Novos Estudos de Vitimologia
Novos Estudos de
Vitimologia Ester Kosovski Heitor Piedade Junior Organizadores
Copyright © Ester Kosovski e Heitor Piedade Junior (Orgs.), 2011
Editor - João Baptista Pinto Capa - Rian Narcizo Projeto Gráfico /Diagramação - Francisco Macedo Revisão - Dos Autores CIP-Brasil. Catalogação na Fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
N848 Novos estudos de vitimologia / Ester Kosovski, Heitor Piedade Junior, organizadores. – Rio de Janeiro: Letra Capital, 2011. 152p. : 23 cm Inclui bibliografia ISBN 978-85-7785-113-3 1. Direito – Aspectos sociais. 2. Vitimologia. 3. Psicologia social. 4. Sociologia jurídica. 5. Crimilogia. I. Kosovski, Ester. II. Piedade Junior, Heitor. 11-5395.
CDU: 34:316.334.4
22.08.11
23.08.11
028816
Letra Capital Editora Telefax: (21) 3553-2236 / 2215-3781 www.letracapital.com.br
SUMÁRIO 9 – Apresentação Ester Kosovski | Heitor Piedade Junior
12 – Vitimização do Meio Ambiente Edilaine Regina da Silva Silveira
23 – Vitimologia e Judaísmo Ester Kosovski
28 – A Criança no Sequestro e no Incesto Graça Pizá
40 – Vitimização no Sistema Penitenciário Heitor Piedade Júnior
49 – Por Onde Começar a Reforma Penitenciária Marli da Silva
58 – Janusz Korczak
Um Legado para a Humanidade Mônica Bezerra de Menezes Picanço
70 – Tecnologia, Ética e Educação Riva Roitman
79 – A Vitimização do Educador:
Um Holocausto na Sociedade Líquida Robert Segal
97 – Terapêutica Vitimológica
As Doenças Sociais: a Cidadania Invisível Selma Regina Aragão | Angelo Luis Vargas
112 – Vitimologia, Violência Urbana e Segurança Pública Wanderley Rebello Filho
121 – Violencia Escolar:
Consideraciones Criminológicas y Preventivas Hilda Marchiori
133 – Mediación y conciliación penal Elias Neuman
143 – In Pensar em Clave Abolicionista Louk Hulsman
Apresentação
A
Vitimologia tem-se desenvolvido em todos os continentes, quantitativa e qualitativamente. Novos temas surgem e pesquisas dão o apoio necessário para a modificação legislativa na teoria e na prática para dar maior assistência e também responsabilidade à vítima tradicionalmente esquecida e sem participação direta nos processos nos quais é a maior interessada. A Vitimologia é membro consultivo das Nações Unidas e, dessa forma, também adquiriu universalidades. Por isso, nessa nova coletânea, foram incluídos artigos de autores estrangeiros, no idioma espanhol, dois dos quais, em homenagem à sua memória, pois, depois de terem contribuído largamente para o desenvolvimento das ciências humanas, faleceram recentemente. Temos, portanto, os mais variados assuntos, refletindo as tendências atuais desta nova ciência do comportamento humano, classificando os autores por ordem alfabética, a seguir: Como ponto de partida, Edilaine Regina da Silva Silveira, com a força e entusiasmo de sua juventude, em “Vitimização do Meio Ambiente”, denuncia o processo criminoso praticado por determinado segmento da humanidade, lembrando que a solução do problema deve começar por cada um de nós. Ester Kosovski, com seu multifacetado saber criminológico e sua experiência profissional, recorre às raízes históricas desse saber social, desde a mais longínqua antiguidade, com sua “Vitimologia e Judaísmo”, tema merecedor de tamanha importância na história da humanidade. A consagrada psicanalista Graça Pizá, nos labirintos de uma clínica especializada, em especial, nas significações afetivas que estão em jogo em meio à violência de que é vítima a criança, discorre sobre “A criança no sequestro e no incesto”. Ester Kosovski | Heitor Piedade Junior | 9
Heitor Piedade Jr e Marli da Silva, com sua vivência nos bastidores intrincados da docência sobre o sistema penitenciário, brinda-nos, o primeiro discorrendo sobre a “Vitimização no Sistema Penitenciário”, já a segunda aponta “Por onde começar a reforma penitenciária”. Ambos os trabalhos primam pela experiência técnica das salas de aula e da militância nas masmorras do sistema prisional. Mônica Bezerra de Menezes Picanço, psicóloga, educadora e membro do Núcleo Multidisciplinar de Pesquisa, Extensão e Estudo da Criança de 0 a 6 anos, presta uma emocionante homenagem a um Mestre, o polonês Henryk Goldszmit, considerado o precursor dos Direitos da Criança, que adotou o pseudônimo de Janusz Korczak. Tal manifestação de carinho tem o nome de “Janusz Korczak – Um legado para a Humanidade”. “... deveria existir um Dia Internacional de Janusz Korczak, para que todas as crianças pudessem comemorar a data em homenagem a esse homem...” Riva Roitman, doutora em Educação, com sua sensibilidade extraordinária face aos problemas da vítima, tenta buscar um caminho de extermínio desse monstruoso e universal problema que obstaculiza a educação. Riva traz á nossa reflexão seu excelente tema “Tecnologia, Ética e Educação”. Robert Segal, jovem educador, com o talento que lhe é peculiar, enfrentando, de perto, a violência escolar que adentra nas salas de aula, vitimizando o que há de mais sagrado, a educação, pela percepção de que os muros da escola não mais representam limites instransponíveis às formas de violência experimentadas pela sociedade, escreve “A Vitimização do Educador.” Selma Regina Aragão / Angelo Luis Vargas, com o tema ”Terapêutica Vitimológica – As Doenças Sociais: A Cidadania Invisível”, ambos, com sua profunda visão humanista, sempre advertindo sobre a importância da valorização dos cidadãos, despertando em cada um a consciência do comprometimento ético, com atos e ações efetivas que traduzam o sentimento da sociedade. Por fim, dentre os autores brasileiros, surge o ensinamento do presidente Wanderley Rebello Filho, em meio à sua sabedoria aliada à experiência, o bom senso e seu bom humor, nos apresenta “Vitimologia, Violência Urbana e Segurança Pública”, advertindo que a vida e a integridade física envolvem os bens mais preciosos que possuímos. O autor conclama a necessidade da solidariedade de todos no combate à violência, á miséria e à falta de educação, condições primordiais para a construção da paz social. Irmanados com especialistas no universo da Vitimologia, este espaço cultural convidou três autores, em idioma espanhol.. Em primeiro lugar, a consagrada Professora Hilda Marchiori, vitimóloga de Córdoba, na Argentina, apresenta suas lições de sabedoria especializada, com o tema: “Violência Escolar: 10 Apresentação
Considerações criminológicas e Preventivas”, trabalho que deve ser estudado, no Brasil e no resto do mundo. Logo a seguir, o também argentino Elias Neuman, falecido recentemente, tendo deixado mais de uma dezena de obras sobre Criminologia e Vitimologia, que mudaram a face do mundo, dentre elas, uma síntese de “Mediação e Conciliação Penal”, recebendo, nesta publicação, a homenagem póstuma da Sociedade Brasileira de Vitimologia. Nessa mesma linha, o pai do abolicionismo penal, Louk Hulsman, nascido na Holanda e falecido recentemente, tendo sido professor de Direito Penal e de Criminologia na Universidade Erasmo de Roterdam, Louck revolucionou a justiça penal mundial,com suas obras pioneiras. Amigo do Brasil, face a sua marcante presença em diversos eventos vitimológicos, no Rio de Janeiro e em diversos outros estados brasileiros. Seu trabalho leva à profunda reflexão do Pensar in Clave Abolicionista, “O Direito da vítima de não ser subordinada à Dinâmica da Justiça Penal”. Oportunidade em que, neste livro, a Sociedade Brasileira de Vitimologia presta sua homenagem de saudade a esse cidadão do mundo.
Ester Kosovski | Heitor Piedade Junior | 11
Vitimização do Meio Ambiente Edilaine Regina da Silva Silveira1
“Não só os pobres e oprimidos gritam. Gritam as águas, gritam os animais, gritam as florestas, gritam os solos, enfim, grita a Terra, como superorganismo vivo chamado Gaia. Gritam, porque são sistematicamente agredidos”. (Leonardo Boff, in Do Iceberg à Arca de Noé).
M
eio” vem do latim medius, é comumente empregado o termo para designar a “metade de alguma coisa” ou “algum lugar”. Em decorrência desse último sentido, entende-se “meio”, o lugar em que se vive. E, assim, é restritamente tido no sentido de habitat, designativo do local em que se vive e se desenvolve, sob influência das leis naturais, todos os seres da natureza. Já, em sentido mais amplo “MEIO” equivale a “AMBIENTE”, e é representado pela soma de múltiplos elementos, em que se incluem não somente os de ordem natural, como os que se derivam das opiniões e tendências dos próprios homens. “Ambiente” é designativo de meio em que se vive, e é o ar que se respira e que nos cerca. Pode-se observar que ambas as palavras designam a mesma coisa, ou seja, quer dizer o mesmo, gerando essa terminologia uma redundância, verdadeiro neologismo. Assim, já afirmara José Afonso da Silva2 que a expressão meio ambiente denota certa redundância, e explicando o autor: “... mas essa necessidade de reforçar o sentido significante de determinados termos, em expressões compostas, é uma prática que deriva do fato de que o termo reforçado tenha sofrido enfraquecimento no sentido a destacar, ou, então porque sua expressividade é muito mais ampla ou mais difusa, de sorte a não satisfazer mais, psicologicamente, à idéia que a linguagem quer expressar. Este 1
Advogada, Membro da Comissão de Políticas Sobre Drogas (OAB-RJ) e da Sociedade Brasileira de Vitimologia.
2
SILVA, José Afonso da. José. Direito Urbanístico Brasileiro, Ed. RT. São Paulo,1981.
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fenômeno influi no legislador, que sente a imperiosa necessidade de dar, aos textos legislativos, a maior precisão significativa possível, daí por que a legislação brasileira vem também empregando a expressão meio ambiente, em vez de ambiente apenas.
Meio Ambiente é a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida humana3 Vale lembrar que com razão se encontra Carlos Ernani Constantino4 quando afirma que, “o meio ambiente não é uma res nullius, isto é, uma coisa de ninguém, mas uma res communis onmium, ou seja, uma coisa pertencente a todos os homens, um precioso acervo que diz respeito não somente a determinado local, a um país, porém a toda humanidade, visto que todos os cidadãos deste Planeta Azul, chamado há milênios de Terra, têm o direito, por si e pelas gerações futuras, à continuidade da vida, de forma saudável e adequada, e, para isso, é necessária a preservação do equilíbrio existente entre todos os elementos naturais, artificiais e culturais componentes deste segmento por nós ocupado no espaço.”
Já a Lei n.6.938/81 (Lei de Política Nacional do Meio Ambiente) definiu o Meio Ambiente como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas” (art.3º, I). (sem grifo no original). Pode-se observar que a definição de Meio Ambiente dada pela Lei 6.938/81 é um conceito restrito, cuidando diretamente da vida em todas as suas formas, deixando assim de conceituar os diversos sistemas que se relacionam com o homem, sendo eles aquilo que é construído, o que é cultural e até mesmo o ambiente do seu trabalho. Nunca, em toda a história da humanidade, falou-se tanto em meio ambiente e vitimologia, como nos dias de hoje e, exatamente, tem-se chegado à conclusão de que, na medida de sua importância, ambos têm sido quase que totalmente desprezado pelas pessoas, pela sociedade civil, bem como pelo poder público, nacional e internacional. Temas esses da mais alta relevância nos dias de hoje, de tal sorte que a Organização das Nações Unidas (ONU) tem demonstrado uma extraordinária preocupação que se apresenta em recomendações constantes a todos os governos 3
SILVA, José Afonso da. Curadoria do Meio Ambiente. São Paulo: Associação Paulista do Ministério Público, 1988, p.20.
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CONSTANTINO, Carlos Ernani. Delitos Ecológicos. São Paulo: Atlas, 2001,p.20.
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de todos os povos do mundo inteiro. Basta lembrar que, além de um dossiê, mais conhecido como o relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, INTERGOVERNMENTAL PANEL ON CLIMATE CHANGE (IPCC), tem-se preocupado com muitos outros documentos e recomendações, lamentavelmente descumprido, acintosamente, até mesmo, por potências de primeiro mundo. Como se não bastasse esse documento básico em favor da sobrevivência da humanidade e de todos os seres que compõem a constelação de toda a natureza, merece ser citado o consagrado Protocolo de Kioto, igualmente sem acolhimento das nações poderosas. Do outro lado, a Vitimologia, ciência autônoma ou ramo da criminologia, sistematizada que foi, por ilustres pensadores, filósofos, sociólogos, juristas, psicólogos, psiquiatras, alguns vitimas do Holocausto, uma das maiores catástrofes da humanidade, mas todos lutando pela defesa dos direitos fundamentais da vítima de crime ou de abuso de poder, ou mesmo do meio ambiente, direitos esse consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Declaração Universal dos Direitos da Vítima. Dois temas, portanto que se encontram intimamente relacionados em busca da defesa do homem e de todos os demais seres que compõem, com uniformidade, o mundo. Em meio ao complexo universo dos estudos sobre a vitimização do meio ambiente, tem-se constatado a presença de três segmentos políticos, em busca de um mesmo objetivo na solução do problema do ecocídio, ou por outro lado, pela salvação do futuro da vida na terra. O primeiro deles que, no entender deste trabalho, vem sendo considerado conservador e dominante, porque de discurso fácil e com doses de populismo, procura globalizar a cultura mundial, despertando o consumismo exagerado, ao mesmo tempo em que despreza as raízes do sistema, tolerando, cada vez mais, o agravamento das contradições de cada região. Daí, as regiões centrais e as periféricas, ou seja, as do terceiro mundo, aquelas onde predomina as desigualdades sociais, tornar-se as maiores vítimas desse modelo ecocida. Tem esse modelo bases no neoliberalismo mundializado, com suas defesas individualistas. Suas teses demonstram frágil sensibilidade social e ecológica, com a aplicação da tecnologia que não alcança o interesse da coletividade. O meio ambiente e a atual sociedade capitalista estão densamente ligados, muito mais do que chega ao conhecimento da comunidade internacional. Segundo eles nós degradamos o meio ambiente todo o dia um pouco, seja na tranquilidade de nossos lares, ou com nossas atividades laborativas. O consumismo não gera apenas impactos ambientais decorrentes da necessidade crescente de energia e do próprio processo industrial, mas é a causa de 14 Vitimização do Meio Ambiente
outros graves problemas: o esgotamento dos recursos naturais não renováveis e a produção desenfreada de resíduos de toda natureza. Esse segmento, considerado conservador é eminentemente suicida, ainda porque vai contra o sentido do processo evolucionário que sempre buscou religações e cadeias de cooperação para garantir a subsistência dos seres existentes sobre a face da terra. Um segundo segmento, considerado reformista, tem consciência do déficit de Gaia, nossa “Casa Mãe”, a terra, mas confia ainda, que seus recursos são inesgotáveis e que há possibilidade de renovações de recursos de sobrevivência. Em razão da lógica dessa fatia de poderes, seus adeptos vão-se mantendo dentro do paradigma vigente, consumista e predador. As florestas continuam sendo destruídas, e a atmosfera, acham eles, que suportará, ainda, por muitos milênios. E o pior, alegam que nossa passagem por este mundo dura pouco e, que mais adiante, os outros, munidos no desenvolvimento da tecnologia, resolverão o problema do ecocídio, sem grandes sacrifícios, e com o desenvolvimento da tecnologia, encontrarão soluções mais eficientes, procurando dar uma satisfação ao restante do mundo, propondo medidas paliativas e o tempo vai passando e os problemas vão-se agravando. Por fim, uma terceira posição, que o ambientalista Leonardo Boff 5 chama de “libertadora”, surge apresentando uma real alternativa, que segundo diversos especialistas, não se mostra utópica, mas parece ser salvadora. Basta lembrar que o nível de interdependência mundial é de tal gravidade que, “ou nos salvaremos todos ou todos pereceremos” 6. Diversas têm sido as advertências das Nações Unidas chamando a atenção dos povos para a necessidade da adoção da consciência de que “há uma terra somente” 7. “A preservação de um pequeno Planeta” 8. “Nosso futuro comum”9 ou mesmo a Declaração do Rio de Janeiro, segundo a qual: “Entendemos que a salvação do Planeta e de seus povos, de hoje e de amanhã, requer a elaboração de um novo projeto civilizatório”10 5
BOFF, Leonardo. Do Iceberg à Arca de Noé: O Nascimento de uma ética Planetária, Ed. Garamond, Rio de Janeiro, 2002, p.59.
6
-------- op. cit. p. 60.
7
Conferência das Nações Unidas, Estocolmo, Suécia, 5-15 de junho de 1972. Declaração sobre o Ambiente Humano
8
Conferência das Nações Unidas, Estocolmo, Suécia, 5-15 de junho de 1972. Declaração sobre o meio ambiente humano.
9
Relatório Comissão Brundland. Comissão Mundial sobre Ambiente e Desenvolvimento.
10 Conferencia das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, Rio de Janeiro, Brasil, 1992.
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Esse terceiro segmento leva a que as nações criem, com urgência, organismos globais que respondam por interesse globais. Necessário se faz de um novo pacto social mundial, no qual os sujeitos de direitos não sejam exclusivamente os seres humanos, mas todos aqueles que compõem a natureza, ou seja, os reinos animais, vegetais e minerais, todos eles devendo ser indispensáveis para a sobrevivência mútua. A esse terceiro movimento, o presente trabalho entende denominá-lo de verdadeira democracia ecológico-social-planetária, pois a sobrevivência dos seres da natureza não é resultado de um apenas estado de direito, mas de direitos. Nesse tipo de democracia, tanto são cidadãos os seres humanos como os demais representantes da natureza, em permanente interdependência com os humanos. Sua relação deve ser considerada um diálogo permanente da co-habitação. A partir do momento em que todos os seres da natureza iniciarem esse diálogo, o Planeta Gaia iniciará um novo calendário, o Calendário de um Novo Universo. Se alguém chamar esse terceiro segmento de “sonho impossível”, este trabalho, com certeza, terá uma resposta, no sentido de que, enquanto não se sonhar com o impossível, o possível jamais acontecerá. Todos os avanços das ciências modernas, no começo, foram “sonhos impossíveis” até que passaram a ser uma realidade.
Vitimização do Meio Ambiente Vitimização, vitimação, processo vitimógeno são termos que têm a mesma significação no estudo da Vitimologia, sinônimos de uma mesma conduta, que se podem traduzir como processo de vitimar ou de tornar alguém vítima. O Processo de vitimização nem sempre é um simples atuar de um agente contra uma vítima ou contra um paciente, como se as partes envolvidas no complexo vitimal estivessem sempre em lados opostos. Em vitimologia tem-se encontrado considerável dificuldade sobre esse assunto, notadamente, porque se encontra intimamente conectado com outro lado, ou seja, o criminógeno. Isso se explica, tendo em vista que o ato vitimógeno fosse independente do criminógeno, como ensina o Professor Heitor Piedade Júnior11, quando leciona que todo o estudo da Vitimologia e do processo vitimógeno 11 PIEDADE JÚNIOR, Heitor. Vitimologia: Evolução no Tempo e no Espaço. Maanaim, Rio de Janeiro, 2007. P.94.
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partiria de uma oposição entre as partes envolvidas, mas esse processo parte, por vezes, da tendência da vítima que vem assumindo lentamente uma pletora de formas, desde os primeiros passos colhidos pela experiência dos estudiosos. Quando Heber Vargas12 pensou num título para seu trabalho, que se chamaria “Fatores Causais na Criminogênese e na Vitimogênese: uma visão psicossocial”13 o falecido autor parecia demonstrar que a análise vitimológica costuma apresentar como resultado duas constatações fundamentais. Em primeiro plano, sabe-se que a visão vitimológica representa um novo e verdadeiro despertar nos parâmetros criminológicos e jurídicos. Sobre um outro ângulo, tem-se que a concepção “criminoso-vítima” é de relevante e profunda complexidade, isso, por envolver voluntária ou involuntária adesão aos propósitos do vitimizador Toda essa modesta explanação, no presente trabalho, com certeza, tem-se aplicado tão somente no processo vitimizatório entre os seres humanos, pois o homem pode ser provocador e pode ser provocado. Nosso caso, quando se quer falar do processo de vitimização do meio ambiente, o enfoque é bem diferente. Há Vitimizador (o agente) e há vitimizado (o meio ambiente). Todavia não existe nesta hipótese, o vitimizador-vitimizado, pois o meio ambiente não pode ser considerado vitimizador. É usual, em alguns veículos de comunicação, quando se trata de alguma catástrofe, ouvir-se dizer a clássica e equivocada expressão: “É a natureza se vingando”. Vale esclarecer que essa expressão não passa de uma figura retórica, ou de uma força de expressão. A manifestação da natureza, aparentemente, contra o homem, ou contra outros seres animais, ou mesmo contra a fauna ou contra a flora, trata-se de mera consequência da agressão do homem contra a natureza. Como comentado anteriormente, o pensamento de José Geraldo da Silva, segundo o qual, “A vida do homem em sociedade abrange, além das relações interpessoais, a relação maior entre este e a natureza”14 e, esse mesmo mestre, continuando seu pensamento, afirma que: “A natureza foi, por vários estágios da humanidade primitiva, adorada e cultuada, como divindade. Forças e Fenômenos naturais, árvores, relva, animais, flores e tudo o mais que existe nesse macrocosmo, em algum momento, e algum lugar do passado quiçá do presente, já tiveram seus adoradores”. 12 VARGAS, Heber Soares, em sua obra que não chegou a ser publicada, devido à sua morte, mas trazida com frequência apud piedade Júnior, em sua citada obra. 13 Apud PIEDADE JÚNIOR, Heitor, op. Cit. 14 GERALDO DA SILVA, José. Er. AL. Leis Penais Especiais, 8ª Edição Milennium, 2005, p.43. Edilaine Regina da Silva Silveira | 17
A pilhagem brasileira, desde aproximadamente 1.500, época a que se atribuiu a chegada dos chamados “colonizadores”, começou, entre nós, a fase iconoclasta de nosso meio ambiente. Esses “colonizadores”, preocupados tão somente com o ganho fácil, iniciaram a depredação da natureza, processo que até hoje não se interrompeu, sempre à vista do poder público, quando não de sua conivência. E os “colonizadores”, de ontem ou de hoje, realizam, de norte a sul do país, o autêntico processo de vitimização da natureza, como se a natureza fosse bem deles ou de ninguém mais. São vítimas especiais da vitimização do homem pelo homem, do homem contra toda a natureza, ou seja, céu, atmosfera, terra, florestas, mar, rios, lagos, peixes, enfim, os seres que constituem a harmonia da vida e vida em abundância quantitativa e qualitativamente. Não é sem razão que um dos ardorosos ambientalistas brasileiros 15 assim se manifesta, como se estivesse entoando o De Profundis da natureza, vítima do massacre pelo próprio homem: “Não só os pobres e oprimidos gritam. Gritam as águas, gritam os animais, gritam as florestas, gritam os solos, enfim, grita a Terra, como superorganismo vivo chamado Gaia. Gritam, porque são sistematicamente agredidos”
Conceito de Vítima Em vitimologia, estuda-se que a palavra vítima vem do latim victima ae, devendo significar a pessoa, o animal ou mesmo, em sentido mais genérico, as coisas que se encontrassem intimamente ligadas ao homem, não na qualidade de coisa, mas pelo fato de serem indispensáveis ao ser humano. Pensou-se, no passado não muito distante, que somente o homem vitimizado por outro homem pudesse ser considerado vítima. Mesmo que para efeito de argumentação, esse raciocínio pudesse ser considerado correto, o meio ambiente encontra-se, sem dúvida, profunda e essencialmente vinculado ao ser humano, de tal modo que, como o ser humano não sobrevive sem o meio ambiente, a destruição do meio ambiente constitui, sem sombra de dúvida, um processo de vitimização. Nesse mesmo diapasão da ciência que estuda a vítima, em todos os seus aspectos, ainda que, em sentido estrito, têm-se, como exemplificação, em nossos lexicógrafos brasileiros, conceituações de vítima. 15 BOFF, Leonardo. Do iceberg à Arca de Noé: O nascimento de uma arca planetária. Garamond, Rio de Janeiro, 2ª.Ed.2002, contra capa.
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