O Homem, a Mulher e o Tempo vida que foi, vida que fica
Antonia Krapp
O Homem, a Mulher e o Tempo vida que foi, vida que fica
Copyright © Antônia Krapp Tavares, 2008 antoniak@uninet.com.br Editor João Baptista Pinto Capa Luiz Henrique Sales Digitação Mariane Christine Boldori Editoração Eletrônica Silvana Quirino Revisão Rita Luppi Ilustração Luisa Tavares Cip-Brasil. Catalogação na Fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. K91h Krapp, Antonia, 1935O homem, a mulher e o tempo : vida que foi, vida que fica / Antonia Krapp. - Rio de Janeiro : Letra Capital, 2008. ISBN 978-85-7785-022-8 1. Krapp, Antonia, 1935-. 2. Viuvez. I. Título. 08-2912.
14.07.07
CDD: 869.98 CDU: 821.134.3(81)-8
16.07.08
Letra Capital Editora Telefone (21) 2224-7071 / 2215-3781 www.letracapital.com.br
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Dedicatória A cada ser humano que viveu um luto. A cada ser humano que superou e encontrou luz para continuar sua trajetória que é única e preciosa! Mesmo regando com lágrimas as nossas sementes de ternura e gratidão vão nascer e enfeitar os nossos caminhos.
Agradecimentos Aos meus filhos, noras e aos meus netos, incentivando sem interferir. O afeto da neta Luisa fazendo os desenhos para ilustrar. A curiosidade dos netos menores observando como se faz um livro. Uma alegria vê-los. Ao filho Necesio, no momento longe do Brasil, mas tão próximo com o milagre do computador. Suas mensagens diárias amenizando a saudade. Toda a minha amada família. Às amigas e amigos que aquecem o meu coração com presença e palavras. Gratidão por colocar três nomes de pessoas das minhas queridas cidades: Therezinha Wolff - Porto União, SC e União da Vitória, PR Regina Casillo - Curitiba, PR Francisco Gregório Filho - Rio de Janeiro, RJ
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No silêncio do luto a nova identidade se revela dominante, impondo a grande experiência humana da perda de seu par. Viúva. Viúvo. Escrever sobre viuvez numa abordagem lúcida é tarefa difícil. Na literatura encontramos textos poéticos, romances, pesquisas e estatísticas frias, deboches e ironias. Procurei fazer um texto partindo da realidade que vivi. Com sentimento e emoção ouvi histórias de sentimentos e emoções. Avaliei e pesquisei. Escutei formal e informalmente. A viuvez é uma continuidade da vida. Um começo de sobrevivência a partir de um fato determinante, concreto, irreversível: a morte. A caminhada do par acabou! A viuvez desorganiza a estabilidade terminando a parceria para sempre. Há perdas e lutos na história de cada pessoa. Feridas abertas para sempre quando se perde um filho. Porém a viuvez é um relato específico, é um luto específico. A identidade muda. É oficial! Uma realidade que tem que ser aceita. Um tecido áspero na pele. Só o que permanece é lembrança e saudade. As vezes é até preciso silenciar essas lembranças e saudades para não pesar em quem está por perto. É difícil suportar o luto dos outros. Somos marcados pela finitude e isso nos incomoda. Com a memória de quem amamos podemos recuperar a alegria e a força de viver. Há um amor que não exige recompensa. São elos de uma corrente que liga o esquecimento e as lembranças. É o amor entre os vivos e os que morreram! É de amor que precisamos. Assim na terra como no céu. Antônia Krapp Outono, 2008
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Sumário
Apresentação................................................................11 Quando te conheci......................................................13 Eu fiquei.......................................................................14 Viuvez...........................................................................17 A viúva e o viúvo.........................................................23 Luto...............................................................................31 A roda de Ezequiel......................................................36 Diário de um viúvo.....................................................38 Diário de uma viúva....................................................41 Teresa............................................................................46 Ser feliz na viuvez. Pode?...........................................46 Família...........................................................................51 O rio..............................................................................54 Estranho e perigoso....................................................56 O cordeiro....................................................................58 Felícia.............................................................................62 Esperança.....................................................................67 Irena Sendler................................................................70 Dra. Elizabeth e a gratidão da viúva.........................75 Uma criança..................................................................80 A casa das quatro viúvas............................................83 Abandono.....................................................................88
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O sentido da vida........................................................93 A proteção da família..................................................95 Como saber................................................................100 Semente de mostarda................................................104 O luto numa carta.....................................................106 O segredo...................................................................108 Convite à vida do tempo..........................................111 Tempo.........................................................................114 Minha oração.............................................................116 Receitas.......................................................................117
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Apresentação
Contar histórias é vocação de Antonia Krapp. Como uma rendeira experiente domina a arte de tecer o fio, Antonia tece histórias com fio sutil e mágico, entrelaçando linhas e lembranças. Contando histórias resgata o conhecimento milenar de transmitir valores através de um sensível enredo narrativo que mescla vida e fantasia. A professora, a orientadora educacional,a mãe, a avó enfim a mulher inteligente e multifacetada que, para alegria de seus amigos e leitores chega ao terceiro livro. Pães, histórias e afetos foi o primeiro. Pão é alimento vivo: depois de moldado cresce.Com mãos diligentes fez o fermento da criatividade e sensibilidade transbordar. Surgiu o segundo livro: Dom de Amar – Histórias do Coração. Observadora arguta, permite a seus leitores que partilhem vivências familiares, histórias que são suas mas que poderiam ser de muitas pessoas. A escritora comunicadora nata que é Antonia lança agora mais este livro: O Homem, a Mulher, o Tempo – Vida que foi, vida que fica. Perguntaram-me: é triste? Respondi: é real, é vida, é reflexão, é memória. Mas como diz a própria autora “com a memória de quem amamos podemos recuperar a alegria e a força de viver”. A partir da realidade a trama envolvente do livro traz mais amor que tristeza, mais aconchego que solidão, e, principalmente, muita fé na vida, na humanidade, em Deus. Obrigada Antonia por seus livros, por suas histórias e “estórias”, por seus exemplos e pesquisas. Citando a poeta O Homem, a Mulher e o Tempo
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paranaense Helena Kolody sinto que suas palavras em seus livros, seus ensinamentos e exemplos, sua narrativa perfeita de mulher culta não mais pertencem a você. São como os Pássaros Libertos da poesia: “Palavras são pássaros Voaram! Não nos pertencem mais!” O HOMEM, A MULHER, E O TEMPO vai voar muito e levar de forma lúcida e amável sentimentos positivos a um número extraordinário de pessoas. Regina Casillo
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Quando te conheci
Reverenciando a memória de Necesio José Meirelles Tavares
No começo tu estavas ali. Calmo e tranqüilo, quase quieto. Vieste devagar, cuidadosamente! Eu não sabia o que querias. E nem sabia que irias comigo. Nas tuas mãos segurastes as minhas. Inteira eu me vi nos teus olhos! Na tua voz escutei as minhas palavras. Até que o teu passado, presente e futuro uniram-se comigo. Caminhando juntos, atravessamos a vida! E ganhamos o tempo do amor!
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Eu fiquei
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or que você foi embora e eu fiquei? Não sei como explicar e entender que tolamente sempre achei que isso não aconteceria comigo. Fui muito tola mesmo. Você era tão forte. Parecia definitivo. Tudo passava e você vencia. Tropeçava e levantava. Falava. Ria e trabalhava. Sorrateiramente veio a limitação da doença. Misteriosa como que desmoronando o alicerce edificado sobre bases sólidas, atingiu a sua coluna minando sua estrutura. Seus movimentos e sua agilidade foram diminuindo. Até que tudo terminou, e a sua vida foi entregue na passagem para o silêncio e para o desconhecido outro lado. Um grande mistério porque no espaço onde estamos nada podemos saber. É só pura intuição, ou pura imaginação. E o tempo? Só o tempo é concreto. Quantos dias? Quantos anos? Só o tempo é real. Como carregar o tempo com a ausência? Ainda ouço a sua voz chamando por mim. Se eu estava sempre tão perto, por que me chamava? E você ria e não respondia. Juntos, respirávamos. O meu universo ficou hostil sem você. É como aquela história em que na busca do seu amado que desapareceu na guerra, a princesa atravessa a floresta. As árvores são cheias de braços que se transformam em espinheiros que ferem e
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machucam e assustam. E ela não consegue encontrar o pó mágico porque o seu tesouro foi roubado. Então chora, chora muito. Suas lágrimas são tantas que um riacho vai aparecendo aos seus pés. O riacho vai ficando cada vez maior, e é transformado em rio de águas claras e azuis. Onde ela caminha se livrando dos espinhos e de todos os monstros da floresta. Mas as águas vão ficando cada vez mais profundas e perigosas. E ela não consegue mais andar. Aparece então o barqueiro oferecendo transporte para salvá-la. Mas exige pagamento. Ele quer o medalhão que ela tem no pescoço com a imagem do seu amado. Ela se recusa a entregar. Segurando com tanta força que a imagem se fixa na sua pele, e o rosto do amado aparece ao lado do seu coração como um selo calcado em fogo. E o barqueiro, assustado, e apavorado, a conduz para um lugar seguro. Então ela encontra um outro reino, outros tesouros, e outras histórias. Mas nenhuma história é instigante para ela, porque a história dela é única e verdadeira. E no seu coração ficou para sempre selado o rosto do seu amado. Ela deseja, tão somente, viver essa memória! Não importa se meu mundo ficou hostil com a sua ausência. Não importa se ninguém mais me compreende. Não importa se não consigo consertar o que está errado. Não me importo se às vezes fico tão cansada que jogo o meu corpo em qualquer lugar e não quero fazer nada. Não me importo se estou atrasada. Não me importo se esqueci de passar batom. Não me importo se nada mais combina... a saia e a blusa, a bolsa e o sapato. Não me importo se a mesa não foi posta, o quintal não foi varrido, a cama não foi feita. As janelas estão fechadas e a casa está escura. Não me importo se o galho da árvore rachou e o vento quebrou o telhado, o jardim está sem f lores, e os pássaros não cantam mais. Se brilha o sol, ou a chuva cai. A noite vem e o dia começa, não me importo. Os relógios estão parados, a música das horas está calada, e não me O Homem, a Mulher e o Tempo
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importo com isso. A água acabou e o fogo apagou. Às vezes procuro por mim e não sei onde estou. Como existir onde você não está? Unida na pedra, a hera tem sua força assegurada e é assim que vive. Fico confusa por um momento procurando entender o que está perdido. Sei quem sou, sei o meu lugar, o meu relato, mas nada sei de nossa distância. Unidos para sempre, e separados para sempre. O silêncio não explica. Não há resposta. Só o que sei é a falta que você me faz. Procuro as pontes para atravessar os abismos e quando a coragem é pouca ou nenhuma, visualizo a sua herança nos sinais de amor e bondade em cada filho. Com gratidão aceito como se fossem suas as mãos que me oferecem. E a segurança dessas mãos dá sentido para continuar vivendo. Como são firmes e generosas! Mesmo que o tempo da ausência não seja fixo, mesmo que a distância seja grande, mesmo que o silêncio cante as horas uma após outra, a alegria da vida vem no amor que permanece. É a grande dádiva que contém a força e a esperança do existir. Tudo tem sentido até mesmo a morte. Sentido de plenitude e júbilo pela vida que recebemos como nosso maior bem e nosso maior dom! De todo meu ser, alma e coração, agradeço todos os meus dias e todo o meu tempo! As alegrias dos começos e as bênçãos de paz e serenidade na finitude.
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Viuvez
“Ao neurologista Oliver Sacks, perguntaram o que, do seu ponto de vista, era um homem normal. E ele respondeu: um homem normal talvez seja aquele que é capaz de contar sua própria história. Ele sabe de onde vem (tem uma origem, um passado, uma memória em ordem) e acredita saber onde vai (ele tem projetos e a morte no final). Está portanto situado no movimento de um relato, ele é uma história e pode dizê-la para si mesmo.” Jean Claude Carrere
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iuvez existe porque a morte existe. É a palavra mais assustadora de falar e também de escrever. Por quê? Temos medo. Não queremos. Não aceitamos. Impossível deixar de pensar. Faz parte de nós. É a certeza que nos é dada sem recuo, antecipação ou data. Não escolhemos. Acontece quando não sabemos e não esperamos. Só sabemos que acontece e não desejamos. Comigo e com os outros. Com aqueles que amamos! Parentes, amigos e desconhecidos. É a nossa verdade. Refletir sobre a morte ajuda a exorcizar o medo. É difícil conversar sobre a morte com quem amamos, e está sabendo do seu estado de pouco tempo. É difícil para os dois. Mas é preciso para criar um clima de cumplicidade, e assim enriquecer esse tempo que resta. É necessário um desnudamento sem falsidade. A realidade conforta e leva a assumir uma postura de despojamento para reconciliar o que se pensa e o que se quer. Nesse despojamento é que vamos perceber o quanto a pessoa precisa de ajuda. O Homem, a Mulher e o Tempo
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Com ternura, paciência e afeto, descobrimos que podemos ajudar. Meu marido não tinha medo de morrer. Mas queria viver. São sentimentos diferentes. Lutou pela vida. Aceitou o tratamento. As cirurgias dolorosas. Cada momento, cada dia, cada noite era um acréscimo que lhe agigantava como ser humano. Foi até o limite de sua força vencendo a doença e a dor. E perdendo! Porque a morte tem a sua hora. Hora de soberana dominadora! Religioso e cheio de fé, ele percebeu essa hora: “Agora peço para Deus me levar”. Estava preparado para partir com sua bagagem interior arrumada, e eu compreendi que aceitar a morte não é ser vencido, nem destruído. “Abre-me, Pai eterno, teu peito, misterioso lugar, dormirei ali, pois venho combalido de tanto lutar.” Miguel de Unamuno
O poeta espanhol Unamuno, também escreveu: “Numa palavra com razão, sem razão ou contra ela não tem nenhuma vontade de morrer e quando finalmente eu acabar morrendo, se é que vou morrer totalmente, não sou eu que terei morrido, isto é, não me terei deixado morrer e sim me terá matado o destino humano enquanto eu não perder totalmente a cabeça ou, melhor ainda que a cabeça, o coração, não peço demissão da vida, outro que me demita.”
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A morte nos ajuda a viver. A viver melhor. Partilhar nossos bens, as nossas bênçãos, alegrias e tristezas e os nossos dons. Sabendo e refletindo sobre a morte com a luz da fé no amor, podemos enfrentar nossa finitude, com o coração brando, sereno e compatível com o universo que nos cerca. Sei que a palavra morte dá arrepios. A nossa cultura preza valores materiais. Não gostamos de abordar o que nos incomoda e nos remete para a realidade. A nossa fixação é na imortalidade. O grande desejo que acompanha nossa história humana. Sabemos que tudo nasce, cresce e fenece. Viver bem tudo isso é o nosso grande desafio. Cada etapa é um ciclo. A morte pode antecipar o ciclo. É o que acontece quando as guerras, as catástrofes, as doenças nos abalam. Interrompendo ciclos, as desgraças nos mostram como somos vulneráveis! A presença da morte passa a ser vista assustadoramente permanente. É um assunto diário. E comove a todos. Até as crianças. Fiquei muito tocada quando meu neto de cinco anos pediu se podia modificar a oração da Ave Maria. Tirar a última frase: “Agora e na hora de nossa morte”. Ele não gostava da palavra morte. Perguntei o que ele gostaria de colocar. E ele respondeu: “agora e sempre”, e ainda justificou que “sempre tem tudo, até morte, só que a gente não fala”. Algum tempo depois, era época de Natal, e ele estava desenhando. Perguntou se podia fazer um desenho para o avô que havia morrido. Disse que sim, pois era um gesto muito bonito lembrar do avô que ele tanto amava. Só que o desenho que ele queria fazer era a minha mão. Então coloquei a mão e ele desenhou. E eu perguntei: “Por que minha mão?” “Porque era com a sua mão que cuidava do vovô. Dava injeção. Fazia carinho. Por isso”. O coração dessa criança elaborou o luto do seu avô. Suavemente percebeu que o amor está acima de tudo, até da morte. Esse desenho não mais seria entregue ao avô, como tantos O Homem, a Mulher e o Tempo
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outros que ele sempre fazia. Foi gravado junto do nome do avô na sua lápide. O conteúdo ficou para sempre. A lembrança do que se fazia dos cuidados, do amor que transbordava em cada gesto, é o suficiente para levar para a vida as lições intensas que só momentos fortes podem oferecer. É o aprendizado que nos vem do sofrimento. Depende de nós mesmos aproveitarmos ou não. É difícil. Mas não é impossível. Aceitar a morte nos faz fortes diante do enfrentamento de toda a situação. Não é porque não tem outro jeito mesmo, é porque não aceitando nos tornamos fracos, consumimos nosso precioso tempo. A grande revolta perturba e desgasta. A serenidade que se adquire na aceitação acrescenta a paz que tanto desejamos. Quando eu era criança vi uma revista que tinha no seu interior a fotografia de uma família sentada à mesa de refeição. Só que a figura do pai era dobrável. Podia ser vista ou não. Ele havia morrido. Havia o antes e o depois. A presença e a ausência. Tudo continuava a mesma coisa, mesa, cadeira, pessoas, a comida. Só o lugar daquele pai estava vazio. A mudança era muito grande. O vazio, maior que toda a cena. Mas a cena continuava apesar do vazio, assim é a vida. Prosseguir com mudanças, perdas e vazios, apreendendo que cada minuto deve ser aproveitado para melhorar o que está por perto ou longe. Se a mesquinharia detém a caminhada, a intriga, a murmuração, o narcisismo, se espalhamos perdas para os outros, vamos ficar perdidos no caminho. Se nosso valor é pequeno é porque o investimento foi pequeno. As injustiças existem e são gritantes, mas, a generosidade aparece sinalizando o tamanho do coração de cada um. Sufocada pelas lágrimas do perdão que nos foi negado, ou que não foi recebido, podemos exercitar a experiência de assumir os danos provocados a nós mesmos e ao nosso redor. Com lucidez e sem rancor abrir espaços para acolher
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os outros. Limpar os pruridos e desatar as resistências. Antes de tudo perdoar a si mesmo, e depois os demais. Perdoar um pouco, perdoar o todo. Perdoar até que não faça de novo. Ou perdoar de vez! A paz vem com o perdão, o esquecimento da mágoa, não. A memória é nossa para sempre. A repetição da queixa alimenta o ressentimento e dificulta a cicatrização das feridas. Falar é bom, alivia, mas repetir o mesmo assunto não beneficia em nada, só aumenta a dor. O caminhar com mãos cheias de partilha, solidariedade, afeto e aceitação faz nossa realidade alcançar objetivos de alegria e felicidade. As despedidas não serão dolorosas, se o que ficou é fermentado com a alegria do amor que foi vivido. A grande viagem pode ser feita com a luz da esperança que ilumina a fé para caminhar na caridade e no amor. Assim fortalecidos, aceitamos a nossa mortalidade que está no caminho. Está bem ali à nossa espera e não podemos desviar. Não sabemos em qual momento, só de certeza que temos é que vamos nos deparar com ela. Não somos alertados, e nem queremos. Não há placas ou avisos. Apenas sabemos. Se nos arrumarmos será melhor. Estar preparado é o final feliz da história que podemos deixar. Você nunca poderá saber, ou avaliar os resultados do que ofereceu aos outros nessa vida. Sozinhos, nada somos, mas a partilha do que somos alarga nosso universo. Uma esteira de palavras e ações corre paralela com a nossa vida. Posso escutar o tempo que tenho para gastar. O que ainda posso? Eu sou resultado do que fui, mas também do que ainda serei. Mesmo que seja pouco o tempo! Evoluir nas escolhas feitas dando prioridade ao que importa realmente, resgatar os desejos, cumprir uma palavra empenhada, buscar ajuda, ouvir os relevos do silêncio, olhar para a eternidade, descobrindo e enxergando os sinais que estão na nossa frente. Sentir a gratidão da descoberta de sermos filhos de um Deus que vai nos acolher amorosamente! O Homem, a Mulher e o Tempo
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Abertos para a graça, receberemos as bênçãos! É o mistério de cada um. “Naquele tempo, disse Jesus: Não se perturbe o vosso coração. Tendes fé em Deus, tende fé em mim também. Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se assim não fosse, eu vos teria dito. Vou preparar um lugar para vós, e quando eu tiver ido preparar-vos um lugar, voltarei e vos levarei comigo, a fim de que onde eu estiver estejais também vós. E para onde eu vou, vós conheceis o caminho.” João, 14
O pai voltou do funeral. Por trás da janela, seu filho de sete anos, olhos arregalados, amuleto dourado pendurado no pescoço, mergulhado em pensamentos difíceis demais para sua idade. O pai pegou-o nos braços e o menino perguntou: “Onde está mamãe?”. “No céu”, respondeu o pai, apontando para o azul imenso. O menino ergueu os olhos e se quedou a contemplar o céu em silêncio. Sua mente confusa lançou um brado na noite: “Onde está o céu?”. Não ouviu resposta. E as estrelas pareciam lágrimas ardentes daquela escuridão taciturna. Tagore1
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Os textos de Rabindranath Tagore (1861-1941), poeta indiano, transcritos neste livro, foram retirados do site Wikipedia e do livro “Sobre a Morte e o Morrer” de Elisabeth Kübler-Ross. Ed. Martins Fontes, 1987
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A viúva e o viúvo
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lhando a realidade que nos cerca, encontramos viúvas e viúvos. Mais viúvas que viúvos! Por quê? Não tenho resposta. Ou será? O homem tem mais idade que a mulher ao se casar e por isso a chance de morrer antes. Ou então, o viúvo geralmente busca uma nova união. Se ele é charmoso, com situação estável, não é difícil encontrar outro par. Ele é mais ousado. A mulher é mais aberta às emoções de suas lembranças. O homem é mais aberto para novas emoções. Passando a elaboração da perda, ele recompõe sua vida. Às vezes até mais rápido do que se espera: 76% dos viúvos entre 65 e 70 anos, arranjam uma nova companheira. (IBGE ). Sendo estimulado para novas conquistas, ele até não se preocupa em selecionar uma nova escolha. É comum encontrá-lo ao lado de uma mulher de idade bem abaixo da sua, numa gritante amostra de interesse por seu status financeiro. A mulher viúva, também é vulnerável a esse tipo de escolha. Ela, porém, é mais seletiva! Mas, acontece, e depois de passada a euforia da novidade, observarmos o desastre completo de uma união baseada em interesses puramente materiais. O caminho da solidão é bastante penoso e se alguém encontra a benção de um novo
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par, deve festejar e prosseguir. Atravessar esse caminho em boa companhia é o melhor que pode acontecer a quem está só. Todos nós corremos riscos em qualquer decisão, mas os riscos, às vezes, são tão evidentes. Um pouco de critério e alerta pode contribuir para anular problemas e evitar decepções. A aposentadoria para o homem, como a viuvez, é uma mudança que o transtorna. Por mais que aspire à aposentadoria como um privilégio de descanso, é um momento de indagação e quase sempre de indignação. O que fiz? Já não posso mais? Sendo ele do tipo que fez da profissão a sua idolatria, e viveu no fanatismo do trabalho a sua glória e a sua paixão, seu grande legado agora é ter sido sacrificado. Amava o trabalho acima de tudo. É o que ouvimos sempre como um grande elogio. E o lazer? A distração? A amenidade de um dia sem compromisso? Estava sempre ocupado. Agenda lotada. Reuniões! Viagens exaustivas! Celular, laptop! E o tempo? Não tinha. Este homem é feito de que estofo? Nem parece humano. A aposentadoria abraça-o sem nenhuma sedução. É hora de parar. Recolher-se aos seus “aposentos”. Mesmo que tenha se preparado é um momento de indagação e reflexão. Aceitação de si mesmo para recuperar e hospedar nos seus aposentos internos, um novo ser que está saindo da roda e precisa se aquietar para conseguir se acomodar. Aposentadoria e aposentos são palavras que se igualam. No rastro da aposentadoria – que nem sempre é uma fase confortável, sendo mais difícil para o homem do que para a mulher – também encontramos a viuvez como um dado traumático e relevante. O homem aposentado e viúvo é condicionado a suportar maior fragilidade emocional. Culturalmente, a grande maioria masculina é envolvida e protegida com cuidados na casa dos pais e, com o casamento, recebe da esposa a continuidade de um tratamento que vai manter um status de afeto desejável e confortável. Na viuvez esse equilíbrio é rompido. Ficar
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sozinho ou encontrar uma nova companhia, ou ainda aceitar a tutela da família, que com medo de perder sua presença, limita e restringe sua liberdade. Isso acontece com freqüência, não só com o homem, mas também com a mulher. É preciso salientar também a parte financeira de um lado ou de outro. Avaliando o desgaste emocional, avaliamos também o objetivo prático de custos. Ninguém é feliz sem dinheiro. Um viúvo pobre ou uma viúva pobre, qual é o atrativo? Numa sociedade consumista é difícil encontrar, ou até desejar a beleza e a inocência de começos. A independência financeira é o grande fator de uma estabilidade emocional em todos os aspectos da vida, mas na viuvez é o grande determinante de equilíbrio. É preciso adequar a perda do padrão financeiro, mas também a qualidade de vida que se desfrutava. A experiência mostra que isso é verdadeiro, principalmente para a viúva. Administrar essa realidade nem sempre é fácil. Há um cerceamento de liberdade quando o nível financeiro se reduz. Viver com o essencialmente necessário é a opção que deve ser aceita. Na história da sociedade a viúva é focalizada como a perdedora. Sua figura é menor porque está só. A sua condição é reduzida. É aquela que precisa de proteção e amparo, por isso mesmo é a enfraquecida, seu poder é limitado pela ausência do companheiro. Seu estado é também sugerido como estado de castigo e desgraça (Isaias 74-8). O impacto financeiro só não é maior para aquela que está acostumada com certa austeridade em seus gastos, e sabe controlar e administrar o seu orçamento. O empobrecimento sinaliza acompanhando a perda. A viúva é também vulnerável a ações “bem intencionadas” de ajudas em seus problemas. Nem sempre as intenções são louváveis. É num momento de fragilidade que existe alguém espreitando para “na veste de cordeiro, mostrar as garras e boca de um lobo”. É preciso ter cautela. Os golpes são visíveis. Mostruários de cortesias e gentilezas. O Homem, a Mulher e o Tempo
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Mas a viuvez também pode ser um tempo em que se pode alargar a visão do mundo que nos cerca, disponibilizando dons e atuando cada dia numa posição de alerta e gratidão por tudo o que nos pertence: a vida e o nosso tempo. Já não vivemos mais tempos de preconceito em relação à viuvez. Na Igreja antiga havia um espaço muito especial reservado às viúvas na sua liturgia. Era uma cerimônia de Consagração. Uma cerimônia ritualística em que a viúva era acolhida e consagrada como membro de uma congregação. Recebia apoio, orientação, ajuda, era respeitada porque tinha um lugar, um grupo. Era muito bom porque dava um sentido de pertencimento. Era aceita no seu novo estado, na sua nova identidade. Em alguns textos bíblicos, o papel da viúva é extremamente relevante. Na Igreja atual, ela é bem vinda em todas as atividades, em todas as pastorais, nos serviços em que possa dar uma contribuição da sua presença. Ela tem a Igreja como sua protetora. Lembram da parábola da viúva? Cristo exaltou a esmola da viúva! O imenso valor daquele óbolo ressoa até nós como um prêmio para quem acha que tem pouco a oferecer. No Antigo Testamento, as viúvas têm histórias de resgate e libertação. Mas é com Cristo que encontramos a ternura e a bondade diretamente tocando, curando e valorizando a viúva. É no enterro do filho da viúva que Jesus se comove dizendo: “não chore”, e Ele ressuscita o menino. Ele se comovia com as nossas lágrimas, e mostrava a sua compaixão. A Igreja é acolhedora e proterora com as viúvas e com os viúvos também. Recentemente fui convidada a participar do Encontro de Pais com Cristo do Colégio Santo Inácio, onde nossos filhos estudaram. É uma adaptação do Encontro de Casais. Meu marido e eu fizemos o 1º. Encontro há 30 anos e agora seria o 51º. E.P.C. No primeiro momento pensei o que uma viúva iria fazer lá. Eu que resisto dizer que sou viúva.
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A primeira vez que escrevi o estado civil quando fui renovar o passaporte no Consulado alemão, quase não comsegui. E agora no 51º Encontro eu teria que me apresentar viúva para muita gente. Pensei de resistir e não ser apresentada. Não foi possível. Eu já estava lá e então falei, com voz calma e tranquila: viúva de Necesio José Meirelles Tavares. Um grande peso saiu do meu coração. Libertei-me. Eu mesma havia criado aquele peso. Mas foi dentro da minha Igreja que eu consegui encontrar espaço para esvasiar o conteúdo de uma negação. As mulheres ganharam uma nova relevância com o Cristianismo. Maria dignificou cada mulher com sua presença como mãe do filho de Deus, mas principalmente, por sua atuação feminina de ternura e amor no trajeto de nossa salvação. Nestes séculos de história, ela teceu silenciosamente um manto de novidades, que rompendo com o que estava gasto e triste, trouxe para todos a esperança da salvação. Provoca o primeiro grande sinal do filho de Deus mudando a água em vinho em uma festa de casamento. Nestes tempos de insignificâncias em que vivemos – caos, tropeços e mentiras – é um grande convite de mudança e reflexão que esse grande milagre nos mostra. São palavras de vida: “Fazer o que Ele mandar”. É só acolher! Somos alcançados por essa ressonância de amor e afeto. De Maria, sabemos que sua vida doméstica e familiar foi dentro da tradição judaica, uma vida no contexto histórico da época. José e o homem dos sonhos. São quatro os sonhos de José. O evangelho registra a presença do anjo no primeiro sonho (Mateus 1-24): “Ao despertar José do sono fez como lhe tinha mandado o anjo do Senhor e recebeu Maria em sua casa, sua esposa”. O segundo sonho de José foi: “Levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge para o Egito, e fica lá até que eu lhe avise” (Mateus 2-13). O terceiro sonho de S. José foi: “Levanta-te e toma o menino e sua mãe e volta para a terra O Homem, a Mulher e o Tempo
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de Israel” ( Mateus 2 -20). José temeu voltar para a Judéia, pois reinava o filho de Herodes: Arquelau. Quarto sonho: “Avisado novamente em sonhos, foi para a Galiléia e habitou uma cidade chamada Nazaré” (Mateus 2 -22). Cumprindo-se assim o que fora predito pelos profetas, que o Cristo seria chamado Nazareno. No tecido dos séculos vemos as mudanças acontecendo no mundo e constatamos que o núcleo familiar ainda é o lugar estabelecido para o ser humano encontrar a si mesmo e assumir o seu destino. Não importam as forças contrárias, é na família que está a base para toda a estrutura do homem e da mulher. Na alegria de uma festa ou nas lágrimas de um luto, é nesse chão que nossos pés encontrarão firmeza para continuar o caminho. A família é a construção de uma história e invocadora da esperança. Sabemos das dificuldades que um homem e uma mulher enfrentam para assegurar laços duradouros. Mas é agora que assistimos atônitos e impotentes à destruição de todos os laços. O compromisso e o dever, a responsabilidade e a honestidade, a sinceridade e a perseverança, onde estão? E nessa desconstrução a vítima é a criança. A criança é quem mais precisa de generosidade para construir-se como ser humano. A proteção e segurança para crescer acabam quando a família lhe nega os valores. Ela irá crescer mutilada. A criança é o elo fraco da corrente. A força desse elo vem do amor, afeto e ternura de onde está inserida! É o ser em desenvolvimento que mais precisa de generosidade para viver dignamente. No evangelho, o pai de Jesus tinha a profissão de carpinteiro. Temos dados extremamente relevantes sobre ele. Não há uma eloqüência de palavras, mas há o registro de sua ação. A importância de sua presença protetora conduzindo a história, vivendo as profecias. José é o homem do compromisso e da responsabilidade. O pai da família. O pai acolhedor. O
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pai silencioso. É assim que a humanidade recebeu de Deus criador, o Salvador: dentro de uma família. Nas citações do evangelho, deduz-se que ele morreu e Maria acompanhou a trajetória de Jesus. Ter uma família, pertencer a uma família é uma grande dádiva. Buscando dados concretos, encontrei homens e mulheres que mantiveram suas famílias depois da perda do seu par. Viúvas com filhos e viúvos também. Criando um ambiente amoroso, apoiados no afeto mútuo, conseguiram desenvolver uma nova história. Para o homem, a viuvez depois de uma união de quase toda a vida, é muito mais difícil do que para a mulher. Encontrei casos em que a perda da vontade de viver é tão intensa que, muito rapidamente, embora saudáveis, eles ficam doentes e não sobrevivem. Com as mulheres também acontece, mas não é tão relevante. A mulher por sua histórica trajetória feminina de lacerações está mais apta para enfrentar o sofrimento. Sua capacidade intuitiva conduz seu sentimento para uma reserva interior de vida. Dissimular o sofrimento é também especial da mulher: “Não quero que me vejam triste ou chorando”. Ninguém suporta a morbidez. Mas há também casos contrários: mostrar o luto, exibir o luto, vestir-se de preto, são sinais externos de uma devastação. Toda a família sofre junto. Durante um tempo faz parte da elaboração. Mas viver assim, dia após dia, ano após ano, 30 anos após a morte do marido é extremamente danoso. A família fica triste também. Ou procura ignorar, não tendo recursos para mudar. É o congelamento do luto, isso acontece sim! Vamos pensar que 30 anos não são 30 dias. A viuvez é um estado de vida tanto para mulheres quanto para os homens. É diferente para um e para outro. Só o que pode ser igualado é a importância do apoio e da solidariedade de quem compartilha a vivência de um ou de outro. Na fragilidade de ser um. O Homem, a Mulher e o Tempo
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E continuar vivendo. O apoio da família e dos amigos é o que existe de mais importante nessa fase. O carinho que envolve o ambiente ajuda a vencer os dias de luto. Viver o tempo do luto até que a elaboração da perda aconteça é fundamental para estruturar um tempo novo e como continuar vivendo nesse tempo. Ficar viúva ou viúvo é ter seu estado civil modificado, significando perda, luto e solidão. A humanidade, com uma enorme bagagem de sofrimento, carrega consigo a desolação e o desamparo da viuvez. Nos horizontes de todas as raças que habitam a terra, as lágrimas se misturam traduzindo as perdas. É o panorama que vi diante de mim quando fiquei viúva. Não significava só uma dor pessoal, mas universal. Dentro do meu ser, uma identificação com todos que choram sua viuvez. Como irmãos, o estranho e diferente carrega traços de igualdade que nos faz parecidos. É o grande paradoxo. Somos mais iguais na dor do que na alegria. A dor nos faz terrivelmente parecidos e humanos. Por que as viúvas americanas, das Torres Gêmeas, decidiram ser solidárias com as viúvas justamente de onde vieram os autores da sua desgraça? A resposta só pode estar dentro do coração. “Afastando dissabores Somando forças interiores construindo a busca de vida nova. Liberta de estagnante cova Armazena forças Em pensamentos, palavras e obras Em vida útil.” Brenildo M. Tavares
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