conceitualmente na obra de Milton Santos, valorizando a dimensão da ação: o sistema de ação, a problemática do espaço praticado, ou, melhor dizendo, o território praticado6, e a SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo: razão e emoção. São Paulo: HUCITEC, 1996. 6 A categoria território praticado é trabalhada pela Professora Ana Clara nos seguintes artigos, entre outros: RIBEIRO, Ana Clara Torres. “Pequena reflexão sobre categorias da teoria crítica do espaço: território usado, território praticado” In: SOUZA, Maria Adélia de 5
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valorização das práticas sociais juntamente com toda uma formação que penetra nos efeitos culturais do meio técnico-científico-informacional e, nesta angulação, teremos exatamente o conceito ou a categoria de psicoesfera. Na outra face, nós temos um outro diálogo, também interdisciplinar, na minha forma de ver, com todas as Ciências da Técnica: o sistema técnico, a forma como se dá a hibridação ou o hibridismo contemporâneo de múltiplas técnicas de temporalidades distintas e podemos imaginar, aí sim, a projeção epistemológica desta outra face a partir da categoria-conceito de tecnoesfera. Então temos tecnoesfera e psicoesfera, sistema técnico e sistema de ação, e, no sistema de ação há todo um diálogo com as Ciências Sociais – com a Sociologia, com a Ciência Política, com a Antropologia, com a Psicanálise, com a Psicologia, com estas disciplinas que são movidas para a problemática da ontologia do espaço efetivamente por meio desta angulação na ação. A história da Geografia, eu não posso realizá-la como deveria, mas existe uma tradição de Geografia ativa, que advém de um longo percurso que possui, digamos, uma historicidade bastante profunda, e na qual a ótica é a da articulação entre as formas espaciais e as formas sociais, entre os processos espaciais e os processos sociais. Percebe-se que não é possível compreender espaço sem agência, que o espaço não é algo imobilizado, estagnado, sobre o qual então a sociedade se desenha, ou a sociedade se faz. Há uma conexão, que é ontológica, entre a problemática do espaço e a atividade, a ação, a forma dinâmica do ser. Eu diria que o ser é a totalidade social. Sendo o ser a totalidade social, este ser não é algo estático, não é apenas técnica, é atividade, tem seus núcleos mais ou menos dinâmicos, seus determinantes ativos, logo, o ser não é algo harmônico, mas dissonante. O ser social, a totalidade social, é dissonante, não é apenas técnica, não é apenas matéria, e também não é apenas sociedade (org.). Território brasileiro: usos e abusos. Campinas: Edições Territorial, 2003; RIBEIRO, Ana Clara Torres. “Território usado e humanismo concreto: o mercado socialmente necessário”. In: RIBEIRO, Ana Clara Torres. (et al.). Formas em crise. Utopias necessárias. Rio de Janeiro: Edições Arquimedes, 2005.
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etérea, valores sem sujeitos, valores ao ar, tampouco ideologias soltas, sem portadores, que não têm origem. O que precisa ser estabelecido é uma outra leitura, no sentido dos vínculos, das articulações, das mediações entre as várias ciências, entre as Engenharias e as diversas Ciências Sociais. Eu acredito, portanto, que os sistemas que nós podemos trabalhar são esses que podem ser elucidados por meio das Ciências Sociais, e, no meu caso em particular, a Sociologia. Acredito ainda que existam outras leituras de sistema que poderiam ser perseguidas, considerando a Ciência Política, por exemplo, e os sistemas ou regimes políticos. Poderíamos também pensar as articulações com a Psicologia, pela problemática do indivíduo dentro da sua estruturação sistêmica. Logo, poderíamos ter outras leituras de sistema, mas neste curso trabalharemos, fundamentalmente, o sistema social, a compreensão do sistema social, o entendimento de sociedade. De um ângulo da Sociologia – que não contempla a ontologia do espaço –, no qual o sistema de ação é o todo, e o sistema técnico se submete ao sistema de ação. O sistema de ação determina tudo. Então, se nós vamos disputar a [ideia de] totalidade dessa maneira, eu vou dizer que a sociedade é o sistema de ação, e a totalidade social é o sistema de ação, e assunto encerrado. Em consequência, o sistema técnico é a instrumentalidade articulada pelo sistema de ação. E como podemos sempre disputar, eu poderia dizer: se há uma instância espacial, há uma [instância] social também. Nesse sentido, na minha visão de socióloga, o sistema de ação é muito mais importante e ele é a totalidade social. Mas, aos poucos, nesse diálogo que é supradisciplinar, que está para além do disciplinar, nós podemos compreender que a noção de totalidade não se esgota, uma vez que ela, na verdade, não pertence a nenhuma disciplina. O ser social não pertence a nenhuma disciplina, pertence, sim, àqueles que conseguem ter uma visão articulada de processos, fenômenos e conceitos, para um tempo que é o tempo possível, dentro da leitura de Karel Kosik7. Desta forma nós temos, KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Tradução de Célia Neves e Alderico Toríbio. São Paulo: Paz e Terra, 2002 [1963].
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a partir da Filosofia, a partir da Política, algo que é maior do que a disputa disciplinar da totalidade. Algo que é mais privilegiado, em termos de avanço do conhecimento, dos interesses da sociedade e do avanço da política, algo que está para além das disciplinas, logo, está para além das disputas como esta que eu formulei aqui, provocativamente, da noção de totalidade, porque se alguém me disser que o espaço é a totalidade, eu direi que é a sociedade. Mas, esta não é a leitura que nos interessa. A leitura que nos interessa é a totalidade em aberto, na qual o espaço não é lido como inerte, mas como prático-inerte. Se o espaço é um prático-inerte, temos nele tanto a ação como a problemática do sujeito. Se o espaço não é algo inerte, se é, pelas indicações que vêm de Jean-Paul Sartre, pela problemática existencialista que está na obra de Milton Santos, algo que pode ser nomeado como prático-inerte, isso significa que não é só inércia, que a dinâmica é a dinâmica das práticas, cabendo uma colaboração da Sociologia no entendimento dessas práticas e na problemática das práticas sociais. Nesse sentido, temos uma entrada no sistema de conhecimento inter e transdisciplinar pela articulação entre sistema técnico e sistema de ação, da tecnoesfera e da psicoesfera. Então nós temos essas articulações possibilitadas pela noção de prático-inerte, que é fundante da concepção epistemológica de Milton Santos, na qual não há nada que não seja também ativo. O prático-inerte implica na determinação ativa de múltiplas entradas. Este espaço físico aqui [referência ao auditório] contém a ação, que é aquela do projetista, embutida nele. Eu sou obrigada a subir ali [referência ao tablado], e há também uma determinação física minha, que é comprimento das minhas pernas. Logo, além dessa minha determinação física, ainda há a determinação daqueles que projetaram este espaço físico: a ação deles está aqui, guardada, e interfere na minha possibilidade de agir. Tudo aqui está articulado dessa forma, eu não posso me sentar, confortavelmente, em qualquer lugar, por exemplo. Há aquela cadeira fixa, mas não projetaram outras possibilidades. Isso, de alguma maneira, impede a minha prática
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de se desenvolver completamente, de acordo com um desígnio meu. Eu não vou dizer que exista esse desígnio, mas nós não podemos fazer aqui uma roda, como seria, talvez, mais democrático. A roda está proibida. Nós estamos “grudados” [nas cadeiras]. Este espaço físico é hierarquicamente imposto: quem o projetou me impede de agir, em grande parte, sobre o que foi projetado. É um projeto que determina as minhas práticas e as práticas de vocês, querendo ou não. Além, claro, de emitir uma série de sinais, que possuindo uma estrutura simbólica, de alguma maneira me obrigam a certos comportamentos, já estão me exigindo ser eficiente, por exemplo: há algo que me impede de me distrair olhando para fora [referência ao fato de não haver janelas no auditório], vocês também não podem olhar para fora, têm que prestar atenção em mim. Estou aqui, hierarquicamente posta, como uma única face que vocês podem ver diretamente, isto significa uma determinação. O tempo todo nós temos condicionantes, múltiplas interatividades, mesmo que os sujeitos não estejam todos eles co-presentes, porque o projetista não está aqui, mas o marco dele está. Portanto, não podemos ser inocentes, nós não podemos entrar em nenhum espaço físico pensando que ele está completamente aberto aos nossos desígnios. Não está, e, portanto, não existe essa totalidade social que eu postulei para a Sociologia inicialmente, completamente abstraída da totalidade das heranças, da totalidade da história que já passou. Mas essa história que já passou está aqui. Então, mortos e vivos, estamos todos juntos, desígnios anteriores estão juntos com os nossos desígnios. Por isso, a totalidade é algo muito mais abrangente do que os anseios competitivos desta ou daquela disciplina, desta ou daquela engenharia, desta ou daquela técnica. A perda da inocência é um pressuposto da ciência, o deslumbramento não é útil, o encantamento e a sedução do discurso também não o são. O que nós precisamos, efetivamente, é controlar por nós mesmos, e não pelos desígnios dos outros, a evolução da reflexão de uma maneira livre e criativa, mas altamente perceptiva. A ideia de homenagear Milton Santos com uma praça é...
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Professora Maria Adélia: – É o anti-Milton. Professora Ana Clara: – É o anti-Milton por excelência, é materializar Milton Santos descolado de qualquer sistema de ação, “acachapar” Milton Santos no território, sem pensar o território praticado. Professora Maria Adélia: – Este é o aspecto revolucionário dele e da sua obra. Professora Ana Clara: – [A praça] é a anti-coisa, que não tem nada a ver com Milton Santos. É uma leitura de espaço que é antiMilton por excelência. Ao final da sua obra, Milton Santos insistia que temos que compreender o território em um sentido político relevante, não é o território só por ele mesmo, pois o território pelo território não significa nada, temos que compreender o território praticado. Então, as práticas, a ação social, a dinâmica, isto tudo está inscrito dentro da totalidade, esta tentativa aberta que circunscreve determinados momentos, o conhecimento possível, a ação transformadora possível também. Eu vou explicar para vocês a origem da disciplina, e porque eu cheguei a “Teorias da Ação”. Eu considero isso importante, porque foi um processo que demorou 20 anos – não foi de uma hora para outra. Eu batalhei muito até encontrar um gancho que me fosse satisfatório, um ambiente teórico, um ambiente conceitual, um ambiente problemático, que me fosse confortável. Eu tenho origem no IPPUR, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional [da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ]; eu tenho origem nos movimentos sociais – eu passei o final dos anos 1970 e a década de 1980 trabalhando em torno dos movimentos sociais. Também coordenei o Grupo de Trabalho Movimentos Sociais da ANPOCS [Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais]. Trabalhei muito com Maria da Glória Gohn8, 8
Socióloga, atualmente Professora Titular da Faculdade de Educação da UNICAMP.
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nós somos uma geração que se articulou em torno da problemática, teoria, e discussão larga dos movimentos sociais no Brasil durante os anos 1980. Muitas pessoas trabalhavam juntas, como Vera [da Silva] Telles9, que esteve conosco várias vezes, bem como Maria Célia [Pinheiro Machado] Paoli10, e Pedro [Roberto] Jacobi11. Além disso, eu faço parte há muitos anos do Movimento Nacional da Reforma Urbana, no qual travamos o debate sobre a diferença entre movimento e mediador, entre o movimento e a sua expressão institucional, a diferença entre movimento e atores políticos, como trabalhar a diferença entre movimento e partido político, que não são a mesma coisa em termos de forma social, de processo social. Essa é uma problemática ativa que sempre orientou a minha profissão e, ao mesmo tempo, eu me abria para a problemática do espaço, porque eu conheci Milton Santos em 1978, quando ele voltou do exílio, fizemos um trabalho juntos – porque eu também estava desempregada na época –, nós tínhamos, o que seria hoje uma “ONGzinha” [Organização Não Governamental], esse é um termo atual, uma parceria. Mas enfim, tratava-se um projeto para a FUNDREM [Fundação para o Desenvolvimento da Região Metropolitana do Rio de Janeiro], um órgão metropolitano e aos poucos, então, esse conhecimento foi se adaptando a partir da pesquisa de Milton Santos no IPPUR. Trabalho, hoje, na Geografia, na UFRJ. Além disso, a questão do espaço sempre se colocava para mim porque eu também lecionava na Pós-Graduação em Geografia da UFRJ e na área de Sociologia urbana, e assim foi se alargando essa minha presença, realmente, em debater a dimensão do espaço. O que para mim foi, eu devo confessar a vocês, um pouco difícil. Porque diziam para mim: – “Leia o espaço”. Eu não lia absolutamente espaço algum, pois a minha formação não era essa. Eu entendo muito bem o discurso, decomponho um discurso, que é uma Socióloga, atualmente Professora livre-docente do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP). 10 Socióloga, atualmente Professora do Departamento de Sociologia da USP. 11 Sociólogo, atualmente Professor Titular da Faculdade de Educação USP. 9
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dimensão da formação do sujeito social. Meu ouvido já é alerta, ele desconecta e analisa o discurso e procura o seu sentido subjacente. Essa é a minha formação. Entretanto, a leitura do espaço... Contudo, eu tinha que orientar geógrafos e arquitetos, que liam espacialidades. Portanto, eu precisava conhecer a problemática do espaço no sentido proposto por Milton Santos, no sentido filosófico-científico, mas vinha apenas decompondo espacialidades. Eu passava pela Avenida Brasil, de ônibus, saindo do [Ilha do] Fundão12 em direção ao Centro do Rio de Janeiro, tentando ler o espaço, mas eu não via nada. Eu via o que estava acontecendo dentro do ônibus: eu entendia o sistema de controle que estava posto na organização das portas desse transporte coletivo. Isso eu consigo entender muito bem, mas o espaço, uma noção incômoda, as distâncias terríveis, eu não conseguia encontrar mais nada que movimentasse o meu interesse analítico. Entretanto, a insistência de Milton Santos de que [os fenômenos] eram articulados – ele gesticulava com os dedos, tri-articulando ––, de tantos erros, de tantos detalhes, de tanto ouvir os geógrafos, os arquitetos, finalmente eu acredito que eu consigo ler [o espaço], não como outro o faria, mas a partir dos meus critérios; tanto que eu o li aqui [o auditório], pelo sistema de dominação. Eu não li o sistema técnico, ou seja, eu não sei como se produz cadeiras. Eu faço uma ideia disso, mas não me proponho [a entendê-lo], porque não entendo nada de design, não consigo saber muito de linhas de produção e também não sou economista. Eu considero muito rico o fato de que para completar a discussão sobre isto ou aquilo teríamos que chamar outros especialistas. Não sei qual princípio é este [da cadeira], nem como ela é composta exatamente, mas provavelmente algum processo químico complicado está presente nessa cor azul. Mas eu desconheço isso. Deve haver alguma intencionalidade de tranquilização na escolha da cor azul. Mas isso já é algo que me escapa. Suponho que se despertar muito o meu interesse eu irei atrás de descobri-lo, mas, fora isso, eu ficaria por aqui. Agora, o sistema de dominação... Por que com tanto espaço aberto é preciso me trancar aqui dentro? 12
Onde se localiza um dos campus da UFRJ, incluindo o IPPUR.
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Por que não existem janelas? Por que eu vou ficar dependente do sistema elétrico? Se as luzes se apagam, nós vamos ter que sair. Então, existem lógicas subjacentes que eu consigo perceber. O que eu estou dizendo a vocês é que esta é a minha angulação. Logo, o curso será dado em torno da problemática da ação, deste ângulo. Existem n outras problemáticas da ação que não serão tratadas aqui porque eu não as domino, envolvendo em larga medida a técnica. Eu vou dar um exemplo para vocês: quando tentei trabalhar a rede de telefonia do estado do Rio de Janeiro e a introdução do sistema celular, a base de dados para mim, enquanto eu não fui interrogar um engenheiro, era absolutamente ininteligível. Porque, basicamente, aquilo advinha da gestão do sistema de telefonia, era feito para isso e, portanto, estava no código do interesse dos engenheiros. Demorou para que eu conseguisse entender o desígnio administrativo que estava por trás daquela base de dados, entender a categoria que eles estavam utilizando, entender que aquilo de alguma maneira atingiu o consumo, como o consumidor se relacionava com aquele sistema... Este é todo um exercício necessário para chegar dentro de um campo do conhecimento que possa ser factível para mim, já que também não sou formada em Engenharia. Então, até conseguir revertê-los a favor da análise da ação, os sistemas técnicos e a forma como eles são expressos na base empírica, [foi necessário] um largo exercício, foi uma dificuldade muito grande. Por isso eu procurei escolher algo que não se afastasse completamente da problemática do espaço, mas que chegasse a ela a partir das áreas que, para mim, são mais dominadas, são mais confortáveis de alguma forma. E a angulação que está posta, então, na disciplina [das Teorias da Ação], é uma angulação que advém da valorização da cultura, da valorização da política, da valorização da problemática do sujeito, a diferença entre a problemática do sujeito e os atores sociais e políticos. E [esta angulação] corresponde a uma larga trajetória de vida que tem origem nos movimentos sociais até chegar, agora, às Teorias da Ação. O que eu devo dizer é que eu não acredito – só para acabar de contar essa história –, na existência de uma teoria autônoma dos
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movimentos sociais. Eu a procurei durante décadas e não encontrei sustento nessa ideia, esforcei-me muito e não consegui. Eu consigo entender o lugar social dos movimentos, isto sim, mas uma teoria autônoma dos movimentos sociais, apesar dos esforços – incluindo o de vários colegas franceses –, não me convenceu, e me gerou uma enorme confusão teórica e conceitual com a qual eu tive que conviver durante muito tempo, buscando alternativas. Uma primeira alternativa para encontrar a totalidade, sem desconfigurar a ideia de movimento, foi a partir da cultura. E me pareceu que era uma angulação formidável trabalhar a dimensão da cultura, sobretudo a cultura contemporânea que é mediada pela técnica. As formas como acontecem hoje, enfim, a atualização dos remetimentos culturais. Se os movimentos sociais são em grande parte, também, movimentos que procuram alterar valores, eu entendi que discutir a cultura era um caminho altamente privilegiado para chegar à totalidade social. Então, foi partindo do movimento social, passando pela cultura para alcançar uma leitura de totalidade social, na qual efetivamente a dimensão da cultura é de uma enorme importância, que [eu cheguei] a esta possibilidade. O outro lado é que esta angulação na cultura não me fornecia a dinâmica necessária para que eu pudesse valorizar a ação social, o movimento social. Porque o pensamento crítico da cultura dominante, em grande parte, não analisa as resistências, analisa a dominação. Havia uma certa estagnação, eu não conseguia me envolver dentro desta ideia. Então não existe teoria do movimento social que dê conta de ser uma teoria da totalidade. Ao mesmo tempo, posso caminhar para a cultura, porque ela é fundamental. A cultura é hoje o epicentro da economia, mas as leituras de cultura feitas pelo pensamento crítico, basicamente, discutem a dominação, mas não tratam da rebeldia nem da insurreição. Parecia-me que era um caminho muito rico, mas de alguma maneira ele partia do limite. Assim, fui avançando a compreensão de que deveria ser realmente algo como o campo da ação. Não a cultura, mas o campo da ação.
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O campo da ação, ao qual Max Weber deu total relevância. A unidade analítica para Weber era a ação, a ação social. Como Weber é o autor mais maltratado no Brasil, porque os professores de graduação em Sociologia dizem que existem três pais fundadores: Marx, Durkheim e Weber. Todavia, ensinam apenas os dois primeiros, e Weber é deixado de lado. Porque, evidentemente, Weber é muito mais difícil e surge misturado ao funcionalismo durkheimiano ou ao marxismo, sem que as pessoas o saibam. O fato é que Weber acabou sendo apropriado pela Sociologia “uspiana” sem sabermos muito bem como, o que é outro problema, porque depois vamos ouvir que Weber estava por trás do pensamento de Fernando Henrique Cardoso13. Mas como? Hoje, o pensamento weberiano está sendo disputado face à Sociologia da USP, como na UnB [Universidade de Brasília]. Dizem que Weber foi utilizado para explicar o Brasil a partir de São Paulo, no entanto existe o resto do Brasil. O “Brasilzão de Deus” é bem maior e muito complexo e o resto do povo tem que pensar o Brasil também a partir de Weber, e o faz completamente diferente [de São Paulo]. Vou dar o exemplo de Jessé de Souza14, que está sistematizando a produção de Weber na UnB, e organizou uma coletânea de pensadores weberianos cujo título é “O malandro e o protestante15”. Quando a categoria malandro apareceu na Sociologia uspiana? Nunca apareceu. Nós que somos flexíveis, ficamos engravatados dentro de uma certa apropriação de Weber que não nos parecia absolutamente propícia à análise dos movimentos sociais e muito menos à ação social, em termos mais amplos. Parecia, por outro lado, propícia à análise da modernização do Estado, à crítica ao populismo, se dava bem com grandes temas, mas não para o agir da sociedade, quando então nós tendíamos a utilizar Marx, sem o Weber. Durkheim tampouco, porque embora ele seja muito importante, as pessoas raramente conseguiam realizar Fernando Henrique Cardoso (PSDB), sociólogo, foi Presidente da República por dois mandatos consecutivos (1995-2002). 14 Atualmente é Professor Titular de Sociologia na Universidade Federal de Juiz de Fora. 15 SOUZA Jessé de. (Org.). O malandro e o protestante: a tese weberiana e a singularidade cultural brasileira. Brasília: Ed. UnB, 1999. 13
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em termos brasileiros a leitura da sua proposta de totalidade. Assim, ficava-se preso a um Weber institucionalizado, um Durkheim muito mal praticado, e um Marx discursado politicamente, mas misturado com outras matrizes, sem que se conseguisse discernir [quais e] como. Conformando, desta maneira, vários bloqueios naquilo que concernia à passagem analítica dos movimentos sociais para a transformação da sociedade brasileira. Um bloqueio que permanece, em grande parte, até os dias de hoje, [impedindo] a compreensão da produção da sociedade, do jeito que se produz sociedade, efetivamente. Mas, eu acredito que podemos avançar muito se, ao invés de trabalharmos com [a ideia de] cultura como uma hipérbole, nós conseguirmos trabalhar com a ação e, para se trabalhar a ação, a relevância de Weber é muito grande, mas não apenas ele. Maria do Fétal: – A cultura não é o resultado da ação? Professora Ana Clara: – Ela até pode ser, mas, até chegar ao resultado, o que nós fazemos? Então, a questão é saber o que fazemos antes disso tudo. A cultura está na base da ação também: a ação chega, há transformações culturais, mas a questão é que no meio do caminho nós temos uma complexidade extraordinária, na qual se inscrevem os movimentos com seus mediadores, com as suas crenças, com seus formatos localizativos. E, além disso, nem toda ação que constrói a sociedade é movimento, nós aqui estamos costurando a sociedade, nesse momento, [logo] nem tudo é movimento social. Portanto, eu penso que se nos deslocarmos dos movimentos, não tentando acessá-los diretamente, mas trabalharmos a ação, nós podemos trabalhar totalidades analíticas. [interrupção no áudio] Professora Ana Clara: – [...] estudar a totalidade aberta que deve conduzir, ao que me parece, à reflexão da ontologia do espaço. Para isso, eu fiz uma escolha estratégica. Aqui eu sou o sujeito
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da ação, então, fiz uma transparência, para que vocês vissem também o outro artigo [no programa do curso], para que nós possamos realmente construir o diálogo e construir conhecimento, porque o conhecimento não é depositado nos outros, ele é fonte de um trabalho coletivo. Nós tivemos que fazer uma seleção, neste curso, para que vocês tivessem acesso a uma certa orientação de leitura. É claro que não será possível ler essa enormidade de autores que está aqui citada [na ementa do curso]. Eu vou apresentá-los, porque eu acredito que depois as pessoas podem seguir lendo quando quiserem e se aprofundando o quanto puderem porque nada se esgota em uma semana. Principalmente, esta complexidade não se esgota. [Este é um curso introdutório] na angulação das Teorias da Ação, da problemática da ação, pensando nos movimentos e na face dinâmica de qualquer leitura da totalidade social. Como podemos acompanhar esta força dinamizadora a partir de alguns autores e alguns grandes temas? Essa é a intenção desta disciplina. Eu escolhi começar com a ação política. Nem toda ação social é ação política, mas como a problemática da ação tem origem na problemática da ação política, eu escolhi começar por ela. A ação é refletida, a partir do Renascimento, como ação política. A primeira grande reflexão estratégica é política, é de natureza política. Eu cito aqui [Nicolau] Maquiavel, [Karl] Marx e [Antonio] Gramsci. Então, nós temos toda uma bagagem que é expressiva, o teor da modernidade que se inicia no Renascimento e se deposita na reflexão da ação política. A primeira Sessão [do curso] se denomina “A ação política para além da reprodução e de limites institucionais: Maquiavel, Marx e Gramsci”. A reprodução que está sendo nomeada aqui é a repetição dos princípios de organização da sociedade. Assim, a ação política está para além da reprodução, ela é projetada para além da reprodução, ou seja, para além da coisa como ela está agora, das relações sociais como elas estão desenhadas neste momento. Isto se reproduz. Em grande parte a nossa vida transcorre em mecanismos de reprodução, a família é isso; a igreja, em grande parte, é isso; os governos, em grande parte, são reprodutores do mesmo: controla, reproduz.
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Então a problemática da ação política está para além da reprodução, e esta possibilidade de estar para além da reprodução é aberta por Maquiavel. A circunstância é essa, mas eu tenho que ler a circunstância para além dela mesma. Eu posso projetar a ação reflexivamente, eu posso querer romper esta forma de vida, esta estrutura societária. Isto significa que a ação política está para além da reprodução, ela é pensada para além da reprodução, para além dos limites institucionais; logo, ela é pensada para além do Estado no seu formato atual, para além dos mecanismos jurídicos conforme estão constituídos agora. Então, a primeira grande frente de reflexão da ação é de natureza política. Há uma atualização permanente de Maquiavel. Gramsci trabalha Maquiavel, Marx trabalha Maquiavel. É uma abertura que continua sendo atualizada, por muitos autores, até os dias de hoje. Isso está posto. [Essa atualização] continua porque a problemática da ação política continua vigendo e está aberta como lugar da reflexão, como lugar dos projetos, de construção de projetos, como lugar estratégico, como pensar estrategicamente, como escrever táticas dentro de estratégias, como compreender as forças opositoras, como compreender que eu não ando sozinho sem considerar a ação do Outro. Isto é a ação política. Isto é o tabuleiro do jogo político. Esta é uma forma de pensar a ação que se abre com o Renascimento. Assim, o fundamental é ver que [esta forma de pensar] foi aberta pela modernidade, atravessa a modernidade inteira e continua conosco nessa modernidade radicalizada que nós vivemos hoje. A segunda Sessão é dedicada a Weber. A frase que nomeia a Sessão “Os demônios e os deuses da modernidade: ação racional e racionalização”, constitui uma citação da angústia weberiana. Os demônios são relacionados à ambição. Nós pensamos poder controlar o mundo, nós imaginamos que, por meio da ciência, da técnica, dos mecanismos de controle dos outros, fazemos a sociedade, fazemos o futuro. Há uma ambição que está aberta na modernidade que constitui uma parte dos seus demônios. Uma parte dos demônios é irrecusável, ou seja, a razão se instaurou no mundo como algo fortís-
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simo e predominante. Ou seja, como dizia Weber: – “Você não quer pensar na sua circunstância? A igreja fica na esquina. Seja feliz. Não há problema algum, pode ir [à igreja]”. Weber falava para jovens nos anos 1920, já com o temor da ascensão do nazismo, ele dizia: – “Tem gente que gosta de mistificar, eu não. Eu não farei, aqui, o discurso comunitário desta sociedade que está avançando nesta complexidade. Eu não posso fazer isso aqui [na universidade]. Isso dá medo.” Dá medo ser alguém que não tem parâmetros completamente aceitáveis para conduzir a sua ação, que tem que se posicionar como sujeito da ação dentro da própria ação. Contudo, há sempre a alternativa da igreja. Mas aqueles que ficarem [na universidade] vão sofrer a pressão dos demônios, dos deuses, e terão que conviver com isto. Weber, portanto, possui uma face institucional, mas não é esta face que tem predominado na leitura da sua obra no Brasil. Então, a problemática não é a ordem, não é organizar a ordem, é reconhecer a ordem como objeto da reflexão. Você pode compreender a ação e orientá-la dentro de uma estrutura de compreensão, não de análise positivista. Pode-se compreender as angústias da modernidade, e se você é um ser moderno – no caso da América, somos todos modernos –, não é possível fugir desta percepção: nós estamos dentro de um território onde a ação não é completamente tradicional, não está completamente reproduzida para nós. Nós temos que estar a postos, buscando compreender, não analisar necessariamente, mas compreender. Aqueles que não quiserem compreender não vão “morrer”, mas também não devem permanecer na Universidade. Weber era muito duro, ele chamava a atenção muito enfaticamente para os mecanismos da razão, da lógica formal e, por outro lado, da tendência dos riscos desta razão se desdobrar sobre ela mesma, retirando a emoção e criando uma época de altíssima racionalidade, de altíssima racionalização dos processos sociais. Este era o temor de Weber. Ele tinha medo, realmente, desse processo de racionalização do Ocidente que levaria à impossibilidade de vidas plenas. São vidas altamente racionalizadas, marcadas pela exacerbação da razão, em que a ação é conduzida de uma maneira extrema-
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mente controlada para alcançar certos fins, destruindo a emoção e a possibilidade de atualização das tradições culturais. Então, há perda, uma perda violentíssima. Weber esteve nos Estados Unidos, estudou o exemplo norte-americano, apreciava ângulos da experiência norte -americana face à experiência europeia, mas temia a manipulação da cultura e temia realmente a manipulação da ação e, por outro lado, o excesso de racionalidade, levando à racionalização da vida cotidiana. São os demônios e os deuses da modernidade, a tensão entre os vários tipos de ação que coexistem. Quando alguém está pregando alguma coisa, uma crença, o que está acontecendo naquele momento? É uma ação racional dirigida à defesa de valores? É uma ação que está atualizando tradições? Que ação é esta? Como você categorizaria esta ação? Como compreendê -la para além de um discurso crítico banal que diz que isso é mera manipulação, mera inculcação? Nós não queremos pensar assim, nós queremos dar valor àquela ação. Nós temos que saber o que ela é conceitualmente. O que é aquela ação? Numa ação política, o que de fato está envolvido? É uma ação racional dirigida a fins, há uma meta final, ou o que parece ser uma ação racional dirigida a fins trata-se na verdade de uma ação tradicional de convencimento? O que se ouve é o discurso da família atualizado para a política, ou é realmente um discurso com alta nitidez estratégica dirigida a fins? Qual é a natureza desse discurso? Que ação é aquela que está se reproduzindo como espetáculo diante de nós? Podemos sempre nos deixar seduzir ou podemos tentar ser analistas. Weber diria que é importante preservar a natureza do analista. Além da igreja pode-se ir para o partido [político], mas que não se tente entrar na universidade com a legitimidade [do partido]. Assim, se uma pessoa não consegue olhar a ação analiticamente, ela pode ir para a igreja ou para o partido, não precisa ficar na universidade. Para quê [ficar na universidade]? Buscar exatamente o quê [na universidade], senão a capacidade analítica? Eu gostaria de me deter nessa contribuição de Weber porque ela é estreita e pontualmente dedicada ao agir. É uma compreensão da sociedade na qual não existe sociedade sem
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ação. A leitura do todo é uma leitura que não pretende ser explicada por meio de leis gerais. Não se trata disso. Uma sociedade capitalista, ela pode ser apreendida por meio de algumas categorias, e temos que conhecer essas categorias e trabalhar com elas, mas sem pretender fechar a totalidade antes. E isto é Weber. Quanto mais avançamos nas análises orientadas pela problemática da ação, mais vamos assistindo a um deslocamento daquilo que era originalmente a ação política para uma compreensão de que a política não é algo que apenas acontece nesta esfera institucional, a política é algo mais do que isso, ela vai ser relida cada vez mais no âmago do próprio tecido social. Isso acontece, fundamentalmente, a partir dos anos 1960, na Europa, e sobretudo na França. A eclosão dos movimentos sociais nos anos 1960 – que começam a ser analisados a partir das teorias políticas –, mostra cada vez mais que a ação política não fica presa dentro dos lugares nos quais se pressupunha que se fazia política. Cada vez mais se compreende que a política é algo que está dentro das casas, dentro de todas as instituições, da universidade, da educação, de vários lugares. Ela está no âmago do próprio tecido social. Muitos autores, como [Michel] Foucault, [Herbert] Marcuse, [Henri] Lefebvre e [Jacques] Rancière, passam a demonstrar que a política é algo que ultrapassa a esfera reconhecível dela mesma, conforme estava instituída pela política moderna, seja a política dominante conforme ela se manifesta na organização do Estado e dos partidos políticos, seja a política que advém da vontade revolucionária, da vontade de transformação social. O fato concreto é que a política é algo mais, ela está dentro de lugares inesperados: está na casa, está na praça quando os mais velhos protestam, está dentro das escolas primárias, dentro dos hospícios, dentro dos hospitais. A política está dentro de todas as esferas da vida humana. Isso faz com que uma série de categorias que não eram tratadas passe a ser, porque há um deslocamento da problemática da ação para dentro do tecido social, uma vez que era absolutamente necessário entender os sujeitos da ação. Acontece que os sujeitos da
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ação, nos anos 1960, não eram a esperada classe operária, que aparentemente tinha “ido ao paraíso” naquela época. Era surpreendente que houvesse estudantes no meio da rua – que foram rotulados de pequenos burgueses pelo PCF [Partido Comunista Francês]. Todos foram rotulados de pequenos burgueses inicialmente, mas conseguiram resistir e continuar protestando da mesma maneira, com ou sem partido político, com ou sem operário. O fato concreto é que isso continua se desdobrando. O movimento feminista, o movimento de diferentes etnias, o movimento de idosos, o movimento de aposentados, uma série de movimentos surgem a partir dos anos 1960. Muitos disseram que a classe operária estava liderando, mas não estava. O movimento social estava liderando a classe operária? Esse conjunto de movimentos que “explodiu” a partir dos anos 1960 e, cada vez mais a partir dos anos 1980 e 1990, como os punks e os funks, são movimentos culturais? Todos eles estão dominados societariamente pelos partidos políticos? São todos controlados pelo discurso de uma única liderança? Isso tudo está posto dentro do mesmo projeto? Não está. Como não era nada [como antes], começou-se a ter a necessidade de se fazer um enorme debate no interior da própria esquerda, tanto a esquerda europeia como a esquerda norte-americana. Essa necessidade também começa a aparecer no Brasil a partir dos anos 1960, 1970, juntamente com a repressão. O que significava trabalhar com os movimentos sociais, com uma associação de bairro? [O pesquisador] vai aparelhar a associação de bairro, ou vai entender o que ela está dizendo de uma forma completamente diferente? O que isto significa? Esta é uma frente extraordinária de mudança social que aparece neste período. [Esta frente] não se dá mesma maneira em todos os países, em todas as cidades, em todos os lugares, mas ela obriga a pensar a ação e a política de uma outra maneira, caminhando para o âmago do próprio tecido social, tentando entender a vida, como dizia Nelson Rodrigues, “como ela é”. E a vida como ela é não era nada daquilo que se estava dizendo. Eu sempre digo que será sempre muito útil nós fazermos uma história
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social das bases. O discurso das lideranças é uma coisa, mas o discurso das bases é outra, é completamente diferente. [No Brasil, o] Partido Comunista exigia tarefas que tinham que ser executadas mesmo que fossem, em grande parte, inexecutáveis. Todavia, não se podia não executá-las, e para isso havia a viração da base. Como a base se virava para poder dar conta daquela tarefa que o Partido resolveu que tinha que ser feita? Como não havia condições para realizar as tarefas, as pessoas, na malandragem, conseguiam se virar para executar a ação e, ao mesmo tempo, conseguir satisfazer a direção [do Partido] que assim acreditava que estava realmente comandando a totalidade dos processos. Mas não estava [comandando], porque aquilo se desdobrava de uma outra maneira dentro do tecido social. Recorria-se à camaradagem, à cumplicidade, ao familismo, até mesmo contando com o apoio das famílias mais tradicionais. Era assim que a base conseguia se virar para completar aquela ação que estava posta como sendo da sua obrigação executar. Por isso, é sempre muito necessário olhar a outra face da ação para poder mostrar a complexidade do tecido social e porque isso se realiza, inclusive como possibilidade de transformação social. Portanto, o que eu quero dizer é que esta eclosão de novos formatos assumidos pela ação que acontecem a partir dos anos 1960 obriga, não apenas uma revisão das leituras de totalidade social, mas também a um entendimento da natureza política de todos os atos humanos. Se eu digo “bom dia” para alguém ou se eu não digo, isto tem consequências. Se eu sorrio para alguém ou não sorrio, isto tem consequências. Se eu vejo uma pessoa na rua e paro para conversar com ela, quando ela me pede dinheiro, isto tem consequências. Todos os atos são políticos. E sempre existe imbricado nisso o Eu e o Outro, o Outro e o Eu. O Outro é Eu também, na relação. Esta moldura guarda relação com a Teologia da Libertação, guarda relação com a fala do oprimido, com o Teatro do Oprimido, com a análise da opressão e não apenas da exploração capitalista, considerando os mecanismos de opressão que não são operados apenas pelo capitalista – nós operamos diariamente mecanismos de opressão do Outro para
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sobreviver, muitas vezes, e por perversidade também. Nós operamos dentro das nossas casas os mecanismos que nos co-responsabilizam pela qualidade da vida social. Isso significa que esta penetração, esta abertura da compreensão da ação nos leva para o âmago do lugar, para o âmago do cotidiano, para o âmago daquelas instituições que até então estavam preservadas como sendo algo da reprodução. Então, ouve-se dizer: – “Eu não vou me preocupar com a família, que não é tema revolucionário”. Eu diria que é o principal [tema], se você quiser alterar a reprodução da sociedade. Igualmente, – “Escola não é um tema revolucionário”. Ele o é para Gramsci, que tinha uma cabeça completamente rebelde. Se o partido é importante, e a escola não é, como se vai então alterar a reprodução da sociedade? Sem lidar com a família, sem lidar com a escola e sem lidar com a igreja não se altera [a reprodução da sociedade]. Tanto não se altera que as igrejas são muito mais ágeis do que os partidos, muito mais pragmáticas, muito mais eficientes. Nesse sentido, o que nós temos efetivamente é uma outra compreensão que nos leva para o interior do tecido social, para a compreensão de todos os atos humanos como atos políticos, para a compreensão de que nós somos co-responsáveis pela qualidade do tecido social, pela qualidade da vida social, em cada gesto, e não apenas quando vamos à praça. Por isso é tão importante tomar uma atitude, como a que Maria Adélia tomou na homenagem à Milton Santos [proposta pela Reitoria da UNICAMP]. Isso é fundamental. Não se pode deixar resvalar, porque nós somos responsáveis. Qual é o rebatimento daquele ato, no futuro, para a compreensão da obra de Milton Santos? Isso tem consequências. E existem âmagos da vida que precisam ser analisados com mais radicalidade. Foucault faz isso maravilhosamente bem e eu estou citando também Agnes Heller, em “O cotidiano e a História16” assim como “A invenção do cotidiano17” de Michel de Certeau. O que eu posso fazer neste auditório? Até mesmo virar de HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1972. 17 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes do fazer. Tradução de Ephrain Ferreira Alves. Petrópolis: Editora Vozes, 1998 [1980]. 16
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costas para vocês, ou ir até aquele canto e fazer qualquer outra coisa, isto é, existe uma margem de liberdade aqui, neste momento. Nós vamos usar essa margem de liberdade ou não? Nem tudo está determinado e é isso que constrói o lugar e é isso que constrói o cotidiano. Por isso nós somos responsáveis porque se tudo estivesse [determinado], não seríamos. Isso significa que nós vamos mergulhar no lugar, mergulhar no cotidiano, ver a forma como se faz o tecido social, como as práticas e ações sociais determinam a qualidade da existência e isso se dá nos mínimos gestos, nos mínimos atos e as classes populares, como não são classes dominantes, precisam saber disso. Da mesma maneira, Milton Santos falava dos homens lentos em seu livro “Técnica, espaço, tempo18”. Os homens lentos têm uma sagacidade especial, mesmo porque se não a tiverem não sobrevivem. Nós não, nós estamos protegidos dentro de instituições, que de alguma maneira nos permitem certas liberdades ou certas ignorâncias. Mas os homens lentos têm que saber muito bem onde se localiza o guarda, onde tem comida que sobra, têm que saber muito bem onde as coisas estão e o que vão fazer para sobreviver. Não podem ignorar os ônibus, não podem ignorar o cobrador que permite que se entre sem pagar, não podem ignorar nada, porque senão, realmente, não sobrevivem. Da mesma maneira encontramos em Michel de Certeau uma alta sensibilidade para o que ele chamava de face noturna da sociedade. Milton Santos fala dos espaços não iluminados, dos espaços sombrios19, enquanto Michel de Certeau fala da face noturna da sociedade, esta que não é dita, sobre a qual ninguém faz discurso, mas a vida é isso. Então, qual é o não dito? Qual é [a face] invisível da sociedade? Qual é a tática da sobrevivência? Não é a grande estratégia SANTOS, Milton. Técnica, espaço, tempo. Globalização e meio técnico-científico informacional. São Paulo: HUCITEC, 1994. 19 Embora a Professora Ana Clara tenha utilizado a expressão “espaços não iluminados”, “sombrios”, Milton Santos adotava, normalmente, a ideia de “espaços opacos” e “espaços luminosos”. Vide: SANTOS, Milton. “Metrópole: a força dos fracos é o seu tempo lento”. In: Ciência e Ambiente. Ano IV, nº. 7, julho/dezembro 1993; SANTOS, Milton. Técnica, Espaço, Tempo. Globalização e meio técnico-científico-informacional. São Paulo: HUCITEC, 1994; SANTOS, Milton. “Geografia”. In: Folha de São Paulo. São Paulo, 13/04/1997. 18
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da ação política que me permite sobreviver, é a tática. Quais são os trajetos urbanos que eu faço na cidade? Se tal trajeto apresenta uma ladeira para mim, eu tenho que subir aquela ladeira? Será? Para quê? Para encontrar-me com quem? Assim, o lugar é esmiuçado a partir das táticas. Ele é esmiuçado a partir desta face que é a face noturna da vida social, exatamente porque ela não é iluminada, como diz Milton Santos. Então há um alto diálogo – por questões éticas e por questões analíticas –, entre esta sensibilidade analítica de Milton Santos, que diz respeito ao território praticado, aos homens lentos, e Michel de Certeau. Finalmente nós temos, depois dessa virada em direção ao tecido social, o retorno à questão da ação política. A ação política contemporânea não pode esquecer a cultura e a manipulação dos valores, [pois elas se tornaram] impossíveis de serem desconhecidas. O outro lado da face contemporânea da política é aquilo a que [Michel] Maffesoli20 chama de transfiguração da política. As representações políticas não são mais as mesmas, as formas de entendimento da política não são mais as mesmas. As bases de construção identitárias não são mais as mesmas, isto é, não se trata da mesma articulação. Quando falamos de tribos urbanas, estamos tratando de grupos sociais que manifestam uma outra forma de ser político, que transfiguram a política. Eu comecei a perceber isso na redemocratização do Brasil – que, aliás, não termina nunca –, no início dos anos 1980, quando Fafá de Belém virou uma líder, em um palanque na Avenida Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. Odete [Lara?] também se tornou algo como uma líder política, discursando nos comícios. [Eu me perguntava] onde estão as lideranças políticas de esquerda, as lideranças populares dos anos 1960, 1970? Não [estavam lá], era algo diferente. Eu perguntava: – “Isso é a política”? “O que está acontecendo”? Entre o discurso político que se ouve hoje e aquilo que se esperava nos anos anteriores há uma distância gigantesca. [Essa distância] não é apenas com relação ao desenvolvimen20 MAFFESOLI, Michel. A transfiguração do político: a tribalização do mundo. Tradução de Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Sulina,1997.
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tismo, é com relação às expectativas de transformação social e ao entendimento do sujeito da ação. Quem é o sujeito da ação hoje? Quem é o povo no Brasil? Quem é povo e quem não é povo no Brasil hoje, afinal? Quem vai ser o portador da transformação social? Como se entende isso? Qual é a natureza da ação, conforme ela está sendo compreendida hoje? E isso muito me espanta porque eu vejo a predominância de uma forma de agência, existe um agenciamento hoje, tudo é agenciável e negociável: senta-se e negocia-se. Eu pergunto: – “Como nós vamos sentar e negociar se eu não sei qual é o seu projeto?” Trata-se, de uma nova ambiência. Isso significa uma transfiguração da política. Essa transfiguração da política, evidentemente, não será idêntica àquela que Maffesoli analisou nos seus estudos, mas existe uma sensibilidade que nós temos que desenvolver para entender o novo teor da ação política que é distinto: na área dos movimentos sociais, na área do governo, na área dos mediadores. Isso não é idêntico, temos apenas que afinar nossos instrumentos para compreender melhor. Em consequência, essa quarta Sessão, “A produção do social: atos banais, atos radicais”, estará mais vinculada, junto com a quinta, “A sociedade controlada: estratégia e tática, acomodação e resistência”, àquilo que Gramsci chamava de revolução passiva. O que era a revolução passiva para Gramsci? Como tratá-la? Parece-me, eu creio, que aquilo que nós estamos vivendo hoje seja uma revolução passiva. E o que é a revolução passiva? A revolução passiva, para Gramsci, era o seguinte: veja a revolução russa... Gramsci quase foi expulso do Partido Comunista [Italiano], evidentemente, porque ele não podia dizer [que a revolução na Itália não poderia se dar da mesma forma que na Rússia], uma vez que havia que se fazer a revolução independentemente da formação social na qual você se encontrasse e independentemente do grau de modernização da sociedade. A Rússia não tinha nada a ver com a Itália, mesmo assim era preciso fazer a revolução. Todavia, não ia ser possível fazer a revolução naquelas circunstâncias, com a ascensão do fascismo e com muitas pessoas sendo presas. Então, qual era exa-
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tamente a possibilidade? O que era possível ser feito? Para a análise [de Gramsci] de como a sociedade italiana estava se modificando e se ocidentalizando, a revolução passiva está vinculada à ocidentalização, à percepção de que a mudança ainda está em curso, mas de uma forma completamente distinta, com grande penetração dos mecanismos de racionalização das relações sociais, de ocidentalização das sociedades que ainda têm referências orientais, como é o caso do Brasil e como era o caso italiano, e agora não mais, mas na época de Gramsci, sim. São sociedades não completamente ocidentalizadas. Sociedades estão sendo violentamente ocidentalizadas, [processo que] no caso brasileiro, é arrasador, e ainda mais significativo para os países vizinhos, estabelecendo realmente o predomínio de uma circunstância que Gramsci denominou de revolução passiva. Nas ocasiões de revolução passiva não é possível “fazer virar” para revolucionária. O que você tem que fazer é a guerra que ele chamava guerra de posição, você tem que ocupar posições. Não é guerra de movimento, é guerra de posição. Você tem que ocupar posições, é o máximo que se pode fazer, ocupar posições. Portanto, isso significa que é necessário entender a alteração da ação para que se compreenda o movimento de ocidentalização, de modernização, de racionalização das relações sociais, de novas formas do político, de transfiguração política, e a nova base identitária que estamos vivendo hoje. É necessário compreender [esse movimento] como algo que admite o pensamento estratégico [que é portador de uma] natureza diferente daquela anterior ao período do início do século XIX até meados do século XX. Isso dá significado ao que vem sendo chamado de revolução passiva. Nós temos aquela sociedade controlada, que é discutida na última Sessão: “A sociedade controlada: estratégia e tática, acomodação e resistência”. “Como você resiste se acomodando”, também é uma frase de Milton Santos, como você resiste se acomodando e como se acomoda para resistir. Isto é a revolução passiva, analisada por Gramsci. Como você se move estrategicamente, acomodando-se para resistir e resistindo dentro dos processos de acomoda-
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ção obrigatórios? Essa é a última volta. Nós começamos pela ação política, que eclode ao longo de toda a modernidade, passamos àquilo que acontece no final dos anos 60 do século passado, que é a valorização crescente do próprio tecido social para a ação social, para posteriormente rever a ação política, já com esta outra leitura, que é uma leitura da transformação da ação para compreender, simultaneamente, os limites e as necessidades da ação política hoje. Então, esse é, basicamente, o curso.
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