O Reino Perdido
Copyright © W Wil, 2011 Editor João Baptista Pinto Capa Helena Nunes Projeto Gráfico/Diagramação Francisco Macedo Revisão Gisele Reinaldo CIP-Brasil. Catalogação na Fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
W658r Wil, W., 1975O reino perdido: a versão subversiva dos fatos não publicados / W. Wil. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2011. 150p.: 21 cm Inclui índice ISBN 978-85-7785-100-3 1. Religião - Ficção. 2. Ficção brasileira. I. Título. 11-2549.
CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3
09.05.11
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Letra Capital Editora Telefax: (21) 2224-7071 / 2215-3781 www.letracapital.com.br
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W. Wil
O Reino Perdido A vers達o subversiva dos fatos n達o publicados
“O tempo nos tira as certezas que temos na juventude e, ao perdê-las, vai com elas uma ousadia petulante que é maravilhosa por ser ingênua. Essa é a maior das maldades do tempo, ainda que as certezas fossem, todas elas, erradas” Musachi, samurai.
Sumário Capítulo Um –
“O reino de Deus está dentro de vocês” Lc 17:21
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Capítulo Dois –
47
Capítulo Três –
61
Capítulo Quatro –
75
Capítulo Cinco –
85
Capítulo Seis –
95
Capítulo Sete –
105
Capítulo Oito –
127
“O meu reino não é deste mundo” Jo 18:36
“Venha a nós o teu reino” Mt 6:10 “Importa entrar no reino de Deus.” At 14:22
"Quem não nascer de novo não pode entrar no reino" Jo 3:3
“A que compararei o reino de Deus?” Lc 13:20 “Tu, porém vai e anuncia o reino de Deus” Lc 9:60 "Recebendo nós um reino inabalável" Hb 12:28
Capítulo
UM
“O reino de Deus está dentro de vocês” Lucas 17:21
O cara entra todo marrento. Parece até um oficial
do BOPE invadindo uma favela pra matar bandido. Ombros jogados pra frente, sobrancelhas caídas com força em cima dos olhos e apertando o bico como se fosse um rapper fazendo pose. “O que vocês estão fazendo aqui? Tão achando que isso é brincadeira, suas mocinhas? É melhor voltar pra casa da mãe de vocês. Tão aqui perdendo tempo. A obra não é um parquinho! Um bando de moleques achando que são homens de Deus. Olha só, pra começar, quem é menor de 18 anos aqui? Levanta a mão! Vaza, vaza, vaza! Só quero vocês aqui de volta com o certificado de reservista nas mãos. Estão me fazendo perder tempo. Só fica quem é maior de idade. Sumam da minha frente!”. Quase a metade dos ouvintes desceu correndo as escadas numa velocidade de deixar qualquer Ayrton Senna com inveja. Jaime ainda brincou, “... E se olhar pra atrás vira estátua de sal”. Eu ri de rolar. Mas a parada era séria. Um batalhão de menores ali já estavam auxiliando em algum lugar. Todos trajando roupas sociais, sapatos lustrados e alguns de abotoadoras cafonas nos punhos. Meu amigo Jaime, antes 9
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de começar o festival de saraivada, portava uma bela gravata comprada em liquidação na C&A, e um bigode ralo, achando que isso dava um ar de respeito. Eu só tenho 17 anos, e como a maioria ali, havia deixado a casa dos meus pais, estudos, namorada, dado um bico na nossa juventude pra servir como “homens de Deus”. O sujeito que entrou com aquela marra toda, era um bispinho – Assim que nós nos referíamos aos caras que não eram ‘O Bispo’ – que estava disposto a cortar a cabeça dos nossos sonhos. Só que o lance todo já estava enraizado. O tratamento de choque fazia parte de um tipo de treinamento que eles achavam que dava certo. Bate, xinga, maltrata, se o cara resistir é porque ele quer mesmo. Quando o bispinho Ronaldo entrou caminhando pelo longo salão como um boxeador pronto pra uma luta, Jaime tirou a gravata tão rápido que Mister M teria dificuldades em explicar aquela façanha. Foi hilário. “É galera, agora já era. Todo mundo voltar pra casa. O sonho acabou”. Eu disse isso com a minha ironia de costume, provocando, como sempre. “E... Tá amarrado, eu sou homem de Deus! Já estou auxiliando lá na igreja a mais de um mês. Preciso me cadastrar pra ter salário. Tá feia a coisa, filho”. Disse o Jaime com tom de bebê chorão. Depois de dar uma volta no shopping, perambulando por lojas de ternos e livrarias, almoçamos e fui direto para sede regional onde eu estava lotado. Já falei minha idade e talvez tenha que dizer mais algumas coisas pra alguém entender porque estou nessa. Eu fiz o ensino médio, gosto de navegar na internet, tocar guitarra, ler livros, revistas e ir ao cinema. Já li mais de mil livros. Fissurado em saber tudo, cheguei a ficar quase uns dois anos trancafiado na biblioteca pública da cidade. Foi uma época que não estava O reino perdido
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trabalhando e andava meio duro. O melhor lugar pra ler jornais e revistas de graça era lá. Aproveitei e li os clássicos, policiais, filosofia, coisas maravilhosas do Rubem Fonseca e bobagens como os livros do presidente FHC e Fernanda Young. Tenho três livros de cabeceira. A Bíblia Sagrada, O Apanhador no Campo de Centeio e o outro talvez eu revele depois. Ele está tão escondido, que parece até passaporte falso de agente secreto. Se alguém no meu meio souber que leio esse livro, putz, nem sei. O lance é que depois de ler tanto, você acaba descobrindo que não há respostas. Miguel Sanches Neto escreveu que os livros acabam te aprisionando no conhecimento. Foi algo assim, naquele livro “Herdando uma Biblioteca”. Pois você acaba sabendo que tem que agir de certa forma, que várias coisas não funcionam mesmo e que a vida é um círculo vicioso de sistemas. Acho que ele não disse exatamente isso, mas é assim que me sinto. Então, li um monte, estou atualizado do que tá rolando, e fiz umas tentativas. Gosto de uma revolução. Sério mesmo. Acho que todo adolescente curte isso: uma causa. Lembro daquele garoto de 13 anos, estudante de classe média que a princípio tinha tudo na vida, uma boa família, boa escola, boa alimentação e se vestia na moda. Largou tudo e fugiu de casa pra se juntar às FARC, Forças Revolucionárias da Colômbia. Sério. Dá um Google aí que você vai saber. Eu, por exemplo, já me amarrei em assistir intelectuais de esquerda cantando jingle do Lula na TV. Achava bonito essa parada de mudar o país e tal. Era bem legal a idéia. Então, com esses pensamentos, já fui, por exemplo, presidente de grêmio estudantil. Minha plataforma de governo? Livros, esporte e prevenção sexual. Porque estudava em escola pública e tinha que ocupar a galera com alguma coisa. Mas os safados não estão nem aí. Só entram na biblioteca pra fazer um trabalho 11
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que não tem mesmo como copiar na internet. Transam sem camisinha, engravidando as meninas que acabam abandonando o colégio. Criam uma população burra pacas. No final, eles só querem mesmo é jogar uma peladinha, achando que podem ser o novo Ronaldo e transar achando que isso aqui é Woodstok. Larguei tudo. Tentei ser voluntário em programas sociais. Mas distribuir cestas básicas, realmente não resolve a vida de ninguém. E aquela sopa na rua chega a ser deprimente. Vi que não mudava nada. Então, tentei abraçar algo que realmente interferisse no mundo. “Nós não pregamos uma religião, não pregamos uma filosofia de vida. A nossa mensagem é vida num Deus que é vivo”. Essas palavras soaram pra mim como um disparo a um velocista na linha de largada. Primeiro que não suporto religião. Acho que é o maior câncer social que existe. Explora a massa, bitola as classes, se aproveita do capitalismo e compõe o sistema. Só que eu confio em Deus. De todo meu coração. Sério mesmo. Então saber que há como você viver os ensinamentos de Cristo, sem ser numa vida de religiosidade, me animou muito. Pois já que não posso mudar o mundo pela política, movimentos sociais ou com minha banda de rock, vou amar meu próximo, curar uns doentes, confortar quem está aflito e ensinar as pessoas que elas não nasceram pra ser massa de manobra. Diferente dos tempos de grêmio é o espírito contido no discurso. Isso me provocou. Quando eu comecei a ler a história de Jesus Cristo, vi que ele era um sujeito muito “casca grossa”, punk mesmo. Revolucionário e subversivo. Pra começar, ele recebe o Espírito Santo, e vai pro deserto jejuar pra ter uma santificação, expurgar o mundo de si, talvez deixar de ouvir os zumbidos de seus pais falarem o dia todo no ouvido. Encontrar um tempo livre das reclamações dos caras que encomendavam O reino perdido
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móveis a ele. Ou mesmo dá um tempo daquelas meninas que não sabendo direito de sua missão, achava que ele pudesse ser um bom partido, pois tinha como herdar a carpintaria do pai, que comandava na época. Mas lá no deserto jejuando, ao invés dele ficar fraco, tipo aqueles indianos de frauda que você vê nas reportagens do Zeca Camargo, ele fica é forte, poderoso. Aparece o diabo – aquele anjo caído que tem gente que ainda se amarra nele – e o tenta. Usa um monte de argumento que faria um presidente Lula da vida dizer: “Estou convencido que o diabo tá certo”. Mas Cristo usa as palavras que leu no Antigo Testamento, disparando direto, na ponta da língua. No final do confronto, ele com mais autoridade que Capitão Nascimento, diz: “Sai satanás! Você não faz parte das coisas de Deus”. Pronto, o ‘bicho ruim’ vai embora e aí sim vêm anjos dos céus para servi-lo. Ele chega à cidade e manda: “O reino de Deus chegou até vocês”. Aí no restante do evangelho ele mostra o que é o reino. Isso me impressionou. Pensei, é isso que quero fazer. Interferir na sociedade. Com a palavra certa, que atinja não só os homens, os governos, o povo, mas também os poderes espirituais.
A rotina aqui é sinistra. Embora agora atue como pastor
auxiliar, e as pessoas (pasmem) me chamam de “senhor”, caras como eu, são mesmo o “faz-tudo” da igreja. Abro o templo às 6:30h, pois tem um culto às 7h. Antes do culto preciso estar todo engravatado e verificar se os preparativos estão prontos. Depois do culto atendo umas pessoas, ouço seus problemas, oro por elas. Às vezes elas trazem fotografias, roupas e pedidos de oração escritos em papel pra gente abençoar. Tomo um café 13
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rápido, e vejo os preparativos pro culto das 10h. Depois deste, novamente, atendo, oro, converso. Às 12h faço uma oração no altar. Almoço, e depois fico sentado no salão do templo, normalmente lendo alguma coisa. Agora estou lendo um livro sobre igrejas orgânicas, sem paredes. Mas faço isso na surdina, pois deram uma ordem que agora só podemos ler livros do Bispo. Então, eu fico com a bíblia, o jornal da igreja e o livro camuflado no meio. Já li todos os livros do Bispo. Só dois tem um estilo mais histórico e analítico, os outros são mesmo pra passar a linguagem e a visão que usamos no dia-dia dos templos. Ler outras coisas significa “misturar os vinhos” numa gíria interna. O lance é que algum maluco pode começar a pensar diferente, e acontecer como foi com aquele tal bispo do Brasil, que acabou saído. Mas é outra história. O lance é que esse horário não é dos melhores pra ler. Seria, se o sono deixasse. Já fui pego mais de uma vez dormindo no altar. Uma vez tive a caraça de ser pego de olhos fechados, com a respiração profunda, talvez sonhando, mas quando percebi que alguém havia chegado eu franzi a testa e disse: “em nome do pai, do filho e do Espírito Santo, amém!”. Mas com ênfase no “amém”. Era o pastor regional que me perguntou se agora eu orava sentado. Eu: “orai sem cessar pastor, a todo o momento”. Cara de pau. À tarde, 15h, tem outro culto. Aquele mesmo esquema. Preparar, culto, atendimento, orações. Depois do café da tarde, oração das 18h. A gente costuma ligar o rádio pra acompanhar essa oração. O operador de áudio põe um fundo meio “Ave-maria” e o pastor começa com aquela voz pastosa, “Ponha um copo com água e vamos fazer a prece poderosa”. Isso é uma estratégia pra pegar aqueles católicos que lembram que há essa oração desde a época de Paulo Lopez até os dias do fanfarrão Pedro Augusto. Aí zapeando O reino perdido
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no dial, acabam ouvindo a trilha sonora, a voz melosa com ênfase no final das frases e acompanham a “prece poderosa”. Depois é só por uma música com um apelo que toque em sua ferida, tipo, Nelson Ned “Se as águas do mar da vida”, ela ainda está prestando atenção. Se não desligou o rádio, certamente vai ouvir em seguida o convite e comparecer a uma de nossas reuniões. Depois dessa oração, a gente já começa a atender o povo. Várias pessoas vêm chorar suas lamúrias durante o dia. À noite, mais ainda. Isso vai direto até o culto das 19h. Depois do culto é mais atendimento, oração, até supervisionar a arrumação do templo, feito pelas obreiras; os obreiros cuidam do pátio, garagem e do banheiro dos homens. Mas tenho que subir pro escritório pra saber se o regional e o segundo pastor estão precisando de alguma coisa. Sempre estão. Pode ser a coisa mais ridícula, mas estão. Uma vez eu estava tomando banho pra uma vigília que iria rolar e o regional vem e: “Eduaaaaaaaaaaaaaaaaardo! Eduaaaaaaaaaaaaaaaardo!”. Cara, nem deu pra me enxugar direito. “Sim senhor pastor”. “Vai lá na cozinha e pega um copo pro meu filho!”. Salivou a ordem em mim. Putz! Fala sério. O que me dava bronca era isso. Normalmente o topo da hierarquia trata o outro como capacho, empregadinho, e outras coisas que acho que nem Hitler conhecia. Penso que esses pastores pulam aquela parte do evangelho que diz que Jesus lavou os pés dos discípulos e disse que era o exemplo pra que eles servissem e não ficassem interessados em serem servidos. Tudo bem que o regional mande o segundo pastor buscar a filha dele no colégio, embora o cara seja pastor e não motorista particular. Mas já vi coisas 15
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absurdas como o cara pedir ao segundo pastor pra cortar o melão em cubinhos e levar pra ele em sua sala. Pô, contrata uma empregada! Eu estava conversando com uma senhora que está com o filho preso. O sujeito, burro, influenciado por um amigo, inventou de assaltar um coroa com uma faca de cozinha, pra comprar drogas. Levou uma merreca. O coroa o denunciou na cabine de polícia, que deu o flagrante, e pronto: assalto a mão armada. A mulher vem apelar pra Deus. Pô, tinha que ver a cara dela, estava desolada. O maluco parou de estudar pra ficar fumando maconha e bebendo. Agora tá preso. Aposto que ele andava com uma camiseta do Bob Marley e participava da “marcha da maconha”. Agora tá vendo o sol nascer quadrado e sua mãe aqui, à espera de um milagre. Eu ainda orava pela mulher quando o pastor chega à janelinha lá de cima do escritório... “Eduaaaaaaaaaaardo!”. Putz me deixe em paz. “Vai dá tudo certo senhora, só perseverar e o milagre vai acontecer. Vou orar hoje meia noite por ele, Deus vai responder”. “Amém, pastor”. Disse-me com lágrimas nos olhos, mas com o semblante um pouco mais animado. Subi as escadas correndo, cheguei ainda meio ofegante. Sim, senhor pastor. “Pô, cara, que demora. Tem que vir na hora que eu chamar”. “Eu estava atendendo uma senhora...” “Tá, tá, tá... Olha só, o homem quer tomar sorvete. Toma aqui, trás chocolate pra ele e morango pra mim”. Disse ele com aquela cara de Deni Devito, me dando uma nota de R$100. Peguei a nota, fiz uma cara de DeNiro. “Sim, senhor pastor”. Eu estava descendo as escadas e ele grita: O reino perdido
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“É haagandãz! Num chega com nada vagabundo aqui não”. “Sim, senhor!” Aproveitei pra dar uma passada na praça. Toda organizada com os canteiros em torno dos flamboyants, um enorme espaço onde as crianças ficam circulando de bicicleta e lá no fundo uma pista de skate. Fui pra lá. Uns moleques de uns quatorze anos davam umas manobras radicais ao som de Smashing Pumpunks tocando num adaptado MP4 a uma caixa de som. Muito legal. “Fala pastor, beleza?” Um garoto de calças caindo sobre o tênis, boné pra trás e uma camiseta imensa da banda gringa P.O.D. aperta minha mão. Respondo, mas não me lembro direito dele. “Já fui num culto lá que você tava fazendo. Irado aquele som ‘Poderoso Ele é...”. “Ah sim, também gosto”. “Vai dá um vôo também? Te empresto o meu”. “Hoje não. Melhor deixar pra outro dia, aí você me dá umas aulas pra vê se aprendo. Vou nessa, Deus abençoe!” “Valeu pastor, é nóis!” Se fosse Jesus dava um tempo melhor por ali. Conversava um pouco, revolveria alguns problemas, faria umas orações, talvez até arriscasse umas manobras na rampa. Não rejeitaria o fato de eles usarem piencing, tatoo, roupa muito louca, e curtirem rock. Dane-se aparência, Cristo muda os corações. Isso é fato. O grande lance é que as religiões se institucionalizam de tal forma, que querem que todos se vistam iguais a eles. Todos iguaizinhos, tipo aquelas crianças do clipe do Pink Floyd, “Another Brick in the Wall”, todo mundo robozinho. Padronização. Afinal, foi isso que levou à minha igreja o status de uma das maiores do mundo. Padronizou o discurso de modo que se você está em Buenos Aires, Portugal, EUA, ou São Paulo, vai ouvir a mesma coisa. As mesmas ênfases 17
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nas palavras. Os mesmos jargões sobre milagres, sementes, plantar, espíritos... Antes usavam umas roupas diferentes. Vi nas revistas antigas, cada um com sua gravata Hermes e sua calça tergal de cores absurdas. Aí padronizaram. Agora você vê não só obreiros – aquele pessoal que trabalha na igreja – de uniformes, mas os pastores também, com calça preta ou azul marinho, e camisa branca ou azul claro. Todo mundo de abotoadoras, não interessa o calor sinistro da Zona Norte, e o rádio na cintura. O jeito de falar. Todo mundo sabe, né? E aqueles gestos das mãos, copiados descaradamente do Bispo. Criou-se esse exército que você pode ver na TV nas madrugadas, nas rádios AM e FM o dia todo, e não importa qual seja o nome do dito cujo, você sabe quem somos. Mas eu estava ridículo ali naquela praça, falando com um skatista e usando essas roupas sociais. Cruzes. Cadê meu All Star? “Num tem menor não?” A moça do caixa chiando por causa dos R$ 100,00. “Poxa, na verdade só tenho essa nota aí”. Essa hora da noite, não trocar R$100, fecha as portas que tá dando prejuízo. Às vezes eu leio as histórias de Cristo e vejo que ele era ácido, direto e não se perdia com as palavras. Mas também era muito amável. Dava mesmo atenção às pessoas. Sorria, chorava, e mostrava que realmente elas eram importantes pra ele. Embora eu o ame e o tenha como exemplo, não tenho muita paciência. A gente aprende a ser muito pragmático e objetivo. Dizer que quem planta colhe, quem dá recebe, quem ora Deus responde, quem faz correntes os anjos trabalham, quem busca encontra. E pessoas separadas para o sacerdócio nos tempos modernos não param pra distribuir o reino de Deus na fila do caixa da padaria. Infelizmente. Não param pra dizer: “minha filha, eu sei que você está estressada porque trabalhou o dia todo ouvindo clientes mal educados. Mas O reino perdido
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persevere, estude, ore a Deus, ele vai lhe confortar, lhe ajudar a passar por essa fase e tudo lhe irá bem”. É provável que ela se sentisse mais aliviada, incentivada. Mas o máximo que eu faço é dar um “obrigado” e sair com meus “haagandãz”. Na verdade eu nem sirvo muito pra ficar nessa instituição. Não em cargos. Só assistindo aos cultos é até mais fácil. Você vai num domingo de manhã, não tem que assinar nada, não é obrigado a fazer parte de nada, só ouve a palavra, ora, dá seu dízimo, e vai pra casa ler o jornal e passar o dia com a família. Pronto, pode ser cristão o resto da vida. Mas tem um momento em que você se conscientiza que tem um chamado, sabe. É fogo. Nem dá pra fugir. Você dá uma olhada pro mundo e vê tanta gente sofrendo, com seus lares destruídos, com os filhos jogados nas drogas, na miséria e esse amontoado de gente na periferia só conhece o que é sofrimento. Você já tentou movimento social, já tentou um discurso engajado, já até votou e nada resolveu. Odeia aquilo. Odeia a injustiça social. Odeia as doenças que afligem o povo todos os dias. Odeia a violência contra a mulher e as crianças. E aprende que seu ódio ou seu amor pode ser sua missão. Eu amo muito. Amo falar do poder de Deus, do amor de Jesus por todo tipo de desajustado, perdido e cretino. Já que ele me aceitou, mesmo eu sendo desse jeito, pode abraçar muito mais pessoas. Muito mais pessoas podem sentir a presença que sinto todas as manhãs quando eu o busco. Pronto. Minha missão. O problema da obra de Deus são os homens. Onde estou, as pessoas querem que você as bajule, puxe-saco, tenha sempre uma atitude servil. Talvez qualquer um diga: mas toda empresa é assim. Só que hipoteticamente eu não faço parte de uma empresa, faço parte de um grupo sacerdotal que tem a missão de levar o evangelho de Cristo aos povos. Sabe? Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo? 19
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Então, só que com o passar do tempo, defender o nome da instituição, fazer parte da engrenagem do sistema, acaba se tornando prioridade, e aquele abraço afetivo do começo, ‘aquele servir’ lá do início, quando foi chamado, deixa de fazer parte do trabalho diário. É fogo. “Pô, cara, demorou pra caramba. Tava fazendo o sorvete?” “Não, senhor pastor”. Eu respondo dando aquela olhada nos olhos, tipo capitão André Matias em Tropa de Elite2. Os caras ficam desconcertados. “Tem que agilizar mais Eduardo, pô o homem já perguntou por você duas vezes, tá reclamando”. “Sim, senhor pastor, vai ser melhor na próxima”. Fiz aquela cara de Marcelo Adinet, querendo rir, mas só fazendo isso com os olhos e um leve movimento com o canto da boca. “Tá, tá, tá... Me dá o troco”. Tomou o troco da minha mão e saiu apressado. Vou acabar saindo da sede. Sério. Sou muito sinistro pra ficar aqui. Fui pra cozinha dar uma olhada no livro que guardei lá. “Ele estava disposto a agir”. Li isso hoje nesse livro. O grande lance da missão é que Jesus realmente iria realizar aquilo para qual foi designado. Eu estava disposto a fazer o mesmo. Iria suportar líderes sem as mesmas características de Cristo, mal-educados, coléricos, que não demonstravam o amor de Deus. Iria suportar qualquer peso de instituição para estar junto das pessoas que chegavam ali pra pedir uma ajuda. À noite, eu já estava exausto. Meio sem disposição pra ser o “salvador da pátria”, mas sabia que era essa confiança que me manteria vivo. Enquanto eu esperava a boa vontade do regional ir embora, pra eu poder finalmente relaxar, e talvez dormir até as 6h da manhã, ainda tinha o pensamento cambaleante. Acho que estava dormindo. Disposto a agir... Plac! O livro caiu no chão fazendo um estalo. Eu fiz força de quem O reino perdido
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levantava um trator com as pálpebras pra abrir os olhos. Dei umas piscadas como quem tivesse pimenta nos olhos. “Eduaaaaaaaaaaaaaardo!”. “Si...sim senhor!”. Respondi um “sim, senhor” de João Canabrava, sóbrio. “Fecha a porta lá, já estamos saindo”. “Pastor amanhã de manhã vou lá resolver o negócio do alistamento”. “É amanhã, né? Você não conseguiu se registrar hoje não, né?”. “Não, senhor. Vou ver se consigo um documento lá dizendo que ninguém serve naquela cidade. Aí vai funcionar”. “Tá, tá, tá... Depois da reunião você vai”. “Sim, senhor!”
Fechei a porta e subi correndo. Fui direto ligar o computador. Se eu bobear gasto muito tempo no mundo virtual, então, sou rápido. Abro os emails, o Orkut, o Facebook, mas deixo o MSN off. Senão é muita conversa fiada, ou não. A conversa fiada vem dos meus amigos que estão em outra cidade, estado, e até país. Mas outro dia tive que fazer uma oração pra uma ex-obreira. Desviada, inventou de cair no mundo, beber todas e transar com todo mundo. Estava se sentindo o caco e não tinha forças pra se voltar pra Deus. O estranho, de quando você está acostumado a uma vida separada do extravasamento do mundo, é que quando você se entrega a isso, no primeiro momento é algo esfuziante, dopante, e você solta os bichos. Só que esse efeito passa e seus dias começam a ficar letárgicos. Uma coisa que você chamava de fé parece que te abandona e você não consegue fazer mais nada. Aí, pensa que Deus é aquele carrasco, que te olha de 21
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cara feia, e toda vez que você põe o pé fora de casa, ele meneia a cabeça e diz “ts ts ts ts ts”. Nada disso. Aquela “parábola do filho pródigo” é real. Ele está mais ansioso que você volte do que você mesmo. O “venha a mim todos os que estão cansados e sobrecarregados e eu os aliviarei”, é real. Vi aquele baterista do Korn, aquela banda de rock gringa, citando essa passagem. Dizendo como ele estava tão chapado de drogas que só mesmo essa palavra foi capaz de ativar um “barato” muito mais forte na sua alma, e ele foi capaz de falar com Deus e sentir seu amor. Violenta a parada. Orei pela menina. Ela disse que no final de semana estava armando pra ir com as amigas a uma festa, que já sabia o que iria rolar, não estava afim, mas não tinha forças. Pedi a ela pra repetir a oração comigo: “Misericórdia Senhor, misericórdia. Vou me esconder debaixo de suas asas até que passe o perigo” do Salmo 57. Disse a ela que repetisse isso todos os dias, pra alcançar conforto. Dou uma olha nos scraps que a galera me envia. Fiz amizade com um pessoal de uma comunidade chamada “Cristãos sem igreja”. Achei sensacional o fato de alguém desejar ser cristão mesmo sem a presença física de uma instituição. Na verdade um tempão atrás eu estava assistindo um o filme “Blade Runner”, que tem uma cena rápida de uma igreja com uma cruz de neon. Pensei numa coisa, que no futuro as igrejas estarão tão loucas que muita gente vai desejar ter comunhão com Cristo de suas próprias casas. Vai ficar confuso o negócio, aí, na dúvida, é melhor falar direto com Deus. Às vezes recebo umas coisas chatíssimas, aquelas correntes do bem que você tem que enviar pra “não sei quantos” amigos pra receber sei lá o que. Que viagem. Nem leio, deleto logo. Tem também aquelas paradas do tipo “repita essa oração...” O reino perdido
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