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Benedita M aria Vieira
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Carvalho
Benedita Maria Vieira de Carvalho
O Olhar Desconcertante de Josimar
Copyright© Benedita Maria Vieira de Carvalho, 2014 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem a autorização prévia e por escrito do(s) autor(es).
Editor João Baptista Pinto Capa/Diagramação Francisco Macedo Revisão Da Autora CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ C321o Carvalho, Benedita Maria Vieira de, 1947O olhar desconcertante de Josimar [recurso eletrônico] / Benedita Maria Vieira de Carvalho. – 1ª ed. – Rio de Janeiro : Letra Capital, 2014. Recurso digital Formato: ePDF Requisitos do sistema: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: World Wide Web Sumário ISBN: 9788577852833 (recurso eletrônico) 1. Ficção brasileira. 2. Livros eletrônicos. I. Título. 14-13754
CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3
Letra Capital Editora Telefax: (21) 2224-7071 / 2215-3781 vendas@letracapital.com.br
Agradecimentos:
Adriano W. de Paula Silva, advogado criminalista, pelas orientações jurídicas. Vera Proba, administradora pública, pelas orientações sobre procedimentos administrativos. Marilina Barros, pelas orientações sobre rituias do Candomblé.
Sumário
Capítulo I
— 6
Capítulo II
— 25
Capítulo III
— 34
Capítulo IV
— 48
Capítulo V
— 57
Capítulo VI
— 64
Capítulo VII
— 76
Capítulo VIII
— 85
Capítulo IX
— 99
Capítulo X
— 104
Capítulo XI
— 119
Capítulo XII
— 130
Capítulo I
N
egro, pobre e aleijado. Só faltava ser homossexual para atrair todas as formas de discriminação. O aleijão foi provocado por uma entrada maldosa numa disputa de bola durante uma pelada, que lhe rebentou um tendão do pé, deixando-lhe um jeito torto de pisar. Além de tudo era ligeiramente gordo, com uma barriguinha já se insinuando. Tudo isso poderia lhe ser totalmente desfavorável, numa sociedade preconceituosa, marcada por falsos valores e padrões europeus de beleza, mas, o que ocorria era exatamente o contrário. Para contrabalançar essas características mal aceitas, ele exibia um porte alto, ombros largos e dentes branquíssimos e perfeitos num sorriso encantador, que lhe formava no rosto, de um marrom uniforme e liso, várias covinhas extremamente charmosas. E mais: o seu olhar, que se fixava fundo no interlocutor, tinha uma força penetrante, quase hipnótica. Suas mãos eram macias e sua voz suave e quente. Inteligência brilhante, raciocínio rápido. É claro que muitas vezes ele foi vítima de preconceito. Mas isso ele tirava de letra. Só um pouco de conversa e ele dominava o ofensor com seu olhar, suas palavras e seu raciocínio. Muitos ele deixou envergonhados. Sua melhor “performance” era com as mulheres. Essas, ele atraía com o seu sorriso, combinado com o olhar, as palavras quase sussurradas e o toque macio e morno de suas mãos. Muitas vezes 6
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foram elas que tomaram a iniciativa, que ele sempre foi um pouco tímido. Nesses casos, as de classe acima da sua. Ele não as rejeitava, sempre foi generoso e o amor não deve ser negado, pensava, principalmente a quem tanto dele carece. O seu maior problema era a inveja dos que o cercavam. Por isso ele foi parar na cadeia, por uma armação que lhe prepararam. Ele caminhava calmamente depois de sair do Hospital Geral de Bonsucesso, onde trabalhava, dirigindo-se para o ponto de ônibus que o levaria ao Catete. Ele havia combinado assistir ao jogo com alguns colegas, no apartamento de Renildo. Algumas garotas também foram convidadas. Na ânsia de chegar logo, ele deixou para trocar de roupa na casa do amigo, pois queria colocar uma roupa legal para impressionar as gatinhas. Por isso ele ainda estava com o uniforme de técnico de enfermagem, quando foi abordado violentamente pelos policiais, já empunhando os fuzis ao sair da viatura, que freou bruscamente, cantando pneus: — Parado, parado, mãos pra cima! Em seguida, foi algemado e empurrado até à parede. Enquanto um dos meganhas fazia a revista em todo o seu corpo, o outro pegou a sua mochila, abriu-a e exibiu triunfante o que procurava: — Olha lá, o bagulho tá aqui. — O que é isso? Isso não é meu! — retrucou aflito Josimar. — Ah! Tu não sabe o que é isso, vagabundo? Tu vai explicar pra delegada lá na DP — respondeu o meganha, empurrando-o bruscamente até à viatura. A DP era bem perto dali, mas o caminho pareceu muito longo. “Quem poderia ter colocado aquele pacote de droga dentro da minha mochila?”, pensava ele, enquanto tentava refazer mentalmente toda sua trajetória durante o dia, para descobrir quando e onde colocaram aquilo ali. A sua cabeça estava atordoada. Procurou respirar devagar, suavemente, para recobrar a serenidade, que lhe devolveria o raciocínio lógico. 7
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Chegando à delegacia, foi levado à delegada de plantão. Era uma jovem de uns trinta anos, bem vestida, cabelos louros naturais e bem cuidados, unhas pintadas, anéis nos dedos, porte de autoridade. Era razoavelmente bonita. Tinha um ar inteligente e uns olhos grandes e expressivos, de um verde claro, e cílios escurecidos com rímel. O policial entregou-lhe o pacote encontrado na mochila de Josimar: — Taí, doutora, a denúncia tava certa. Encontramos o bagulho na mochila dele. Ela mandou que abrissem o pacote e logo apareceram três sacolés com o pozinho característico. O policial abriu uma das embalagens, colocou sobre o pó uma gotinha do líquido de um frasco e logo confirmou: — É cocaína mesmo, doutora. Não é das boas, mas é coca. Ela mandou que o sentassem na cadeira em frente à sua mesa, olhou atenta para o seu documento de identidade e começou a interpelação: — Então, Senhor Josimar Ferreira dos Anjos, como me explica esse pacote de cocaína dentro da sua mochila? Era pra vender aonde e pra quem? Ou você é usuário? Não vai me dizer que ia consumir tudo aquilo? Pra quem você está vendendo? Eram muitas perguntas seguidas sem resposta, porque Josimar ficou em silêncio, olhando para a delegada serenamente, porém muito sério. Ela então começou a se exasperar: — Não vai dizer nada? Não quer colaborar com a polícia? Vai ser pior pra você. É melhor facilitar as coisas... — Ele então começou a falar: — Doutora, eu não sei como essa droga foi parar em minha mochila. Eu não uso drogas, nem vendo. Sou contra o uso de drogas. Mas isso não vem ao caso o que eu penso. O que importa é que isso certamente foi colocado aí para me prejudicar. Se houve uma denúncia, certamente foi o denunciante que colocou isso na minha mochila. Eu vivo do meu trabalho. Como a senhora pode 8
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ver, eu trabalho na área da saúde. Não tive nem tempo de trocar o meu uniforme, porque estava com pressa de chegar à casa de meus amigos, pra ver o jogo do Flamengo com o Fluminense. — Então a droga era pra ser distribuída, ou melhor, vendida, para os amigos durante o jogo. Isso? — Não senhora. Nem eu, nem meus amigos fazemos uso de drogas. A maior parte do grupo é de profissionais da saúde, somos enfermeiros e técnicos de enfermagem e radiologia. As meninas são estudantes, comerciárias e uma delas trabalha em banco. Nesse momento, ela o interrompeu: — Todos dizem que são inocentes, que não sabem de nada, que não viram nada. E ele retrucou: — Mas a senhora também já deve ter visto muitos casos em que se colocam coisas nas bolsas e mochilas de pessoas que se quer incriminar, não é verdade? Ela titubeou. E ele continuou: — Porque a senhora não manda verificar as impressões digitais no pacote, pra ver quem colocou as mãos nele, além dos policiais? E porque não manda fazer um exame em mim, pra ver se sou usuário de drogas? E porque não vai investigar a minha rotina de vida, pra ver se há algum indício de que eu uso ou vendo drogas? A delegada ficou um momento calada. Depois falou incisiva: — Você vai ter que ficar detido, para investigação. Em seguida, mandou que ele fosse recolhido ao xadrez da delegacia. Ele não falou mais nada, apenas olhou longamente para a delegada, que parecia confusa e insegura. Josimar foi recolhido à cela, onde muitos marginais se amontoavam. Um cheiro horrível! Ficou sentado em um canto, pensando no que poderia acontecer com ele, como se defender. Ia precisar de um advogado. Mas, como procurar um? E com que dinheiro pagar? 9
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No dia seguinte foi levado à presença da delegada. Ela lhe falou: — Você quer avisar a algum parente? Ele respondeu: — Não tenho parentes aqui. Sou de Campos. Ela continuou: — Você vai precisar de um advogado. Conhece algum? — Não, senhora — respondeu — e também não tenho como pagar. Talvez a Defensoria Pública, o que a senhora acha? — Com a Defensoria as coisas andam mais devagar, mas funciona. Eu vou facilitar as coisas pra você. Vou fazer um contato. — Doutora, eu lhe agradeço, mas vou precisar ainda mais de sua ajuda, se investigar porque esse pacote foi colocado em minha mochila. Eu vou precisar de provas, de elementos para provar que fui vítima de uma armação. Ela olhou para ele desolada e falou que não foi possível encontrar digitais no pacote. Nem dele, nem de outras pessoas, além das do policial que o retirou da mochila. — E as demais investigações, vão ser feitas? — perguntou ansioso. Ela respondeu em voz quase inaudível: — Vamos ver! Passaram-se vários dias. Ele continuava naquele lugar infecto, com seus companheiros de cela, que às vezes mudavam, com a transferência ou soltura de uns ou a chegada de outros. Até que chegou um grupo de jovens com vários ferimentos. Foram presos por causa de uma briga de grandes proporções. Um tinha um corte enorme no braço, além de muitos arranhões. Outro tinha uma orelha quase dependurada, que ele apertava contra o rosto, como se quisesse impedir que caísse. Mais dois apresentavam escoriações generalizadas. Um deles gemia muito, pois sentia muita dor. Josimar aproximou-se do mais velho, que tinha o corte no braço e perguntou: 10
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— Porque não levaram vocês para um hospital? — Disseram que não tem vaga em hospital próximo e que a gente ia ter que aguentar. — “Vocês não gostam de brigar?” — continuou o rapaz, imitando a voz da delegada, que na ocasião era outra, não a Dra. Madalena, que o colocou ali no xadrez. — É, mas vocês não podem ficar sem curativo. Podem pegar uma baita infecção e ainda o seu amigo aí com a orelha ferida e você mesmo podem perder muito sangue. Isso é grave. Todos ficaram calados. Josimar então gritou para o carcereiro, chamando-o. O rapaz acudiu nervoso, pensando que estava ocorrendo algum conflito e gritou: — O que está acontecendo, seus “porras”? — Fala pra delegada que eu preciso falar com ela urgentemente — disse incisivo Josimar. — E você acha que a delegada tem tempo pra falar contigo, seu bosta? — Diz pra ela que eu sou técnico de enfermagem e se não for tomada uma providência urgente com esses feridos, ela vai ter problemas sérios com a Justiça. Diz que esses rapazes são de classe média e não vão deixar barato — falou quase ao ouvido do carcereiro. Este calou, pensou um pouco e saiu. Logo ele voltou e abriu a cela para Josimar falar com a delegada. — O que você quer falar comigo? Seja breve, porque hoje o dia não está fácil — disse a delegada. — E vai ficar mais difícil ainda se alguma coisa não for feita com aqueles feridos lá na cela. Alguns tem ferimentos graves e o ambiente é muito contaminado. Logo vão pegar uma infecção, além da perda de sangue. Tem dois casos ali que se não for feita alguma coisa, vai ficar mal pra senhora. — Ela pensou um pouco, depois disse: — Agora eu não tenho nem viatura pra levar esses marginais de classe média para um hospital. Eu... 11
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Josimar a interrompeu: — Mande comprar materiais que eu faço os curativos. É caso de urgência. — Está bem, vou mandar comprar. Escreve aqui o que for necessário, — disse, entregando para ele papel e caneta. E continuou: — Porque você está fazendo isso? É para me impressionar? — Não, — respondeu ele — é porque sou um profissional de saúde, sou técnico de enfermagem, é meu dever, acima de tudo o meu dever de profissional e de ser humano. Ela ficou calada. Ficou olhando pra ele, como se tivesse vendo um ET. Ele aproveitou e sorriu. Aquele sorriso, que lhe iluminava o rosto todo, que lhe formava aquelas covinhas ao lado do nariz e nas bochechas, que lhe mostrava os dentes tão alvos e certinhos. Ela amoleceu a pose e sorriu também. E gritou para o funcionário: — Heraldo, vai comprar esse material na farmácia, vai correndo! Os detentos brigões foram levados um a um para a salinha que a delegada reservara para Josimar fazer os curativos. Era uma sala de enfermagem improvisada, mas ficou legal. Tinha uma maca, que arranjaram não se sabe aonde, com lençol branco. Um armário com os medicamentos e instrumentos de enfermagem, duas cadeiras e, ao fundo, um sofá de três lugares, que parece já estava antes lá, mas em bom estado. O primeiro que ele atendeu foi o que tinha um corte grande no braço, porque este perdia muito sangue. Antes de começar, ele pediu que fizessem uma limpeza na sala, com lisofórmio. Ele pedira em sua lista, além de algodão, esparadrapos, gazes e água oxigenada, também luvas, agulhas e linhas cirúrgicas, anestésicos e seringas, e pomadas, analgésicos, dentre outros. Assim, ele pôde anestesiar o local, limpar o ferimento e depois fazer os pontos no corte. Em seguida aplicou uma pomada, cobriu o ferimento com gaze e 12
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fixou o curativo com esparadrapo. Antes de mandá-lo de volta à cela, deu-lhe um comprimido de analgésico. O rapaz olhou para ele comovido, tentou dizer alguma coisa, mas Josimar não deixou, fazendo aquele gesto de colocar o dedo sobre a boca, para mandar ficar calado. Deu-lhe uma batidinha nas costas, sorriu e mandou-o de volta. — Mande o seu companheiro que está com a orelha ferida. O carcereiro foi trazendo um a um. Depois de costurar a orelha do rapaz, os outros foram casos fáceis. Quando tudo terminou, a delegada Sandra Lemos chamou-o ao seu gabinete. — Estive olhando o seu processo. Você estava com um pacote com três sacolés de cocaína. Como foi isso? — Pois é, doutora. A senhora também deve ter visto as minhas declarações. Aquilo foi plantado em minha mochila para me incriminar. Eu estou aguardando aqui há oito dias e não vejo nada ser encaminhado para solucionar o meu caso. — Já foi pedido um defensor público para você, mas, você sabe, isso é lento. São poucos defensores para uma demanda enorme. Mas eu vou pedir uma preferência pra você. É um meio de te agradecer pelo que você fez hoje. Realmente, eu poderia me dar mal com esses feridos na cela. — Não teria sido mais prático levá-los todos para o hospital? — pergunta ele. — Seria o mais prático, se não estivessem os hospitais totalmente lotados, com os conflitos do último jogo do Brasileirão. Teve muita gente ferida. Deixar esses presos no hospital era o mesmo que pedir que fugissem. Pra mim era até melhor, mas eles desacataram a autoridade. Isso a gente não pode deixar barato, senão vira o caos. Esses filhinhos de papai se acham acima da lei. — Ele fez gesto de se levantar, mas ela fez que não viu. Ele se sentou de novo. Ela então observou: — Na sua mochila tinha livros de pré-vestibular. Você pretendia fazer qual faculdade? 13
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— Pretendia, não, doutora. Pretendo fazer medicina. Eu vou provar a minha inocência e vou fazer o meu vestibular, vou passar de primeira e vou cursar minha faculdade. — Mas você sabe que o curso de medicina é muito difícil, caro e exige tempo integral. Como você vai fazer? — Bem, meu plano é fazer uma universidade pública e pedir auxílio público para as despesas universitárias de livros e passagens etc. E também vou fazer atendimentos de enfermagem como autônomo, atendendo idosos ou pacientes que precisam de atenção noturna. — Mas vai ficar muito puxado. Como você pensa aguentar? — Doutora, eu estou acostumado a dar plantão, a trabalhar horas seguidas sem descanso. Tudo é válido para se alcançar um ideal. — Aquela droga não era pra ajudar nessas despesas universitárias, era? — De jeito nenhum, doutora. Se eu pensasse em começar minha carreira de médico infringindo a ética dessa maneira, não valeria nem a pena estudar tanto. Seria melhor ser logo bandido. — Ela corou. Ficou olhando para ele e chamou-o até a salinha de enfermagem improvisada. Ofereceu-lhe um café, que ele recusou. Ela então lhe segurou a mão suavemente. Ele olhou para ela e, por um momento, se fixaram os dois o olhar. Ela aproximou-se devagar, foi encostando o seu corpo ao dele, levantou a cabeça e lhe ofereceu a boca. Ele cravou-lhe um beijo de início suave, que depois foi se tornando mais intenso, até que ela foi despindo-o e se despindo, arrastando-o até a porta, e virou a chave, e depois foi empurrando-o até ao sofá do canto. Ali se amaram com intensidade, contendo os sussurros para evitar ruídos. Quando terminou, ela não falou nada, apenas lhe indicou as suas roupas para que se vestisse, ao mesmo tempo em que colocava as suas próprias. Arrumou os cabelos com as mãos e passou ao seu gabinete. Quando ele chegou até lá, ela já havia passado batom e penteado corretamente os cabelos. Aí então ela chamou o carcereiro, para que o levasse de volta à cela, dispensando as algemas. 14
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Ao chegar à cela, os companheiros dormiam. Somente o rapaz do ferimento no braço estava acordado. — Obrigado, — disse ele a Josimar, que não respondeu, apenas fez um gesto com a mão, de não é nada. Encostou-se a um canto e adormeceu como um menino. De madrugada acordou e ficou pensando nos últimos acontecimentos. As coisas foram acontecendo como um turbilhão e não dava para entender nada. Só uma coisa estava lhe “encucando”. Quando veio visitá-lo, o jeito do Renildo estava estranho. Falava meio baixo, olhando pro chão. Primeiro disse que não sabia que ele mexia com drogas. Depois dos seus protestos, afirmando veementemente que aquilo fora armado por algum inimigo, ele recuou: “Quem poderia fazer aquilo com você?”, falara ele, sem muita convicção. E não voltou mais. O Gerson, um dos rapazes que estariam no apartamento do Renildo para assistir ao jogo daquele fatídico dia, foi lá na delegacia e voltou mais duas vezes com as garotas, duas de cada vez. Trouxeram roupas, sabonete, desodorante, escova e pasta de dente, toalha, além de biscoitos e os livros que pedira: do pré-vestibular e alguns de ficção, para ajudar a se desligar daquele inferno. “Porque alguém faria aquilo comigo?”, pensava. Talvez pela mesma razão que o Kléber o atingira de maneira tão desleal naquela pelada no campo de futebol do Aterro do Flamengo. As sessões de fisioterapia já haviam melhorado muito o seu pé, o aleijão estaria pior não fossem os exercícios que ele já fazia sozinho. Pensando nisso, lembrou que nunca mais havia feito os exercícios e, mesmo sem os aparelhos, começou a fazer as massagens e movimentos no pé atingido. Enquanto isso, lembrava que a bronca do Kléber é que a garota que ele queria estava dando mole pra ele, Josimar, o rapaz negro, sem os atrativos de um corpo sarado. O Kléber era branco e se achava, só porque era alto, malhado, cabelos aloirados e lisos, que caíam sobre a sua cara branca e pálida. Era um ignorantão, 15
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alienado. Só era melhor que ele no futebol. “Sei que sou mesmo ruim de bola, mas que fazer? Gosto tanto de futebol! Agora, só assistindo aos jogos. E nem isso estou podendo fazer, por causa de um filho da puta que armou pra mim. Seria o Renildo? Mas, por quê?” Ficou pensando assim até o amanhecer. O carcereiro chegou com o café da manhã. Uma caneca de alumínio com café ralo, um pão francês com margarina. Ao entregar o seu, disse que depois viria chamá-lo para falar com a doutora delegada. Josimar fez sua refeição em silêncio. O rapaz do ferimento no braço aproximou-se dele e disse: — Mais uma vez quero lhe agradecer. Não sei o que seria de nós se não fosse você. Daqui a pouco nós vamos todos ser liberados, o nosso advogado vai estar logo aqui. Mas, antes, eu quero lhe dizer que eu vou voltar aqui e vou trazer um advogado pra cuidar de seu caso. Meu pai tem um grande escritório de advocacia e eu vou pessoalmente cuidar disso. — Poxa, obrigado. De qualquer modo, não precisa agradecer tanto. Fiz apenas o meu dever de enfermeiro. — Meu nome é Eduardo Vieira de Almeida Castro. Não esqueça, porque eu não vou esquecer você. Chegou o carcereiro e abriu a porta para os rapazes. Todos foram levados ao gabinete da delegada Madalena Soares Elevato, que estava de novo no plantão. Passada uma meia hora, veio de novo o carcereiro e levou Josimar ao gabinete da doutora Madalena. Ela o recebeu com um sorriso. — Já soube da sua atuação ontem com os feridos. Foi muito bom. Isso vai contar muito para a sua situação. — E a delegacia vai confessar que colocou a vida dos presos em risco, para aliviar a minha situação? — perguntou Josimar. Ela o olhou, espantada com a sua ousadia. Mas não reagiu. Apenas disse: 16
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— Não faremos um relato detalhado dos fatos, mas vamos assinalar a sua atitude de cooperação e de atendimento aos colegas de cela. E fez um gesto, indicando a cadeira para ele tomar assento. — Está chegando um defensor público para cuidar do seu caso. Assim que ele chegar, você pode conversar com ele na salinha de enfermagem que vocês improvisaram — continuou a delegada, — e pode ficar certo que vamos fazer de tudo pra você ter um bom julgamento, — finalizou. A conversa com o defensor foi longa. Ele anotou tudo o que Josimar falou. Mas foi sincero: — Tudo indica que você foi vítima de uma armadilha. Isso é mais comum do que se pensa e os delegados e juízes sabem disso. Mas eles tem que se ater aos fatos e às provas. Foi encontrado um pacote de cocaína em sua mochila, isso é um fato. Até agora não temos provas de que foi colocado lá por outra pessoa. Por outro lado, você tem bons antecedentes, trabalha, não se conhece nada que desabone a sua conduta, seu comportamento na cadeia é exemplar. Teve elogios. Mas, cabeça de juiz é um mistério, uma incógnita. Vou fazer de tudo pra te defender. Um abraço. Despediram-se e Josimar voltou para a cela, triste, apesar das perspectivas que se abriam para ele. Sentou-se num canto e pegou uma apostila do curso pré-vestibular e começou a estudar. À noite, bem tarde da noite, a delegada Madalena mandou chamá-lo. “O que poderia ser?”, pensou. Ao chegar ao gabinete, ela mandou que se sentasse. Ele obedeceu sem balbuciar nenhuma palavra. Ela então observou: — Você parece triste. Não está contente com o defensor público que vai te defender? — Claro que sim, agradeço — respondeu. — Então, o que tem a me dizer? — continuou ela. — A senhora mandou me chamar. Imaginei que tinha algo a me dizer — respondeu delicadamente. 17
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— É verdade. Fui eu que te chamei aqui. Hoje está tudo muito calmo, graças a Deus, até agora sem ocorrências. O plantão é monótono, quando não tem serviço. O pessoal daqui é meio grosso. Uns ignorantes, coitados. Chamei você pra conversar mesmo. Sei que você é culto, tem leitura, tem perspectivas de crescer. Acho isso bacana. É pena que estejamos em situações tão opostas. Você é um preso e eu a delegada. Mas sou uma pessoa aberta. Preconceito pra mim é coisa de idiota. Ele ouvia a tudo calado. Na verdade, estava de moral baixo. Apesar da oferta do tal Eduardo Vieira de Almeida Castro, nome de rico é sempre comprido, pensou, e do defensor, que lhe pareceu bem positivo, estava meio caído. — Você não tem nada a dizer, Josimar? — perguntou Madalena. — Desculpe, doutora, é que estou meio deprimido. O tempo está corroendo a minha resistência. Mas, vou reagir, vou reagir, sim, eu lhe garanto. A senhora quer conversar e isso é muito bom, porque pra mim também é ótimo conversar com uma pessoa como a senhora, em lugar de ficar naquele lugar infecto, cheio de gente estranha. Você quer dizer mesmo é um lugar cheio de bandidos, não é? — disse ela rindo. — Na verdade, posso lhe dizer que muitos ali são doentes mentais. A senhora deve saber que grande parte do pessoal de rua, assim como a maioria dos que lotam os presídios são portadores de algum problema mental, que vai dos leves a muito graves. O problema carcerário é mais um problema de saúde pública. — Em parte sim, mas não muito. A maior parte dos presos é mesmo de bandidos, que tem que ficar na cadeia para a segurança da população. — Desculpe discordar. Vamos por partes. A senhora deve conhecer as estatísticas, que mostram a evolução da massa carcerária no Brasil e no mundo. A explosão do uso indiscriminado de dro18
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gas, o tráfico, enfim, as drogas fizeram explodir também o número de prisões. O tráfico de drogas rende muito dinheiro e quem ganha mesmo são os grandes traficantes que não estão nos morros, nem nas periferias, nem nas classes pobres. — E o que isso tem a ver com a loucura? — interrompeu ela. — Tudo — respondeu ele e continuou: — As pessoas enlouquecem com as drogas. Elas buscam suprir uma carência que a droga não vai preencher. Elas buscam a afirmação, a aceitação, a valorização. A nossa sociedade é excludente e vazia de valores e de afetos e de generosidade. E tudo que qualquer ser humano precisa é de afeto, de aceitação e de valorização. A droga dá uma momentânea ilusão de tudo isso, mas é tão rápida, que a pessoa fica desesperada, querendo agarrar essa sensação e ela não fica. Isso enlouquece. — Mas isso é a situação do usuário. Estamos falando de bandidos que vendem a droga, os traficantes — corrigiu ela. — A diferença é pequena. Os traficantes de boca, esses, os aviões, os soldados, são todos uns infelizes, que pensam que o negócio das drogas lhes dá poder, dinheiro. Portar uma arma pesada, enfrentar a polícia, enfrentar os rivais, o poder de vida e morte sobre o seu pessoal, sobre os que dão qualquer coisa pelo pó ou pela pedra que vai lhes aplacar a fissura, isso leva à loucura. Na verdade, eles já trazem o germe da loucura quando entram para o movimento, como eles chamam esse negócio nefasto. A favela tem uma população enorme. Vê se todo mundo tá lá na boca. Não tá, não. O pessoal das comunidades trabalha, trabalha duro. E a coisa mais triste do mundo é quando uma daquelas mães descobre que seu filho está envolvido com a boca. Doutora, a senhora não tem ideia como sofre aquela gente. — Como você sabe de tudo isso? Você não mora na favela. Você frequenta alguma comunidade? — Na verdade, eu não moro na favela. Moro num conjugadinho lá em Madureira, perto do Mercadão. Mas eu frequento a 19
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favela, sim. Gosto de um samba. Conheço muita gente boa lá da Serrinha, que guarda o jongo e as tradições. Nas favelas tem muita coisa boa, doutora, muita coisa boa. — E essas teorias sobre a loucura, onde você aprendeu isso? — Ora, doutora, eu sou profissional da área da saúde. Eu prezo muito a minha profissão. Por isso eu leio muito as revistas científicas. Tudo o que falei não é invenção minha, é baseado em estudos e pesquisas. Um desses estudos é de um pesquisador francês, que trabalhou anos sobre a massa carcerária da França e de outros países e concluiu que a maior parte daqueles que chamamos de criminosos não passam de loucos, ou melhor, psicóticos e psicopatas em variados graus. Portanto, esse é um problema de saúde pública, antes de ser um problema policial ou simplesmente de segurança. Na verdade, é antes de tudo um problema social. É fruto de uma sociedade doente, desigual, desumana e se reflete nas relações entre as pessoas. A raiz de tudo é a falta de amor. A falta de amor leva as pessoas à doença, à maldade e à loucura. — Então a causa de tudo é a falta de amor? Pois bem, eu não tenho amor e nem por isso estou roubando, traficando, matando. — Como pode uma mulher como a senhora não ter amor? — perguntou ele, realmente surpreso com a afirmação. Ela ficou meio sem jeito. “Porque fui falar isso?”, pensou. Mas não se intimidou: — É verdade, não dá para acreditar. Às vezes, nem eu mesma acredito, mas há muito tempo que eu não tenho ninguém. A minha profissão, as pessoas com quem convivo são sempre muito rudes, uns cascas grossas. Você sabe como são, dá pra ver. Nem sei por que resolvi me meter nesse meio. É uma profissão interessante, gosto do que faço, mas tem esse lado duro, é um meio insensível. Não é pra qualquer um — disse quase em tom confidencial. Ele ficou um pouco calado, depois falou suavemente: — A senhora é uma mulher exuberante. 20
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Ela o olhou fixamente. Ele retribuiu o olhar. Ficaram se comendo com os olhos. Ele ficou paralisado, não podia tomar nenhuma iniciativa, mas seu corpo estava fervendo. Ela se continha, mas começava arfar. Ele pegou a ponta de seu dedo e ela escorregou a mão até à sua, que a apertou de leve. Tudo isso sem se deslocarem o olhar. Levantaram-se e foram se aproximando devagar, até os seus corpos se colarem. Ele sentiu seus seios enormes que ardiam e as batidas do seu coração pareciam um tambor ritmado, prestes a saltar pela camisa de linho. Ele a beijou loucamente, mordeu a sua orelha, foi descendo ao seu pescoço tão branco, chegou ao peito. Nesse momento, ela parou, empurrou-o. Ele estava fora de si, tomado pelo desejo daquela mulher carente, que o provocara até ao máximo de sua sensualidade. — Não podemos — ela falou. Mas, sempre com os olhos nos dele, puxou-o de novo e agora, em fúria, beijou-o sofregamente, e se deixou levar às últimas consequências. O sofá da salinha de enfermagem serviu de novo para aplacar essa tempestade de paixão e desejo. Ele fez aquela mulher gemer de prazer. E ele também gemeu, extravasou toda a sua necessidade de amor, de sexo, de carinho, de afeto. — Sua pele é macia como uma seda. É perfumada, é doce — dizia ele sussurrando. — A sua também é suave, quente, gostosa. Seu corpo me faz mulher. Eu nunca senti tanto prazer — gemia ela. E assim, foram até mais tarde. Que sorte que ninguém os procurou. Depois de algum tempo ela se recompôs e ele também se vestiu. Antes de saírem da salinha, ela ainda o beijou e falou bem baixinho ao seu ouvido: — Esse é um segredo nosso. Em seguida, ela saiu e foi para o seu gabinete. Quando ele passou por lá, ela apertou os lábios em gesto de beijo, de longe, e sorriu e ele saiu, passou pelo corredor das celas onde o carcereiro dormitava e falou-lhe baixinho: 21
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Carvalho
— Abre a cela para eu entrar. O carcereiro abriu a boca em enorme bocejo e balbuciou: — Tu tava até agora conversando com a doutora? Arre! Ele entrou sem despertar os colegas de cárcere. O espaço era pequeno, mal dava pra se esticar. Seu corpo todo tremia, ainda sentia o frêmito daquela transa. “Que mulher!”, pensou, “Que mulher!”. Estava esgotado, mas feliz. Ela tinha lhe sugado todas as energias, mas lhe deixou um sentimento gostoso de plenitude. No dia seguinte, o carcereiro veio chamá-lo para falar com o defensor. Este estava eufórico. — Conversei com o juiz, expliquei o seu caso e ele aceitou o meu pedido de liberdade provisória pra você responder ao processo em liberdade. Você tem profissão, tem trabalho, tem residência fixa, não tem antecedentes criminais. A doutora Madalena também interferiu com um relatório todo favorável a você. Não há razão para você permanecer preso, comendo essa comida maravilhosa da cadeia — ele brincou. Josimar mal podia acreditar. — Estou livre, doutor? — Você está livre, por enquanto. Agora vamos lutar pra provar a sua inocência. — E o meu trabalho, doutor, será que eu perco o meu trabalho, por ter ficado preso e por estar respondendo a processo? — perguntou aflito. — Não, você não perde o trabalho. Só se for condenado, mas isso depois de transitado em julgado. Isto quer dizer que só se você for condenado em última instância. Mas isso não vai acontecer, porque nós vamos provar que você foi vítima de uma armadilha. Eu vou lhe dar um documento, que você deve apresentar no Serviço de Pessoal do Hospital. Eles tem que respeitar o seu direito e não podem lhe impedir de trabalhar. — Então, eu já posso me arrumar pra sair? 22
Benedita M aria Vieira
de
Carvalho