Paulo Freire
Contribuições para o ensino, a pesquisa e a gestão da educação
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A publicação desta obra foi possível graças ao apoio do Instituto Educacional São João Gualberto - São Paulo, SP Editor João Baptista Pinto Revisão de Tecnologia Educacional Maria Eduarda de Lima Menezes Revisão Gramatical Eva Celia Barbosa Editoração Rian Narcizo Mariano Capa e Adaptação do Logotipo Maria Eduarda de Lima Menezes
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ P354 Paulo Freire [recurso eletrônico]: contribuições para o ensino, a pesquisa e a gestão da educação / organização Regina Lúcia Giffoni Luz de Brito, Ana Maria Saul, Dom Robson Medeiros Alves OSB. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Letra Capital, 2014. recurso digital (série @prendersempre.com ; 03) Formato: epub Requisitos do sistema: adobe digital editions Modo de acesso: world wide web Inclui bibliografia ISBN 978-85-7785-318-2 (recurso eletrônico) 1. Freire, Paulo, 1921-1997. 2. Educação. 3. Livros eletrônicos. I. Brito,Regina Lúcia Giffoni Luz de. II. Saul, Ana Maria. III. OSB, Dom Robson Medeiros Alves. IV. Série. 14-18188 CDD: 370 CDU: 37
Letra Capital Editora Telefax: (21) 2224-7071 / 2215-3781 letracapital@letracapital.com.br
Regina Lúcia Giffoni Luz de Brito Ana Maria Saul Dom Robson Medeiros Alves OSB (Organizadores) Regina Lúcia Giffoni Luz de Brito Ana Maria Saul Balduino A. Andreola Danilo R. Streck Bianco Zalmora Garcia Valter Martins Giovedi Dom Robson Medeiros Alves OSB André Ary Leonel Maria Stela Santos Graciani Denise Regina da Costa Aguiar Mariluza Sartori Deorce Alexandre Saul Fernanda Quatorze Voltas Patricia Lima Dubeux Abensur Angélica Ramacciotti Jaciara de Sá Carvalho Julciane Castro da Rocha
Paulo Freire
Contribuições para o ensino, a pesquisa e a gestão da educação
CONSELHO EDITORIAL Ana Maria Saul – PUC-SP André Ary Leonel – UDESC Antônio Chizzotti – PUC-SP Fernando Albuquerque Costa – ULisboa George França dos Santos – UFT José Armando Valente – UNICAMP Maria Altina Silva Ramos – UMinho Maria Elizabeth Bianconcini de Almeida – PUC-SP Dom Robson Medeiros Alves OSB – FSB-RJ Roseli Zen Cerny – UFSC Sérgio Paulino Abranches – UFPE Silvana Donadio Vilela Lemos – PUC-SP Tânia Maria Hetkowski – UNEB
Sumário Prefácio................................................................................................ 7 Eliete Santiago Capítulo introdutório: Diálogos freireanos.................................... 13 Regina Lúcia Giffoni Luz de Brito Ensinar-aprender: a inspiração de Paulo Freire para a prática docente...................................................................... 29 Ana Maria Saul Paulo Freire: um pot-pourri através de sua obra.......................... 52 Balduino A. Andreola Cinco razões para dialogar com Paulo Freire............................... 75 Danilo R. Streck Esperança e educação no pensamento de Paulo Freire: perspectivas emancipatórias da ação dialógica............................ 95 Bianco Zalmora Garcia Ensino de filosofia inspirado na pedagogia freireana: relato da experiência de reinvenção do legado de Paulo Freire no contexto da escola pública................................... 131 Valter Martins Giovedi Uma percepção do ato de educar que ligue o pensamento de Paulo Freire à cultura digital, tendo as TIC como instrumentos para as mediações pedagógicas................... 148 Dom Robson Medeiros Alves OSB
Contribuições freireanas na constituição de comunidades virtuais de aprendizagem................................................................. 172 André Ary Leonel A educação social libertadora é a base da ação Político-pedagógica dos direitos humanos....................................... 188 Maria Stela Santos Graciani A proposta curricular em ciclos de aprendizagem: possibilidades e desafios.................................................................. 204 Denise Regina da Costa Aguiar A educação profissional por vias da educação ambiental crítica: contribuições para uma formação humana emancipatória........ 226 Mariluza Sartori Deorce Diálogos possíveis: Paulo Freire em diferentes áreas do conhecimento - a construção de um teatro dialógico............ 247 Alexandre Saul e Fernanda Quatorze Voltas Referenciais freireanos para a organização do currículo escolar: a experiência de Diadema/SP......................................................... 270 Patricia Lima Dubeux Abensur O diálogo na educação on-line inspirada na pedagogia freireana: algumas aproximações..................................................................... 293 Angélica Ramacciotti, Jaciara de Sá Carvalho e Julciane Rocha Conclusão.......................................................................................... 305 Dom Robson Medeiros Alves OSB
Prefácio
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livro Paulo Freire: contribuições para o ensino, a pesquisa e a gestão da educação tem origem no contexto do Programa de Pós-graduação em Educação: Currículo, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PPGE-Currículo/PUC-SP), instituição que acolheu Paulo Freire na volta do exilio e onde ele exerceu as atividades de ensino e pesquisa até seus últimos dias no planeta Terra. É também nesse contexto que se inscreve a Cátedra Paulo Freire, espaço que torna vivo e dinâmico o pensamento freireno. Nasce, portanto, da homenagem ao patrono da Educação Brasileira (Lei 12.612/2012), por ocasião das homenagens de seus 90 anos de nascimento, promovida pela PPGE-Currículo da PUC-SP, no X Encontro de Pesquisadores. Assim, Paulo Freire: contribuições para o ensino, a pesquisa e a gestão da educação testemunha os compromissos político e acadêmico desse coletivo, não somente com a divulgação, inspiração e recriação dos referenciais freireanos, mas, fundamentalmente, com a construção de uma Educação crítica, criativa e dialógica que tem por horizonte a justiça social. O livro também é uma homenagem, mas não no sentido de quem pretende ver Paulo Freire como personagem do passado, cuja contribuição inscreve-se nos domínios sociopolítico-pedagógicos. Isso não seria honrá-lo. Mas homenagem que procura seguir a tradição crítico-libertadora da Educação e mantê-la viva. É isso que se propõe a fazer no contexto das homenagens prestadas. Esses fios tecem este livro que, com alegria, tomo nas mãos. São escritos produzidos por homens e mulheres, com caminhos, percursos e experiências diversas, aproximados(as) pelo horizonte, pelas ideias e práticas de Paulo Freire. Profissionais que atuam em diferentes campos do conhecimento, oriundos de uma pluralidade de instituições e de múltiplos espaços de aprendizagens, que se 7
Prefácio
empenham e se embrenham nos estudos freireanos. Falo de um coletivo de professores(as) pesquisadores(as) que reafirmam, com suas reflexões, estudos e práticas, o vigor, a abrangência, pujança, atualidade do pensamento de Paulo Freire. Paulo Freire: contribuições para o ensino, a pesquisa e a gestão da educação é um livro em que Paulo Freire é referência de múltiplos olhares. Os(as) autores(as) transitam pelo conjunto de sua obra e tomam-na como inspiração teórica, didática, metodológica e investigativa. Um testemunho do diálogo entre culturas e saberes, de um pensar crítico esperançoso que faz da Educação um dos instrumentos de luta e construção social. A tradução, portanto, de um pensamento que se constitui num paradigma para a Educação no século XXI. Esse pensamento, que justifica a obra coletiva, atravessou tempos, espaços, fronteiras, tornando-se universal, atual e clássico. O vigor, a abrangência e atualidade das ideias de Paulo Freire fazem com que, em diversos campos do conhecimento, seus referenciais sejam tomados como princípios que orientam políticas públicas, para além do campo da Educação. Mas a aposta é na Educação, embora não exclusivamente, como possibilidade de humanização do sujeito, a partir de práticas libertadoras, vinculadas à realidade, como exercício da capacidade de pensar, dizer a palavra e agir no mundo. Dito de outra maneira, esse pensamento contínuo e sem fronteiras de Paulo Freire, sua vivência e a proposição de uma Educação vinculada à sociedade, aos problemas e às relações na sociedade brasileira, ainda em uma época em que as análises educacionais não vinculavam os problemas educacionais aos contextos nos quais medravam. Suas reflexões iniciais, em confronto com a importância da construção da democracia, ampliaram-se e difundiram-se, e serviram de argumento de que somente pela aproximação crítica dos sujeitos/homem e da mulher com a realidade, seria possível transi8
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tar para uma sociedade democrática. Nessa compreensão é que se inscreve a importância da Educação. Mas não qualquer educação. Uma Educação dialógica, crítica, como atitude de sujeitos históricos. É esse paradigma que orienta esta produção. Essa matriz de pensamento estrutura a obra coletiva que, dentro de pouco tempo, em forma de livro de ampla circulação, cumprirá sua função, nas mãos de educadore(as). A obra freireana está revisitada, ampliada, aprofundada e reinventada por seus/suas autores(as). O(a) leitor(a) encontrará uma diversidade temática que vai dos traços pessoais de Paulo Freire, um pensador interdisciplinar, tecelão da utopia, acentuados como marcas biográficas de quem transitou do chão local ao planetário, cujas vivências enraizaramse criticamente ao homem-educador-político engajado, para aprofundar a matriz do pensamento freireano, em formato de capítulos, que constituem diálogo entre o(as) autores(as), entre autores(as) e Paulo Freire, e entre este e outros pensadores. Assim, concepções, categorias, princípios e conceitos freireanos se entrecruzam num desenho conceitual, configurando a matriz teórica e as possibilidades de construção de tramas freireanas. Nessa produção coletiva, encontram-se discussões e reflexões que tomam como categorias teóricas educação, esperança, cultura, diálogo, humanização, participação, autonomia, entre outras. E, ao mesmo tempo, constituem-se em princípios e atitudes. Essas categorias e princípios dão sustentação às análises, experiências educativas e curriculares enquanto objetos de reflexão e pesquisas dos(as) autores(as). Desse modo, os(as) leitores(as) vão encontrar Paulo Freire como referencial para a Educação dos direitos humanos, Educação ambiental crítica, Tecnologias da informação, Organização da escola e do ensino, Gestão da educação e escola e para trabalho em sala de aula, seja presencial ou a distância, e teatro. Assim, os referenciais freireanos são tomados para orientar a prática pedagó9
Prefácio
gica no horizonte da formação humana e da ética universal, para a formação crítica do sujeito. João Francisco de Souza (in: BATISTA NETO; SANTIAGO, 2009) firmou de modo amplo e relacional a sua compreensão de prática pedagógica, dizendo ser intencional, institucional e plural, que ganha forma como práticas docente, discente, gestora e epistemológica. Essa compreensão plural está contida no conjunto dos trabalhos reunidos nesta obra. A prática docente é apontada em diferentes abordagens. Por exemplo, no contexto da sala de aula, construída na relação com Paulo Freire enquanto esteve na PUC-SP, e (re)criada com os referenciais freireanos. Do mesmo modo, a prática teatral dialógica, crítica e emancipatória, no contexto da escola, como forma de construir conhecimento e consciência comunitária e, ainda, as aproximações temáticas que se preocupam com os princípios orientadores da política educacional, a estrutura curricular do ensino e seus processos de reorientação, e a gestão da escola. A presença de Paulo Freire no desenho do pensamento pedagógico brasileiro também é destaque, nesta obra. Na abordagem sócio-histórica do cenário pedagógico brasileiro e na contribuição do pensamento de Paulo Freire, sobressai a questão ontológica do ser humano, um conteúdo central da matriz freireana, desdobrando-se nas questões de gênero, geração, etnia ou raça, corroborando com as afirmações de que Paulo Freire é um pensamento abrangente. Essas são algumas razões para propor a leitura deste livro a estudantes, professores(as) do ensino superior, profissionais e trabalhadores da Educação e pesquisadores(as) do campo social, entre eles(as), os da Educação. É para esse público diverso que este livro se destina. A obra declara a atualidade de Paulo Freire, que reside no seu pensar-fazer esperançoso, no horizonte utópico sistematizado como pedagogia do oprimido, da esperança, autonomia, indigna10
Eliete Santiago
ção. Na construção teórica de categorias que permitem a análise da Educação e da escola nos contextos sociocultural e de vida dos sujeitos aprendentes e ensinantes, de um lado, e, de outro, nas situações de exploração, privação e discriminação que homens e mulheres – crianças, jovens e adultos - vivenciam no Brasil e no mundo; na negação dos sujeitos como protagonistas da história e da Educação, que desaparecem da cena cotidiana para figurar como índices e indicadores de produtividade, no desafio de garantir o direito à Educação. Entretanto, é importante sublinhar que a contribuição de Paulo Freire é compromisso e opção política para aqueles(as) – profissionais de diferentes áreas – que colocam o direito e a justiça social como horizontes das suas ações, e, no caso particular da Educação, processo de humanização do sujeito e da sociedade. Portanto, um compromisso com uma Educação problematizadora, construída na relação, no olhar, na escuta, palavra, reflexão, ação coletiva. Uma Educação crítica, que cria as situações para a ação. Uma Educação dialógica, como gesto e intervenção. Uma Educação como práxis libertadora. Essa educação é uma opção política e pedagógica. Para esse projeto educativo, Paulo Freire é presente, atual e necessário. Estas considerações que faço são, portanto, um convite à leitura e uma declaração da importância deste livro. Novembro de 2014. Eliete Santiago Professora Titular da UFPE Coordenadora da Cátedra Paulo Freire/UFPE
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Capítulo introdutório: Diálogos freireanos Regina Lúcia Giffoni Luz de Brito1
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Encontro de Pesquisadores notabilizou-se como um momento privilegiado no qual a produção científica foi debatida e socializada. O evento estimulou alunos e ex-alunos a elaborarem trabalhos, resultantes de suas pesquisas, para comunicações orais e pôsteres. Esses trabalhos, uma vez aprovados pela comissão científica do evento, composta por doutores ex-alunos do Programa, foram debatidos nas sessões dedicadas aos Círculos Epistemológicos. Todos os trabalhos apresentados foram publicados em anais. Para estimular o debate sobre o tema central do evento: Currículo: Qual Conhecimento Importa? foram convidados professores doutores também de outras universidades: Lisete Regina Gomes Arelaro, da Universidade de São Paulo (USP); Elisabeth Fernandes de Macedo, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Eliete Santiago, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); Danilo R. Streck, da UniSinos-RGS; entre outros. Os professores do Programa participaram ativamente, quer em Mesas de Diálogos, quer na coordenação dos Círculos Epistemológicos e demais atividades, como plenária de encerramento e lançamento de livros. Além das características que conferem a esse Encontro inestimável valor acadêmico, no âmbito da pós-graduação, o evento daquele ano incluiu a Comemoração dos 90 Anos de Nascimento do Professor Paulo Freire. 13
Capítulo introdutório: Diálogos freireanos
O Encontro propôs-se, também, a aprofundar a integração entre a graduação e a pós-graduação da PUC-SP, em particular, a Faculdade de Educação e o Programa de Pós-graduação em Educação: Currículo. Para tanto, foram firmados compromissos entre os dois níveis de ensino, de modo que a meta da integração pudesse ser alcançada. Assim, o texto que aqui nos embasa foi por nós apresentado em Mesa de Diálogo seguida de debate, ocorrida no dia 22 de novembro de 2011, cujo tema assim se explicitava: A Atualidade do Pensamento de Paulo Freire. Compuseram a mesa a professora Dra. Eliete Santiago, coordenadora da Cátedra Paulo Freire, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); o professor Dr. Alípio Casali, da PUC-SP, contemporâneo de Paulo Freire, como professor da PUC-SP e membro atuante da gestão Paulo Freire na Prefeitura de São Paulo; a professora Dra. Maria Stela Santos Graciani, da PUC-SP e fundadora do Núcleo de Trabalhos Comunitários (NTC/PUC-SP); e a presidente da Comissão Organizadora do Evento e autora deste texto, professora Dra. Regina Lúcia Giffoni Luz de Brito (PUC-SP), também contemporânea do professor Paulo Freire quando de sua atuação como professor do Programa. Na manhã daquele 22 de novembro, na sessão de abertura, ao apresentar a programação e dinâmica do evento, atingíamos nosso primeiro objetivo, posto no início de minha fala. À tarde, passamos para o segundo intento lá anunciado: algumas reflexões sobre nosso homenageado, Paulo Freire. Entendendo que não há como fazer algum exercício reflexivo desvinculado das preocupações vivenciadas pela autora, em seu contexto profissional, aproximamos nossas reflexões sobre Paulo Freire de nossas atividades como docente e pesquisadora de temas relacionados à administração escolar, gestão e pesquisa em educação. Ao fazer essa aproximação, referendamos a possibili14
Regina Lúcia Giffoni Luz de Brito
dade de uma administração, uma gestão escolar democrático-participativa, vivenciada, com sucesso, por Paulo Freire no final dos anos 80 e início dos anos 90, como secretário da Educação do Município de São Paulo. Enquanto tal, como não poderia deixar de ser, a gestão democrática se fez pelo compartilhar de poderes e saberes. A gestão democrática já manifestada em sua obra, de forma sui generis, por sua preocupação com os excluídos sociais e, portanto, com os que estavam fora de uma das instituições mais caras para esta sociedade – a escola, com sua nomeação para secretário da Educação, alcançava, por sua práxis, a própria instituição escolar e sua gestão. Práxis entendida com Sánchez Vásquez (1977, p. 126), [...] como ação que se relaciona à transformação do mundo e não apenas à sua interpretação; compreende o ser humano como ser ativo e criador, que se transforma na medida em que transforma o mundo pela sua ação; não se confunde com a prática estritamente utilitária, mas é capaz de promover [...] o laço entre a filosofia e a racionalidade.
Assim inspirado, Paulo Freire orientou-se por quatro principais objetivos, que marcaram o plano de gestão democrático-participativa na administração freireana, em São Paulo (FREIRE, 2005): 1. Ampliar o acesso e a permanência dos setores populares – usuários da educação pública em sua rede; 2. Democratizar o poder pedagógico e o educativo para que todos, alunos, funcionários, professores, técnicos educativos, pais de família, se vinculasse ao planejamento autogestionado, aceitando as tensões e contradições sempre presentes em todo esforço participativo, porém buscando uma substantividade democrática; 15
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3. Incrementar a qualidade da educação, mediante a construção coletiva de um currículo interdisciplinar e a formação permanente do pessoal docente; 4. Contribuir para eliminar o analfabetismo de jovens e adultos de São Paulo. Diversos instrumentos políticos foram implementados para cumprir os objetivos postos, incluindo condições materiais condignas e agilização de medidas burocráticas indispensáveis para o bom funcionamento da escola, incluindo desde atividades de reparo para que as escolas se tornassem “conservadas”, incremento de material didático para alunos, e professores com salários decentes. Assim, propunha em sua gestão: – Implementação dos conselhos de escola, posto que a gestão democrática era vivida permanentemente entre tensões. – Implantação de plano de reforma curricular baseado na noção de um tema gerador, compreendido sob uma perspectiva interdisciplinar e sustentado por um mecanismo de formação permanente de professores e pessoal de avaliação. – Criação de um movimento de alfabetização de adultos de São Paulo como maneira de estabelecer parcerias entre movimentos sociais e o setor público. Paulo Freire (2005, p. 43), por convicção política e razão pedagógica, recusava o que denominava “pacotes com receitas a serem seguidas à risca pelas educadoras que estavam na base”. Buscava, por meio do diálogo possível, via gestão pedagógica, propostas que tivessem apoios científico e político. Assim, afirmava:
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Queremos [...] uma escola pública realmente competente, que repita a forma de estar sendo de seus alunos e alunas, e seus padrões culturais de classe, seus valores, sua sabedoria, sua linguagem. Uma escola que não avalie as possibilidades das crianças das classes populares com instrumentos de aferição aplicados às crianças cujos condicionantes de classe lhes dão indiscutível vantagem sobre aquelas (FREIRE, 2005, p. 42).
Palavras que, certamente, não apregoavam o empobrecimento do conteúdo escolar, mas os enriquecimentos metodológico e avaliativo capazes de dar conta do conteúdo objetivado. A reformulação do currículo era considerada, assim, como um processo político-pedagógico e substantivamente democrático. A “gestão de pessoas” propunha-se, então, via diálogo franco e aberto com todos: diretoras, coordenadoras, supervisoras, professoras, zeladoras, merendeiras, alunos, famílias, lideranças populares. Todos que ajudassem na formação e solidificação dos conselhos de escola. Escola em que o erro era permitido, mas a mentira não. O erro fazia parte de um método pedagógico e a mentira era um engodo. Um dos focos dessa gestão recaia sobre a formação denominada, então, permanente. Ali sublinhava-se a reflexão sobre a prática docente, sobre os problemas que emergiam à semelhança dos que temos hoje. Buscava-se, na própria prática, o fio da meada para a resolução dos problemas, a superação das dificuldades. Paulo Freire sempre tomou decisões baseadas no bom senso, no direito e respeito a todos, sem desconsiderar as leis que deviam ser seguidas. Assim, aos 70 anos, se retirou da Secretaria Municipal de Educação, certo de que sua tarefa “prática e simbólica” já estava consumada. Exerceu o poder educativo por meio de uma gestão 17
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democrática participativa composta por equipe inspirada por alguém que, vivenciando-a, afirmava: Finalizando esta conversa gostaria de dizer aos educadores e às educadoras com quem tenho agora a alegria de trabalhar que continuo disposto a aprender e que é porque me abro sempre à aprendizagem que posso ensinar também (FREIRE, 2005, p. 26).
Antes de finalizar estas reflexões, parafraseando as palavras citadas, volto-me ao ser Paulo Freire. Então, delicio-me com lembranças que remontam a um tempo de grato convívio, iniciado com o atendimento de Paulo Freire ao telefonema da, então, aluna da Pedagogia que solicitava “carona” na coletiva à imprensa, quando da sua volta do exílio; de um companheiro solidário em mesa de formatura que declarou sentir paúra diante de uma plateia, até começar a falar; de um professor que ficou na memória e na vida de muitos, certamente, como uma das pessoas mais marcantes. Paulo Freire sabia ouvir, ver, sentir, “molhar-se” com a problemática do mundo e do homem. Quando se tornou secretário da Educação da cidade de São Paulo, enriqueceu sua equipe com profissionais que também entendiam a Educação como prática da liberdade e poderiam, com ele, “discutir as premissas epistemológicas do novo modelo de educação que queria implantar com sua equipe de trabalho” (FREIRE, 2005, p. 12). Entre eles estavam os professores Ana Maria Saul e Mário Sérgio Cortella, que partilhavam da mesma Mesa de Reuniões do Colegiado do Programa de Pós-graduação em Educação: Currículo, posto que os três eram docentes desse Programa. Mesa na qual, como já mencionado, tivemos assento na época de seu retorno às aulas, na PUC-SP, como representante dos doutorandos e, mais tarde, como profes18
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sora. Mesa esta sementeira do partilhar de muitos projetos, inclusive o que acalentamos em 2011, com a realização daquele e cuja preocupação com o caráter instrumental do conhecimento, reconhecíamos, já morava em Paulo Freire. Isto posto, ao observarmos seu comentário sobre a instalação do Laboratório Central de Informática Educacional “cujo objetivo era implantar computadores em todas as escolas da rede para melhorar o processo de ensino e aprendizagem” (FREIRE, 2005, p. 98). Paulo Freire (2005, p. 98) anunciava, à época, que a educação não é redutível à técnica, mas não se faz educação sem ela. Assim, considerando com ele que o uso de computadores no processo de ensino e aprendizagem pode expandir a capacidade crítica e criativa de nossos meninos e meninas, com ele acreditamos que a técnica, assim como todo conhecimento, “depende de quem usa e a favor de quê e de quem e para quê”. Desta forma, inspirando-nos em Paulo Freire, sublinhamos, mais uma vez, o caráter instrumental do conhecimento em sua arquitetura curricular perguntando aos educadores que nos acompanhavam no evento: “Currículo: Qual é o Conhecimento que Importa?” Ensaiando respostas à questão formulada e homenageando Paulo Freire, o X Encontro de Pesquisadores recebeu textos vindos de todo o Brasil para os eixos temáticos que habitualmente organizam o evento, mas que naquele ano recebia um eixo muito especial: Pensamento de Paulo Freire. Esse eixo somou-se aos demais que correspondiam às linhas de pesquisa do Programa de Pós-graduação em Educação: Currículo da PUC-SP, assim apresentados: • • •
Políticas Públicas e Reformas Educacionais e Curriculares; Pensamento de Paulo Freire; Formação de Educadores; 19
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Interdisciplinaridade; Currículo, Conhecimento e Cultura; Novas Tecnologias em Educação; Currículo e Avaliação Educacional. Em 2014, a equipe organizadora deste livro convidou alguns autores para que se reunissem àqueles que, nos idos de 2011, apresentaram suas reflexões sobre a obra freireana. Deste modo, apresentamos os textos de autores que contribuíram para o eixo temático Pensamento de Paulo Freire e de convidados que alimentam este livro obedecendo ao critério da complementariedade ou afinidade temática. Assim, temos: Ensinar-aprender: a inspiração de Paulo Freire para a prática docente, de autoria de Ana Maria Saul. A professora declara que teve a felicidade de partilhar com Paulo Freire, durante quase duas décadas, o espaço da sala de aula, coordenando os seminários das terças-feiras à tarde e, por isso, sente-se à vontade para testemunhar a coerência entre o seu fazer docente, originado de suas proposições político-pedagógicas, resultantes de sua prática e do diálogo constante que manteve com educadores de diferentes países do mundo. Segundo a autora, as linhas desse texto apresentavamse insuficientes para dizer do muito que aprendeu com Paulo Freire. Sintetiza, então, a sua experiência de trabalho com ele, enquanto professor e gestor de uma rede pública de Educação, como um aprendizado de política, teoria e prática. Porém, mais do que o aprendizado, ressalta o privilégio de aprender lições de vida com um homem que surpreendia, especialmente por sua coerência. Comenta que, em 1998, após a sua morte, a Reitoria da PUC-SP aprovou a criação da Cátedra Paulo Freire, proposta pelo Programa de Pós-graduação em Educação: Currículo. O objetivo do seu texto é apresentar o trabalho de docência e pesquisa que tem desenvolvido na Cátedra Paulo Freire 20
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da PUC-SP, na qual é docente e pesquisadora. Pesquisa que busca identificar a influência do legado freireano e a sua reinvenção em vários municípios do Brasil, a qual alimenta outros textos aqui apresentados. Resgate que se observa no texto subsequente. Paulo Freire: um pot-pourri através de sua obra, de Balduino A. Andreola. Num sobrevoo às obras de Paulo Freire, o autor, convidado dos organizadores deste livro, comparando o seu texto a um pot-pourri, comenta a obra e apresenta um Paulo Freire ecológico, interdisciplinar, entre outras facetas vivas nesse educador comprometido com a escola pública. Salienta Andreola que “[...] Freire seguiu a mesma trilha de outro grande educador brasileiro, Anísio Teixeira” (p. 56). Afirma que Freire considerava Anísio seu mestre. Andreola comenta com propriedade as interpretações deturpadoras da obra de Freire, entre elas, a que reduz a obra freireana a uma simples invenção de um método de alfabetização. Nessa “andarilhagem”, Andreola nos conduz até a Terceira Carta Pedagógica, a obra que, inconclusa, nos parece um convite à continuidade de suas reflexões. Cinco razões para dialogar com Paulo Freire, de Danilo R. Streck, parece atender ao citado convite, ao pontuar cinco motivos para que o leitor se ocupe das leituras de Paulo Freire. Assim o autor o descreve, Paulo Freire enquanto um pensador do (ser/tornar-se) humano; conectivo; em transição; que se recria; um pensador de “[...] ideias largas e profundas como os gestos de sua mão quando fala” (p. 88). Esperança e educação no pensamento de Paulo Freire: perspectivas emancipatórias da ação dialógica, de Bianco Zalmora Garcia, sublinha a “[...] teoria freireana da ação dialógica - na perspectiva utópica da superação historicamente possível de contextos desumanizantes - fundamenta a práxis libertadora em suas interfaces política e educacional” (p. 95). Aborda a interface entre epistemologia e ética e sua relação com a educação e o direito de sonhar o 21
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sonho utópico possível. Destaca o autor que, para “[...] Paulo Freire, o ser humano – situado no mundo e com o mundo, interagindo nele – está em permanente devir. Por sua intencionalidade ética e epistemologia, regulada pelo princípio fundante da dialogicidade, a educação se projeta dialeticamente para o campo social e político, sendo portadora de um projeto utópico” (p. 96). Utopia, entendida como sonho possível, que se vincula à esperança arraigada na possibilidade de transformar o mundo “[...] utopia que envolve compromisso histórico e engajamento efetivo de mulheres e homens, que se reconhecem e que atuam como sujeitos nas lutas de transformação e reinvenção substantivamente democrática das estruturas societárias na sociedade na busca de sua humanização e da libertação das condições desumanizantes de opressão e dominação” (p. 96). Lembra o autor que a “[...] educação, por si só, nada muda, nada transforma, a não ser no bojo de uma ação política emancipatória [...] À educação cabe adjetivamente alavancar esta emancipação. Por esta razão, na teoria da ação dialógica freireana, não se pode conceber qualquer dissociação entre educabilidade e politicidade” (p. 96). Ensino de filosofia inspirado na pedagogia freireana: relato da experiência de reinvenção do legado de Paulo Freire no contexto da escola pública, de Valter Martins Giovedi, apresenta como se processou uma experiência de prática pedagógica, inspirada nos princípios anteriormente salientados, desenvolvida pelo autor, professor de Filosofia das turmas do primeiro ano do Ensino Médio de uma escola pública do estado de São Paulo. O autor sublinha reflexões que preocupavam os participantes do X Encontro de Pesquisadores, como bem atestam os artigos aqui nomeados. Uma percepção do ato de educar que ligue o pensamento de Paulo Freire à cultura digital, tendo as TIC como instrumentos para as mediações pedagógicas, de Dom Robson Medeiros Alves OSB mostra atualizações e 22
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avanços, ao ligar o pensamento de Paulo Freire à cultura digital. Lembra-nos o autor “[...] que a educação pode ser pensada como presença cultural a partir do tempo em que se está vivendo, abstraindo mudanças sociais que se apresentem como constantes desafios para as gerações. Ela tem que ser como descreve Paulo Freire ‘um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. Não pode fugir à discussão criadora, sob a pena de ser uma farsa’” (FREIRE, 1978, p. 96, apud Alves, p. 112). Continua Alves afirmando que “[...] o tempo histórico educa o homem ensinando-o a educar o seu tempo” (p. 112). Da mesma forma, lembra que “[...] Freire continua sua digressão focada em questões surgidas desde as décadas de 70 e 80, do século passado, mas nós o relemos em nosso século, à luz de sua sensibilidade de compreensão do ser humano como ser de experiência existencial, e atualizamos sua interpretação da educação como um processo social que responda a outros tempos e características do viver” (p. 158). Deste modo, sublinha o desafio que nos lança Paulo Freire, enquanto educadores, “[...] de saltarmos sobre nossos medos e inseguranças, acreditando sempre numa força interior que toda pessoa possui e que pode comunicar, afim de, conscientemente, beneficiar toda a sociedade” (p. 169). Contribuições freireanas na constituição de comunidades virtuais de aprendizagem, de André Ary Leonel, segue na mesma direção. Leonel retoma Freire (2011a) ao anunciar que “[...] a educação como prática de liberdade não é a transferência ou a transmissão do saber nem da cultura” (p. 183,). Mas sublinha que “[...] é, sobretudo, e antes de tudo, uma situação verdadeiramente gnosiológica. Aquela em que o ato cognoscente não termina no objeto cognoscível, visto que se comunica a outros sujeitos igualmente cognoscentes” (p. 183). Para o autor, assim como para Freire, “[...] Educando e educador são ambos sujeitos 23
Capítulo introdutório: Diálogos freireanos
cognoscentes diante de objetos cognoscíveis, que os mediatizam. A tarefa do educador é a de problematizar aos educandos o conteúdo que os mediatiza” (p. 183). Continua o autor afirmando que, “[...] neste sentido, os conteúdos problemáticos, que irão constituir o programa em torno do qual os sujeitos exercerão sua ação gnosiológica não podem ser escolhidos isoladamente por um dos polos dialógicos”. Sublinha que “[...] não é qualquer tema que, abordado em uma CVA, promoverá o diálogo esperado” (p. 183). E ainda salienta “[...] que a seleção dos temas não pode ser ingênua e deve estar integrada à realidade dos sujeitos envolvidos, deve emergir desta realidade. Além disso, a mediação do educador deve ser no sentido de contextualizar o tema, problematizar a realidade em questão, promovendo o diálogo e instigando, bem como encorajando os educando à leitura do mundo e à transformações” (p. 183). A educação social libertadora é a base da ação político-pedagógica dos direitos humanos, de Maria Stela Santos Graciani, já resumia, em 2011, as ideias e os ideais aqui retomados por autores, como é possível perceber, em seus textos escritos em 2014 a convite dos organizadores deste livro. Neste texto, Graciani afirma que as ideias e os ideais do legado freireano que conhecemos não tem tempo e nem espaço onde ocorreram, uma vez que ela leu, ouviu, discutiu e participou de eventos diversificados, e pôde captar escritos ou falados na “magistral obra freireana” (p. 188). Assim, a autora retoma as palavras de Freire, ao afirmar que “[...] todo amanhã se cria num ontem, através de em hoje. De modo que o nosso futuro baseia-se no passado e se corporifica no presente. Temos de saber o que fomos e o que somos para saber o que seremos (FREIRE, 1979, p. 15, apud GRACIANI, 2014, p. 188). Graciani (2014, p. 189) relembra as propostas de mudança de paradigmas de Freire reconhecendo que “[...] o envelhecimento analítico e crítico das instituições e lide24
Regina Lúcia Giffoni Luz de Brito
ranças congrega a todos ao uso da comunicação, pressupõe a formação das pessoas e dos grupos em práticas sociais, como agentes de mudanças do refletir, do pensar, do agir, por travessias pela paz, pela igualdade, pela justiça, ou seja, pela inserção concreta no mundo e a melhoria existencial de todos”. Graciani trabalha em seu texto os princípios freireanos para uma prática libertadora, anunciando 12 indicadores. Tais indicadores podem ser observados de forma explícita ou implícita nos trabalhos apresentados no Evento citado e aqui retomados. A proposta curricular em ciclos de aprendizagem: possibilidades e desafios, de Denise Regina da Costa Aguiar, aborda e retoma alguns dos indicadores elencados anteriormente. A autora anuncia que seu trabalho é parte integrante de um projeto de pesquisa amplo e coletivo que tinha e tem como propósito o estudo da influência e das contribuições do pensamento de Paulo Freire na educação brasileira. Estudo realizado no âmbito da Cátedra Paulo Freire da PUC-SP, sob a coordenação da professora Drª. Ana Maria Saul. A pesquisa pretendeu contribuir com esse macro projeto investigando quais são as possibilidades e os limites de construção de uma proposta de política pública educacional, popular e democrática, na Rede Municipal de Diadema, cidade localizada no estado de São Paulo, no período de 2005 a 2008, tendo como fundamento a epistemologia e a pedagogia crítico-emancipatória de Paulo Freire. Em específico, buscou aprofundar a compreensão de uma das ações dentro dessa proposta de política pública educacional, ou seja, a implantação da organização curricular em ciclos de aprendizagem. A educação profissional por vias da educação ambiental crítica: contribuições para uma formação humana emancipatória, de Mariluza Sartori Deorce, estabelece relações entre educação ambiental, currículo crítico 25
Capítulo introdutório: Diálogos freireanos
e pensamentos freireanos, buscando tornar visíveis as potencialidades emergentes do/no cotidiano escolar da educação profissional técnica. Segundo a autora, “[...] como todo conhecimento é poder, as análises sobre currículo, sociedade, cultura, poder, ideologia e controle social podem ser enriquecidas pelas categorias freireanas” (p. 226). Desse modo, Deorce anuncia as perguntas que norteiam o artigo e, segundo a autora, “abrem possibilidades para outros desdobramentos de pesquisas”. Assim questiona: “[...] como podemos pensar no diálogo entre currículos e Educação Ambiental (EA)? Como os estudos freireanos entrelaçam o campo da EA? Que contribuições o pensamento pedagógico de Paulo Freire traz, por meio da relação ser humano-mundo e da dimensão crítica da educação, para a EA e o currículo?” (p. 226). Com esse propósito, sinaliza e trabalha algumas categorias freireanas que “[...] emergem das práticas e discursos ambientais que enriquecem as redes curriculares do curso técnico em Mecânica e contribuem para uma formação humana mais emancipatória” (p. 226). Diálogos possíveis: Paulo Freire em diferentes áreas do conhecimento - a construção de um teatro dialógico, de Alexandre Saul e Fernanda Quatorze Voltas, também evidencia a formação emancipatória como categoria fundante, no texto que, em 2014, complementa reflexões vivenciadas na abertura dos trabalhos no Evento de 2011. Naquela ocasião, os autores, também atores, protagonizaram a peça teatral que abriu os trabalhos do referido Evento, sob o título: Sobre Sonhos e Esperanças. Agora, neste texto sobre a construção de um teatro dialógico, temos os atores como autores mostrando “[...] um mapeamento no qual a matriz freireana se apresenta como fonte de referência para teses e dissertações, em diferentes áreas do conhecimento, [também] em sua interface com a educação” (p. 248). E, para concretizar essa possibilidade, assumem “[...] o propósito de demonstrar, a partir dos resultados de uma 26
Regina Lúcia Giffoni Luz de Brito
pesquisa realizada em nível de Mestrado na PUC-SP (SAUL, 2011), sobre como a proposta de educação de Paulo Freire inspirou a criação de uma prática teatral dialógica, crítica e emancipadora, na escola” (p. 248). Analisam a construção de uma prática teatral dialógica inspirada em Paulo Freire, a partir da questão “Como o teatro pode se constituir em uma prática artístico-educativa que estimule a reflexão crítica, com a intenção de que uma comunidade escolar possa compreender cada vez melhor suas situações-limites, e se mobilizar para superá-las” (p. 254). Os atores-autores nos remetem mais uma vez ao entrelaçamento do universo do teatro ao da educação. Referenciais freireanos para a organização do currículo escolar: a experiência de Diadema/SP, de Patricia Lima Dubeux Abensur, também é fruto de uma dissertação de mestrado. O texto, como outros deste livro, refere-se à pesquisa coletiva nacional intitulada A Presença de Paulo Freire na Educação Brasileira: Análise de Sistemas Públicos de Ensino, a partir da Década de 90, desenvolvida na Cátedra Paulo Freire. O texto traz “[...] experiência vivida pela comunidade interna e externa de uma escola de educação infantil e de jovens e adultos do município de Diadema (SP), na construção do seu currículo, com o objetivo de identificar e analisar os princípios e a contribuição da Pedagogia Freireana presentes nesse processo, a partir da implantação da política curricular proposta pela Secretaria de Educação do Município de Diadema (SP), campo de pesquisa no período de 2006 a 2008” (p. 270). O diálogo na educação on-line inspirada na pedagogia freireana: algumas aproximações, de Angélica Ramacciotti, Jaciara de Sá Carvalho e Julciane Rocha. As autoras retomam o tema já trabalhado por outros autores, neste livro, relacionando as tecnologias e os princípios freireanos. Assim, abordam a potencialização humanizadora da 27
Capítulo introdutório: Diálogos freireanos
máquina e sua dependência quanto à forma e aos objetivos com que é utilizada. Assinalam o emergir da necessidade de práticas dialógicas para a construção do conhecimento na educação on-line. Desse modo, recorrem a Paulo Freire para explicitar a citada dialogicidade. Os textos, rapidamente comentados, proporcionam breve incursão pelas intimidades deste livro reavivando nossas homenagens ao inesquecível educador Paulo Freire e levantando possíveis indicadores para alguma resposta à questão que orientou o X Encontro de Pesquisadores e as Homenagens a Paulo Freire – Currículo: Qual o conhecimento que importa?
Referências FREIRE, P. A Educação na cidade. São Paulo: Cortez, 2005. SÁNCHES VÁZQUEZ, A. Filosofia da práxis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
Nota Doutora em Educação: Currículo e Mestre em Filosofia e História da Educação pela PUC-SP. Atua como professora a e pesquisadora no Curso de Pós-graduação em Educação: Currículo da PUC-SP. Professora Associada do Departamento de Fundamentos da Educação da Faculdade de Educação da PUC-SP. É membro do Comitê de Ética em Pesquisa da mesma instituição. É coordenadora e líder do Grupo de Pesquisa credenciado pelo CNPq – “Formação, atuação do educador e gestão educacional”. Foi presidente da Comissão Organizadora do X e do XI Encontro de Pesquisadores da PUC-SP. E-mail: luzdebrito@hotmail.com 1
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Palavras iniciais
P
aulo Freire foi professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), no Programa de Pósgraduação em Educação: Currículo, depois de sua volta do exílio, por 17 anos (1980-1997). Tive a felicidade de partilhar com ele, durante quase duas décadas, o espaço da sala de aula, coordenando os seminários das terças-feiras à tarde e, por isso, posso testemunhar a coerência entre o seu fazer docente, originado de suas proposições político-pedagógicas, resultantes da prática e do diálogo constante que manteve com educadores de diferentes países do mundo. Poucas são as linhas deste texto para dizer do muito que aprendi com Paulo Freire. Sintetizo a minha experiência de trabalho com ele, enquanto professor e gestor de uma rede pública de educação, como um profundo aprendizado de política, teoria e prática. Porém, mais do que um aprendizado, o privilégio de aprender lições de vida com um homem que surpreendia, especialmente, por sua coerência. Quando Paulo Freire já não estava entre nós, no segundo semestre de 1998, a Reitoria da PUC-SP aprovou a criação da Cátedra Paulo Freire, proposta pelo Programa de Pós-graduação em Educação: Currículo2. O objetivo deste texto é apresentar o trabalho de docência e pesquisa que tenho desenvolvido na Cátedra Paulo Freire da PUC-SP, na qual sou docente e pesquisadora. 29
Ensinar-aprender: a inspiração de Paulo Freire para a prática docente
Quero partilhar com os leitores como venho construindo a minha prática docente, a partir do que aprendi com o “ jeito de ser docente” de Paulo Freire e como a pesquisa, que se desenvolve na Cátedra e já se alonga em diversos estados do Brasil, identifica a influência do legado freireano e sua reinvenção.
A prática docente de Paulo Freire Inicio esta narrativa com algumas passagens que registram meus primeiros encontros com Paulo Freire, para focalizar, na sequência, aspectos de nossa convivência acadêmica, na PUC-SP, no período de 1980 a 1997, com a intenção de aproximar os leitores da prática docente do autor da Pedagogia do Oprimido (1968). Apresentarei, em seguida, a minha prática docente, que vem sendo recriada a cada semestre, na perspectiva de experienciar a possibilidade e o valor de trabalhar com referenciais freireanos na sala de aula. Conheci Paulo Freire, provavelmente, como muitos educadores, por meio de seus livros proibidos no Brasil, na década de 19603, quando o ele estava no exílio. Somente pude ter acesso aos seus escritos em reuniões secretas do movimento universitário. Em 1979, tive a chance de ver, com emoção, Paulo Freire ser recebido no teatro da PUC-SP, quando retornou do exílio. Em 19804, encontrei-me com Paulo Freire no Programa de Pós-graduação em Educação: Currículo, da PUC-SP. Eu era responsável por uma das disciplinas obrigatórias do curso, ele ministrava disciplina optativa em torno da temática da Educação Popular. Fomos apresentados, formalmente, em uma reunião administrativa do programa e, uma semana depois, quando eu me encontrava sozinha, na sala de professores, em um horário de almoço, revendo anotações para entrar em sala de aula, fui tomada de surpresa. 30
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Paulo Freire entrou na sala, cumprimentou-me e disse: “Menina, tu sabes fazer aquele plano de curso que temos que entregar à coordenadora?” [Paulo Freire trazia uma ficha em suas mãos]. “Os temas de que vou tratar”, disse ele, “estão aqui” [mostrou-me a ficha] e “não sei como colocá-los na forma do plano que foi pedido; tu podes me ajudar?” Eu não sabia bem como reagir. Com um misto de respeito, distinção e timidez, disselhe que eu sabia o que se costumava pedir na PUC-SP, como plano de curso, e que poderia tentar colocar as suas decisões no formato desejado; disse ainda que eu lhe mostraria os registros antes da entrega, para que os conferisse e fizesse as alterações necessárias. Assumi essa incumbência com responsabilidade. Parece que eu estava adivinhando que aquele encontro seria o início de uma relação privilegiada e que frutificou em sólida amizade e na possibilidade de um trabalho conjunto, singular. Passamos, então, a nos encontrar frequentemente e o plano de curso foi um bom pretexto para isso. O Programa de Pós-graduação no qual trabalhávamos passava por reformulação curricular; como uma das novas propostas, foram definidos seminários para orientar a pesquisa dos alunos. Esses seminários seriam conduzidos por uma dupla de docentes, em conjunto. Paulo Freire e eu fomos incumbidos de coordenar os seminários, nessa nova configuração. Começamos a trabalhar juntos às terçasfeiras. Tínhamos um contato semanal em sala de aula, partilhando a docência, e nos encontrávamos, também, em reuniões do Programa e em momentos de planejamento desses seminários.
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O planejamento dos seminários * No início de cada semestre, tínhamos um longo encontro para planejar o trabalho nos seminários. Paulo Freire costumava me chamar para um almoço ou um café, em sua casa; depois partíamos, como dizia ele, para fazer o planejamento. Ele procurava sempre ouvir o que eu estava pensando em relação ao próximo semestre; discutíamos bastante antes de chegar a uma proposta. Fazia questão de ressaltar que os nossos desejos, os nossos sonhos de professores seriam confrontados com os sonhos dos alunos e por isso propunha que a primeira coisa que faríamos em sala de aula seria discutir, com os discentes, a proposta de trabalho dos seminários. Considerávamos, para a elaboração do plano, as expectativas dos alunos, as possibilidades de tratamento da temática e as avaliações dos semestres anteriores, realizadas pelos participantes do seminário. Procurávamos discutir os nossos desejos, sonhos em relação às nossas utopias como professores, como docentes do Programa. Esses diálogos com Paulo Freire sempre foram muito produtivos, ricos e fraternos. __________________ *Extrato revisado do texto Paulo Freire: Vida e Obra de um Educador (SAUL,1999).
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Paulo Freire na sala de aula* No primeiro dia de aula Paulo Freire se preocupava, inicialmente, em ouvir os alunos para que as suas necessidades e expectativas estivessem contempladas no trabalho a ser desenvolvido. Isso era feito numa sala de aula arrumada em círculo, ambiente propício ao diálogo, onde todos os participantes podiam se ver face a face e onde Paulo Freire podia tocar alguns dos participantes da roda, que estavam a sua direita ou a sua esquerda, colocando delicadamente a mão sobre seus ombros; fazia isto em alguns momentos, num gesto muito espontâneo, como se quisesse ser melhor entendido ou, ainda, para chamar o seu interlocutor à participação. Quem conviveu com Paulo Freire e teve a oportunidade de estar mais perto dele seguramente vai se lembrar da expressividade dos seus gestos. Ele era um homem que falava com as mãos. Na condução do trabalho de sala de aula, Paulo Freire propunha que, num primeiro momento, ouvíssemos as preocupações de investigação, de pesquisa dos alunos; os seus sonhos, como ele dizia. Mesmo que os projetos dos alunos fossem embrionários, ele fazia questão de estimulá-los a dizer os seus sonhos, ainda que estes não estivessem detalhados, ou totalmente claros. A partir do relato de projetos passava-se a um segundo momento em que se trabalhava com as diferentes temáticas, encontrando-se os eixos importantes em cada um dos projetos e os fios comuns entre eles. Desse modo eram aprofundadas as temáticas fundamentais que contribuíam para os diferentes projetos. Além de selecionar os tópicos básicos de discussão, Paulo Freire considerava importante propor aos alunos que se exercitassem na produção escrita durante o curso e discutissem a sua produção em sala de aula. Ele me dizia: “Vamos propor aos alunos que, em cada sessão, a cada aula, eles possam reagir não só no momento, dizendo o que pensam a respeito das temáticas, mas vamos também desafiá-los para escrever pequenos textos, uma página que seja, e na sessão seguinte, nós ouvimos essas páginas e nos manifestamos em relação a elas”. O clima democrático e cordial da sala de aula permitia que os alunos se experimentassem na produção da escrita e ao mesmo tempo pudessem dizer de suas dificuldades. De um modo recorrente, nas análises, surgiam prioritariamente os seguintes temas: justiça social, poder, liberdade, democracia, utopia, ética, construção do conhecimento, compromisso social, formação do educador, educação como ato político, leitura da realidade, valores do ser humano. _________________ *Extrato revisado do texto Paulo Freire: Vida e Obra de um Educador (SAUL, 1999). 33
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Esse modo de “ser” e de “fazer” de Paulo Freire, centrado em proposições fundamentais de sua obra, como o respeito ao educando, a dialogicidade, a importância de partir do conhecimento dos educandos no processo de ensino aprendizagem, a defesa da autoridade do professor e não do autoritarismo, a politicidade da educação e, em especial, a seleção de conteúdos significativos na escola foram, por vezes, criticados por intelectuais que defendiam a tendência histórico-crítica na educação. Em nosso País, essas críticas foram fortemente acirradas, na década de 1980. Não foram raros os momentos em que surgiram na sala de aula, trazidas por alunos, e mesmo por outros professores que encontravam esses questionamentos em alguns textos ou em palestras proferidas em congressos. Paulo Freire não se cansava de retomar as explicações, aprofundando seus argumentos. Todavia, não deixava de se referir a uma justa raiva em relação às críticas que lhe faziam sem fundamentação. A presença de Paulo Freire em sala de aula sempre foi muito querida, marcante e significativa. Sua atuação na aula era discreta. Apesar de saber que sua palavra fazia diferença, com humildade autêntica, raramente era o primeiro a falar. Exercitava, assim, um dos saberes que, em seu último livro, apontou como necessários à prática educativa: saber escutar. Ouvia a todos atenta e respeitosamente e ficava à vontade para interferir, sempre que julgasse oportuno, ou quando alguém do grupo a ele se dirigia. Nesses momentos, ouvíamos sua voz mansa que revelava, porém, forte postura e convidava a pensar sobre os desafios que apresentava, na direção de uma leitura crítica do mundo, na defesa intransigente da ética do ser humano e da luta a favor dos oprimidos. Paulo Freire, por vezes, fazia interessantes exposições a respeito da superação das dificuldades para produzir um texto. Ele contava como escrevia. Dizia que, às vezes, se 34
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punha diante de uma página e ficava um tempo sem que a possibilidade da escrita viesse. Com isso, revelava, na prática, a coragem que o professor precisa ter, segundo ele, de se expor diante da classe, demonstrando os seus sonhos, a sua ideologia, a sua compreensão da realidade e da produção do conhecimento e também os seus sentimentos. No penúltimo semestre em que trabalhamos juntos, ele estava escrevendo o livro Pedagogia da Autonomia, que foi concluído em setembro de 1996. Em uma das aulas daquele semestre, uma das alunas, ao apresentar uma página redigida para sua dissertação de mestrado, e que trouxera para discutir em classe, disse a Paulo Freire: “Olhe, Paulo, às vezes, tenho a sensação de que aquilo que escrevi não vale muito a pena e tenho vontade de rasgar tudo e jogar no lixo”. Paulo Freire, indignado, porém bem-humorado, disse-lhe, em tom incisivo: “Não, não faça isso! Veja bem, também estou escrevendo um livro; eu vou dizer para você que ele até pode ser um livro rasgável, não sei ainda. Às vezes, também sou tomado pelo sentimento de que o que a gente está produzindo nem sempre é totalmente bom, nem sempre a gente está totalmente satisfeito com o que faz”. Em quase todas as semanas que se seguiram a esse fato, pedíamos notícias a Paulo Freire sobre o seu livro rasgável. Numa tarde de terça-feira, ele chegou e disse: “Hoje eu quero dar uma notícia a vocês. Já terminei aquele livro rasgável”. Ao comentar sobre a sua forma de produzir, Paulo Freire sugeria ao grupo-classe alguns procedimentos para enfrentar as dificuldades da escrita. Um método que ele dizia dar muito certo era voltar, no dia seguinte, ao que se escreveu no dia anterior, reler o que já se fez, como um aquecimento para rever, reformular, ou ir adiante. Mencionava constantemente outra prática dele e que fazia questão de recomendar: o uso de bons e diferentes dicionários. Tive a oportunidade de visitá-lo em sua casa, no escritório onde escrevia, e observei que ele mantinha os dicionários muito 35
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próximos de sua escrivaninha, bem à mão, para utilizá-los a todo momento. Paulo Freire não se cansava de mencionar a importância do uso dos dicionários de língua portuguesa para que a escrita fosse estética. Prezava muito a qualidade da linguagem e não se furtava de, no momento oportuno, sempre com muita cortesia, fazer o que chamava de certas sugestões de linguagem aos alunos. Dizia fazer isso como necessidade, como método, para garantir a boniteza da linguagem. Nessas situações, ele fazia questão de dizer que a seriedade do educador não deve ser separada da alegria, da estética. Ressaltava, ainda, que ser político, no sentido de ter claro direcionamento, um compromisso com a transformação da sociedade no sentido da democratização e da justiça social, não nos exime da responsabilidade de fazer isso de forma estética, bonita, alegre e prazerosa. Dizia, ainda, que não é preciso ser sisudo para ser sério. É muito possível e desejável que se faça educação com bom humor, alegria e amorosidade. Os diálogos com Paulo Freire sempre foram reflexivos, interessantes, fraternos e surpreendentes. Era admirável a sua clareza de análise do mundo! Inquieto e instigante, buscava a coerência entre sua prática e seus escritos, mostrando-se indignado com as injustiças sociais. Revelava, constantemente, coragem, humildade e esperança. A oportunidade que tive de conviver e aprender com Paulo Freire, na universidade, ampliou-se e se aprofundou quando fui por ele convidada para dirigir a reorientação curricular da Secretaria Municipal de Educação do Município de São Paulo5 e coordenar o programa de formação permanente dos/as educadores/as. Trabalhar na equipe de Paulo Freire, secretário da Educação, foi uma experiência inusitada. Em nossos encontros de quase todas as manhãs, no seu gabinete, em um edifício da Avenida Paulista6, eu 36
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encontrava um homem alto, elegante, de terno e gravata, cabelos brancos, quase sempre longos, com suaves ondulações sobre os ombros. Bem disposto, chegava com pontualidade nas primeiras horas da manhã. Mostrava sempre, em nossos diálogos, preocupação com os aspectos mais gerais da política educacional. Surpreendia-me, no entanto, o modo criativo e concreto com que tratava o cotidiano. Quem imagina o secretário Paulo Freire como alguém que manejava tão somente as diretrizes mais gerais da Secretaria da Educação, engana-se. Com a experiência dos seus 70 anos e com a autoridade de um saber, reconhecido por muitos povos do mundo, tinha sempre algo novo a propor, na perspectiva de concretizar, na prática, a política mais geral, avançando passo a passo, rumo à construção de uma escola pública, popular e democrática. No dizer coloquial de Paulo Freire (1991), era preciso “mudar a cara da escola”, no entanto, era fundamental que a escola quisesse mudar a sua cara e, por isso, precisava ser respeitada, consultada, fazendo-se sujeito de sua própria história. Por esse motivo, ele indagava os detalhes de cada um dos programas que estavam em desenvolvimento, sob a minha coordenação. Ficava absolutamente atento à leitura da realidade, aos avanços e às dificuldades, demonstrando profundo respeito pela história e vivendo um tempo de mudança com paciência/impaciente. Entusiasmava-se com cada pequeno avanço; o relato de simples ações de escolas que evidenciavam estar caminhando na direção de uma escola séria na produção de conhecimentos e, ao mesmo tempo, alegre e democrática, era suficiente para mantê-lo animado e estimulado. Desafiava-me sempre com novos projetos, quase todos ousados. Parecia que reservava a noite para sonhá-los e explodi-los no dia seguinte, com o raiar de um novo dia, numa atmosfera que tinha clareza de propósitos, determinação, alegria e esperança. 37
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A cada novo projeto, exibia no olhar o brilho e a excitação de um menino. Toda a sua criação ousada, todavia, era cercada por uma moldura democrática em que o diálogo sempre era a pedra fundamental. Paulo Freire queria ouvir sempre e atentamente a posição de sua equipe sobre todas as propostas. Ouvia ponderações, recriava suas propostas, estimulava e dava espaço a novas proposições; externava preocupações, colocava parâmetros. Experimentei com Paulo Freire o verdadeiro sentido do que é participação. Muito ao contrário da falsa participação que manipula colaboradores, centralizando todas as decisões nas mãos do chefe e delegando apenas a execução de tarefas, a participação, na equipe de Paulo Freire, assumiu o mais radical dos significados, caracterizando-se, verdadeiramente, como participação em nível político. Isso significou, efetivamente, compartilhar decisões. E observe-se que chamar a equipe para integrar o processo de tomada de decisão implicava, necessariamente, a divisão do poder do dirigente. É isso! Paulo Freire dividia o seu poder de secretário de Educação com sua equipe, na secretaria. Fazia isso com tranquilidade e, sobretudo, por convicção política. Importante destacar que isso não o ameaçava ou o tornava menos poderoso. Ao contrário, como ele mesmo dizia em tom muito bem-humorado: “Sou o secretário que menos tem poder e, por isso, contraditoriamente, sou o que tem mais poder”. No cotidiano difícil, demandante, desafiador, da educação, na cidade de São Paulo, na construção de uma gestão democrática, pude vivenciar, com Paulo Freire, a sua disposição para o diálogo, a tolerância, uma paciência/ impaciente e um toque de paixão em tudo o que fazia. Convivi com Paulo Freire até poucos dias antes de sermos privados de sua presença física no mundo. Estávamos planejando, nessa ocasião, com um grupo de estu38
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dantes da PUC-SP, uma viagem ao Algarve/Portugal, onde Paulo Freire receberia mais um título de doutor honoris causa. Lá faríamos um seminário para professores e professoras, e nos encontraríamos com o professor António Nóvoa, da Universidade de Lisboa, que estava organizando a viagem em Portugal, os contatos com a Universidade do Algarve e o lançamento de um livro para homenagear Paulo Freire7. A alegria e animação de Paulo Freire, em relação a essa viagem, eram indescritíveis. Ele fazia planos, discutia o roteiro, planejava passar em alguns locais para voltar a comer algumas comidas típicas, tomar vinho do Porto e ver lugares bonitos. Enfim, seria uma festa! Com o impacto e a tristeza pela falta de Paulo Freire, fiquei muito tempo sem poder falar sobre ele, em público, sem que as lágrimas me viessem à face. Paulo Freire deixou saudades por sua lucidez de interpretação dos fatos do mundo, seu poder de indignação, seu contagiante amor à vida e ao ser humano, sua luta incessante pela justiça, liberdade e por sua presença solidária e amiga. Somente um ano depois de sua partida, quando ‘a saudade ficou mais mansa e o coração passou a ser envolvido em veludo’ é que os professores/as da PUC-SP tomaram uma decisão mais proativa, em relação ao legado freireano. O Programa de Pós-graduação em Educação: Currículo propôs, então, à Reitoria da Universidade, a criação da Cátedra Paulo Freire.
A Cátedra Paulo Freire da PUC-SP: o contexto de minha prática docente Criada no segundo semestre de 1998, sob a direção do Programa de Pós-graduação em Educação: Currículo2, a Cátedra Paulo Freire vem sendo construída como um espaço privilegiado de estudos e pesquisas sobre a obra 39
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de Paulo Freire focalizando suas repercussões na educação e sua potencialidade de fecundar novos pensamentos e novas práticas. A Cátedra foi criada para homenagear Paulo Freire, do jeito que entendemos que Freire gostaria, ou seja, estudando com rigor o seu pensamento, para compreendê-lo e recriá-lo. Reinventar o legado freireano significa, nessa Cátedra, fazer uma releitura crítica de sua obra cuidando, pois, de não descaracterizar suas propostas principais, tendo em vista discuti-las segundo os novos desafios do mundo atual. E, sobretudo, construir e sistematizar uma práxis coerente com os princípios fundamentais de sua obra. Rejeitamos, pois, qualquer significado de reinvenção que possa indicar rompimento com o pensamento do autor, para que se ‘faça tudo de novo’. Também repudiamos movimentos e práticas que, em nome da reinvenção, aproximam ou reduzem a filosofia e a pedagogia de Freire a métodos e técnicas, muitas delas chanceladas por modismos e pela ‘grife’ das chamadas inovações pedagógicas. Nessa perspectiva, a Cátedra Paulo Freire da PUC-SP vem trabalhando com os referenciais freireanos como subsídios para a docência, pesquisa e análise de políticas públicas em educação, na formação do educador/pesquisador, no nível da pós-graduação. A Cátedra oferece um curso, a cada semestre letivo8, com atividades que se desenvolvem em 17 encontros presenciais, com a duração de três horas-aula semanais. Confere aos participantes três créditos acadêmicos, de acordo com o regulamento do Programa de Pós-graduação em Educação: Currículo. Desde o ano 2000, quando assumi, com responsabilidade e prazer, a coordenação da Cátedra, tenho trabalhado com a inspiração dos referenciais e da prática de Paulo Freire. Ao longo dos semestres tenho buscado aprofundar a 40
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compreensão da Cátedra como um espaço no qual a construção do conhecimento se faz coletiva e cumulativamente, de modo que se constitua em lócus no qual, ao mesmo tempo, “se leva” e “se deixa” o conhecimento produzido, para construções posteriores. Para isso, tem sido necessário registrar o que se faz, sistematizar e divulgar as experiências e as produções. Nesse espaço, a minha prática docente tem sido no sentido de criar/recriar um espaço de docência coerente com os princípios constitutivos da pedagogia freireana, de modo a respeitar a cultura e o saber dos educandos; produzir um conhecimento crítico-transformador, de forma dialógica e coletiva, sem dicotomizar ensino e pesquisa, teoria e prática. Como nos lembra Freire, na Pedagogia da Autonomia, [...] conceber a prática de ensino como um processo de permanente investigação significa assumir o posicionamento epistemológico em que o educando é o sujeito de seu conhecimento, estando sua aprendizagem associada a um processo constante de pesquisa sobre sua realidade. Em outras palavras, significa não distanciar a prática educativa do exercício da curiosidade epistemológica dos educandos (SAUL; SILVA, 2008, p. 81).
No contexto de ensino e aprendizagem, a prática é trazida para a sala de aula por meio das intencionalidades de pesquisa dos alunos, de representações da realidade e do saber de experiência feito dos educandos/pesquisadores. Dessa forma, ensino e pesquisa se interpenetram, mediados pela teoria e prática. A metodologia de trabalho que desenvolvo considera, pois, múltiplos itinerários de estudo e pesquisa dos alunos. Quero significar com isso, que diferentes focos de trabalho podem ser desenvolvidos simultaneamente, de acordo com 41
Ensinar-aprender: a inspiração de Paulo Freire para a prática docente
os interesses e as demandas dos objetos de investigação dos estudantes, referenciados pela pedagogia freireana. Os momentos de trabalho, que se interpenetram, serão apresentados a seguir e brevemente descritos.
Investigação de temas/interesses de pesquisa dos alunos Esse primeiro momento de trabalho consiste em identificar os diferentes interesses de pesquisa de mestrandos e doutorandos, bem como suas práticas de pesquisa, para problematizar os limites de suas concepções e dos temas de investigação que pretendem desenvolver. Nesse momento, busco construir, com o grupo-classe, um inventário de conceitos, ou seja, um levantamento dos conceitos da matriz de pensamento de Paulo Freire que os alunos conhecem e que, já nesse primeiro momento, são indicados como aqueles relacionados aos seus temas de pesquisa. De modo geral, a composição do inventário de conceitos não se esgota em uma única aula, quer por causa do número de alunos na classe, quer porque as justificativas das indicações e questionamentos, já nesse momento, são adensadas.
Primeira imersão no pensamento freireano Nesse segundo momento do trabalho os alunos adentram uma das obras indicadas na bibliografia inicial do plano de trabalho do semestre ou revisitam alguma obra que já conhecem, com o objetivo de identificar, na leitura, conceitos por eles referidos ou, ainda, encontrar novos conceitos relacionados ao seu tema/problema de pesquisa. Esse é o primeiro desafio que lhes é apresentado. Em alguns semestres, os alunos estranharam a liberdade que lhes dei de escolher a obra. Esse estranhamento deu-se pelo fato de não ser comum, entre professores, permitir que os 42
Ana Maria Saul
alunos escolham a obra que querem ler. Os estudantes têm se mostrado curiosos, com respeito ao resultado que essa prática terá, em termos do conjunto do grupo-classe. Eu tenho deixado, deliberadamente, a discussão desses estranhamentos e curiosidades para o quarto momento do trabalho, quando a experiência advinda da prática traz evidências que demonstram essa possibilidade, dado que a obra de Paulo Freire é relacional.
Aprofundamento da compreensão dos conceitos O terceiro momento de trabalho consiste no estudo aprofundado, individual e coletivo, dos conceitos que foram priorizados pelo grupo-classe. Nessa etapa inicia-se a análise de compreensões advindas de saberes construídos, leituras de textos e reflexões realizadas. Os alunos trazem para as aulas extratos de textos que constam da bibliografia do curso e de outros, por eles selecionados, que possam subsidiar a compreensão/o aprofundamento dos conceitos que estão sendo estudados. É importante que os alunos justifiquem a seleção dos extratos de leitura, assim como os relacionem às suas respectivas pesquisas ou práticas docentes. Esse momento do trabalho enseja um esforço de compreensão, análise crítica e diálogo. É o momento em que a prática docente torna-se problematizadora. Freire (1987, p. 102) esclarece que: Enquanto na prática “bancária” da educação, antidialógica por essência, por isto, não comunicativa, o educador deposita no educando o conteúdo programático da educação, que ele mesmo elabora ou elaboraram para ele, na prática problematizadora, dialógica por excelência, este conteúdo, que jamais é “depositado”,
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se organiza e se constitui na visão do mundo dos educandos, em que se encontram seus temas geradores.
Nessa prática problematizadora, o diálogo assume posição central. Está no coração da proposta freireana e é compreendido como condição para a construção de conhecimento. Na comunicação dialógica, os sujeitos confrontam argumentos, ao questionar, criticar, avaliar informações, de modo a ampliar as dimensões a serem conhecidas/reconhecidas, sobre os objetos de conhecimento. É também um momento de partilha de saberes. Com essa compreensão, ganha mais força a posição de Freire, ao chamar a atenção para o fato de que o diálogo não é uma simples conversa, não é um vaivém de informações, não é uma técnica para alcançar resultados, ou para fazer amigos (FREIRE; SHOR, 1986, p. 122).
Socialização do conhecimento com o grupo-classe Quarto momento do trabalho, algumas vezes se dá, primeiramente, em pequenos grupos, porém, necessariamente, o grande grupo é o momento de socializar com todos os participantes. Várias têm sido as possibilidades de socializar propostas no grupo, com o objetivo de ampliar o diálogo que leva a aprender-ensinar. Em alguns semestres, os alunos preparam seminários e os apresentam para o debate crítico-reflexivo com a classe. Esses seminários têm se mostrado produtivos e vêm cumprindo, de fato, a intenção de semear ideias. Diferentes recursos e produções, inclusive com variadas linguagens, têm sido utilizados nesses seminários, constituindo-se em conhecimento significativo e criativo. Outra estratégia utilizada para o aprofundamento e a socialização dos conceitos tem sido a elaboração e discussão do que tenho chamado de tramas conceituais freireanas9 para o desenvolvimento 44
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de pesquisas, ou em contextos de ensino e aprendizagem. As tramas são representações que incluem conceitos que se articulam, uns aos outros, a partir de um conceito central. A trama pode integrar diferentes conceitos abarcados pela obra freireana, para explicitar a leitura do autor sobre a relação entre os conceitos. A construção dessas tramas requer atenção para o fato de que as relações propostas respeitem a lógica interna da obra de Freire (SAUL, A. M; SAUL, A., 2013). A elaboração de tramas conceituais freireanas e sua discussão, no contexto de ensino e aprendizado, têm sido consideradas, por mestrandos e doutorandos, importantes recursos para a elaboração dos respectivos capítulos de fundamentação de suas dissertações e teses. Ao finalizar a discussão sobre o inventário de conceitos, retorna-se à discussão sobre a possibilidade de que os alunos escolham o livro para a primeira imersão na obra de Freire. O grupo-classe constata que há muitos conceitos, elencados no inventário, contidos em diferentes textos da obra de Paulo Freire. Discute-se esse fato e a intencionalidade que teve Paulo Freire de retomar um conjunto de ideiasforça, fundamentais em sua obra, não para repeti-los, mas para aprofundá-los, ou articulá-los em outros contextos de análise. É com surpresa que os alunos constatam essa característica dos escritos freireanos. Os momentos de aprofundamento e socialização se estendem por várias aulas, durante o semestre letivo, pois importa aqui o que chamo de compreensão radical dos conceitos. É o momento da ‘sintonia fina’, em torno do estudo da obra de Freire. Em Professora Sim, Tia Não, Freire (1993, p. 41) manifestase a respeito da rigorosidade do estudo: Estudar é um que-fazer exigente em cujo processo se dá uma sucessão de dor, de prazer, de sensação de 45
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vitórias, de derrotas, de dúvidas e de alegria. Mas estudar, por isso mesmo, implica a formação de uma disciplina rigorosa que forjamos em nós mesmos, em nosso corpo consciente. [...] Quanto mais assumimos esta disciplina tanto mais nos fortalecemos para superar algumas ameaças a ela e, portanto, à capacidade de estudar eficazmente.
Elaboração de produções escritas Nesse estágio do trabalho, ou quinto momento dessa prática docente, o objetivo é que os alunos elaborem uma produção escrita. Para chegar a essa produção, vários caminhos são trilhados. As produções escritas dos alunos têm várias destinações. Uma delas é a própria pesquisa do pós-graduando que frequenta a Cátedra (dissertação ou tese). A segunda destinação tem sido a inscrição/apresentação de textos, para serem submetidos e discutidos em eventos nacionais e/ou internacionais. A terceira possibilidade para divulgação dessa produção tem sido a publicação em livros organizados pela Cátedra. Nesse caso, os textos têm sido submetidos a uma nova instância de análise, também com caráter pedagógico, podendo voltar aos autores para revisões e/ou complementações10. As diferentes pesquisas que vêm se desenvolvendo no âmbito da Cátedra Paulo Freire, articulam investigações de mestrandos e doutorandos11 que participam do Programa de Educação: Currículo, da PUC-SP e se inserem em amplo projeto temático com o objetivo de identificar e analisar a influência do pensamento de Paulo Freire na educação brasileira, a partir da década de 1990, visando a contribuir para a recriação de políticas e práticas educativas numa perspectiva crítico-emancipadora. O pensamento de Paulo Freire está sendo pesquisado 46
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com especial destaque para as políticas e práticas de currículo da educação pública, a partir da década de 90. A intenção dessa pesquisa é subsidiar o fazer político-pedagógico de gestores e docentes de redes públicas de ensino comprometidas com a democratização da educação. Para concretizar esse intento, várias ações estão sendo desenvolvidas, com destaque para: •
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Articulação de pesquisadores de várias regiões do País, interessados em investigar a influência do pensamento de Freire na educação e, em especial, nos sistemas públicos de ensino. Construção de um banco de dados sobre as pesquisas realizadas em sistemas de educação pública, no Brasil, que se pautam/pautaram em referenciais freireanos, a partir da década de 90. Documentação e publicação dos resultados dessa pesquisa e divulgação em website interativo da Cátedra Paulo Freire, de modo a permitir consulta permanente e interação entre pesquisadores e gestores públicos. Divulgação dos resultados da pesquisa em publicações e em eventos nacionais e internacionais.
Quero destacar, dentre essas ações, a constituição de uma rede freireana de pesquisadores, o que se tem feito a partir do projeto matricial da Cátedra Paulo Freire da PUC-SP, por meio do convite e integração de pesquisadores de diferentes universidades. Nessa rede, que já se amplia, na segunda edição desse projeto de pesquisa, apoiado pelo CNPq, vigente no período 2013-2015, atuam 28 docentes de dez regiões do País, vinculados a 14 cursos de pós-graduação, em Educação, pesquisando o legado de Paulo Freire e sua reinvenção, em sistemas de educação do Brasil. Com a intenção de oferecer subsídios aos educadores das redes de ensino, responsáveis por decisões e implemen47
Ensinar-aprender: a inspiração de Paulo Freire para a prática docente
tação do currículo e formação de educadores, os resultados dessa pesquisa estão sendo sistematizados e registrados em um espaço virtual, em construção, nos sites da Cátedra Paulo Freire12 e da redefreireana.com.br. Dessa forma é que a academia pode cumprir a sua responsabilidade com a sociedade, concretizando efetiva relação dialógica com as redes públicas de ensino. Os resultados que têm sido evidenciados nessa pesquisa demonstram que a conclusão de Moreira (2010), assinalando ter sido a pedagogia freireana uma referência fundamental para as políticas de currículo nos anos 90, também se anuncia nesse novo milênio. A atualidade do pensamento de Paulo Freire vem sendo demonstrada pela multiplicidade de trabalhos teórico-práticos que se desenvolvem, tomando o seu pensamento e a sua prática como referências, em diferentes áreas do conhecimento, ao redor do mundo. A crescente publicação de suas obras, em dezenas de idiomas e a ampliação de fóruns, cátedras e centros de pesquisa criados para pesquisar e debater o legado freireano, são indicações da vitalidade do seu pensamento. Escreve Cortella (2001) que o pensamento de Freire é novo e atual no sentido de que [o que é novo] se instala, muda e permanece; anima e inspira. E acrescenta: Freire é um clássico porque seu trabalho não perdeu vitalidade, irrigação, conexão com a vida e com o sangue que a vida partilha e emana. Nesse mesmo texto, Cortella, menciona um debate na PUC-SP, no qual fez uma provocação a Paulo Freire, perguntando-lhe se ele se considerava um clássico. E Freire (apud CORTELLA, 2001, p.153) respondeu: Sou um clássico sim. Não porque subjetiva e presunçosamente deste modo me considere, mas porque como clássico sou considerado por todas aquelas e todos aqueles que encontram em minha obra um instrumento para 48
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enfrentar um clássico problema: a existência de opressores e oprimidos.
O pensamento de Paulo Freire mantém-se como importante matriz para o desenvolvimento de políticas de currículo que assumem o compromisso com a educação democrática, defendida por todos aqueles que proclamam o direito e o dever de mudar o mundo, na direção de um projeto social fundado na ética do ser humano e em princípios de justiça social e solidariedade.
Referências APPLE, W. Michael; NÓVOA, António. Paulo Freire: política e pedagogia. Porto: Porto Editora, 1998. CORTELLA, Mário Sérgio. Paulo Freire, um clássico. In: FREIRE, Ana Maria Araújo (Org.). A pedagogia da libertação em Paulo Freire. São Paulo: Unesp, 2001. FREIRE, Paulo. A educação na cidade. São Paulo: Cortez Editora,1991. ______; SHOR, Ira. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. ______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. ______. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. ______. Professora sim, tia não. Cartas a quem ousa ensinar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. MOREIRA, Antonio Flavio. Propostas curriculares alternativas: limites e avanços. In: PARAISO, Marlucy Alves (Org.). Antonio Flavio Moreira, pesquisador em currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. SAUL, Ana Maria; SILVA, Antonio Fernando Gouvêa da. Dialogando com a prática: o ensino e a pesquisa na cátedra Paulo Freire da PUC-SP ln: MACEDO, Elizabeth; MACEDO, Roberto Sidnei; AMORIM, Antonio Carlos (Orgs.). Como nossas pesquisas
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concebem a prática e com ela dialogam? Campinas, SP: Unicamp, 2008. ______; SAUL, Alexandre. Mudar é difícil mas é necessário e urgente: um novo sentido para o projeto político pedagógico da escola. Revista Teias, v.14, n. 33, p.102-120. Dossiê Especial, 2013. ______. Paulo Freire e a formação dos educadores - múltiplos olhares. São Paulo: Articulação Universidade-Escola, 2000. ______. Paulo Freire: um pensamento atual para compreender e pesquisar questões do nosso tempo. São Paulo: Articulação Universidade-Escola, 2005. ______. Paulo Freire: vida e obra de um educador. In: STRECK, Danilo e outros (Orgs.). Paulo Freire: ética, utopia e educação. Rio de Janeiro: Vozes, 1999. ______. et al. Tramas conceituais freireanas: uma prática de ensino e pesquisa construída na Cátedra Paulo Freire da PUC-SP. 2012. Disponível em: <http://www.redefreireana.com.br>. Acesso em: 20 jun. 2014.
Notas Doutora pela PUC-SP, onde é professora titular no Programa de Pósgraduação em Educação: Currículo. Integra a linha de pesquisa Políticas Públicas, Reformas Educacionais e Curriculares e coordena a Cátedra Paulo Freire da PUC-SP. É pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: anasaul@uol.com.br
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2 A cada semestre, os cursos da Cátedra anunciam um tema central. Alguns exemplos desses temas: Paulo Freire: 30 anos da Pedagogia do Oprimido; Paulo Freire: as matrizes pedagógicas contemporâneas, história e processo; Paulo Freire e a formação do educador: teoria e prática; Paulo Freire e os movimentos sociais; O pensamento de Paulo Freire no cenário da educação pública brasileira: política, teoria e prática; Referenciais freireanos para a docência e para a pesquisa; O pensamento de Paulo Freire na educação brasileira; Análise dos sistemas públicos de ensino a partir da década de 90. 3 O ano de 1964 marca o início do golpe de estado que instituiu a ditadura militar no Brasil, regime que se estendeu por 21 anos. Paulo Freire foi preso por 70 dias, acusado de subversão pela criação de um método de alfabetização de adultos visando à conscientização. No exílio, em 1968, escreve Pedagogia do Oprimido, sua obra mais importante. 4 Paulo Freire volta do exílio, em 1979, quando vários segmentos da sociedade civil pressionavam o governo no caminho da abertura política.
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A convite de Dom Paulo Evaristo Arns, cardeal arcebispo de São Paulo e grão chanceler da PUC-SP, retorna ao Brasil e se torna professor da PUC-SP. Paulo Freire assumiu a pasta da Educação do Município de São Paulo, em 1989, a convite da prefeita Luiza Erundina de Sousa, do Partido dos Trabalhadores (PT).
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A Avenida Paulista situa-se no limite entre as zonas Centro-Sul, Central e Oeste da cidade de São Paulo; e em uma das regiões mais elevadas da cidade, chamada de Espigão da Paulista. É considerada um dos principais centros financeiros da cidade e também um dos seus pontos turísticos mais característicos. Em um prédio dessa avenida estava localizada a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, no período em que Paulo Freire assumiu a pasta. 6
7 Trata-se do livro organizado pelos professores António Nóvoa e Michael Apple, intitulado Paulo Freire, Política e Pedagogia, lançado, posteriormente, em 1998.
Para o desenvolvimento dos dois primeiros cursos, no âmbito da Cátedra, foram convidados, respectivamente, a professora doutora Ana Maria Araújo Freire e o professor doutor Miguel Arroyo.
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Desde o ano de 2001, a Cátedra Paulo Freire vem utilizando a prática de construção de tramas conceituais (SAUL et al., 2012) como forma de trabalhar com os conceitos apresentados na obra de Paulo Freire. O que torna as tramas possíveis é o caráter relacional do pensamento desse autor. De acordo com Freire (1979, p. 62), “[...] o conceito de relações da esfera puramente humana guarda em si conotações de pluralidade, de criticidade, de consequência e de temporalidade”. Tais conotações decorrem da compreensão de ser humano como um ser inacabado, historicamente situado e que não só está no mundo mas com ele, estabelecendo relações que lhe permitem apreender a realidade para nela interferir em uma perspectiva transformadora. 9
10 Três livros já resultaram do trabalho da Cátedra, integrando textos produzidos por seus participantes: Paulo Freire e a Formação dos Educadores - Múltiplos Olhares, organizado pela professora Ana Maria Saul, foi publicado no México e na Espanha, em idioma catalão. A Pedagogia da Libertação em Paulo Freire, foi organizado pela professora Ana Maria Araújo Freire. O terceiro livro, Paulo Freire: Um Pensamento Atual para Compreender e Pesquisar Questões do Nosso Tempo, também foi organizado pela professora Ana Maria Saul. 11
Dissertações e teses orientadas pela professora Ana Maria Saul.
O site da Cátedra Paulo Freire pode ser acessado em: <www.pucsp.br/ paulofreire>.
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Paulo Freire: um pot-pourri através de sua obra Balduino A. Andreola1
S
endo-me pedido um texto para um novo livro sobre a obra de Paulo Freire, perguntei-me qual seria o possível tema que não significasse apenas repetição ou retomada de um já abordado por mim em trabalhos anteriores. Lembrei que, em várias oportunidades fui desafiado a escrever sobre temas que não haviam sido foco de minhas leituras ou releituras da vasta e complexa obra de Paulo Freire. Ocorreram-me dois: Paulo Freire e a Ecologia e Paulo Freire e a Interdisciplinaridade. O primeiro, foi um desafio que me foi feito, há uns quinze anos, pelo professor Sírio Velasco, da Universidade Federal de Rio Grande/ RS (FURG) (ANDREOLA, 2007, p. 31-46). O segundo desafio, foi um convite feito pelo professor Danilo Streck, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), para participar no Congresso Internacional Paulo Freire, realizado naquela universidade, em 1988. A mesa-redonda para a qual me convidaram intitulava-se “Paulo Freire um Pensador Interdisciplinar”. O próprio “Fórum de Estudos: Leituras de Paulo Freire”, que neste ano realizou sua 16a sessão anual, sediado pela Universidade Regional Integrada (URI) de Santo Ângelo/RS, traz no subtítulo o desafio permanente a diferentes leituras de Freire. Paulo Freire mesmo, numa de suas últimas entrevistas, segundo Ernesto Jacob Keim, nos desafiou, ao dizer: “Os problemas são tantos e tamanhos que 52
Balduino A. Andreola
eu não poderia ter sugestões para a solução dos mesmos. Cabe a vocês inventar novas pedagogias”. O pedido que agora me é feito levou-me a decidir que meu texto será um pot-pourri de minhas leituras, inclusive de aproximações de Freire com outros autores. Ao citar os desafios do professor Sírio Velasco e do professor Danilo Streck, já iniciei apresentando duas abordagens. Sírio Velasco questionou-me, nestes termos: “Paulo Freire, em sua obra tão importante, teria alguma contribuição para os problemas do meio ambiente, tão graves e urgentes?”. Respondi que ele estava me pegando inteiramente de surpresa. Daí por diante, ao reler Freire para uma aula, para um seminário, ou um artigo a redigir, fiquei sempre atento a esse aspecto. Um dia, escrevi uma carta ao professor Sírio Velasco relatando minhas descobertas. A carta, com alguns acréscimos, eu a transformei em capítulo de livro que está por sair. Trarei aqui dois tópicos daquele texto. O primeiro, é o do amor extraordinário de Freire pelas árvores, desde aquela do quintal da casa paterna, até o prazeroso encontro com as árvores da África. Mas, também, na África, sua denúncia triste de uma paisagem devastada pela violência do colonizador lusitano. Sobrevoando de helicóptero o território da Guiné-Bissau, o presidente, Amilcar Cabral, que lhe mostrava lá embaixo as frondes das árvores queimadas pelo napalm e a ausência quase total de animais e aves, que, ao fugirem da violência da guerra, haviam pedido asilo nos países vizinhos. O segundo tópico da minha “carta” ecológica ao colega Sírio Valesco, e do artigo, foi o ponto de partida considerando o sentido fundamentalmente ecológico de Pedagogia do Oprimido. Eu me pergunto se arrasar, destruir a casa do outro, de uma pessoa, uma família, não é uma das piores formas de opressão. E o que está acontecendo hoje é um processo global de destruir a casa comum da família 53
Paulo Freire: um pot-pourri através de sua obra
humana, o Planeta Terra. Acho importante, na discussão do problema ecológico, que se recupere esse sentido ecológico radical de Pedagogia do Oprimido. Esse meu apelo pode ser confirmado pelo brado final de Paulo Freire, em sua Terceira Carta Pedagógica. Depois de denunciar com veemência o assassinato do índio pataxó, Galdino Jesus dos Santos, em Brasília, Freire (2000, p. 66-67) proclama: [...] o fato em si de mais esta trágica transgressão da ética nos adverte de como urge que assumamos o dever de lutar pelos princípios éticos mais fundamentais como do respeito à vida dos seres humanos, à vida dos outros animais, à vida dos pássaros, à vida dos rios e das florestas. Não creio na amorosidade entre mulheres e homens, entre os seres humanos, se não nos tornarmos capazes de amar o mundo.
Depois desse “manifesto” de indignação ecológica, Freire faz uma declaração histórica, cujo alcance parece que não levamos ainda nada a sério: “A ecologia ganha uma importância fundamental neste fim de século. Ela tem de estar presente em qualquer prática educativa de caráter radical, crítico ou libertador” (FREIRE, Ib, p. 67). Da interdisciplinaridade em Freire, ou de Freire como “pensador interdisciplinar”, lembrarei primeiramente que ele sempre trabalhou de forma interdisciplinar. Isto é evidente na pesquisa das palavras geradoras e dos temas geradores, atividade na qual participavam sociólogos, psicólogos, antropólogos, pedagogos e outros. Mas, também, quando secretário de Educação, em São Paulo, como ele relata em seu livro Educação na Cidade. Mesmo antes de assumir a secretaria, ele se valeu da ajuda de especialistas de diferentes áreas, da Universidade de Campinas (Unicamp), da Universidade de São Paulo (USP) e da Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP) (FREIRE, 1991, p. 41-42). Já 54
Balduino A. Andreola
como secretário, na reformulação do currículo, exerceu um diálogo amplo “com diretoras, com professoras, com supervisoras, com merendeiras, com mães e pais, com lideranças populares, com as crianças” (FREIRE, Ib., p. 43). Outro ângulo sob o qual eu vi a interdisciplinaridade em Freire, foi ao redigir minha tese de doutorado, quando descobri, em Pedagogia do Oprimido, diferentes dimensões da opressão. Em minha leitura, detectei dimensões psicológicas, antropológicas, ontológicas, econômico-políticas e pedagógicas (ANDREOLA, 1985, p. 164-188). As citações que Freire faz, em suas obras, de especialistas ou peritos dessas diferentes áreas do conhecimento, revelam a seriedade com que ele se preocupava em ver e caracterizar assim a opressão, que se manifesta sob variadas formas de injustiça e crueldade. Sobre Educação Popular na obra de Freire, há bibliotecas inteiras. Ou melhor, tudo o que Freire fez e escreveu e tudo o que é escrito sobre sua obra, tem a ver com Educação Popular. Eu só me limitarei a levantar uma questão, baseado numa fala do próprio Freire. Em 1986, ele participou como palestrante, em Porto Alegre, do II Seminário Estadual de Educação Popular, e sua fala foi sobre o tema “Educação Popular na Escola Pública” (FREIRE, 1986, p. 70-73), desmentindo assim os que pregam o dualismo mentiroso “Educação Popular” contra Educação Escolar. Ou, então, mesmo que não coloquem uma modalidade “contra” a outra, há os que divulgam, como os “conteudistas”, a ideia de que Freire só se interessou por educação popular, ou seja, a educação fora da escola, segundo a concepção errônea deles. Freire foi um lutador da escola pública democrática e de qualidade, desde a sua tese de concurso, na Escola de Belas Artes do Recife, em 1959, publicada mais tarde em livro (FREIRE, 2001). Para Paulo Freire, Educação Popular é educação nos interesses do povo, tanto na escola, como nos movimentos sociais, nas organizações comunitárias e outras. O dualismo não existe, para 55
Paulo Freire: um pot-pourri através de sua obra
ele, como não existe para os inúmeros autores brasileiros, latino-americanos, ou de outros continentes, que escrevem sobre “Educação Popular”. Quanto ao compromisso com a escola pública, Freire seguiu a mesma trilha de outro grande educador brasileiro, Anísio Teixeira. Em sua tese, já citada, ele se refere dezenas de vezes a Anísio Teixeira, em suas lutas a serviço da escola e da educação brasileira. Freire considerava Anísio seu mestre. A estima era recíproca, e foi por isso que Anísio disse um dia a Paulo Freire: “Tu serás o Comenius brasileiro”. Como é belo ver que as pessoas realmente grandes estão acima das competições miúdas, e não acham que a grandeza dos outros lhes faça sombra. A respeito de interpretações deturpadoras da obra de Freire, a mais em voga é talvez a que a reduz a obra de Freire a uma simples invenção de um método de alfabetização. Paulo Freire sempre foi muito aberto às críticas que lhe eram feitas, discutindo-as em alto nível. Mas há críticas e críticas. Sem nos perdermos em polêmicas inúteis, algumas sinalizações me parecem necessárias, pois certas críticas não podem ser aceitas, como aquela de que Freire menosprezaria os conteúdos tradicionais, propondo que se valorizem apenas os temas que surgem da experiência dos alunos, jovens ou adultos. Quem fizesse essa leitura superficial e parcial não estaria se dando conta de quantas vezes Paulo Freire fala de pós-alfabetização, inclusive de “pós-alfabetização que, paradoxalmente, precede a alfabetização”. Uma lacuna, aliás, que considero muito grave, é a de que poucas pessoas, mesmo entre os estudiosos e as estudiosas de Freire, não leram duas páginas finais de Educação como Prática da Liberdade (FREIRE, 1999, p. 128-129), onde Paulo Freire escreveu: Se tivesse sido cumprido o programa elaborado no Governo Goulart, deveríamos ter, em 1964, funcionando 56
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mais de vinte mil círculos de cultura no país. E íamos fazer o que chamávamos de levantamento da temática do homem brasileiro. Estes temas, submetidos à análise de especialistas, seriam “reduzidos” a unidades de aprendizado, à maneira como fizéramos com o conceito de cultura e com as situações em torno das palavras geradoras. Prepararíamos os strip-films com estas “reduções” bem como textos simples com referências aos textos originais. Este levantamento nos possibilitaria uma séria programação que seguiria à etapa da alfabetização. Mais ainda, com a criação de temas reduzidos e referências bibliográficas que poríamos à disposição de colégios e universidades, poderíamos ampliar o raio de ação da experiência e contribuir para a indispensável identificação da escola com a realidade.
Exagerei, talvez, no tamanho da citação literal. Pareceume, porém, necessário o exagero, para provocar a discussão dessas páginas finais do livro Educação como Prática da Liberdade. Sem isso, parece-me difícil entender o alcance global da obra de Paulo Freire, não apenas uma “obra no campo da pedagogia”, no sentido tradicional da palavra, mas sim como um projeto amplo de transformação. E é nesse sentido que eu já escrevi: Pedagogia do Oprimido não significa apenas um livro, o mais importante de Paulo Freire. [...] a Pedagogia do Oprimido já não pertence mais a Paulo Freire, porque se transformou num grande projeto coletivo, repensado, recriado e reconstruído continuamente, por milhares de educadores, por milhões de pessoas, em todos os quadrantes da terra, em escolas, universidades, movimentos sociais e organizações comunitárias (ANDREOLA, 1999, p. 43).
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Paulo Freire: um pot-pourri através de sua obra
Os resultados daquela pesquisa seriam postos à disposição de todas as escolas e universidades, com o objetivo de promover uma mudança dos currículos em todos os níveis de ensino. Parece-me que ninguém escreveu sobre aquela página de Educação como Prática da Liberdade. Além disso, o método de alfabetização em si não foi a preocupação principal dele. Claudius Ceccon, na entrevista do Pasquim (1978), fez uma pergunta sobre “o método Paulo Freire tão falado no mundo inteiro”. E Freire (1978, p. 8) respondeu: Eu tenho até minhas dúvidas se pode se falar de método. E há, há um método. Aí é que está um dos equívocos dos que, por ideologia, analisam o que eu fiz procurando um método pedagógico, quando o que deveriam fazer é analisar procurando um método de conhecimento e, ao caracterizar o método de conhecimento, dizer “mas, esse método de conhecimento é a própria pedagogia”. Entendes? O caminho era o caminho epistemológico.
Aliás, a resposta a todos os reducionismos deve ser dada a partir de uma hermenêutica honesta de a Pedagogia do Oprimido, que não é um livro de “pedagogia” no sentido tradicional da palavra, mas sim um projeto de transformação global da sociedade, visando a uma civilização na qual não houvesse mais nem opressores nem oprimidos. E é nesse sentido que eu já escrevi: Pedagogia do Oprimido não significa apenas um livro, o mais importante de Paulo Freire. [...] a Pedagogia do Oprimido já não pertence mais a Paulo Freire, porque se transformou num grande projeto coletivo, repensado, recriado e reconstruído continuamente, por milhares de educadores, por milhões de pessoas, em todos os quadrantes da terra, em escolas, universidades, movimentos sociais e organizações comunitárias (ANDREOLA, 1999, p. 43). 58
Balduino A. Andreola
Essa dimensão de universalidade da obra e da proposta libertadora de Freire pode ser comprovada empiricamente pela dimensão universal de sua influência a partir do Concílio Mundial de Igrejas, onde Paulo Freire atuou durante dez anos de seu exílio. Um estudioso da obra de Freire, Mario Bueno Ribeiro (2009), que foi meu orientando de doutorado na Escola Superior de Teologia de São Leopoldo/RS, à sua tese de doutorado intitulada Paulo Freire no Conselho Mundial de Igrejas, acrescentou, nos anexos, fotocópia do Cronograma de Viagens internacionais de Freire, que somaram, segundo a contagem do autor, “aproximadamente 150 viagens”. Não foi sem razão que Roger Garaudy (1977) considerou Paulo Freire “o maior pedagogo do século”. O sentido de a Pedagogia do Oprimido e de toda a obra de Freire, como projeto global de transformação, o próprio Freire o explicita em vários momentos, ao falar de “reinvenção do poder”. Lembrei-me de uma dessas explicitações feita por ele, por ocasião do último diálogo emocionante que teve com seu grande amigo Ernani Maria Fiori, em 1984. Fiori estava sendo levado já pelo câncer. Freire conta que naquela noite falaram sobre a “reinvenção do poder”, que dependeria muito mais dos movimentos sociais do que dos partidos políticos. A “reinvenção do poder”, segundo Freire, implicava, por sua vez, necessariamente: [...] a reinvenção da economia, a reinvenção do ato produtivo, sem o qual não se reinventa o poder, e a partir do que, então, seria viável a reinvenção da cultura, da educação e também da linguagem (FREIRE in FIORI, 1992, p. 286-287).
Num pot-porri de músicas, o programador viaja com liberdade e rapidez, através de diferentes peças de um mesmo autor. Nessa minha viagem através da obra de Freire, permito-me um jogo etimológico, ou, se quiserem, semân59
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tico, que é, ao mesmo tempo, ético-político. Proponho, assim, uma questão etimológica, lembrando duas palavras que têm a mesma origem do grego: Economia e Ecologia. As duas derivam do mesmo étimo grego: oikos: casa: Ecologia = oikos + logos. Ou seja: a palavra (logos) da casa (oikos). A palavra, num sentido amplo: palavra, discurso, argumentação, teoria, etc. Economia = oikos + nomos. Ou seja: A norma (nomos) da casa (oikos). A norma, também, num sentido amplo: norma, lei, organização, regulamentação, etc. Se a Eco/nomia e a Eco/logia são palavras irmãs, por que foram transformadas então em inimigas, num sistema capitalista devastador, que nos conduziu a uma anticivilização da Barbárie, segundo Guy Coq (2002). Se a Eco/logia, irmanada com a Ética, está a serviço da vida, por que a Eco/ nomia deveria estar a serviço da destruição da vida, comprometida com mercados da morte? Segundo as estatísticas veiculadas já por todos os meios de comunicação, os três mercados mais rentáveis no mundo, hoje, são o comércio de armas, o tráfico de pessoas e o tráfico de drogas. Sem conhecer ainda esses dados terríveis, Paulo Freire (1986, p. 146) proclamava, em seu livro Pedagogia da Autonomia: A grande força sobre que alicerçar-se a nova rebeldia é a ética universal do ser humano, e não a do mercado, insensível a todo reclamo das gentes e apenas aberta à gulodice do lucro. É a ética da solidariedade humana. [...] A liberdade de comércio sem limites é licenciosidade do lucro. Vira privilégio de uns poucos que, em condições favoráveis, robustecem seu poder contra os direitos de muitos, inclusive o direito de sobreviver.
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Não sendo possível, num vôo panorâmico, aprofundar as dimensões éticas da obra de Freire, limito-me a salientar que em seu livro Pedagogia da Autonomia e nas suas Cartas Pedagógicas, a Ética aparece quase como tema transversal, proclamado em tom de veemente urgência. Na Terceira Carta Pedagógica, citada já neste escrito, as graves urgências da Educação e da Ecologia são anunciadas, por Freire, como exigências da Ética, adjetivada por ele como “Ética universal do ser humano”, que é necessariamente “Ética da Solidariedade”, contra as perversidades de uma ética do lucro, da ganância, da competição bestial. Paulo Freire pode ser lido não apenas em si mesmo, em seus livros, mas também em diálogo com outros/as pensadores/as da educação, em entrevistas ou numerosos livros dialogados. Mas pode ser lido também em diferentes aproximações, na busca de afinidades, convergências ou complementaridades, como também no confronto, com críticos de suas ideias ou de sua práxis pedagógico-política. Fernando Becker, exímio estudioso de Piaget, fez, em sua tese, uma aproximação entre Freire e Piaget, citada já em minha tese de doutorado (ANDREOLA, 1985, p. 199-200). Becker vê, entre Piaget e Freire, complementaridades interessantes, na elaboração de uma teoria global e dinâmica da aprendizagem, como superação de índices preocupantes de fracasso escolar. O aspecto mais importante da aproximação, parece ser o enfoque epistemológico, visto que Paulo Freire enfatizou várias vezes que sua preocupação principal sempre foi “o caminho epistemológico”, ou de uma teoria do conhecimento. A própria alfabetização, segundo ele, deve ser vista como “um momento da teoria do conhecimento”, como salientou na entrevista do Pasquim (FREIRE, 1978, p. 8). Em minha tese de doutorado, realizei aproximação crítica entre Emmanuel Mounier e Paulo Freire, na perspectiva de uma pedagogia política da pessoa e da comunidade. 61
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As afinidades entre Mounier e Freire podem ser vistas sob outros ângulos também. Cabe lembrar, por exemplo, que Mounier inspirou numerosos/as brasileiros/as que lutaram por um Brasil mais justo e fraterno, antes do golpe de 1964. Mas não apenas no Brasil, pois a inspiração de Mounier foi muito importante também para os setores de esquerda da Democracia Cristã do Chile. Tanto no Chile, como aqui, os cristãos de esquerda descobriram que Maritain, cuja influência fora até então preponderante, se revelava insuficiente na linha de um engajamento político. Enquanto ele se mantinha numa visão de sociedade na linha de “cristandade”, contrariamente, a concepção de Mounier era na perspectiva da “laicidade”, ou seja, de uma presença atuante dos cristãos no mar alto, nas estruturas laicas da sociedade, não “refugiados” nas instituições eclesiásticas. Aqui no Brasil, as autoridades eclesiásticas se opuseram ao engajamento político dos vários setores da Ação Católica, e então muitos jovens aderiram à Ação Popular (AP), ou simplesmente se filiaram ao Partido Comunista. A aproximação com Mounier poderia nos acordar de outra esquizofrenia intelectual, quando a totalidade dos intelectuais, mesmo os que não comungam em nada com o liberalismo ou o neoliberalismo, incorre numa confusão semântica e, por isso mesmo, filosófica e política, falando indistintamente de “indivíduo” e “pessoa”, como se fossem sinônimos. Sem nos darmos conta, estamos imersos, como o peixe na água, numa cultura do liberalismo, e, por consequência, do capitalismo, do individualismo, da competição e por aí vai. Acho que a todos nós, intelectuais e educadores, faria muito bem a leitura de algum livro de Mounier ou de outros autores de filosofia da pessoa ou filosofias do personalismo. Os cristãos de esquerda liam Mounier, e Freire também o leu, segundo ele próprio afirma (FREIRE, 1979, p. 15). 62
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Acho importante registrar ainda que, entre Mounier e Freire, existem afinidades surpreendentes, no campo pedagógico, que eu explorei bastante em minha tese de doutorado (ANDREOLA, 1985) e em artigo na Revista Filosófica Brasileira, intitulado Dimensões Pedagógicas do Personalismo de Mounier (ANDREOLA, 1990, p. 55-75). Nessa minha andarilhagem com Freire, tentando descobrir afinidades com outros educadores, lembrei-me que muitos/as deles ou delas descobriram que a única pedagogia decisiva é a pedagogia do amor, ou seja, a que visa “a educação do coração”, estabelecida como princípio-base da pedagogia de uma Congregação a serviço dos jovens pobres ou desamparados. São Leonardo Murialdo, fundador daquela Congregação, argumentava que se não chegarmos ao coração dos jovens nossos esforços serão inúteis. Ao perguntar-me em que sentido Freire poderia contribuir, para esta “pedagogia do coração”, ou seja, do amor, ocorreram-me três tópicos de suas falas. Em primeiro lugar, lembrei que Freire (2001, p. 213) conclui seu livro mais importante, Pedagogia do Oprimido, com o verbo amar. Leiamos: Se nada ficar destas páginas, algo, pelo menos, esperamos que permaneça: nossa confiança no povo. Nossa fé nos homens e na criação de um mundo em que seja menos difícil amar.
Outra citação exemplar é da entrevista do Pasquim, que Freire (1978, p. 11) conclui com a palavra amor: Para mim é imprescindível a afetividade e o amor. Eu tenho aliás recebido muitas críticas, sobretudo da América Latina, porque eu falo muito de amor e amor segundo essas críticas é um conceito burguês. Em primeiro lugar eu não admitiria que foram os burgueses que inventaram o amor. Eles podem ter a propriedade das fábricas, mas 63
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do amor não. O amor é uma dimensão do ser vivo e que ao nível do ser humano alcança uma transcendência espetacular. Nesse sentido é que eu digo que a revolução é um ato de amor (FREIRE, 1978, p. 11).
Na mesma entrevista, falando de suas aprendizagens no contato com a riqueza de diferentes culturas, ele diz que se tornou, “existencialmente, um bicho universal”, e explica: Mas só sou porque sou profundamente recifense, profundamente brasileiro. E por isso comecei a ser profundamente latino-americano e depois mundial. Eu sou capaz de querer bem, enormemente, a qualquer povo (FREIRE, Ib., p. 10).
Esse respeito de Freire às diferenças culturais, que aparece muito mais explicitamente em seu livro Cartas à Guiné-Bissau, e esse seu amor para com qualquer povo, nos abre o horizonte para o diálogo intercultural e para o ecumenismo. Depois de citar Freire, lembrei que, nessa “amorosidade” que perpassa toda a obra de Freire, Mounier também tem nas próprias obras e em sua práxis pedagógico-política, contribuições exemplares. Nos limites deste breve trabalho, trago apenas uma citação: Deveríamos dedicar ao amor, em nossas pesquisas, um espaço ao menos correspondente àquele que consagramos à inteligência, ou, com maior razão, à técnica (MOUNIER, 1962, p. 594).
Essa concepção de Mounier está em sintonia com o que já escrevera o velho Pascal: “O coração tem razões que a própria razão desconhece”. Nicolas Berdiaeff (1961, p. 24), filósofo existencialista russo, refugiado na França durante 64
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o regime soviético, amigo de Mounier e colaborador da revista Esprit, em sua obra Cinco Meditações sobre a Existência, dedicou o primeiro capítulo inteiro a um desdobramento extraordinário do pensamento de Pascal. Limito-me a citar o fragmento de um parágrafo: Atualmente, tende-se cada vez mais a admitir a existência de um conhecimento emocional, como o pensava Pascal, como o afirmou nos nossos dias Max Scheler, como o ensina Keyserling. É um preconceito pensar que o conhecimento é sempre racional. Conhecemos muito mais pelo sentimento que pela inteligência: é de notar que não só a simpatia e o amor, mas mesmo a inimizade e o ódio podem ser auxiliares do conhecimento. O coração está no centro do homem total. Verdade antes de tudo cristã. Todo o lado apreciativo do conhecimento é afetivo, exprime “as razões do coração”.
Herdeiros do Iluminismo, que absolutizou e deificou a razão, conduzindo-nos, por caminhos obscuros do racionalismo, do individualismo, da competição e da ganância do capitalismo, à beira da destruição da vida no planeta, são horas de redescobrirmos dimensões esquecidas ou negadas do humano, que os autores citados, em sintonia com Freire, nos apontam, a fim de lutarmos para a construção de um mundo mais amoroso e solidário. Falando em aproximações entre Freire e outros pensadores/educadores, algumas são bastante conhecidas, e as convergências ou complementaridades em geral reconhecidas e bem aceitas. Mas aproximações entre Freire e Foucault, pareciam-me impossíveis, até alguns anos atrás, e são absolutamente excluídas como impossíveis por alguns foucaultianos que conheço. Mas, um dia, fui convidado a participar de uma banca, para a defesa de uma dissertação de Celso Kraemer (2003) em Blumenau, intitulada Pontos de 65
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Encontro da Pedagogia Libertadora de Paulo Freire e a Proposta Libertária de Michel Foucault. Confesso que, de saída, o título me chocou. Mas aceitei o convite. E foi bom. Alguma aproximação pode ser discutível, talvez. Mas há várias que são histórica e teoricamente reais. Lembrarei uma, na brevidade deste estudo, em que a convergência nas ideias e na práxis pedagógico-científica não me deixou nenhuma dúvida. Trata-se das pesquisas de Foucault nas prisões. Nos relatórios dele, deixou escrito: “Não cabe a nós falarmos por eles, mas sim aos encarcerados se comunicarem entre eles e com a comunidade”. Totalmente de acordo com a Pedagogia do Oprimido, cujo sentido mais profundo e radical é sintetizado por Ernani M. Fiori, no título de seu magistral prefácio: Aprender a Dizer a sua Palavra. Aceitando a proposta da colega Ana Maria Colling, hoje professora visitante em Dourados/MS, escrevemos um trabalho intitulado Diálogos Impertinentes entre Freire e Foucault, para um livro intitulado Paulo Freire em Diálogo com Outros(as) Autores(as), organizado por Ana Lúcia S. de Freitas e outros colegas (FREITAS et al., 2014, p. 117-141). A essa altura do nosso voo em companhia de Freire, caberia uma aterrissagem em Porto Alegre/RS, para um diálogo com Ernani Maria Fiori, um dos maiores amigos e parceiros de luta de Paulo Freire. Já citei, há pouco, o título de seu prefácio, que Freire nunca perdia a oportunidade de louvar, pela profundidade e beleza que nele admirava. Algumas vezes, disse que, em edições seguintes da Pedagogia do Oprimido, tinha pensado em colocar o livro como prefácio e o prefácio como livro. Vou destacar um parágrafo daquele prefácio, relacionado diretamente com seu título: Com a palavra o homem se faz homem. Ao dizer a sua palavra, pois, o homem assume conscientemente sua essencial condição humana. E o método que lhe propi66
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cia essa aprendizagem comensura-se ao homem todo, e seus princípios fundam toda a pedagogia, desde a alfabetização até os mais altos níveis do labor universitário (FIORI, 1987, p. 56).
Citei o famoso prefácio na sua inclusão no volume II das obras de Fiori, cuja segunda edição está sendo providenciada pela Reitoria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), neste ano do centenário de nascimento de Ernani M. Fiori. Na minha andarilhagem através da obra de Freire, voo agora para a Pedagogia da Autonomia, o último livro publicado por Paulo Freire. Minha primeira impressão, ao tomar em mãos aquele “livrinho”, foi de ter sido escrito por Freire às pressas, para divulgar alguns pontos de seu pensamento pedagógico. Enganei-me. Aquele “livrinho” é uma pérola. Numa capacidade incrível de síntese, num estilo leve e convidativo, retomou todos os grandes temas de sua obra. Ele retomou, mais especificamente, a obra clássica Pedagogia do Oprimido, que visava à libertação como caminho para a autonomia das pessoas. Como a retomou em Pedagogia da Esperança, explicitando que a “esperança” dos oprimidos era, desde sempre, o objetivo maior de toda sua luta e obra. Aliás, eu costumo dizer que todos os seus livros são uma retomada, em contextos diferentes e diferentes situações, da mesma Pedagogia do Oprimido. Da Pedagogia da Autonomia, gostaria de chamar atenção para dois títulos: o 3.6 – Saber Escutar e o 2.9 – Ensinar Exige Curiosidade: do professor, desafiado pela curiosidade dos/ as alunos/as; e a curiosidade dos alunos, apoiados e estimulados, não reprimidos, dos alunos. O Saber Escutar pareceme muito importante, urgentíssimo, numa época de tantos individualismos e de tantas solidões. Reluzindo um pouco, ou bastante, o “verbalismo” pedagógico, tentação nossa permanente talvez, descobriremos que nossos/as educandos 67
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e educandas precisam muito mais de nossa escuta atenta e amorosa. O outro título, Ensinar Exige Curiosidade, me lembra Carlos Drummond de Andrade que escreveu, em 1973, um artigo intitulado A Educação do Ser Poético. Drummond inicia seu escrito dizendo que a criança é naturalmente poeta. Aos poucos, porém, vai perdendo esse “instinto poético”, até o mesmo desaparecer definitivamente na idade adulta. Então, Drummond pergunta se não é a escola que mata o ser poético da criança. Eu repasso a vocês, leitoras e leitores, a pergunta, com o convite para lerem o artigo de Drummond, junto com os textos, igualmente instigantes, de Paulo Freire. Neste pot-pourri, ou nesta revoada freireana, fomos com Freire ao contato com os povos de outros continentes. O que proponho agora é vermos sua obra em dimensões de América Latina. A obra de Paulo Freire não nasceu, quase que por geração espontânea, como resultado de uma ideia isolada de nosso pedagogo maior. Não podemos desconhecer que houve um processo amplo de luta de libertação dos povos da América Latina. Esse processo teve suas expressões teóricas numa Filosofia de libertação, numa Teologia da libertação, numa Pedagogia da libertação, cuja expressão clássica foi a Pedagogia do Oprimido, e de uma floração imensa de obras abrangidas sob um título historicamente consagrado: Educação Popular. Nesse contexto, devemos incluir diferentes metodologias alternativas de pesquisa qualitativa, consideradas “Pesquisa participante” ou “Pesquisa-ação”. Todo esse processo histórico latino-americano foi violentamente reprimido por vários regimes militares. Essas expressões teóricas não surgiram e não evoluíram isoladas, mas em diálogo e articulações permanentes. Basta lembrar dois exemplos desse diálogo. No primeiro livro de Gustavo Gutierrez, Teologia da Libertação, em 1971, o autor cita já Pedagogia do Oprimido, surgido em espanhol, 68
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em Montevidéu, em 1978. O outro registro é da obra Por uma Ética da Libertação, de Enrique Dussel, que dedica mais de dez páginas à contribuição de Freire. Os ditadores da América Latina através da repressão, dos cárceres, da tortura, dos exílios e dos cemitérios clandestinos, julgaram que estariam jogando ao vento os sonhos dos povos do continente. Os sonhos não são cinza. O vento não os leva. Eles são trigo, que renasce da terra que o acolheu. Resgatemos a história e cultivemos a seara, porque os tempos são de colheita. Ao falar de um “processo amplo de libertação” dos povos latino-americanos violentamente reprimidos, não significa, por um lado, que esse processo foi encerrado com a repressão e, por outro, que ele está realizado com os processos de redemocratização, pois as estruturas de dominação e de opressão continuam, através de outras formas de colonialismo. Neste sentido, convém lembrar que Freire é considerado, assim como Frantz Fanon, um dos “clássicos da descolonização”. Nessa perspectiva anticolonialista de Freire e Fanon, basta citar duas fontes. A primeira, o livro Pedagogia do Oprimido na tradução italiana (La Pedagogia degli Oppressi) que traz como subtítulo Dal Terzo Mondo Il libro più importante dopo I Dannati della Terra (Do Terceiro Mundo o livro mais importante depois de Os Condenados da Terra). A segunda referência é um artigo de John O’Neill (1974), intitulado A Linguagem da Descolonização: Fanon e Freire. Essa lembrança da obra de Freire como “clássico da descolonização” parece-me importante, em relação a um fenômeno bastante difuso de neo-colonialidade em nossas universidades, quando muitos docentes consideram que só no “Norte” do globo se pensa e se produz conhecimento sério, fenômeno já denunciado pelo próprio Sartre (179, p. 3), quando inicia seu famoso prefácio ao livro Os Condenados da Terra, de Franz Fanon, escrevendo: 69
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Não faz muito tempo a terra tinha dois bilhões de habitantes, isto é, quinhentos milhões de homens e um bilhão e quinhentos milhões de indígenas. Os primeiros dispunham do Verbo, os outros pediam-no emprestado.
O livro traz nas orelhas um texto admirável do eminente Antônio Houaiss, que começa assim: O negro – meu irmão – Frantz Fanon é uma das antenas vivas da consciência humilhada contemporânea. Não apenas da consciência, senão que da situação histórica, cuja imobilização é um ideal dos senhores das estruturas arcaicas - quer as ditas desenvolvidas, quer as subdesenvolvidas, não raro, em certos casos, hipocritamente eufemizadas como “em desenvolvimento”.
As afinidades de Houaiss com Fanon, com Sartre do Prefácio e com Freire, parecem-me evidentes. Uma aproximação que não pode faltar é a de Paulo Freire e Clodomir Santos de Morais, outro importante intelectual linchado pela ditadura, e tão considerado em diferentes partes do mundo, tanto que o livro Um Futuro para os Excluídos (CARMEN; SOBRADO, 2002), no qual ele aparece em coautoria com vários estudiosos de sua obra, foi publicado antes em inglês, em Londres e em Nova York, em 2000, e traduzido e publicado, no Brasil, em 2002. Dele temos, entre outros livros, a obra Teoria da Organização Autogestionária (MORAIS, 2002). Eu já disse algumas vezes que Clodomir pode ser considerado o “Paulo Freire no campo da organização e da gestão dos oprimidos”. Um dos livros de Freire em coautoria com Sérgio Guimarães traz, anexa, uma linda carta de Freire ao amigo, que numa das prisões de Paulo Freire dividiu com ele a cela. O Clodomir é mais uma das muitas vítimas daquela síndrome necrófila denunciada por Afrânio Coutinho, que, 70
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ao prefaciar um livro do Anísio Teixeira, declara que nós, brasileiros, somos tristemente famosos por condenar ao esquecimento personalidades da nossa história. Neste pot-porri, ou nesta revoada sobre a obra de Paulo Freire, não posso omitir o tema da “condição da mulher”, ou seja, a questão de gênero, segundo Freire. Recentemente, escrevi um verbete sobre “a condição da mulher na obra de Paulo Freire”, para um dicionário dedicado à questão do gênero, que está sendo organizado. Aquele verbete eu já o retomei, aprofundando e ampliando meu estudo, para enviar como artigo a uma revista. No verbete, e mais ainda no artigo, dediquei várias páginas aos diálogos, nada fáceis, de Paulo Freire com as feministas americanas, que o acusavam de usar uma linguagem machista no livro Pedagogia do Oprimido. Embora no início ele reagisse, custando a aceitar aquelas críticas, que pareceriam até bastante discutíveis, depois passou a levar muito a sério o que ele denomina “débito àquelas mulheres”, e declara: “Escrevi, então, a todas, uma a uma, acusando suas cartas e agradecendo a excelente ajuda que me haviam dado” (FREIRE, 1992, p. 67). No artigo, cito outro movimento muito amplo e dinâmico de mulheres, na Suíça, que, inspiradas na Pedagogia do Oprimido, e apoiadas pelo Instituto de Ação Cultural (IDAC), realizaram um trabalho de amplo alcance, na perspectiva da libertação da mulher. Um detalhe importante: nunca referiram que a obra pecasse por uma linguagem machista. A luta contra todas as formas de opressão e discriminação acompanhou Freire por toda a sua vida, até o brado final de sua Terceira Carta Pedagógica, que deixou inconclusa sobre sua mesa: Desrespeitando os fracos, enganando os incautos, ofendendo a vida, explorando os outros, discriminando o índio, o negro, a mulher, não estarei ajudando meus filhos a ser sérios, justos, amorosos da vida e dos outros... (FREIRE, 2000, p. 67). 71
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Nota Doutor em Ciências da Educação pela Université Catholique de Louvain/Bélgica (1985); mestre em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação (PPG/Edu) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) (1977); mestre em Psicopedagogia (pré-requisito ao doutorado), Université Catholique de Louvain (1983); bacharel em Filosofia pelo Seminário Central de São Leopoldo (1952); bacharel em Teologia pelo Instituto San Pietro/Itália (1959) e licenciado em Filosofia pela Faculdade Nossa Senhora Medianeira/São Paulo (1968); professor titular aposentado da UFRGS (1978 - 1996); ex-diretor da Faculdade de Educação da UFRGS (1988 - 1992); professor visitante do PPG/Edu da UFPel de Pelotas (1997 - 2000); professor do Instituto Ecumênico de Pós-graduação (IEPG) da Escola Superior de Teologia (EST) de São Leopoldo (2001 2005); professor do Mestrado em Educação do Centro Universitário La Salle (Unilasalle) de Canoas/RS (2006 - atual). E-mail: balduinoandreola@yahoo.com.br 1
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Cinco razões para dialogar com Paulo Freire Danilo R. Streck1
Notas sobre o panorama pedagógico contemporâneo2
O
pensamento pedagógico brasileiro contemporâneo apresenta-se como um mosaico que torna difícil a classificação em correntes. Não despontam, no cenário, embates como, há algumas décadas, entre rogerianos (ROGERS, 1977) de um lado, defendendo a autodiretividade na educação e, do outro lado, os skinnerianos (SKINNER, 1970), desejando construir instrumentos para o efetivo controle do comportamento. Mesmo dentro do campo progressista, havia tendências que se confrontavam e expressavam perspectivas pedagógicas e ideológicas distintas (STRECK, 2005). As políticas neoliberais, no contexto do que passou a ser conhecido como o consenso de Washington, parecem ter criado também certo consenso pedagógico, cujos efeitos são sentidos tanto na educação escolar quanto na não escolar. Há clara discrepância entre o discurso das diferenças e a padronização com “medidas” nacionais e internacionais. O aspecto positivo é que se superam visões maniqueístas entre o bem e o mal, entre certo e errado, atribuindo a uma ou outra teoria pedagógica o caráter salvacionista. Possivelmente, as pesquisas, na área da educação, surgidas com a criação dos programas de pós-graduação, há pouco mais de quatro décadas, foi fator importante para mostrar a complexidade do processo pedagógico e da construção de 75
Cinco razões para dialogar com Paulo Freire
políticas e estratégias para enfrentar as dificuldades. Essa perda de certa ingenuidade pode ter tanto o efeito anestesiante, com sensação de impotência, ou também levar a buscas por caminhos antigos e novos. Em rápida tentativa de mapear o pensamento pedagógico atual, identificam-se os seguintes discursos (ou metáforas) como mais recorrentes entre educadores e teóricos do campo: (a) o construcionismo, que enfatiza a cognição, o sujeito aprendente e a ação como princípio da aprendizagem; (b) as teorias sistêmicas, apoiadas na noção de autorregulação e autoformação do organismo vivo (autopoiése) e em redes; (c) as teorias pós-estruturalistas, que acentuam a diferença entre pessoas, grupos e culturas, destacando o papel da linguagem para a construção social da realidade e no exercício do poder; (d) a dialética (sócio-histórica), que busca compreender a prática educativa no contexto das contradições da sociedade e que usa o vocabulário da práxis, da transformação social e revolução; (e) a perspectiva tecnocêntrica, que aposta no uso e na difusão das novas tecnologias, especialmente as digitais, para produzir uma nova sociedade; (f) a pedagogia holística, ou ecológica, que busca promover nova relação entre os seres humanos e desses com a natureza da qual são parte; (g) a perspectiva das competências que tem sua atenção voltada para as necessidades do mercado, cabendo à educação a tarefa de suprir os profissionais e as subjetividades adequadas. Esse mapa é incompleto e há inúmeras possibilidades de cruzamento entre essas perspectivas. Por exemplo, uma visão dialética, que busca conhecer o movimento da história e, dentro dele, as contradições e possibilidades, pode cruzar-se com teorias que têm o seu foco na ecologia. A formação de profissionais competentes pode apoiar-se em princípios pedagógicos do construtivismo. O que o quadro revela é, sobretudo, ampla diversidade de perspectivas que, no entanto, tendem a conformar-se às 76
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forças do mercado que hoje regulam as relações entre as sociedades e as pessoas. Ou seja, apesar dos diferentes enfoques, a prática educativa revela uma lógica envolvente que seduz, induz ou se impõe em discursos e padrões globalizados. A seguir, são analisados alguns aspectos do pensamento pedagógico de Paulo Freire como contribuição para compreender o atual cenário pedagógico e para continuar na construção de inéditos viáveis pedagógicos, que correspondam aos desafios de nossa sociedade. Hoje, mais do que nunca, nenhum educador pode dar-se por satisfeito em conhecer um só autor ou apenas uma teoria. As muitas facetas da vida individual e em sociedade exigem o cotejamento de perspectivas que podem tanto funcionar como complementação mútua, como iluminadoras de diferenças e de desafio para revisões e recriações. O título sugere dois endereços distintos. Por um lado, tem-se em mente quem se vê frustrado e isolado em sua leitura de Paulo Freire. “Paulo Freire de fato não tem mais o que dizer para nós, hoje?” é uma pergunta que ouço com certa frequência, muitas vezes de jovens que recém encontraram, em alguma obra de Freire, uma porta para entrar no mundo da pedagogia. As razões também se dirigem para quem está em busca de caminhos e talvez não tenha se detido na obra de Paulo Freire ou a vê reduzida a um ou dois slogans que penetraram no senso comum da pedagogia, como “educação bancária” ou “conscientização”.
Um pensador do (ser/tornar-se) humano Ressurge, hoje, a pergunta sobre o que representa ser ou tornar-se humano. Isso se deve, por um lado, à persistência, quando não ao incremento, de formas de opressão e desrespeito ao outro. Paulo Freire (2000, p. 65) escreve 77
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entre espantado, indignado e perplexo - a respeito dos cinco adolescentes que mataram o índio pataxó Galdino, no texto que redigia em 21 de abril de 1996, dias antes de sua morte: Que coisa estranha, brincar de matar índio. Fico a pensar aqui, mergulhado no abismo de uma profunda perplexidade, espantado diante da perversidade intolerável desses moços desgentificando-se, no ambiente em que descresceram no lugar de crescer.
Situações como essa contrapõem-se às infinitas ações, no cotidiano, de solidariedade e compaixão. Se as primeiras encontram espaço na mídia e causam essa perplexidade, é porque revelam essa deturpação ontológica do ser de que falava Paulo Freire e que antes de ser um conceito teórico é a manifestação da própria vida. Esta, como argumentava outro importante educador da geração de Paulo Freire, Hugo Assmann (1996), gosta de si e, por isso, está aberta e preparada para aprender. O tema da humanização, porém, assume ainda contornos mais complexos quando se pensa o “humano” no contexto das descobertas da biologia e das novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC). Do ponto de vista biológico, os limites entre o animal homem e os demais animais não são mais tão evidentes e os argumentos baseados na natural superioridade dos humanos deixou de ser motivo suficiente para justificar a ação moral. Estaria certo Francis Fukuyama (2002, p. 151), quando argumenta, no livro Our Post-human Future, que “o processo de tomada de decisão humana pode ser mais complexo que o de outros animais, mas não há uma clara linha divisória que distingue a escolha moral humana do tipo de escolhas que são feitas por outros animais”? Nessa parte do livro, o autor está à procura do Fator X, ou seja, aquilo que, no fim das contas, poderia servir 78
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de justificativa para a dignidade humana. O argumento de Fukuyama é que temos, hoje, condições de alterar o que, historicamente, se considerou como natureza humana e que, por isso, estaríamos entrando num período pós-humano da história. De maneira semelhante, Jürgen Habermas (2004, p. 40), em O Futuro da Natureza Humana, escreve que “tememos a perspectiva de que os homens projetem outros homens, pois essa possibilidade desloca a fronteira entre o ocaso e a decisão, que está na base de nossos critérios de valor”. Apesar dos avanços da biologia, especialmente da pesquisa genética, estão também muito presentes na memória as atrocidades cometidas em nome dessa mesma ciência. Um médico que participou da morte de seres humanos com deficiência psíquica ou física, patrocinada pelo governo nazista na Alemanha, fez o seguinte comentário, depois que o fato tornou-se público: “Que aquilo que eu fazia era assassinato, esse pensamento só me foi possível tê-lo depois de 1945, e desde então ele me acompanha insistentemente em todos os momentos” (apud ASSMANN; MO SUNG, 2000, p. 112). Justificam-se, portanto, as reservas quanto à fé cega na ciência como definidora da natureza humana. Por outro lado, com os avanços tecnológicos, muitos artifícios foram incorporados, ao funcionamento do organismo e à relação com o meio, de tal forma, que se tornaram “naturais”. Christina Schachtner em artigo com o título de Vida Híbrida no Mundo dos Computadores: Assaltos ao Sistema de Gênero, escreve o seguinte: O desenvolvimento e utilização das novas máquinas nos leva a um mundo em que características chaves são a ambiguidade e a incerteza. Nossos conceitos de identidade masculina e feminina, de relações interpessoais, de moral, de corporeidade, de ser vivo e de artefato inerte são postos à prova. Como nós classificaremos a 79
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nós mesmos num mundo em que não temos mais certeza sobre o que é semelhante a nós ou o que é diferente?
A ficção científica, especialmente representada em filmes, como Matrix, explora essa perspectiva de futuro que, ao mesmo tempo, atemoriza e fascina os seres humanos. Humanos e máquinas mesclam-se de tal forma que distinções são praticamente impossíveis. Nos parágrafos iniciais de Pedagogia do Oprimido (1981, p. 29), Paulo Freire expõe o que pode ser entendido como a base de toda a sua prática educativa e de seu ideário pedagógico. A dramaticidade da hora impõe, conforme ele argumenta, que os homens (sic!) 3 se proponham “a si mesmos, como problema”. A tarefa que ele propõe há mais de quatro décadas é tão urgente hoje quanto no seu tempo: “O problema de sua humanização [do homem], apesar de sempre dever haver sido, de um ponto de vista axiológico, o seu problema central, assume, hoje, caráter de preocupação ineludível”. Educação, por tudo o mais que possa ser, tem a ver primeiro com tornar-se humano. Ou seja, na visão de Paulo Freire, viemos a este mundo com a possibilidade de humanização (gentificação), ou o seu inverso, a desumanização (a desgentificação). Isso significa que não há medida fixa para o ser humano. Freire coloca-se na tradição de Rousseau (1995, p. 45) que, no primeiro livro do Emílio, enquanto reflete sobre o papel do preceptor, declara: Que eu saiba, nenhum filósofo até agora foi suficientemente ousado para dizer: eis o termo aonde o homem pode chegar e que não seria capaz de ultrapassar. Ignoramos o que nossa natureza nos permite ser; nenhum de nós mediu a distância que pode haver entre um homem e outro homem.
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Freire não se volta, como fez Rousseau, a um estado natural, para justificar possível bondade inata do ser humano, mas vê o ser humano se formando na história e dentro da tensão entre humanização e desumanização. No conceito de “ser mais”, como possibilidade de estar aberto ao mundo e de transcender, Freire encontra o fundamento para a ação político-educativa emancipatória. Como busca na história, esse movimento implica risco. Daí a importância de não esquecer a sua advertência em Pedagogia da Autonomia (2000, p. 30) de que “uma das condições necessárias a pensar certo é não estarmos demasiado certos de nossas certezas”. Contribuição da obra de Paulo Freire para o panorama pedagógico atual é que ele colocou no centro da discussão pedagógica a questão do ser (como verbo e sujeito) humano, seguindo uma preocupação central do pensamento pedagógico ocidental, desde a paidéia grega, passando pela Didática Magna, de Comenius, e Emílio, de Rousseau. “Nosso verdadeiro estudo é a condição humana”, diz Rousseau (Id, p. 14). E essa condição humana, acrescentaria Paulo Freire, revela-se e constrói-se nos embates da história por libertação de todas as formas de opressão. É nessa busca que se pode encetar também o diálogo com diferentes disciplinas e tradições culturais, como o fez Paulo Freire em suas andarilhagens pelo mundo das pessoas, das culturas, dos projetos políticos e das ideias. Um pensador conectivo Paulo Freire dizia de si que era um “menino conectivo”. Da gramática, sabemos que os conectivos ligam duas palavras ou orações e podem exercer várias funções, indicando condições, concordância ou discordância, estabelecendo relações de dependência, ou simplesmente ligando elementos iguais. Em Paulo Freire, veem-se duas características, enquanto ser conectivo. 81
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A primeira delas simplesmente estabelece o desejo de dar continuidade a uma ideia, seja acrescentando, reduzindo ou se contrapondo. Encontramos, em seus textos, enorme variedade e quantidade de interlocutores, desde autores de reconhecimento acadêmico internacional até o camponês ou a professora com quem ele manteve uma conversa. Carlos Rodrigues Brandão (2010, p. 42) vê, com perspicácia, uma analogia entre a andarilhagem geográfica de Freire em todos os continentes do mundo, com a sua vocação acadêmica: Uma igual vocação coerentemente errante e andarilha atravessa também o seu imaginário. Em tempos em que pessoas, grupos e movimentos sociais não raro reduziam o olhar de suas ideias alguns poucos autores de uma única teoria social, Paulo Freire foi sempre um tecelão de diferenças. Uma leitura atenta de Pedagogia do Oprimido – como um entre outros exemplos – revela a construção de uma teoria de educação e de uma proposta de prática pedagógica de vocação popular e emancipatória fundada em um encontro de diversidades. Lá estão Lênin e Mao Tsé-Tung ao lado de Karl Jaspers e Martin Buber. Andarilhagem de espírito que poucos ousavam então ousar.
Para desgosto de quem precisa enquadrar todos os pensamentos em uma corrente filosófica ou pedagógica, aqui está alguém que não hesitou em beber de várias fontes sem ficar refém de uma delas. Daí ele citar, em sua última entrevista à TV PUC de São Paulo, a dificuldade que muitos tiveram em compreender a sua vinculação com as ideias de Marx e os ensinamentos do cristianismo. Ao que ele responde que foi por certa lealdade a Cristo que foi aos mangues e favelas do Recife, mas foi a realidade dura do povo que fez com que se voltasse a Marx para “encontrar uma fundamentação objetiva para continuar camarada de Cristo”. 82
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Outra leitura da conectividade em Paulo Freire pode ser apreendida com o uso que faz de conectivos que indicam contradições e tensões. Paulo Freire se posiciona como um pensador dialético e como tal enfatiza as contradições que encontra na sociedade e que são expressas em binômios como sociedade fechada versus sociedade fechada, homem objeto versus homem sujeito, opressor versus oprimido, educação bancária versus educação problematizadora, entre outras. Essa forma de expressão indica que existem distintos projetos de sociedade que exigem posicionamento ético-político. A neutralidade é, para ele, uma impossibilidade histórica, uma vez que ninguém é capaz de viver fora do mundo criado pelos humanos, de acordo com seus interesses e suas necessidades. Essa maneira de pensar deu origem a críticas de que o pensamento de Paulo Freire se move entre dualismos que seriam inaceitáveis hoje. Esquecem-se, essas críticas, que desde o início de sua obra Paulo Freire também fala do inacabamento do mundo e do ser humano, e que não há, portanto, um termo de chegada preestabelecido. Jaime Zitkosky (2010, p. 117), ao analisar o conceito de dialética em Freire, acentua essa diferenciação relacionando-a à tradição moderna. De uma forma distinta dos clássicos da dialética moderna (Hegel e Marx), há em seu pensamento uma significativa diferença no modo como fundamenta o processo dialético da vida humana em seu todo, pois parte da realidade concreta dos seres humanos desumanizados com o objetivo de problematizar seu mundo através do diálogo crítico e transformador das culturas.
Há em Freire, argumenta Zitkosky, um retorno às origens gregas, ao recolocar a relação entre dialética e diálogo, superando a clássica tríade “afirmação – negação – 83
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negação da afirmação”, cuja tendência é reforçar a tese por eliminar as contingências. Na dialética-dialógica freireana, por seu turno, os dois polos são mantidos em permanente tensão, oportunizando a emergência do novo. Assim sendo, a contradição entre opressores e oprimidos não se resolve com a eliminação dos opressores, pois os oprimidos também hospedam, em si, os seus opressores e suas relações interpessoais e grupais não estão isentas de opressão. Além disso, como a história é um processo aberto que se constrói entre as contradições reais da vida, novas formas de opressão ou de exclusão aparecerão com as lutas por libertação (STRECK, 2009). O livro Pedagogia da Esperança merece leitura especial, sob esse enfoque, visto que a metáfora da trama parece sinalizar a complexidade dentro da qual se constrói a trajetória de vida do indivíduo, o emaranhado de circunstâncias e contingências objetivas e subjetivas que entram nas mudanças da sociedade e o conjunto de fatores contidos no ensinar-aprender. Mesmo assim, a realidade concreta das pessoas permite ver que todas essas circunstâncias e contingências não são nem naturais nem acidentais, mas correspondem a visões de mundo e pessoa. Essa posição dialético-dialógica pode ajudar a superar visões que (1) se abandonam ao pragmatismo simplório do “assim é”; (2) aderem ao discurso relativista de diferenças; ou (3) a um saudosismo por verdades universais e eternas. Para Freire, nada é assim porque é, porque nada existe fora da história; as diferenças devem ser vistas dentro de uma universalidade plural (uma ética universal do ser humano), e as verdades eternas não dão conta do fato de que, se a própria natureza humana é construída na história, também os conceitos e as ideias são forjadas nesse movimento.
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Um pensador da transição As discussões sobre modernidade e pós-modernidade refletem que se vive um período em que as mudanças tendem a ser percebidas com mais intensidade do que as permanências. Boaventura de Sousa Santos (2000) fala, do ponto de vista epistemológico, em ruptura paradigmática, quando a compreensão de como se produz o conhecimento, bem como o seu significado, são questionados e quando as alternativas nem sempre estão disponíveis. Na América Latina, Enrique Dussel (1993) defende um pensamento transmoderno, que conserva o núcleo emancipador da modernidade, mas aponta, ao mesmo tempo, para a superação da modernidade eurocêntrica, ao reconstruí-la a partir do outro, a face esquecida e tornada invisível no processo de conquista. Paulo Freire sabe conviver com essa sobreposição, ou encontro de tempos, de forma a evitar tanto a visão unilinear de desenvolvimento quanto de relativizar todas elas. Ao dialogar com Sérgio Guimarães (1984, p. 14) sobre o papel dos modernos meios de comunicação na educação, ele afirma: “Tenho a impressão de que o melhor que posso dizer, no começo da minha reflexão em torno desse problema, é: uma das coisas mais lastimáveis para um ser humano é ele não pertencer a seu tempo. É se sentir, assim, um exilado de seu tempo”. O desafio, dirá ele, que cada pessoa tem como tarefa histórica, [...] é assumir o seu tempo, integrar-se, inserir-se no seu tempo. Para isso, porém, mais uma vez, eu chamo a atenção dos moços para o fato de que a melhor maneira de alguém assumir o seu tempo, e assumir também com lucidez, é entender a história como possibilidade (FREIRE, 1991, p. 89).
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Além de reforçar que o tempo histórico é criação dos seres humanos e que cada pessoa tem o direito de participar da configuração desse tempo, Freire (1995, p. 26) reconhece ainda que esse tempo, na América Latina, é plural: Minha terra é a coexistência dramática de tempos díspares, confundindo-se no mesmo espaço geográfico – atraso miséria, pobreza, fome, tradicionalismo, consciência mágica, autoritarismo, democracia, modernidade e pós-modernidade. O professor que na universidade discute a educação e a pós-modernidade é o mesmo que convive com a dura realidade de dezenas de milhões de homens e de mulheres que morrem de fome.
São tempos diferentes, com suas virtudes e limitações, que devem ser reconhecidos dentro da diversidade e submetidos ao mesmo crivo ético, que, para Paulo Freire, é a humanização a partir do oprimido. Trata-se de reconhecer a “ecologia de temporalidades” (SANTOS, 2004), mas não como grandezas absolutas e estanques. A pergunta dirigida a cada um desses tempos é sobre a maneira como favorecem ou dificultam a humanização. Era essa a discussão que já fazia, na década de 1960, quando argumentava que modernização não é necessariamente desenvolvimento, uma vez que este implica que o centro de decisão esteja no sujeito, quer seja o indivíduo ou a sociedade. Pode-se argumentar que, assim como em Comenius se encontra a primeira tentativa de sistematizar o que viria a ser a pedagogia moderna e em Rousseau a integração dessa pedagogia em um contrato social, tem-se, em Paulo Freire, a colocação de elementos-chave para a construção da pedagogia de um novo contrato social, que incorpora os avanços do contrato social moderno, e, ao mesmo tempo, avança em sua revisão tanto no respeito às diferenças quanto ao efetivo compromisso com a igualdade; que compreenda o 86
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desenvolvimento humano integrado com o movimento e a preservação da natureza e da vida4.
Um pensador que se recria Assim como é difícil enquadrar a obra de Paulo Freire em uma corrente teórica, também parece pouco produtivo buscar a periodização rígida de sua produção, porque, desde o início, ele combina permanências e mudanças que fazem o seu trabalho acompanhar os tempos. Também tem a ver com o fato de que seus livros não apresentam uma teoria, como ponto de partida, mas práticas concretas, as quais mudam de acordo com a geografia e os tempos. Pode-se falar numa verdadeira estética de recriação, no sentido de ser uma arte de se movimentar no tempo (ou nos tempos, como apresentado no item anterior) com leveza, seriedade e paixão. Estética, diz Augusto Boal (2009, p. 31), não como a ciência do Belo, mas da comunicação e da sensibilidade. “É a organização sensível do caos em que vivemos, solitários e gregários, tentando construir uma sociedade menos antropofágica.” O poeta e companheiro de exílio no Chile, Thiago de Mello (2010, p. 319), captou bem essa estética de reinvenção, com a palavração, que vira palavramundo. O gosto pelas metáforas, Paulo diz que tem e é bom. Pois lhe permite andar pelas ruas da história, ver e ouvir com nitidez o contorno sonoro do camponês, livre das esquinas arestosas que nos fere. Paulo é dono de um pensar que leva a gente a pensar. É a sua maneira corajosa de amar. Ele chega e anima: o tempo é fundante, o inédito é viável, e nos encoraja contra o cansaço espiritual, o medo da aventura, a esperança vazia, porque aprendeu que desse cansaço nasce uma anestesia histórica.
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Pode-se partir do pressuposto de que o que inspira e carrega a obra de Paulo Freire são os movimentos sociais populares; as marchas que ele gostaria de ver se multiplicando na busca de dignidade (STRECK, 2010). A grosso modo, esses momentos constituintes podem ser agrupados em três categorias, que correspondem à emergência e construção do popular, na América Latina; à elaboração de uma perspectiva dentro de outros movimentos no mundo e ao engajamento na luta pela democratização e pelos direitos humanos em sua pátria.
Um pensador de ideias largas e profundas As ideias de Paulo Freire são expressivas e amplas como os gestos de suas mãos quando falava. Havia em suas expressões uma plasticidade que permitia identificar duas características muito distintas e que nem sempre são encontradas juntas. Quem sabe até raramente. Por um lado, as suas ideias têm um escopo amplo, não cabendo nem em uma disciplina e muito menos em uma subárea especializada. Basta ver a quantidade de aproximações que sua obra tem proporcionado, desde os clássicos, como John Locke e Rousseau, até os autores atuais, como Habermas, Enrique Dussel, entre tantos outros. Ao mesmo tempo, existe em seu pensamento uma profundidade que não se esgota nos diálogos com os autores. Em vez de atribuir essa forma de trabalhar a eventual superficialidade, deve-se compreender que tem a ver com a fonte na qual ele baseia seu pensamento: a prática. É por isso que ele também argumenta que é falso dizer que existe teoria em demasia. O erro está em fazer uma teorização descolada da prática, que acaba em mero verbalismo. Há dois aspectos, nessa afirmação de Paulo Freire, que merecem ser destacados.
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Primeiro, é um movimento intencional de voltar-se sobre a realidade, de “ad-mirá-la”. Essa volta, no entanto, implica tomar o próprio ato de pensar como objeto da reflexão, tornando-se consciente dos pressupostos e das possibilidades de interpretação e compreensão. Significa, em termos de Paulo Freire, assumir a politicidade e historicidade do próprio ato cognoscitivo. Segundo, é entender que não existe uma teoria que precisa ser relacionada com uma prática, mas que a teoria é a explicitação de uma prática, estando ambas, portanto, em permanente recriação. Assim como o ser humano e o mundo são incompletos, também o pensamento que se origina e orienta a prática deve ser entendido como sujeito a adaptações e correções. Não é por menosprezo a seus colegas educadores e também não por desconhecimento das teorias antigas e novas, que Paulo Freire não se contrapõe-se ou faz apologias a pensadores. O argumento que parece utilizar com insistência e coerência é que a mudança na educação não virá dos acordos ou desacordos entre teóricos, mas de um voltar-se aberto e comprometido sobre a prática, a partir de certos princípios éticos, políticos, epistemológicos e pedagógicos. Essa largueza do pensamento é acompanhada de uma profundidade que, considero, pode ser percebida no fato de Paulo Freire ser lido e estudado em tantos lugares do mundo onde educadores e profissionais de outras áreas buscam inspiração e exemplos de uma prática transformadora. É como o movimento da pedra que, jogada na superfície do lago, provoca a formação de ondas que vão se abrindo na medida em que a pedra afunda. Leonardo Boff (2010, p. 408) capta essa profundidade em sua análise do conceito de transcendência em Paulo Freire. É uma transcendência não dicotomizada da imanência, mas que mantém essas duas expressões da vida humana em tensão.
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Os lugares privilegiados dessa experiência imanênciatranscendência é o encontro com o outro, o enamoramento, o amor, a criatividade, entre outros. Mas é no processo de libertação da situação de opressão, construindo o reino da liberdade e da criatividade que se mostra a realização da transcendência. Ela foi descrita passo a passo por Paulo Freire.
Conclusão: sobre o ato de ler Paulo Freire Para terminar esta reflexão, reporto-me ao texto A Importância do Ato de Ler (1982), no qual Paulo Freire coloca alguns parâmetros que podem servir para a leitura da sua própria obra. Nesse texto, apresentado na abertura do Congresso Brasileiro de Leitura, realizado em Campinas, em 1981, constata-se um exercício de um escritor e autor que agora se coloca (também) como leitor, inclusive do próprio texto. Tal como ele já enfatizava no processo de alfabetização, sua luta é contra uma leitura mecânica, que não permita construir a transitividade entre a consciência e o mundo, entre a palavra e o contexto. O que significa a afirmação de que “linguagem e realidade se prendem dinamicamente” na leitura da obra de Freire? Olhando para a elaboração que ele propõe, tem-se um círculo hermenêutico que compõe-se de pelo menos três elementos. Um deles é o próprio texto como uma codificação produzida por alguém e colocada diante de outros para decodificação. O texto são letras, símbolos e representações que Freire inclui no conceito de linguagem como instrumento de construção do mundo e, ao mesmo tempo, como meio de constituição do sujeito. Ou seja, também os seus escritos deveriam ser vistos como codificações que têm sua história e não como dogmas que precisariam ser apenas aplicados, eventualmente, com atualizações.
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Acontece que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”, diz, e assim o texto deixa de existir por si. E aí vêm os dois outros elementos do “círculo hermenêutico”. Um é o contexto no qual o texto foi produzido pelo autor. Ler um texto de Paulo Freire significa compreender também o contexto no qual foi elaborado. Por exemplo, nos 10 anos de atuação no Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra, seus textos refletem muito do contexto teológico em que vivia. A oportunidade de conviver com grandes teólogos, bem como assessorar práticas educativas e pastorais inspiradas pela teologia progressista da época, fizeram com que incorporasse conceitos teológicos como a “páscoa” (para referir-se à transformação radical da pessoa e da sociedade), o “anúncio” e a “denúncia” (para significar a construção de inéditos viáveis), etc. Sua experiência como secretário de Educação na cidade de São Paulo se traduzirá em reflexões sobre o poder, o papel da escola, os profissionais da educação, etc. O terceiro elemento fortemente destacado no referido texto é o mundo do leitor. Daí ele referir, por exemplo, como as palavras e os textos por ele lidos se “encarnavam” em suas experiências de infância, o seu mundo do qual faziam parte as árvores, os animais e a linguagem dos mais velhos. Trazendo para a leitura da obra de Freire, isso significa entabular um diálogo franco com as palavras lidas a partir da própria experiência como educador ou profissional de outra área. Significa permitir que as palavras encontrem experiências nas quais possam ganhar corpo e concretude, o que não implica necessária e automaticamente a concordância com o texto lido, mas abertura para o diálogo. Assim também se pode compreender porque existem tantas entradas para ler a obra de Paulo Freire ou de qualquer outro autor. Seria um equívoco estabelecer uma ordem de importância, nas obras de Paulo Freire, ou uma espécie de “canon” das principais obras. A relevância e a significação serão dadas pelo encontro entre o leitor e a obra. Nessa mesma lógica, cada um/uma deverá encontrar as 91
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suas razões para ler (ou para não ler) Paulo Freire. O exercício acima pretende contribuir na busca que hoje fazemos para compreender, orientar e mudar a nossa prática educativa. São algumas razões pelas quais a obra de Paulo Freire merece estar presente em nossas leituras e reflexões.
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Notas Professor do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). E-mail: dstreck@unisinos.br 2 O projeto do qual este texto se origina conta com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Colaboram no projeto os seguintes bolsistas de iniciação científica: Jonas Hendler da Paz, Letícia da Silva, Vinicius de Oliveira Masseroni e Andressa Espíndola Trindade. Agradeço à bolsista Tamires Pinto Alves, a elaboração dos hiperlinks de autores citados. 3 Paulo Freire reconhece as críticas do caráter machista de sua linguagem nos primeiros escritos e passa a usar uma linguagem, inclusive, do ponto de vista de gênero. 4 Para a elaboração deste, tem a ver o livro Educação para um Novo Contrato Social (2003), publicado também em espanhol, inglês e alemão. 1
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Esperança e educação no pensamento de Paulo Freire: perspectivas emancipatórias da ação dialógica Bianco Zalmora Garcia1
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teoria freireana da ação dialógica - na perspectiva utópica da superação historicamente possível de contextos desumanizantes - fundamenta a práxis libertadora em suas interfaces política e educacional. Essa fundamentação, constituída a partir da dialogicidade radicada na experiência vital do ser humano, apresenta duas interfaces indissociáveis: epistemológica e ética. Para Paulo Freire, o ser humano - situado no mundo e com o mundo, interagindo nele - está em permanente devir. Impulsionado por sua curiosidade, ao fazê-la cada vez mais crítica, torna-se capaz de realizar sua vocação ontológica de ser mais. Assim, à medida que vai se reconhecendo e se assumindo como sujeito, na interação solidária com outros sujeitos, no conhecimento crítico da realidade em que está inserido, o ser humano projeta-se para os horizontes utópicos da liberdade impregnados de substantividade democrática, a partir do aqui e agora do contexto cotidiano em que atua, e é instigado a transformá-lo, por seu comprometimento, responsabilidade e solidariedade intersubjetiva, na e pela práxis. Seu engajamento pressupõe (e exige) decisão, opção, ruptura nas vicissitudes históricas e sociais que o condicionam sem, no entanto, determiná-lo. Aqui se revela a inquietação ética do ser humano. 95
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Deste modo, compreende-se que, no pensamento freireano, a eticidade radical do mover-se do ser humano – mulheres e homens, em sua concretude existencial, na conquista de sua humanização - no mundo e com o mundo (e com outros na e pela práxis), determina o estabelecimento de critérios ético-normativos de ação capazes de articular adequadamente as interações intersubjetivas (dialógicas) com as práticas políticas e sociais e também as pedagógicas. A perspectiva emancipatória da pedagogia freireana insere-se nesse contexto mais amplo da teoria da ação dialógica. A abordagem da educação que se pretende libertadora e, por isso, a ser constituída e configurada pela dialogicidade, não se esgota no “educativo” e tampouco no “escolar”. Por sua intencionalidade ética e epistemológica, regulada pelo princípio fundante da dialogicidade, a educação projeta-se dialeticamente para os campos social e político, e é portadora de um projeto utópico. Utopia, enquanto sonho possível, vincula-se à esperança arraigada na possibilidade de transformar o mundo sem qualquer sentido idealista e tampouco domesticado e amordaçado por algum determinismo mecanicista. Utopia que envolve compromisso histórico e engajamento efetivo de mulheres e homens, que se reconhecem e atuam como sujeitos nas lutas de transformação e reinvenção substantivamente democrática das estruturas societárias na sociedade, na busca de sua humanização e da libertação das condições desumanizantes de opressão e dominação. A educação, por si só, nada muda, nada transforma, a não ser no bojo de uma ação política emancipatória. O que transforma substantivamente uma sociedade passa pela ação política. À educação, cabe adjetivamente alavancar essa emancipação. Por esta razão, na teoria da ação dialógica freireana, não se pode conceber qualquer dissociação entre educabilidade e politicidade, entre o rigor do conhecimento crítico da realidade e o empenho participativo e 96
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solidário nas transformações sociais, interfaces práticas do mesmo ato emancipatório. Ao conceber, sob o horizonte da humanização e libertação do oprimido, as possibilidades emancipatórias da ação dialógica orientada para a liberdade e substantividade democrática, Paulo Freire rechaça toda e qualquer forma de domesticação do tempo derivada da compreensão determinista de história para a qual o futuro apresenta-se inexoravelmente dado. Ao contrário, Paulo Freire concebe a problematicidade de um futuro que, apesar de indeterminado, apresenta-se prenhe de possibilidades, as quais vão se descortinando à medida que se efetiva deliberadamente a intervenção (ação-reflexão) transformadora de mulheres e homens sobre a realidade, no tempo e no espaço. Toda e qualquer forma de prática que se orienta para a adaptação desesperançada, resignada e fatalista do ser humano, em relação à sua existência histórica, pressupõe a desproblematização e a mitificação do futuro e, por sua vez, implica a negação da utopia como projeto ético-político. Utopia que tem a força de interpelar e mobilizar os sujeitos para transformar solidariamente a realidade, que os impele a buscar o conhecimento crítico da realidade e que os lança ao engajamento no aqui e agora de suas práticas. Tal forma de prática desumanizadora implica tacitamente a negação do sonho legítimo por igualdade e justiça. Implica sufocar a imaginação esperançosa e ativa que, ao desenhar e redesenhar o projeto de um mundo mais humano e menos feio, mais justo e democrático, sustenta o compromisso e a luta pela humanização e libertação. E ainda, acima de tudo, implica a negação da vocação do ser humano em ser mais. Enfim, negação que o impede de resgatar e reconhecer sua condição de sujeito capaz de tomar as rédeas da própria existência e de sua história. Ora, em virtude de sua radicalidade ontológica – a de ser mais –, o ser humano tem a possibilidade de, na e por sua 97
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presença no mundo e com o mundo, superar sua ingenuidade para assumir-se criticamente como sujeito e assim, em solidariedade dialógica, conhecer rigorosamente sua realidade para nela intervir deliberada e mais eficazmente. Em Pedagogia da Esperança, Paulo Freire ressalta essa capacidade humana de transformar a vida em existência, pela qual mulheres e homens, engajando-se na busca da humanização, interrogam-se pelo amanhã e cada vez mais se envolvem na aventura de conhecer: Nós nos tornamos hábeis para imaginativa e curiosamente “tomar distância” de nós mesmos, da vida que portamos, e para nos dispormos a saber em torno dela. Em certo momento não apenas vivíamos, mas começamos a saber que vivíamos, daí que nos tivesse sido possível saber que sabíamos que vivíamos e, portanto, saber que poderíamos saber mais. O que não podemos, como seres imaginativos e curiosos, é parar de aprender e de buscar, de pesquisar a razão de ser das coisas. Não podemos existir sem nos interrogar sobre o amanhã, sobre o que virá, a favor de que, contra que, a favor de quem, contra quem virá; sem nos interrogar em torno de como fazer concreto o “inédito viável” demandando de nós a luta por ele (FREIRE, 1999b, p. 98)2.
Ao contrário de qualquer forma de compreensão mecanicista ou idealista de história, ao afirmar terem, as mulheres e os homens, o poder de fazer a história por suas mãos, nas relações que estabelecem com o mundo, no sentido de sua humanização, a concepção freireana da historicidade do agir humano reconhece a necessidade do conhecimento crítico e científico da realidade (a rigorosidade no pensar), captando os temas próprios do contexto histórico, com o objetivo de apreender as possibilidades e os limites da ação transformadora sobre ela, isto é, o inédito viável. 98
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Conhecer rigorosamente, em Paulo Freire, não subestima a intuição, os sentimentos, os sonhos, os desejos, mas envolve o “corpo consciente” em sua inteireza indicotomizável: somente assim a subjetividade, constituída pela participação dos sujeitos no mundo, na práxis e pela práxis, pode conhecer socialmente, reconhecendo e enfocando as formas nas quais as mulheres e os homens produzem e reinventam o sentido de sua existência a partir de suas experiências vividas na cotidianidade. Dessa forma, em sua concepção crítica e dialética da realidade, Paulo Freire destaca a importância significativa do papel atribuído à subjetividade de mulheres e homens na história e de sua formação (conscientização) como elementos fundamentais dos processos emancipatórios de transformação social e societária. Ora, no pensamento freireano, o sentido da história como possibilidade vincula-se à utopia de democratização radical da sociedade: a substantividade democrática que deve se tornar inerente aos processos de emancipação. Assim, sob os condicionamentos histórico-sociais em que se realizam os processos de transformação da sociedade na e pela práxis, impõe-se a formação do sujeito livre e autônomo pela educação dialógica (libertadora) – nos diversos contextos educacionais, formais ou informais. Por esses contextos, são possibilitadas as condições para que mulheres e homens se reconheçam e se assumam como sujeitos e, na solidariedade dialógica, engajem-se corresponsavelmente nas lutas emancipatórias. Sem que se distancie de tais lutas, a educação dialógica opera, embora limitadamente, como fator decisivo nos processos de mudança social e de transformação das estruturas societárias. Educar para a liberdade e para a substantividade democrática no horizonte emancipatório da humanização e libertação – do oprimido – realiza-se na e a partir da realidade concreta, sob condições históricas estruturais e conjunturais 99
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que se apresentam como desafio ético e epistemológico para a problematização do amanhã. É justamente nesse sentido que se compreende uma educação problematizadora, isto é, uma educação que implica a formação de sujeitos curiosos e indagadores que se reconhecem – em solidariedade dialógica - artífices de sua história e se assumem capazes de intervir corresponsavelmente na realidade em que se inserem e que buscam conhecer criticamente. Por isso mesmo implica igualmente a formação de sujeitos éticos, capazes de decidir e promover ruptura, que se integrem à realidade sem adaptar-se resignadamente a ela. Contrária aos pressupostos ideologicamente deterministas dos discursos conservadores apregoados por defensores de um tosco pragmatismo e dos discursos dogmáticos, esvaziados de dialética e marcadamente mecanicistas, apregoados pelas esquerdas autoritárias e sectárias, a esperança, para Paulo Freire, sustenta-se na concepção de história como possibilidade a ser construída, resgatando nela a importância do papel da subjetividade, e confere sentido, como também força mobilizadora, às práticas educacionais de conscientização, aos sonhos, às lutas emancipatórias pela humanização. A análise do significado que Paulo Freire atribui à esperança e ao sonho, na perspectiva utópica da teoria da ação dialógica, a partir de sua concepção dialética de história como possibilidade, de um lado, pressupõe conceber os seres humanos como conscientes do tempo e de sua inserção no tempo, isto é, mulheres e homens tornam-se capazes de emergir do tempo e reconhecer que não vivem num eterno presente, mas que vivenciam conscientemente um tempo feito de ontem, hoje e amanhã. Essa capacidade do ser humano em discernir sua temporalidade e transcendê-la permite-lhe tomar consciência da historicidade do seu agir em suas relações com a realidade que o desafia e o provoca. Por suas relações com o contexto de sua existência, à 100
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medida que sobre elas reflete e nelas intervém, impregnando-as de um sentido consequente, o ser humano se faz e se reconhece sujeito de sua ação e protagonista de sua história. Com efeito, na própria ação-reflexão sobre a realidade com a qual se confronta, transformando-a, mulheres e homens se transformam e se criam, realizando-se como sujeitos: ao emergir criticamente, na práxis e pela práxis, o ser humano realiza sua vocação ontológica, faz cultura, constrói uma história, fazendo-se e refazendo-se (FREIRE, 2001a, p. 10; FREIRE, 2001b, p. 36-40; FREIRE, 2000a, p. 48-49). Ora, a consciência da incompletude e da finitude, exclusiva do ser humano, torna-o capaz de transcender-se. Para Paulo Freire (2001b, p. 48), a transcendência do ser humano não pode ser concebida como resultado exclusivo da transitividade de sua consciência, que lhe permite a autoobjetivação. A transcendência do ser humano, na verdade, está na raiz de sua própria finitude. Sua consciência de si e para si e do outro se torna uma instância constituída historicamente em seu existir. É no devir de seu mover-se histórico que os seres humanos vão se constituindo a si mesmos como sujeitos em sua relação com o mundo e com os outros seres humanos. Portanto, a constituição da subjetividade não é um processo natural, determinado, necessário. Pelo contrário, constitui-se como um processo histórico, arbitrário, contingente. Processo que permite aos seres humanos se reinventarem permanentemente. A própria consciência da temporalidade constrói-se historicamente a partir do presente possibilitando ao ser humano avaliar o passado, retificá-lo e projetar ações para o futuro aberto às possibilidades. Assim, o movimento dialético – que marca a historicidade do agir transformador do ser humano – resgata, cria e recria a subjetividade (consciência) na sua intencionalidade ao mundo nos processos comunicacionais intersubjetivos. Temporalidade e historicidade do sujeito apresentam-se inseparáveis (FREIRE, 2001a, p. 10). 101
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O sentido freireano da esperança e do sonho pressupõe considerar a subjetividade e liberdade sob a perspectiva dialética. Imanente à história, na busca por sua humanização, o ser humano vivencia a tensão dialética entre subjetividade e objetividade e entre liberdade e não-liberdade em níveis e sob condições concretas e históricas diferenciados. A incompletude da qual o ser humano tem consciência e que o insere na busca permanente por ser mais - a experiência vital de todo ser humano – é, ao mesmo tempo, vocação e risco de perder a direção. Ora, a vocação ontológica do ser humano - vocação de ser sujeito e não objeto - realiza-se na história que ele próprio constrói: a consciência, constituindo-se em sua transitividade sob condições espaço-temporais, emerge criticamente, na e pela ação-reflexão que integra o ser humano ao seu contexto. Deste modo, essa vocação emerge e se manifesta como vocação histórica: não é destino, mas possibilidade. E não existe possibilidade que não se exponha à sua impossibilidade e vice-versa. Considerando a história como uma criação humana, compreende-se que não há, portanto, determinação a priori sobre o que o ser humano deve ser ou como deve moldar a realidade em que se insere, mas que, enquanto sujeito ético, ao abraçar sua responsabilidade solidária, constrói a história exercendo na e pela práxis sua capacidade de avaliar, decidir e romper. Como sujeito de esperança, exerce sua capacidade de imaginar, de projetar e sonhar vislumbrando o inédito viável para a humanização e libertação. Em razão dessa consciência da temporalidade da qual emerge, o ser humano pode conceber as relações causais que configuram a dinamicidade de sua existência e, por isso mesmo, enquanto corpo consciente intencionado ao mundo, age sobre elas. Como tal, mulheres e homens fazem-se seres históricos, uma vez que criam e recriam a história, vivenciando cenários históricos constituídos por conjunturas e 102
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sistemas econômicos, políticos e sociais e suas correspondentes estruturas societárias e por contextos socioculturais, os quais refletem a ação humana do passado e do presente e, por esta mesma ação humana, se projetam para o futuro de possibilidades. Ora, a ação de mulheres e homens, seres históricos, não se concebe apenas histórica, mas também historicamente condicionada (FREIRE, 1997, p. 32). Diferente dos animais, em cuja vida apresentam-se adaptados ao suporte sobre o qual apenas se movem, o ser humano - em sua existência - integra-se a seus contextos histórico social e cultural, nele intervindo, transformando em mundo e, ao mesmo tempo, transformando-se. Estar no mundo implica necessariamente estar em relação com o mundo e com os outros. A história é aquela feita pelos seres humanos no e com o mundo (FREIRE, 2004, p. 20-21). Em À Sombra desta Mangueira, Paulo Freire (2004, p. 21) afirma: A vida torna-se existência e o suporte, mundo, quando a consciência do mundo, que implica a consciência de mim, ao emergir já se acha em relação dialética com o mundo. [...] As relações entre ambos são naturalmente dialéticas, não importa a escola filosófica de quem as estuda. Se mecanicistas ou idealistas não podem alterar a dialética consciência/mundo e subjetividade/objetividade, isso não significa que nossa prática idealista ou mecanicista seja eximida de seu erro fundamental. Alcançam rotundo fracasso os planos de ação que se fundam na concepção da consciência como fazedora arbitrária do mundo e defendem que mudar o mundo demanda antes ‘purificar’ a consciência moral. Da mesma forma, projetos baseados na visão mecanicista, segundo a qual a consciência é puro reflexo da materialidade objetiva não escapam à punição da história.
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Como se observa, sua compreensão dialética da ação – que se estabelece histórica e socialmente na reciprocidade indissociável entre subjetividade e objetividade – diverge de duas formas de interpretar a historicidade da ação humana, seja na perspectiva do determinismo mecanicista que reduz a subjetividade a puro reflexo da objetividade, seja na perspectiva de um subjetivismo idealista que empresta à subjetividade ou à consciência o papel de fazedora do mundo. (1) De um lado, segundo a concepção mecanicista da história, o futuro desproblematizado apresenta-se como algo que se conhece por antecipação, uma espécie de sina ou de fado a que mulheres e homens devem se submeter (FREIRE, 2001c, p. 81-82). Implica uma compreensão fatalista pela qual o ser humano, em total passividade, renuncia à capacidade de pensar, de conjecturar, de comparar, de escolher, de decidir, de projetar, de sonhar. Compreensão que lhe arranca a condição de sujeito para lançá-lo como objeto à mercê das vicissitudes. Enfim, exaure-se a eticidade da presença do ser humano no mundo ao negar-lhe a capacidade reflexiva, decisória, e, por conseguinte, a responsabilidade que o constitui como sujeito de ação interventora e não meramente adaptativa. Nesta maneira mecanicista de compreender a história, não há lugar para a decisão humana, mas para a acomodação bem comportada ao que está aí ou ao que virá (FREIRE, 2004, p. 29; FREIRE, 2000c, p. 55; FREIRE, 2001c, p. 129). Ao recusar as expectativas fatalistas dessa interpretação mecanicista da própria realidade, Paulo Freire nega contundentemente a decorrente desproblematização do futuro que, por implicar sua inexorabilidade, impõe a domesticação do tempo condenando o ser humano ao imobilismo, ao mesmo tempo em que lhe nega a realização de sua experiência vital, recusando-lhe sua busca permanente por ser mais. Para Paulo Freire, o futuro não faz os seres humanos, mas são eles que, por seu processo de permanente humanização/ 104
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libertação, se refazem, se resgatam e se reinventam, ao fazer o futuro em sua luta rebelde (FREIRE, 2000c, p. 56). Em Pedagogia da Autonomia, Paulo Freire afirma sua crítica: A inexorabilidade do futuro é a negação da história. [...] A desproblematização do futuro numa compreensão mecanicista da história, de direita ou de esquerda, leva necessariamente à morte ou à negação autoritária do sonho, da utopia, da esperança. É que, na inteligência mecanicista, portanto determinista da história, o futuro é já sabido. A luta por um futuro assim “a priori” conhecido prescinde da esperança. A desproblematização do futuro, não importa em nome de quê, é uma violenta ruptura com a natureza humana social e historicamente constituindo-se (FREIRE, 2001c, p. 81-82).
Ao contrário, na compreensão dialética de história, expressa por Paulo Freire, o futuro eclode da transformação do presente como um dado, dando-se. Daí seu caráter problemático e não inexorável, portanto, aberto às diferentes possibilidades que se apresentam na e pela açãoreflexão no presente espaço-temporal. Desse modo, superando o determinismo mecanicista, encara o futuro em sua radical problematicidade. Destarte, impõe-se às mulheres e aos homens o desafio de reconhecerem e se assumirem como sujeitos que carregam a responsabilidade na história, da qual são artífices. É na “história como possibilidade”, segundo Paulo Freire, que a subjetividade, em relação dialética com a objetividade, pode resgatar a importância de seu papel nas transformações do mundo (FREIRE, 2003, p. 149-150; FREIRE, 2000c, p. 51). De fato, o reconhecimento do caráter dialético que envolve as relações entre consciência e mundo leva necessariamente à compreensão da história como possibilidade e, 105
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por esse modo, permite superar a compreensão mecanicista e determinista da história. Entretanto, ao descartar a ideia de um futuro predeterminado e isento de problematicidade, essa concepção freireana de história não nega o papel dos fatores condicionantes a que se submetem mulheres e homens em contextos espaço-temporais específicos. É no enfrentamento dessas condicionantes que o ser humano reitera seu autorreconhecimento como sujeito e vislumbra a possibilidade de sua ação para transformar a realidade na e pela práxis. Em Política e Educação, Paulo Freire assevera que: [...] ao recusar a história como jogo de destinos certos, como dado, ao opor-se ao futuro como algo inexorável, a história como possibilidade reconhece a importância da decisão como ato que implica ruptura, a importância da consciência e da subjetividade, da intervenção crítica dos seres humanos na reconstrução do mundo. Reconhece o papel da consciência construindo-se na práxis; da inteligência sendo inventada e reinventada no processo e não como algo imóvel em mim, separado quase, de meu corpo. Reconhece o meu corpo como corpo consciente que pode mover-se criticamente no mundo como pode ‘perder’ o endereço histórico. Reconhece minha individualidade que nem se dilui, amorfa, no social nem tampouco cresce e vinga fora dele. Reconhece, finalmente, o papel da educação e de seus limites (FREIRE, 1997, p. 97).
Conceber dialeticamente a história como possibilidade, resgata o sonho possível pela humanização, cuja concretização realiza-se ininterrupta e processualmente passando por rupturas das amarras reais, concretas – de ordens econômica, política, social, cultural, ideológica, etc. – que condenam milhares de seres humanos à desumanização: a 106
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história é devir permanente. Paulo Freire (1999b, p. 99), em Pedagogia da Esperança, afirma que [...] o sonho é assim uma exigência ou uma condição que se vem fazendo permanente na história que fazemos e que nos faz e re-faz. Não sendo um a priori da história, a natureza humana, tem, na vocação referida [a de ser mais], uma de suas conotações.
(2) Por outro lado, além da compreensão objetivista e mecanicista da subjetividade como simples reflexo das condições materiais, a concepção idealista ou subjetivista acerca do papel da subjetividade na história confere à consciência um poder determinante sobre a realidade concreta: a consciência é a fazedora arbitrária da história. Essa é outra maneira de entender a relação subjetividade-objetividade esvaziada de sua necessária dialeticidade. Em sua crítica à interpretação idealista da história, Paulo Freire (2000c, p. 90) afirma ironicamente que, sob esse ponto de vista, [...] para mudar o mundo basta a força da consciência. A subjetividade termina por criar arbitrariamente a objetividade, dócil à sua vontade. A transformação política da realidade se reduz a uma questão de boa vontade. Os corações amorosos se irmanam e fazem um mundo melhor.
De acordo com essa forma de conceber a ação histórica do ser humano no mundo o fundamental é cuidar de seu coração deixando, porém, intocadas as estruturas sociais, econômicas e políticas. A ilusão idealista – que sonha com a humanização do ser humano sem a transformação necessária do mundo em que ele se encontra oprimido e proibido de ser – desvela-se como 107
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pressuposto ideológico das formas concretas de ação assistencialista em que mulheres e homens, proibidas e proibidos de ser, são convidados a se conformar com sua vida desumana cultivando paciência e dependência desesperançadas. Em Ação Cultural para a Liberdade, Paulo Freire, de modo incisivo, afirma que não há humanização na opressão, assim como não pode haver desumanização na verdadeira libertação. A libertação não se dá dentro da consciência das mulheres e dos homens, isolada do mundo, senão na e pela práxis de mulheres e homens em sua concretude existencial, em suas lutas, dentro da história que, implicando a relação consciência-mundo, envolve a consciência crítica dessa relação. Aqui está um dos pontos fundamentais das implicações pedagógicas do processo de humanização que exige inaceitação da falsa ideia da neutralidade da educação (FREIRE, 2002). Oposta à educação bancária como ação cultural para a dominação, a educação libertadora assenta-se sobre a concepção dialética da consciência enquanto intencionalidade ao mundo. Aquela concebe a consciência como um simples recipiente vazio a ser preenchido e domesticado por práticas que lhe negam o caráter ativo, autônomo e reflexivo. Por sua vez, a educação como prática de liberdade e para a libertação orienta-se a partir da constatação do caráter curioso e indagador da consciência que, em sua reflexibilidade, emerge como intencionalidade crítica e não como recipiente a ser preenchido. Consciência que se realiza no mover-se do ser humano no mundo. Essa concepção libertadora de educação desfaz o dualismo idealista que estabelece uma inexistente dicotomia entre a consciência e mundo. Na perspectiva dialética, mundo e consciência ocorrem simultaneamente. Segundo Paulo Freire (2000c, p. 90): A consciência do mundo engendra a consciência de mim e dos outros no mundo e com o mundo. É atuan108
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do no mundo que nos fazemos. Por isso mesmo é na inserção no mundo e não na adaptação a ele que nos tornamos seres históricos e éticos, capazes de optar, de decidir, de romper. A postura crítica da consciência é tão importante na luta política em defesa da seriedade no trato da coisa pública quanto na apreensão da substantividade do objeto no processo de conhecer. Não se apreende o objeto se não se apreende sua razão de ser. [...] É apreendendo a razão de ser do objeto que eu produzo o conhecimento dele (destaque nosso).
A história é tempo de possibilidades e não de determinações. O futuro nada mais é do que possibilidades. Por essa razão, não obstante as dificuldades, “mudar é possível”. Sendo assim, “a primeira consequência que vem à tona é a de que a história não apenas é mas também demanda liberdade. Lutar por ela é uma forma possível de, inserindonos na história possível, nos fazer igualmente possíveis” (FREIRE, 1997, p. 35). Somente numa perspectiva dialética é que se pode entender a ação de mulheres e homens que, se assumindo cada vez mais como sujeitos históricos, se tornam capazes, em sua autodeterminação, de reinventar o mundo direcionado à sua humanização. Ao se reconhecerem inacabados, tornam-se capazes de ultrapassar a determinação, reduzida a condicionamento. Condicionados, mas não determinados, assumem-se como sujeitos da ação fazendo e refazendo a história. Enfim, reiterando, não se pode falar de subjetividade, a não ser para compreendê-la em relação dialética com a objetividade. Nas condições materiais da sociedade são engendradas historicamente as lutas emancipatórias para conquistar as necessárias transformações sociais, políticas e econômicas na direção de superar as injustiças desumanizantes, portanto, é impossível negar a dialeticidade da ação humana e sua intervenção na realidade. 109
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Por isso mesmo, a partir dessa compreensão crítica do papel da subjetividade na história, superam-se as posturas antidialógicas do subjetivismo idealista e do objetivismo mecanicista, incapazes de apreender a permanente tensão dialética entre subjetividade e objetividade. E como tais, apresentam-se como obstáculos ideológicos ao autêntico processo de libertação. Somente na história, como possibilidade e não como determinação, é que se pode perceber e vivenciar essa tensão. Ambas as compreensões da história - mecanicistas e subjetivistas - terminam por negar o verdadeiro papel da subjetividade na transformação “revolucionária” da sociedade (FREIRE, 2002, p. 135; FREIRE, 1999b, p. 101-102). Imanente ao ser humano, a busca por realizar sua vocação do ser mais permite-lhe afirmar-se como sujeito na e pela ação-reflexão transformadora sobre o mundo, levando-o a se inscrever no processo histórico-social. Ora, tanto a humanização quanto a desumanização apresentam-se como possibilidades históricas para mulheres e homens. Paulo Freire concebe a humanização como uma vocação histórica de todos os seres humanos, todavia, paradoxalmente, estes, enquanto sujeitos de escolha e decisão, têm diante de si a possibilidade de abraçá-la ou não. A desumanização, no entanto, apresenta-se como uma distorção dessa vocação do ser mais. Ao iniciar a Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire considera a desumanização não apenas como viabilidade ontológica, mas como realidade histórica. Ela se manifesta não apenas nos oprimidos que tiveram sua humanidade roubada, mas, também, nessa contradição, ainda que de forma diferente, nos opressores que a roubam, mesmo que não deliberadamente. Apesar de sua possibilidade no transcurso histórico, a desumanização não pode ser considerada uma vocação dos seres humanos. “É distorção possível na história, mas não vocação histórica”, afirma Paulo Freire em Pedagogia 110
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do Oprimido (1999a, p. 30). Na verdade, admitir a desumanização como vocação histórica dos homens implicaria esvaziar e negar a significação utópica das ações emancipatórias, levando mulheres e homens a uma atitude de conformismo diante de um destino predefinido. Ao contrário, para Paulo Freire, a luta pela humanização torna-se possível tão somente pelo fato de que a desumanização, enquanto realidade histórica, “não é um destino dado, mas o resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opressores e, esta, o ser menos” (FREIRE, 1999a, p. 30). Do mesmo modo, ao romper com a visão determinista da história, a libertação e a opressão não podem ser concebidas - de acordo com as interpretações objetivistas e mecanicistas das esquerdas autoritárias - como inscritas na história numa perspectiva de inexorabilidade. Segundo Paulo Freire, em Pedagogia da Esperança, “da mesma forma a natureza humana, gerando-se na história, não tem inscrita nela o ser mais, a humanização, a não ser como vocação de que o seu contrário é distorção na história”. De fato, ao longo da história, mulheres e homens inventaram a possibilidade de se libertar, na medida em que se tornaram capazes de se perceber inacabados, limitados, condicionados, históricos. “Percebendo, sobretudo, também que a pura percepção da inconclusão, da limitação, da possibilidade não basta. É preciso juntar a ela a luta política pela transformação do mundo. A libertação dos indivíduos só ganha profunda significação quando se alcança a transformação da sociedade” (FREIRE, 1999b, p. 100). Desse modo, a humanização de mulheres e homens e suas implicações educativas devem ser compreendidas não como um ideal abstrato, mas assumidas como um desafio histórico em sua relação contraditória com a de desumanização que se verifica na realidade objetiva em que estão inseridos. Isso significa que a desumanização, “como expressão concreta de alienação e dominação”, e a humanização, 111
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“como projeto utópico das classes dominadas e oprimidas”, implicam, cada uma a seu jeito, a ação das mulheres e dos homens sobre a realidade social - a primeira, no sentido da preservação do status quo; a segunda, no sentido de modificá-la tendo em vista a radical transformação do mundo opressor. Ambas não podem ocorrer a não ser na história mesma de mulheres e homens, dentro das estruturas sociais que elas e eles criam e a que se acham condicionados e não determinados (FREIRE, 2002, p. 115) 3. A desumanização manifesta-se como a distorção da vocação para a humanização. Essa, pelo contrário, apresentase como projeto emancipatório em permanente devir, que exige a implementação de processos de transformação, de modificação da realidade, sob condições histórico-sociais e culturais contingentes. Constitui-se, portanto, em permanente processo de reinvenção da realidade em que se insere, na e pela práxis. Um dos equívocos próprios de uma concepção ingênua do humanismo, radica em seu empenho por apresentar um modelo ideal de ser humano, esquecendo-se da concretude existencial de mulheres e homens inseridos em contextos espaço-temporais específicos, marcadamente contraditórios e conflitantes. Ora, a humanização é um fazer permanente, e, como tal, é condição e imperativo para mulheres e homens em seu estar no mundo com o mundo e com os outros. Ao se referir à prática educativa como uma dimensão necessária da prática social e, por isso mesmo, compreendida como um fenômeno exclusivamente humano, Paulo Freire afirma que a existência humana não tem um ponto determinante de sua trajetória fixado na espécie, como ocorre nos animais. Ao inventar e reinventar a existência, como também os materiais que a vida lhes oferece, mulheres e homens inventaram ou descobriram a liberdade, que não recebem por uma outorga, mas que a conquistam lutando 112
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por ela. Assim, mulheres e homens, por sua curiosidade, arriscam-se, aventuram-se e se educam no jogo da liberdade (FREIRE, 1994, p. 86). O reconhecimento crítico de que a humanização dá-se processualmente na história - ao longo da qual, na luta por sua conquista, a subjetividade desempenha um papel fundamental - permite superar duas maneiras equivocadas de se entender a educação, as quais decorrem das concepções antidialéticas acerca da historicidade da ação humana que foram delineadas até o momento. De um lado, o entendimento pessimista da educação que, enquanto epifenômeno superestrutural, determina-se reprodutivamente pelas transformações de base na sociedade, o que implica reduzi-la e subordiná-la à infraestrutura produtiva. Essa compreensão estruturalista - acrítica e antidialética - da prática educativa apoia-se na “visão mecanicista de história que guarda em si a certeza de que o futuro é inexorável, de que o futuro vem como está dito que ele virá” (FREIRE, 1997, p. 97), de tal modo que nega qualquer poder à educação antes que as condições materiais da sociedade sejam transformadas (mecanicismo determinista). Por outro lado, o entendimento otimista e ingênuo, de natureza idealista e declaradamente conservador, que marca a abordagem daqueles que conferem à educação a chave das transformações sociais e a solução para todos os problemas sem que necessariamente se alterem as estruturas sociais, econômicas e políticas (subjetivismo idealista). De modo específico, ao conceber a inexorabilidade do devir, da qual deriva o entendimento errôneo acerca de um domínio humano de determinação, dificilmente poder-se-ia falar da responsabilidade ética do ser humano como sujeito de decisão, de ruptura, de opção. Tampouco, ao ser humano, poder-se-ia pensar a liberdade de intervir no mundo para transformá-lo em sua luta incessante pelo direito de ser sujeito da história e não apenas nela objeto (FREIRE, 2001c, p. 83; FREIRE, 2003, p. 150). 113
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Ao contrário, conceber criticamente a história como possibilidade e não como determinação permite entender que a ordem atualmente estabelecida - que engendra inúmeras e complexas formas de conflitualidades e de violência desumanizadora que não se reduzem, embora as inclua, às determinações econômicas da sociedade apresenta-se sob condições históricas factíveis e, portanto, possivelmente mutáveis. De fato, sem a compreensão crítica da história, na perspectiva dialética do entendimento das relações contraditórias e processuais constitutivas da realidade, torna-se impossível pensar a luta constante pelo enfrentamento e superação das opressões em todas suas manifestações na sociedade. Afirmar a factibilidade histórica da realidade e reconhecer a capacidade de mulheres e mulheres de transformá-la na e pela práxis permite romper com a docilidade fatalista e a submissão cega sob as rédeas da manipulação ideológica que sustentam a negação da radicalidade ontológica do ser humano. Mudar, apesar de difícil, torna-se possível. A utopia se torna um sonho possível. A propósito, mais uma vez, convém reafirmar que a teoria freireana da ação dialógica introduz nova dimensão na relação mediadora entre teoria e prática, ressignificando-a radicalmente, a partir de seus fundamentos éticos e epistemológicos. Destaca-se a fé amorosa e perpassada de esperança na capacidade (possível) dos oprimidos - mulheres e homens - em lutar por sua própria libertação, na solidariedade dialógica, como sujeitos de ação intencionados ao mundo em que se inserem e nele atuam reinventando-o, reinventando-se. Essa abordagem teórica engendra um novo ponto de partida para que se possa conceber a ação emancipatória – e nela a educação - levando em conta a possibilidade de concretização das expectativas utópicas contra a resignação niilista e desesperançada. Nesse sentido, afirma-se que o comprometimento pela humanização e libertação envolve, em uma 114
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reciprocidade dialética, de um lado, a resistência rebelde suscitada pela legítima indignação decorrente do conhecimento rigoroso da realidade, a justa raiva, no âmbito da “denúncia”, e, de outro lado, pela esperança compartilhada, a coragem de sonhar juntos, pensar, afirmar e vislumbrar as possibilidades emancipatórias, o sonho possível, no âmbito do “anúncio”, de modo a mobilizar práticas que realizem, no aqui e agora das condições históricas, o inédito viável. Esse transitar dialético do anúncio à denúncia, e viceversa, assenta-se na consideração dos sujeitos como produto e produtores da história e, portanto, na afirmação da possibilidade de reinvenção de diferentes formas de lutas orientadas, na solidariedade dialógica, para processos de reestruturação das condições materiais e simbólicas da sociedade. Teoria e prática social vinculam-se, em sua unidade dialética, à concepção de utopia e emancipação na perspectiva da história como possibilidade e não como determinismo. A compreensão dialética da história como possibilidade e não como determinação – base para a concepção freireana de que toda ação dialógica é intrinsecamente um ato de esperança – permite resgatar a importância da identidade e individualidade de cada sujeito na práxis marcada pela dialogicidade, em suas indissociáveis interfaces práticas – a da ação política autenticamente revolucionária e a da ação política educativa – e de sua responsabilidade – exercida em solidariedade intersubjetiva na intervenção transformadora na sociedade e construção histórica da liberdade sob o horizonte emancipatório da humanização e da libertação do oprimido. Na verdade, como presença consciente no mundo, com o mundo e com os outros, o sujeito não pode escapar à responsabilidade ética de construir historicamente seu mover-se no mundo que exige decisão, avaliação, valoração, escolha e ruptura (FREIRE, 2003, p. 150). Neste sentido, em Pedagogia da Autonomia, Paulo 115
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Freire afirma que, se porventura o ser humano fosse um puro produto da determinação genética, ou cultural, ou de classe, que herda, seria compreensível sua ausência do mundo e consequente irresponsabilidade em seu mover-se nele e com ele. E se carece de responsabilidade, não há que falar em eticidade. No entanto, ao contrário, superando as concepções a-dialéticas da historicidade da ação humana, resgata-se as responsabilidades ética e política de mulheres e homens em sua concretude histórica, a partir da qual sonham, escolhem, valoram e lutam por seus sonhos. “E o fazem não apenas como objetos, mas também como sujeitos da história” (FREIRE, 2003, p. 150). Todavia, isso não significa negar os condicionamentos genéticos, culturais, sociais a que mulheres e homens são submetidos. Na verdade, significa reconhecer que são seres condicionados, mas não determinados. Significa reconhecer que a história é tempo de possibilidade e não de determinismo e que o futuro é problemático e não inexorável (FREIRE, 2001c, p. 21). Assim, oportuno ressaltar que, em vários momentos de sua obra4, Paulo Freire enfatiza que os seres humanos são “programados, mas para aprender”, apropriando-se da asserção de François Jacob5. Em Política e Educação, ao dirigir sua crítica especialmente à arrogância elitista, autoritária e insensível das esquerdas sectárias e antidialógicas que, em virtude de sua visão determinista da realidade, não percebem que ninguém nasce feito ou marcado para ser isto ou aquilo, Paulo Freire (1997, p. 104) contrapõe: “pelo contrário, nos tornamos isso ou aquilo. ‘Somos programados, mas para aprender’. A nossa inteligência se inventa e se promove no exercício social de nosso corpo consciente. Se constrói. Não é um dado que, em nós seja, um a priori da nossa história individual e social”. Mulheres e homens, apesar de “programados”, não são determinados. Ninguém nasce feito, o ser humano se faz social e historicamente. E 116
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assim encontram-se “impossibilitados de viver sem a referência de um amanhã”, de modo que “onde quer que haja mulheres e homens há sempre o que fazer, há sempre o que ensinar, há sempre o que aprender” (FREIRE, 2001c, 94; Freire, 2000c, p. 85). Isso remete ao entendimento da educação como processo permanente fundado na inconclusão do ser que se reconhece como tal. Para Paulo Freire (2001c, p. 64), em Pedagogia da Autonomia, “a consciência do mundo e a consciência de si como ser inacabado necessariamente inscrevem o ser consciente de sua inconclusão num permanente movimento de busca”. É justamente essa percepção de mulheres e homens como seres “programados, mas para aprender”, e por isso mesmo para ensinar, para conhecer, para intervir, que permite entender a prática educativa como um exercício constante em favor da produção e do desenvolvimento da autonomia e da liberdade de educadores e educandos (FREIRE, 2001c, p. 164). Condicionados, “programados”, mas não determinados, abertos às possibilidades de mudanças, de transformações que operam pela intervenção de suas mãos, mulheres e homens são capazes de se tornar conscientes de seus condicionamentos. Uma vez conscientes de sua radical incompletude, inserem-se enquanto seres histórico-sociais num permanente processo de busca e de reinvenção do próprio mundo e de si mesmos. Seres da transformação e não da adaptação, mulheres e homens tornam-se capazes de pronunciar o mundo, na medida em que o transformam e o reinventam, reinventando a si mesmos, na práxis e pela práxis (FREIRE, 1999b, p. 100). Assim sendo, a compreensão dialética das relações corpo-consciente-mundo - em que se funda o entendimento da história como possibilidade - implica reconhecer que os seres humanos, condicionados e, ao mesmo tempo, conscientes do condicionamento, não estão determinados, o que 117
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lhes permite mover-se no mundo e superar a força condicionante das heranças culturais, tornando-os aptos a lutar pela liberdade e, nessa luta, ampliar os espaços do exercício de sua autonomia e autodeterminação. O ser humano, ao se construir social e historicamente, vivencia a tensão contraditória entre a herança genética com que vem ao mundo e a herança cultural em que se insere. De outro modo, compreendendo-se como unidade individualizada dessas heranças recebidas, vivencia essa contradição na prática da qual faz parte com os outros seres humanos e pela qual, atuando, constrói-se a si mesmo. É nesse movimento dialético que mulheres e homens vão se inclinando cada vez mais para isto ou para aquilo em sua existência, forjando sua subjetividade e a individualidade de seu “estar sendo” no mundo. Segundo Paulo Freire (1997, p. 67-68), em Política e Educação: Foi reinventando-se a si mesmo, experimentando ou sofrendo a tensa relação entre o que herda e o que recebe ou adquire do contexto social que cria e que o recria, que o ser humano veio se tornando este ser que, para ser, tem de estar sendo. Este ser histórico e cultural que não pode ser explicado somente pela biologia ou pela genética nem tampouco apenas pela cultura. Que não pode ser explicado somente por sua consciência como se esta em lugar de ter-se constituído socialmente e transformado seu corpo em um corpo consciente tivesse sido a criadora todo-poderosa do mundo que o cerca, nem tampouco pode ser explicado como puro resultado das transformações que se operaram neste mundo. Este ser que vive, em si mesmo a dialética entre o social, sem o que não poderia ser e o individual, sem o que se dissolveria no puro social, sem marca e sem perfil. Este ser social e histórico, que somos nós, mulheres e 118
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homens, condicionados mas podendo reconhecer-se como tal, daí poder superar os limites do próprio condicionamento, ‘programado [mas] para aprender’ - teria necessariamente que entregar-se à experiência de ensinar e de aprender.
Convém ressaltar que, em Professora Sim, Tia Não, Paulo Freire (2000b, p. 94) elucida a importância da identidade de educador e educandos enquanto sujeitos na ação dialógica. Aqui, a identidade é entendida como a relação contraditória, processual e dinâmica, que constitui a subjetividade em sua individualidade, entre o que herda e o que adquire. Condicionados, “programados” mas não determinados, os seres humanos se movem – movendo-se no mundo que buscam pronunciar - em um espaço delimitado de autonomia e liberdade que dispõem na moldura cultural e lutam, de um modo ou de outro, para ampliá-la. Neste sentido, afirma (FREIRE, 2000b, p. 95): No fundo, a liberdade como façanha criadora dos seres humanos, como aventura, como experiência de risco e de criação tem muito a ver com a relação entre o que herdamos e o que adquirimos. As interdições à nossa liberdade são muito mais produtos das estruturas sociais, políticas, econômicas, culturais, históricas, ideológicas do que das estruturas hereditárias. Não podemos ter dúvidas em torno do poder da herança cultural, de como nos conforma e nos obstaculiza de ser. Mas, o fato de sermos programados, condicionados e conscientes do condicionamento e não determinados é que se faz possível superar a força das heranças culturais. A transformação do mundo material, das estruturas materiais a que se junte simultaneamente um esforço crítico-educativo é o caminho para a superação, jamais mecânica, desta herança. 119
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Até este momento, como se observa, a posição criticamente otimista assumida por Paulo Freire com relação à capacidade ética do ser humano de avaliar, valorar e decidir, de discernir, comparar, optar e de romper, submetida a condicionamentos que não devem ser absolutizados, decorre de sua recusa aos otimismos ingênuos e aos pessimismos fatalistas que anulam ou esvaziam a responsabilidade de mulheres e homens em seu mover-se no mundo e com o mundo, e com outros. A compreensão da história como tempo de possibilidade e não de determinismo remete ao entendimento de que o mundo não é: o mundo está sendo. Como subjetividade curiosa, inteligente, ética e interferidora na objetividade com que dialeticamente se relaciona, o papel de mulheres e homens no mundo não é só de quem constata o que ocorre, mas também o de quem intervém como sujeitos que provocam ocorrências e que, se assumindo como tais, reconhecem a eticidade de sua presença no mundo e com o mundo e, portanto, suas responsabilidades individual e social, condicionados e conscientes de seu condicionamento, mas não determinados (FREIRE, 1997, p. 100-101; FREIRE, 2000c, p. 79). A certeza de que transformar é difícil, mas é possível, é justamente o que permite repudiar qualquer posição fatalista que confira a qualquer fator condicionante um poder determinante, fatalista e imobilizador. Por exemplo, por maior que seja a força condicionante das estruturas econômicas ou políticas atreladas aos avanços da tecnologia e ciência sobre os comportamentos individual e social, não há que aceitar uma total passividade frente a elas. Do contrário, aceitando-a implicaria renunciar ao ser humano sua capacidade de pensar, de valorar, conjecturar, comparar, escolher, rejeitar, decidir, projetar, sonhar, enfim, de construir-se como sujeito autônomo e livre. Implicaria, portanto, a negação da relação dialética 120
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ação-reflexão pressuposta na compreensão da ação humana enquanto práxis. E, por sua vez, a ação seria reduzida, ao viabilizar o que se encontra já determinado, o que implicaria o esvaziamento do sentido emancipatório que deve constituir as lutas pela concretização dos sonhos utópicos. Seria a negação da história, utopia e esperança. De acordo com Paulo Freire (1999b, p. 91), em Pedagogia da Esperança, “sonhar não é apenas um ato político necessário, mas também uma conotação da forma histórico-social de estar sendo de mulheres e homens. Faz parte da natureza humana que, dentro da história, se acha em permanente processo de tornar-se”. Não seria possível alcançar a compreensão dialética da história como possibilidade e do papel da subjetividade em sua ação transformadora da realidade, bem como suas implicações na prática educativa, sem a experiência do sonhar, de vislumbrar o desenho de um mundo diferente entremeado por relações sociais, políticas e econômicas emancipatórias, as quais, engendradas e permanentemente reinventadas na radicalidade democrática, permitem a superação das atuais estruturas desumanizantes. Como afirma Paulo Freire, não existe mudança sem sonho, como não existe sonho sem esperança. O sonho substantivamente democrático – por uma sociedade que se faz e se reinventa em permanente humanização/libertação – constrói-se na e pela práxis, na tensão entre anúncio e denúncia. Desde Pedagogia do Oprimido, vem insistindo (1999b, p. 91-92): [...] não há utopia verdadeira fora da tensão entre a denúncia de um presente tornando-se cada vez mais intolerável e o anúncio de um futuro a ser criado, construído, política, estética e eticamente, por nós, mulheres e homens. A utopia implica essa denúncia e esse anúncio, mas não deixa esgotar-se a tensão entre ambos quando 121
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da produção do futuro antes anunciado e agora um novo presente. A nova experiência de sonho se instaura, na medida em que a história não se imobiliza, não morre. Pelo contrário, continua.
Conceber a possibilidade de sonhar, na e pela práxis, resgata a capacidade reflexiva, ativa, responsável e decisiva do ser humano em sua ação transformadora sobre a realidade, construindo a história e nela se fazendo e se refazendo. Assumindo-se reflexivamente como sujeito da ação na compreensão crítica da realidade e, por suas escolhas, como artífice da história, o ser humano torna-se apto a reconhecer-se condicionado pelas estruturas societárias e não, de modo fatalista, submetido à conformidade passiva a este ou aquele destino. Assim, superando a adaptação, é aberto o caminho para a intervenção nessa realidade condicionante, problematizando-a e transformando-a. Aqui reside a diferença primordial entre condicionamento e determinação, cuja compreensão permite entender que a intervenção na realidade exige o reconhecimento crítico da existência/realidade e da força dos condicionamentos para conhecê-los cada vez mais rigorosamente em suas relações constitutivas, enfrentá-los e lutar para sua superação e transformação. Na verdade, rejeitar a determinação não significa a negação ingênua dos condicionamentos (FREIRE, 2000c, p. 55-56). A acomodação ou a adaptação a uma realidade incontestável - pressupostas na compreensão mecanicista da história, que sustenta doutrinações ideológicas de esquerda ou de direita - implicam necessariamente a morte ou a negação autoritária do sonho, da utopia, da esperança. Projetar-se para um futuro estabelecido a priori e, portanto, desproblematizado, prescinde de esperança. É, na verdade, uma ruptura com a natureza humana que vai se constituindo social e historicamente. 122
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Ora, de acordo com Paulo Freire (2001c, p. 80-82), em Pedagogia da Autonomia, a esperança manifesta-se intrínseca à experiência vital de todo ser humano: integra a própria natureza humana. Fechar-se à experiência da abertura ao outro e ao mundo é uma transgressão ao impulso ontológico-existencial de nossa incompletude (FREIRE, 2001c, p. 153). É o fechamento ao diálogo (FREIRE, 2001c, p. 154), uma vez que rompe a comunicabilidade do ser humano (FREIRE, 2001c, p. 133). Enfim, de acordo com Paulo Freire (2004, p. 30), em A Sombra desta Mangueira, a esperança é uma exigência ontológica dos seres humanos. Radica-se, pois, na inconclusão do ser humano, o qual, para encarná-la, carece assumir a inconclusão de que se torna consciente (FREIRE, 2004, p. 87). Como se vem enfatizando, a construção da teoria freireana da ação dialógica desenvolveu-se com base na esperança amorosamente crítica vinculada à possibilidade de restabelecer a palavra daqueles que lhes é negado historicamente o direito de pronunciá-la, possibilitando-lhes, na e pela práxis emancipatória, as condições para que se assumam como sujeitos, como presença atuante e transformadora no mundo e com o mundo e com outros. É na radicalização utópica dessa esperança sustentada na possibilidade permanente de transformar o mundo que os sujeitos, em solidariedade dialógica, resgatam sua capacidade de participar na luta histórica pela humanização-libertação, superando as condições objetivas que os mantém a uma mera adaptação à concretude cotidiana. Portanto, a partir da experiência vital radicada em todo ser humano, ao envolver a esperança e o sonho possível em sua busca por ser mais, a teoria freireana da ação dialógica; deste modo, fundamenta a autenticidade utópica da práxis emancipatória. A experiência histórica do amanhã como algo que não se apresenta preestabelecido, mas, como um desafio, está pressuposta na justa raiva ou indignação a que se refere 123
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Paulo Freire, cuja legitimidade decorre da recusa consciente da negação ao direito de ser mais inscrito na natureza humana. Diante da palavra que lhes é negada a pronunciar, não se pode cruzar os braços, declinando da própria responsabilidade a favor de um discurso cínico e niilista da acomodação. Contrária à resignação, em face das ofensas que desumanizam mulheres e homens, a rebeldia decorrente da recusa inconformada das injustiças fundamenta-se também na compreensão da problematicidade do futuro e na vocação para o ser mais como expressão da natureza humana em processo ininterrupto de “estar sendo”. A rebeldia, enquanto denúncia, deflagra a justa raiva, mas somente na esperança pode se alongar para uma posição mais radical e crítica, a autenticamente revolucionária, fundamentalmente anunciadora. A utopia da humanização-libertação e a luta histórica por sua contínua realização implica a dialetização entre a denúncia da situação desumanizante e o anúncio de sua superação: o sonho possível. Em Conscientização, Paulo Freire (2001b, p. 27-28) ressalta a utopia como um comprometimento histórico pela humanização de mulheres e homens, que estabelece a relação dialética entre anúncio da humanização possível e denúncia das condições desumanizadoras: Para mim, o utópico não é o irrealizável; a utopia não é o idealismo, é a dialetização dos atos de denunciar e anunciar, o ato de denunciar a estrutura desumanizante e de anunciar a estrutura humanizante. Por esta razão a utopia é também compromisso histórico. A utopia exige o conhecimento crítico. É um ato de conhecimento. Eu não posso denunciar a estrutura desumanizante se não a penetro para conhecê-la. Não posso anunciar se não conheço, mas entre o momento do anúncio e a realização do mesmo existe algo que deve ser destacado: é que 124
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o anúncio não é anúncio de um anteprojeto, porque é na práxis histórica que o anteprojeto se torna projeto. É atuando que posso transformar meu anteprojeto em projeto. [...] Além disso, entre o anteprojeto e o momento da realização ou da concretização, há um tempo que se denomina tempo histórico; é precisamente a história que devemos criar com nossas mãos e que devem os fazer; é o tempo das transformações que devemos realizar; é o tempo do meu compromisso histórico.
A utopia como sonho possível levanta-se contra o pensamento fatalista que sufoca o sonho e aprisiona a imaginação ao desencanto. Abre-se às possibilidades históricas, à realização do inédito nas fronteiras do viável e do factível. A utopia não consegue mudar as estruturas, entretanto, ao menos projeta a transgressão de sua vigência. Nesse sentido, o pensamento utópico de Paulo Freire, “molhado” de história, apresenta-se como uma defesa da radicalidade ontológica do ser humano e de sua humanização: de um lado, a partir denúncia do presente das inúmeras manifestações de desumanização, desmascarando as pseudolegitimações das diferentes formas de opressão e da debilidade democrática das relações sociais e das estruturas societárias; de outro, no anúncio do amanhã que é engendrado no aqui e no agora, indicando a possibilidade da reinvenção da sociedade, de suas relações de poder e de produção, da cultura e da educação, da superação de suas estruturas desumanizantes: possibilidade assente nas convicções e expectativas relacionadas à radicalidade ético-política da liberdade e à substantividade democrática. Por fim, tendo por escopo alinhavar as considerações precedentes, importa ressalvar que, para Paulo Freire, a práxis dialógica6 implica lealdade, responsabilidade e, sobretudo, a coerência ao sonho possível. Por isso mesmo, implica solidariedade instigada pela esperança compartilhada inter125
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subjetivamente e que desencadeiem ações no sentido de realizar as possibilidades que se apresentam factíveis – no aqui e agora – para a humanização e libertação de mulheres e homens. Aliás, a intencionalidade emancipatória presente na práxis dialógica encontra sua significação no aporte utópico. Em outras palavras, o compromisso e a responsabilidade no engajamento das ações dialogicamente orientadas para a transformação da realidade remetem à convicção utópica da humanização e da libertação e ao sonho de sua possibilidade. Utopia é sonhar com os pés fincados no chão da história, é imaginação crítica, é possibilidade de transcender o amanhã sem cair em um idealismo ingênuo. Sonhar é antecipar o amanhã a partir do olhar criticamente enraizado no hoje: na práxis e pela práxis, o sonho possível se projeta ao inédito viável. No pensamento freireano, portanto, o sonho e a esperança tornam-se categorias vitais para a compreensão da orientação utópica da teoria da ação dialógica de Freire: a busca do inédito viável tem no sonho possível a condição básica para vislumbrar o mundo sonhado e a esperança que move esta busca, em quaisquer situações na luta cotidiana. De fato, “enquanto necessidade ontológica a esperança precisa da prática para tornar-se concretude histórica. É por isso que não há esperança na pura espera, nem tampouco se alcança o que se espera na espera pura, que vira, assim, espera vã” (FREIRE, 1999b, p. 10-11). Assim posto, não há como negar que a esperança em Paulo Freire apresenta uma dimensão pedagógica conferindo sentido às práticas educativas. Além de concebê-la como um ato de conhecimento e um ato político, a educação, impregnado de eticidade, apresenta-se como um ato de esperança que se move por um sonho substantivamente democrático. Em relação aos processos educacionais antidialógicos e domesticadores que reforçam a “cultura 126
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do silêncio” pela “negação da palavra”, Paulo Freire propõe uma educação libertadora, realizada dialogicamente, na liberdade e para a liberdade, que promove a cultura da palavra que só se pronuncia na autêntica liberdade, cultura orientada permanentemente para uma reinvenção substantivamente democrática da sociedade. Em outras palavras, a educação enquanto ação dialógica só tem sentido e só se realiza se for um ato de esperança. Afinal, a educabilidade do ser humano e a esperança manifestam-se co-originariamente fundadas sobre a mesma matriz constitutiva da experiência vital de todo ser humano: a radicalidade ontológica de sua inconclusão assumida e sua busca de ser mais. Do mesmo modo que a educabilidade, a esperança constitui-se também uma exigência ontológica de mulheres e homens, inacabados e conscientes do inacabamento, abertos à procura, curiosos, “programados, mas para aprender”, reconhecem-se sujeitos na e pela busca de realizar histórica e socialmente sua vocação para ser mais. Segundo as palavras do próprio Paulo Freire (2001d, p. 171): “sem esperança não há como sequer começar a pensar em educação. Não é possível ser um ser interminado, como nós somos, conscientes desta inconclusão, sem buscar. E a educação é exatamente este movimento de busca, essa procura permanente”.
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______. Educação como prática da liberdade. 24. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000a. ______. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho d’Água, 2000b. ______. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. 5. reimp. São Paulo: Unesp, 2000c. ______. Educação e atualidade brasileira. São Paulo: IPF/Cortez, 2001a. ______. Conscientização: teoria e prática da libertação. Uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. 3. ed. São Paulo: Centauro, 2001b. ______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 20. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001c. ______. Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: Unesp, 2001d. ______. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. ______. Cartas a Cristina: reflexões sobre minha vida e minha práxis. 2. ed. rev. São Paulo: Unesp, 2003. ______. À sombra desta mangueira. 4. ed. São Paulo: Olho d’Água, 2004.
Notas Bacharel e Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (Bacharelado/1990-1994 e Licenciatura/1993-1995) e graduado em Teologia pelo Instituto Superior de Filosofia e Teologia dos Frades Capuchinhos Paraná Santa Catarina (1980/1985). Mestre em Educação pela Universidade de São Paulo (1995-1999) e doutor em Educação - Filosofia da Educação pela Universidade de São Paulo (2001-2005). Professor associado da Universidade Estadual de Londrina, no Departamento de Filosofia do Centro de Letras e Ciências Humanas (CCH/UEL). Atua como professor colaborador no Mestrado em Direito Negocial e como professor convidado no Mestrado em Educação. No Mestrado em Direito Negocial, desenvolve pesquisa e docência sobre Ética e Direito e Metodologia da Pesquisa Jurídica e, no Mestrado em Educação, sobre Ética e Democracia na Teoria da Ação Dialógica de Paulo Freire. Na área de Filosofia e Educação, desenvolve pesquisa sobre a teoria do agir comunicativo, de Jürgen Habermas, e da teoria da ação dialógica, de Paulo Freire, com ênfase nos fundamen1
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Bianco Zalmora Garcia
tos teórico-práticos de Paulo Freire e Jürgen Habermas, no que se refere à ética e radicalidade democráticas, formação da cidadania democrática e da subjetividade ética, gestão democrática e políticas educacionais. Coordenador do Curso de Pós-graduação Lato Sensu - Especialização em Filosofia Política e Jurídica da Universidade Estadual de Londrina. E-mail: biancozgarcia@gmail.com Em Freire, o inédito viável é um recurso que projeta o futuro possível a partir da desconstrução crítica do presente: por isso, constitui a categoria fundamental do pensamento utópico freireano. A categoria do “inédito viável” permite articular as estratégias emancipatórias e respectivas táticas no exercício da práxis humanizadora e libertadora. Nela se funda o princípio de que mulheres e homens não fazem o que querem na história, mas apenas o que se concebe possivelmente como viável, com base em análises estratégicas em um determinado momento histórico no exercício da práxis que, ao contrário das práticas voluntaristas quase sempre estéreis, avalia as reais possibilidades e os limites para as transformações orientadas para a humanização e libertação, reconhecendo os condicionamentos objetivos e subjetivos historicamente circunstanciais, estruturais e conjunturais, o que demanda necessariamente um aprofundamento cada vez mais crítico do conhecimento científico da realidade “molhado” de esperança e na fé amorosa no ser humano e na sua capacidade de assumir por suas mãos, na liberdade e na autonomia, as rédeas de seu destino, e na solidariedade com outros sujeitos, em igual condição, que se dão as mãos, em unidade na diversidade, para construir permanentemente um mundo sempre mais humano. 2
À medida que se engajam na ação-reflexão, superando cada vez mais a curiosidade ingênua em direção de uma curiosidade epistemológica - rigorosamente metódica - que resiste à sua domesticação, os sujeitos, em solidariedade dialógica, tornam-se capazes de, “tomando distância” de si mesmos e da vida de que são portadores, conhecer autenticamente o objeto do qual se aproximam e com cuja intervenção transformadora se comprometem corresponsavelmente na busca por realizar sua vocação para a humanização (FREIRE, 2000c, 106-108). Assim, em Pedagogia da Esperança, Paulo Freire (FREIRE, 1999b, p. 99) afirma: “[...] é por estarmos sendo assim que vimos nos vocacionando para a humanização e que temos, na desumanização, fato concreto na história, a distorção da vocação. Jamais, porém outra vocação humana. Nem um nem outra, humanização e desumanização, são destino certo, dado, sina ou fado. Por isso mesmo é que uma é vocação e outra, distorção da vocação. É importante insistir em que, ao falar do ‘ser mais’ ou da humanização como vocação ontológica do ser humano, não estou caindo em nenhuma posição fundamentalista, de resto, sempre conservadora. Daí que insista também em que esta ‘vocação’, em lugar de ser algo a priori da história é, pelo contrário, algo que se vem constituindo na história”. 3
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Esperança e educação no pensamento de Paulo Freire...
4 Freire, 2001e, p. 27, 65, 94, 164; Freire, 2000b, p. 36-37, 93-95, 125-126; Freire, 1997, p. 12; 66-69; 93; 100-101; 104, dentre outros. 5 Asserção retirada da Entrevista Nous sommes programmés, mais pour apprendre, Le Courrier, Unesco, fev. 1991. 6 Para Freire, a práxis libertadora fundamenta-se na compreensão de que os seres humanos são um projeto inacabado e que, na consciência de seu inacabamento, buscam realizar permanentemente sua vocação ontológica para ser mais. Incompletos, mulheres e homens são humanizados no diálogo que, para eles, se torna uma necessidade existencial. Ora, a essência do diálogo é a palavra verdadeira, isto é, unidade dialética entre reflexão e ação. A palavra verdadeira é engajar-se em práxis, para transformar o mundo de acordo com a reflexão; para nomear o mundo. Assim, no diálogo e pelo diálogo, a libertação do oprimido, recuperando a sua voz é a condição fundamental da emancipação humana.
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Ensino de filosofia inspirado na pedagogia freireana: relato da experiência de reinvenção do legado de Paulo Freire no contexto da escola pública Valter Martins Giovedi1
A
relevância dessa atividade deve-se, principalmente, ao fato de que a rede pública paulista vem adotando, desde 2008, até hoje (julho de 2014), uma concepção de currículo pré-formatado por técnicos que trabalham na Secretaria da Educação do estado2. Ou seja, vivem um momento da história da Educação em que as práticas educativas paulistas e, portanto, curriculares, estão sendo, mais do que nunca, induzidas e controladas por “especialistas de gabinete”. Tal política de homogeneização curricular foi nomeada de São Paulo Faz Escola. A tarefa que se apresenta aos profissionais da Educação, que trabalham na rede pública estadual paulista, comprometidos com uma concepção pedagógica crítico-libertadora, é a de propor uma prática que não se submeta acriticamente aos “pacotes curriculares” advindos dos órgãos centrais, mas afirme alternativa bem fundamentada teoricamente que ofereça bases sólidas para as ações cotidianas de resistência em nome de princípios éticos e políticos humanizadores. A expectativa é que a experiência aqui relatada dialogue com professores que vivem em contextos semelhantes, nos quais a educação neotecnicista e tecnocrática 131
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tenta se impor. Para tanto, busca-se mostrar que realizar uma pedagogia que não se renda a essa política governamental é experiência de resistência, já que existe pressão, às vezes declarada, às vezes sutil, para que todos os professores sigam as prescrições advindas dos órgãos centrais.
Fundamentação teórica da prática realizada Não é possível viabilizar um conjunto de práticas que vá na “contramão” da concepção instituída oficialmente por uma rede pública de ensino sem estar amparado rigorosamente em referenciais teóricos que ofereçam fundamentos sólidos, a partir dos quais se possa estruturar essa proposta e implementá-la. Inevitavelmente, uma prática de resistência, em um ambiente adverso, estará constantemente sujeita a questionamentos, contestações, curiosidades, inclusive dos educandos3. Para conseguir responder a essas constantes indagações, é preciso ter claros os princípios que regem as nossas práticas, bem como os procedimentos que se pretende utilizar para realizá-las. A experiência aqui relatada está ancorada principalmente nos seguintes referenciais: em Freire (2005) e seus princípios da educação libertadora; e em Silva (2004) a partir de algumas das proposições sistematizadas em sua tese de doutorado defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e intitulada A Construção do Currículo na Perspectiva Popular Crítica: das Falas Significativas às Práticas Contextualizadas. No entanto, é importante ressaltar que, em grande medida, partiu-se do desafio de reinventar o legado freireano a partir das condições de trabalho e das condições particulares de vida, que impediam, às vezes por limitações pessoais, às vezes por falta de tempo, de realizar todas as etapas consideradas fundamentais.
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Ou seja, apesar dos dois principais referenciais terem sido Freire (2005) e Silva (2004), tem-se clareza de que as experiências propostas pelo primeiro e as relatadas pelo segundo, nas obras citadas, referem-se, principalmente, a comunidades ou a instituições que assumem deliberadamente a opção pela perspectiva crítico-libertadora. Nesse sentido, surgiu o desafio de responder à seguinte questão: Como atuar da maneira mais coerente possível com as propostas da Pedagogia Crítico-Libertadora dentro das limitações objetivas e subjetivas a que se está submetido? A rede pública paulista não assume tal perspectiva como orientadora das suas políticas curriculares. Essa realidade exigiu certas adequações das propostas curriculares de Freire (2005) e de Silva (2004) às circunstâncias concretas sem, contudo (assim acreditamos), ferir os princípios fundamentais da pedagogia freireana. Em toda sua obra, Freire reitera princípios irrecusáveis para a perspectiva libertadora de Educação. Destacam-se aqui dois deles: 1. A educação deve servir a um projeto de superação das condições concretas de opressão vivida pelos educandos; 2. Os indivíduos aprendem por meio do diálogo, que parte da sua realidade concreta. Em consonância com esses dois princípios, Freire propôs, em Pedagogia do Oprimido, metodologia investigativa dialógica que orienta educadores sobre algumas etapas fundamentais para que proponham um trabalho pedagógico pertinente e libertador. Para o educador-educando, dialógico, problematizador, o conteúdo programático da educação não é uma doação ou uma imposição – um conjunto de informes a ser depositado nos educandos –, mas a devolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo daqueles elementos que este lhe entregou de forma desestruturada (FREIRE, 2005, p. 96-97). 133
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O educador problematizador é desafiado por Freire a superar a tradição escolar de conteúdos programáticos prontos e decididos previamente por professores ou técnicos. Além disso, o educador é também desafiado, antes de tudo, a ouvir os educandos para saber o que podem lhe ensinar a respeito do mundo em que vivem. Por isso, Freire trabalha com a perspectiva de educador-educando, ou seja, aquele que aprende ao ensinar e ensina ao aprender. Essa prática implica, por isto mesmo, que o acercamento às massas populares se faça, não para levar-lhes uma mensagem “salvadora”, em forma de conteúdo a ser depositado, mas para, em diálogo com elas, conhecer, não só a objetividade em que estão, mas a consciência que tenham desta objetividade; os vários níveis de percepção de si mesmos e do mundo em que e com que estão (FREIRE, 2005, p. 99).
Em Freire, ouvir os educandos não é meramente um exercício tático para o professor motivar os alunos a falarem. É, acima de tudo, uma condição necessária de construção do conhecimento. Na teoria freireana do conhecimento, os indivíduos possuem consciência mais ou menos crítica sobre a objetividade na qual estão envolvidos. Ou seja, os indivíduos têm conhecimentos sobre a realidade concreta na qual vivem: sobre seus problemas, suas lutas, dificuldades, seus sofrimentos, suas carências, etc. Por mais que o educador, a partir de seu olhar crítico, ou não, também tenha uma visão sobre a objetividade que os educandos manifestam, não pode considerar-se suficientemente conhecedor da realidade do outro. Sempre falta ao educador o domínio do olhar que o educando tem sobre a sua realidade. Esse olhar é que faz sentido para os educandos; que lhes dá sentido ao mundo. Portanto, é dele que se deve partir, caso haja compromisso com a superação das condições concretas de opressão vividas por eles. 134
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Por tudo isso, não há uma educação libertadora que não busque investigar dialogicamente aos educandos e com os educandos os pontos de vista a partir dos quais eles enxergam a realidade imediata em que estão inseridos. Para realizar tal investigação, Freire (2005) propôs etapas que se desenrolam desde o contato inicial dos educadores com a realidade na qual trabalham, ou pretendem trabalhar, até a proposição de um programa pedagógico aos educandos. Inspirando-se no processo investigativo de Freire (2005), Silva (2004) relata, em sua tese de doutorado, várias de suas experiências como assessor de Secretarias de Educação espalhadas por diversos lugares do Brasil. A partir de tais experiências, sistematizou aquilo que denominou de “momentos organizacionais da construção do currículo popular crítico”. Nessa sistematização, Silva (2004) oferece referências para tornar operacional, no contexto escolar, uma práxis pedagógica comprometida com os princípios da Pedagogia Crítico-Libertadora. Algumas dessas referências serviram de ponto de partida para construir algumas das práticas destinadas aos alunos da escola pública na qual lecionávamos. Destacamos, aqui, algumas proposições que Silva (2004) oferece quando explicita o segundo momento (“resgate de falas significativas constituindo sentido à prática: elegendo temas/contratemas geradores”) dos “momentos organizacionais da construção do currículo popular crítico”, que nos provocaram a refletir sobre o que poderia ser adaptado ao planejamento das duas aulas semanais de Filosofia4. Esse autor explica que devemos partir das falas dos educandos e da comunidade para acessar a realidade concreta por eles vivida. A partir dos problemas, necessidades, conflitos e contradições vivenciadas e dos limites explicativos presentes nas falas, podemos delimitar as dificuldades que a 135
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comunidade enfrenta para transformar suas condições concretas, para interagir na realidade local, pois, a fala deve ser a reveladora do pretexto – do pré-texto, da necessidade problemática, da contradição, e não simples motivação pedagógica. Podemos compreender as falas como uma expressão do conhecimento, a elaboração de raciocínios, a partir da articulação de conceitos e juízos, sendo este enunciado através de proposições. As falas explicativas são consideradas aquelas que privilegiam análises e juízos que expressam as concepções das situações vivenciadas. As falas propositivas expressam intenções e formas de atuar na realidade no sentido de intervir na sua organização (SILVA, 2004, p. 188).
Como explicitado, o compromisso sociopolítico da educação libertadora é com a superação das condições de opressão vigentes na sociedade. Trata-se do compromisso com a superação da fome, da falta de moradia, de áreas de lazer, de saúde pública de qualidade, de transporte, de segurança, de áreas verdes, de dignidade, etc. Essa superação só é possível por meio da ação política coletiva organizada e transformadora. A história da humanidade mostra que as condições de opressão só se perpetuam quando os oprimidos não se engajam em um processo de luta por sua superação. Apesar de, em grande medida, estarem “anestesiados” e submetidos à consciência fatalista da realidade, os oprimidos sentem na pele as consequências da ordem social injusta. Mais do que isso, verbalizam seus sentimentos, suas necessidades, seus problemas. Tais falas, que se expressam por meio de juízos a respeito da realidade, indicam os limites explicativos que determinada comunidade possui sobre os próprios problemas. Diariamente, os membros da comunidade vivem esses problemas. Diariamente, ouvem seus vizinhos falarem sobre eles. Diariamente, proferem 136
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suas angústias diante deles. Nesse sentido, os educandos, moradores da comunidade, convivem cotidianamente com tais falas e são, em certa medida, porta-vozes das denúncias e dos anseios coletivos. A respeito dos problemas vividos, os educandos possuem explicações (falas explicativas), versões, sobre os porquês da realidade ser do jeito que é. Tais explicações, geralmente, são ingênuas. Ou seja, são construídas no próprio processo da vida cotidiana e, portanto, carecem de sistematização e de criticidade. Por serem ingênuas, tais explicações impedem ações transformadoras, já que, tal como Freire (2005) alertou, uma das características fundamentais da consciência ingênua é conceber a realidade não como histórica, mas como produto de forças que estão acima das ações dos sujeitos. Consequentemente, as falas propositivas tendem a considerar que as soluções dos problemas da comunidade devem vir de fora dela. Diante disso, Silva (2004) explica que cabe aos educadores crítico-problematizadores fazer um levantamento dessas falas e selecionar aquelas que explicitam contradições, limites explicativos e concepções de mundo da comunidade e, também, que demonstram diferenças relacionadas à visão que os educadores possuem sobre os fenômenos, possibilitando identificar as diferenças entre as explicações construídas pela comunidade e pelos educadores para a realidade analisada. Nesse momento, ainda não se tem certeza de que as falas significativas que selecionamos são realmente as mais pertinentes e reveladoras das contradições principais vividas pelos educandos. Por isso, em consonância com Freire (2005), Silva (2004) alerta que devemos promover uma primeira devolução, à comunidade, dos dados que levantamos para avaliar a sua reação e se realmente representam o pensamento de seus membros.
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É, portanto, um momento de avaliação do processo até então desenvolvido. Caracteriza-se pela primeira devolução de dados e análises à comunidade em reuniões em que representantes dos diferentes segmentos da comunidade se posicionam quanto à síntese da pesquisa apresentada pelos educadores... (SILVA, 2004, p. 196)
O que está sendo devolvido à comunidade, neste momento, é a hipótese do que os educadores entendem que podem ser os principais núcleos de contradições vividas pelos moradores da área. Tal devolução processa-se sempre por meio do diálogo e da problematização das situações e falas dos próprios membros. Realizada essa devolução e, portanto, promovidos os círculos de diálogo a respeito das falas selecionadas, é possível definir o tema gerador. Assim, concebo os temas geradores com uma síntese organizacional dessas falas significativas selecionadas que orienta a sistematização da dinâmica pedagógica que se pretende implementar – são as “situações-limites” de Freire ([1968] 1988) que, para se tornarem objetos da práxis pedagógica, devem ser passíveis de contraposições pela visão crítica do coletivo de educadores sobre a mesma realidade e análise de tais situações, buscandose assim, superações e soluções até então despercebidas pela comunidade (SILVA, 2004, p. 191-192).
Além de denotar um limite explicativo no nível da consciência e uma situação-limite coletiva a ser superada no nível da realidade concreta, o tema gerador oferece um ponto de partida para que se efetive a prática pedagógica. A partir dele, podem ser construídas problematizações pertinentes que impulsionam o diálogo e o conhecimento, no contexto da sala de aula. Passa-se a ter um 138
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critério de seleção, dentro do universo dos conhecimentos sistematizados produzidos pela humanidade, dos saberes que melhor ajudarão aos educandos a compreender criticamente a realidade que os envolve.
Relato da experiência desenvolvida A experiência aqui relatada ocorreu a partir do início do ano de 2010. Consistiu em um conjunto de práticas desenvolvidas com os educandos e as educandas do 1o ano do Ensino Médio de uma escola pública estadual, situada na zona leste da cidade de São Paulo. Busca por legitimação da direção e da coordenação pedagógica da escola O primeiro desafio foi apresentar para a direção e coordenação pedagógica da escola um projeto de trabalho, justificando com bons argumentos porque não estava sendo seguido o material didático oficial advindo da Secretaria Estadual da Educação. Para tanto, foi redigido um texto, composto de três partes, em que era explicado como seria o trabalho pretendido. Na primeira parte, os pressupostos epistemológicos fundados na concepção freireana de ensino-aprendizagem ressaltavam os princípios do diálogo e da realidade concreta como ponto de partida. Esclarecia-se que, sem consideração de ambos, não é possível a construção de conhecimento. Na segunda parte, estavam expostos os passos que seriam trilhados para a construção dos conteúdos programáticos com os estudantes. O conteúdo programático seria o quarto passo de três momentos anteriores5: 1. Questões de investigação do universo existencial dos educandos: com essas questões, seriam identificadas as visões de mundo dos educandos sobre a realidade que os envolve e 139
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na qual vivem, tentando descobrir: a. quais são os aspectos da vida e da realidade que mais os incomodam; b. como entendem esses aspectos6. 2. Sistematização das falas significativas: com as respostas em mãos, os dados seriam sistematizados, classificados, para serem entendidos nos seus significados explícitos e latentes. Em seguida, perguntas problematizadoras serviriam para entender o que eles quiseram dizer com as respostas que deram. 3. Devolução dos dados aos educandos e problematização das falas: nesse momento, cada uma das turmas7 explicaria melhor as afirmações feitas a partir das perguntas problematizadoras apresentadas. Os estudantes deviam autorizar a gravação do momento, já que não seria possível registrar por escrito todas as respostas deles e as discussões que fossem travadas. 4. Definição dos temas geradores e de conteúdos programáticos de Filosofia: por fim, com as gravações em mãos, já seria possível ter uma ideia adequada de como os educandos veem o mundo que os envolve, bem como das temáticas mais pertinentes ao universo existencial deles. A terceira parte referia-se à concepção metodológica que estava regendo toda a proposta, ressaltando, mais uma vez, o princípio do diálogo. Na quarta parte, expunha-se a concepção de avaliação e a estrutura geral do plano de ensino que, vale a pena repetir, só poderia ser construído depois de, no mínimo, duas semanas de contato e de diálogo com os alunos. Aceita a proposta, seguiu-se para o processo de implementação.
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Questões de investigação no universo existencial dos educandos Apesar de, na época, ser morador do bairro em que a escola está localizada, evitou-se transpor as próprias visões sobre a comunidade para o planejamento sem antes conhecer como os estudantes a compreendiam. Seguindo as proposições de Silva (2004), as perguntas para os estudantes possibilitaram que falas explicativas e falas propositivas emergissem nas suas respostas. Por isso, foi solicitado que respondessem às seguintes questões: 1. Na sua opinião, o que um bairro que trata seus moradores com dignidade deve oferecer-lhes? 2. Em qual bairro/região você mora? 3. Na sua opinião, qual o maior problema do bairro/ região em que você mora? 4. Na sua opinião, qual a causa principal para a existência deste problema? 5. Como você acha que esse problema pode ser enfrentado?
Repondidas às questões, o rico material pôde ser analisado para mapear as visões de mundo dos estudantes. Respostas dos educandos e problematizações Muitas respostas foram dadas pelos alunos. A partir delas, foi possível ter uma ideia mais precisa de onde eles vinham e em quais bairros e/ou comunidades moravam. Também foi possível verificar quais eram as temáticas mais significativas, e mapear os diversos problemas que apontaram, como: violência, roubos/assaltos, falta de segurança, problemas relacionados às drogas, à malandragem, criminalidade, falta de representantes na região, convivência entre vizinhos, ao lixo, excesso de barulho, à enchente, ao alcoolismo, à falta de área de lazer, etc. 141
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A título de exemplo, vale a pena citar as falas explicitadas por três estudantes diferentes e algumas das problematizações elaboradas para serem desenvolvidas no encontro seguinte: – O maior problema são as drogas. A causa é o fato de muitas pessoas aceitarem a droga oferecida pelo próximo e o vício. Com isso, esse mal só se espalha cada vez mais. Solução: recusando a droga oferecida e incentivando o viciado a largar a droga. Problematizações propostas a partir da fala: 1. Na opinião de vocês, por que os jovens da nossa região são atraídos tanto pelas drogas? 2. Na opinião de vocês, por que alguns jovens são atraídos pelo mundo do tráfico? 3. Por que alguns jovens não recusam a oferta de usar drogas e outros recusam? – Maior problema são os roubos. A causa para a existência desse problema é a favela. Solução é a polícia rondando a rua. – Assaltos. A causa é morar perto da favela. Eu não tenho nada contra quem mora na favela, mas acontecem assaltos na minha rua justamente por morar perto de uma favela. O problema pode ser resolvido colocando-se policiamento para rondar as ruas. Problematizações propostas a partir das falas: 1. O que vocês acham dessas duas afirmações? Vocês concordam com elas? 2. Vocês acham que a principal causa de roubos e assaltos é a favela? 3. Vocês acham que a principal forma de se enfrentar esse problema é com policiamento?
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Como era de se esperar, as falas repetiram-se e outras tantas se inter-relacionaram de alguma maneira, tornando possível perceber uma rede de problemas que afetam a região e que estavam sendo apontados pelos estudantes. O passo seguinte era promover a devolução dos dados captados. Círculo de diálogo e problematização das falas dos estudantes Durante duas aulas seguidas, cada turma, em círculo, dialogou a partir das problematizações elaboradas, como as já citadas. Com esses diálogos, pretendeu-se identificar quais falas mais chamaram a atenção deles e quais, de alguma maneira, produziam um tipo de reação emotiva e de mais sensibilização. Para que nenhum detalhe fosse perdido, um gravador de voz serviu para registrar todos os momentos dos diálogos. Percebeu-se que as reações dos estudantes à metodologia dialógica são bastante contraditórias, ainda que, com o passar do tempo, tenham demonstrado cada vez mais interesse e afeição pelos constantes diálogos realizados nas aulas. Tal prática, da qual muitos participaram ativamente, trouxe ruptura da rotina de cópia da lousa e repetição de conteúdos prontos e sem sentido. De fato, as falas relacionadas ao mundo das drogas e à vida do crime produziram as reações e participações mais intensas. Os alunos demonstravam muitas inquietações a respeito de tais temáticas. Foi ficando cada vez mais claro que ali manifestavam-se situações limites que afetam muito fortemente a vida dos moradores. Ao mesmo tempo, ficou claro que as explicações que os estudantes atribuíam aos problemas da criminalidade e das drogas na comunidade estavam bastante influenciadas por visões construídas pelos meios de comunicação de massa, principalmente pelo sensacionalismo tão presente em diversos programas de televisão.
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Proposição de tema gerador principal e falas significativas relacionadas De posse das gravações dos debates mantidos com os estudantes de todas as turmas do primeiro ano do Ensino Médio do período da manhã, foram feitas reflexões profundas sobre os conteúdos das falas que ajudaram a mapear uma complexa rede de problemas que se inter-relacionavam e que ainda não eram vistos pelos alunos como parte de um todo que pode ser desvelado. Porém, qual deveria ser o ponto de partida para iniciar o processo de desvelamento crítico das falas e situações significativas que se apresentavam nos discursos gravados? Nos discursos, algumas falas se repetiram constantemente, porém, uma delas gerou uma série de reações e de embates que pareceu promissora como ponto de partida e síntese do processo investigativo que se desenvolvia há três semanas: “Quem vira bandido vai para o mundo do crime porque é sem-vergonha”. Diante disso, ao final de três semanas de problematização e investigação, emergiu um tema que deu margem a muitos debates e diálogos nas aulas de Filosofia. A partir dele, um conteúdo programático de Filosofia foi proposto e trabalhado em sala de aula com o objetivo de promover o desvelamento crítico da realidade vivida pelos estudantes. Outras falas significativas também foram utilizadas como ponto de partida dos diálogos em sala de aula: – A principal razão que leva a pessoa a voltar-se para o mundo da violência é a família. – Pessoa rouba para mostrar superioridade. – Com certeza, a violência num bairro nobre é muito maior do que na nossa região. – É mais tranquilo você morar dentro da favela do que próximo dela.
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– A solução para o problema da criminalidade é cada um se virar por conta própria para tentar se prevenir. – Pessoas reagem aos assaltos porque pensam que trabalharam um ano inteiro para comprar aquilo e agora vem alguém e rouba. – A pessoa vai para a bandidagem por influência dos colegas. Isso ocorre por falta de personalidade da pessoa. – Cada um tem a sua consciência. O que a pessoa faz vai da consciência da pessoa. – Se o policial abordar as pessoas de maneira que não seja agressiva, eles não serão respeitados. – Quando você está andando à noite e a polícia chega, ou você corre ou toma pau.
Esse rico material provocou diversas discussões. Os conteúdos de Filosofia, como, por exemplo, os pensamentos do Liberalismo Político e Econômico, de Freud, Foucault, Marx, da Filosofia da Libertação, etc. foram alguns dos conteúdos sistematizados demandados pelos diálogos. Olhando para os conteúdos propostos pela apostila de Filosofia da Secretaria Estadual da Educação, percebe-se que passam bem longe dessas problemáticas tão concretas para os estudantes dessa escola.
Considerações Finais O resultado mais efetivo de uma proposta de trabalho a partir dos referenciais freireanos deve ser o engajamento político dos sujeitos no processo de superação das contradições vividas cotidianamente. No entanto, há uma quantidade imensa de variáveis que coopera ou não para que tal resultado seja atingido no seu nível mais radical. É preciso ressaltar que o projeto pedagógico da escola não se coaduna com a prática aqui descrita. Existem forças
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contraditórias atuando dentro da mesma instituição e também há toda uma infraestrutura que prejudica ações que vão na contramão da perspectiva hegemônica. A participação ativa dos estudantes nos círculos de diálogo já indicava que pressentiam estar algo novo acontecendo. Que o cotidiano da escola pode ser mais do que uma rotina repetitiva e desprovida de sentido para as suas vidas. Para finalizar este trabalho, reitera-se aqui que as condições que possibilitariam uma prática que se aproximasse das proposições feitas por Freire e por Silva não estavam sendo oferecidas pela rede pública estadual paulista. Há muitos obstáculos e limitações que são cotidianamente sentidos na pele por aqueles que anseiam por uma escola como espaço de diálogo compromissado com a superação das situações limites vividas pelos educandos. Porém, isso não pode servir de justificativa para não ousarmos reinventar as contribuições daqueles que nos legaram e legam experiências que vêm ao encontro dos nossos anseios.
Referências FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. ______; SHOR, Ira. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. GIOVEDI, Valter Martins. O currículo crítico-libertador como forma de resistência e de superação da violência curricular. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), 2012. SILVA, Antonio Fernando Gouvêa da. A construção do currículo na perspectiva popular crítica: das falas significativas às práticas contextualizadas. Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), 2004.
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Valter Martins Giovedi
Notas Professor do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes); doutor em Educação: Currículo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); atuou por 10 anos como professor da rede pública do Estado de São Paulo. E-mail: giovedival@gmail.com
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2 Caso o leitor tenha interesse em conhecer mais a fundo a análise crítica sobre a política educacional que vem sendo adotada no estado de São Paulo desde 1995 e, de modo mais específico, a análise crítica do currículo oficial vigente neste estado, indicamos nossa tese de doutorado defendida em 2012 e que está disponível em: <http://www.sapientia.pucsp. br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=15351>. Acesso em: 20 jul. 2014.
Pergunta frequente que alguns educandos faziam, logo nos primeiros dias de aula, era se utilizaríamos as apostilas de Filosofia entregues a cada um deles. 3
Desde o início, seguir o roteiro da apostila do programa curricular do governo estava fora de cogitação. 4
Ressaltei também que seriam necessárias, pelo menos, duas ou três semanas de aulas para apresentar um plano de ensino para a disciplina de Filosofia. Ao contrário dos outros professores, que já começariam a trabalhar com as apostilas do governo assim que estivessem nas mãos dos alunos, a partir da primeira semana de aulas. 5
6 Para tanto, expliquei que o processo seria iniciado com o professor propondo aos estudantes perguntas abertas para que respondessem livremente numa folha de caderno a ser entregue para o professor.
Eram seis turmas do 1o ano do Ensino Médio do período matutino. Cada uma com a média de 30 alunos por sala.
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Uma percepção do ato de educar que ligue o pensamento de Paulo Freire à cultura digital, tendo as TIC como instrumentos para as mediações pedagógicas Dom Robson Medeiros Alves OSB1
A
história da educação registra importantes educadores com expressividade em suas ações pedagógicas. São homens e mulheres que souberam comunicar aquilo que acreditavam ser um valor para o processo educacional, em meio ao desafio de reinventar-se, deixando assim marcas históricas que os transformaram em referências para a formação de muitas outras gerações, pelo fato de terem sido capazes de se abrir à novidade que a vida lhes apresentava como caminho de diálogo com o diferente, com o outro, com o novo. O pedagogo Paulo Freire é um desses educadores, que, na experiência com a educação em seu todo, desenvolveu ampla sensibilidade às questões de seu tempo, deixando um legado de ensinamento que o faz, ainda hoje, um educador capaz de ser lido e estudado na profundidade e complexidade dos novos desafios da educação. Por isso, será lido pelo viés do tempo histórico da cultura digital, que entra, pelas portas das escolas, pelas mãos, sobretudo, de seus educandos. E Freire, como pedagogo sensível às questões do seu tempo, certamente autorizaria um empenho textual que contribua para o conhecimento do homem em todas as suas dimensões relacionais, orientadas para a educação.
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Dom Robson Medeiros Alves OSB
Este texto promove um diálogo da abordagem educacional de Paulo Freire com a cultura, inclusive a digital, indicando caminhos de interação entre a vida cultural e a educação, mostrando o importante crescimento, surgido a partir dessa relação, enquanto construção de mediações pedagógicas que aproximem educadores e educandos do desejo e da efetivação da ampliação das aprendizagens, a fim de que as crianças e os adolescentes de hoje, realizem, conscientemente, seu papel social de transformar a sociedade, a partir de amplo acesso aos bens culturais de seu tempo, inclusive a digitalidade.
A cultura como elo entre as gerações A cultura apresenta-se com aspectos existenciais, ao descrever momentos da história da humanidade, com a particularidade de, numa expressão metafórica, revelar traços da alma, da interioridade das pessoas, seus anseios, desejos e suas caminhadas, ou seja, a cultura é um retrato da própria vida, como marca do tempo, acontecendo ora em meio a características de autonomia e independência ora com a invasão de elementos outros, sempre crescente, como fato social. O pedagogo Paulo Freire define muito bem o que é cultura, elaborando o conceito a partir de referências práticas da existência humana, da vida concreta, sem vícios de abstrações metafísicas. Coloca a cultura na perspectiva da condição existencial, como um lugar e um tempo de e para todos, porque “cultura é a poesia dos poetas letrados do seu País, como também a poesia de seu cancioneiro popular” (FREIRE, 1978, p. 109). A cultura comporta nuances em que o homem desenvolve relações filosóficas, antropológicas, sociológicas, pedagógicas, isto é, como expressões de humanidades que demonstram ser o homem um ser relacional por excelência. 149
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O que significa, nas palavras de Paulo Freire (1979, p. 30), na obra Educação e Mudança, que “o homem está no mundo e com o mundo”. E continua o texto para ajudar a entender que, por meio das ações culturais, no mundo, o homem transcendentaliza-se. Cultura é tudo o que é criado pelo homem. Tanto uma poesia como uma frase de saudação. A cultura consiste em recriar e não repetir. O homem pode fazê-lo porque tem uma consciência capaz de captar o mundo e transformá-lo. Isso nos leva a uma segunda característica da relação: a consequência, resultante da criação e recriação que assemelha o homem a Deus (FREIRE, 1979, p. 30-31).
No sentido do homem como ser histórico, embebido de referências históricas, são esperadas respostas conscientes que deem sentido ao seu viver, a partir dos atos que compõem suas relações com a existência, desde o ontem até o amanhã. Dentre os muitos atos humanos, que revelam seu patrimônio cultural, o de educar tem o enfoque central, neste texto, como retrato de uma construção coletiva que, elo por elo, vai unindo as gerações, umas comunicando aprendizagens às outras, em um processo gradativo, no qual são geradas forças relacionais dentro do viver, e que vão suscitando fatos e acontecimentos adequados às realidades da história das instituições. Por isso, é possível compreender que o patrimônio cultural da humanidade é uma potência dinâmica de interação entre pessoas e instituições. Uma das instituições que se serve do patrimônio cultural da humanidade é a educação; essa compõe-se de atos que retratam respostas históricas ao tempo e organizam formas de atuações. Assim, a essência do ato de educar traça, para o homem, um efeito, que salta de apenas potência filosófica desse ato para alcançar consciência, de 150
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modo que não faz por fazer, não é repetido por todos, mas assume o que faz como ato que transforma a vida. Cada sujeito recupera, para si, um papel importante, que pode ser comunicado a outros pela educação, eis a perspectiva de interatividade geracional. Ao sabor das palavras de Paulo Freire, entrevê-se o ato de educar como relação dialógica de duas partes que se complementam, podendo ser interpretada, essa relação, como uma missão, que resulta para a humanidade numa elevação e na conquista de autonomia e avanço sobre uma simples condição de estar no mundo, mas de ser o responsável pelo que faz neste e responsável pelo futuro, em meio a ações intercomunicantes entre tudo o que envolve o homem e seu agir, isto é, com todas as suas criações, que devem estar a seu serviço. Paulo Freire, ao escrever sobre a sociedade brasileira em transição, referindo-se a um período histórico que abrange as décadas de 60 e 70, reafirma um papel do homem de agir sobre seu tempo histórico como sua ação criadora. “O homem existe – existere – no tempo. Está dentro. Está fora. Herda. Incorpora. Modifica. Porque não está preso a um tempo reduzido a um hoje permanente que o esmaga, emerge dele. Banha-se nele. Temporaliza-se” (FREIRE, 1978, p. 41). E um dos lugares em que o homem se temporaliza é a educação, porque essa lhe dá um poder de não ser apenas espectador. Continua o Freire: Herdando a experiência adquirida, criando e recriando, integrando-se às condições de seu contexto, respondendo a seus desafios, objetivando-se a si próprio, discernindo, transcendendo, lança-se o homem num domínio que lhe é exclusivo – o da História e o da Cultura (FREIRE, 1978, p. 41).
Assim, a educação não é apenas uma questão de receber conteúdos ou de aderir a uma proposta conceitual do como 151
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educar; é novidade permanente que permite ao homem responder historicamente na vida, trazendo do seu interior criações que comuniquem sentido para o seu viver. Nosso pedagogo admite, assim, a conceituação de uma antropologia filosófica do homem com um ser no mundo: Homens e mulheres, pelo contrário, podendo romper essa aderência e ir mais além do mero estar no mundo, acrescentam à vida que têm a existência que criam. Existir é, assim, um modo de vida que é próprio ao ser capaz de transformar, de produzir, de decidir, de criar, de recriar, de comunicar-se (FREIRE, 2011b, p. 108).
Portanto, ao ser humano, dotado de uma essência interior, uma alma, cabe criar, apresentando sua alma para o mundo, como comunicação de seu eu interior enquanto perspectiva de construção de sentidos para sua vida. A propósito, para referir-se ao ímpeto criador do homem, voltado para a educação, Freire escreve: Em todo homem existe um ímpeto criador. O ímpeto de criar nasce da inconclusão do homem. A educação é mais autêntica quanto mais desenvolve este ímpeto ontológico de criar. A educação deve ser desinibidora e não restritiva. É necessário darmos oportunidades para que os educandos sejam eles mesmos (FREIRE, 1979, p. 32).
Entende-se, a partir desse imperativo da ação educacional, existir um lugar introdutório para as perspectivas culturais dos seus envolvidos, ou seja, um lugar para dar à cultura, inclusive a cultura digital de nossos educandos, a possibilidade de ser o elo cultural entre os personagens envolvidos na educação, ou seja, no linguajar técnico apropriado ao texto, um link. Nisso se obtém a abrangência do ato de educar, relacio152
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nado a esse intercâmbio geracional, que encontra determinadas barreiras para alcançar pleno êxito, como: aceitação do conhecimento do outro, abertura a conhecimentos novos, acesso a novas fontes de aprendizagens, vícios funcionais da profissão de professor, autocompreensão pedagógica, práticas didáticas fixas ou estáticas, por exemplo, como abertura ao diálogo pedagógico. Não havendo esse diálogo pedagógico, aparece a soberba profissional, à medida que se resiste a aprender com o tempo histórico, com a experiência, com a cultura e com o educando. Ou, então, uma empáfia do educando frente ao educador, porque tem consciência de ter fácil trâmite na cultura que cresceu e que agora bate às portas da vida escolar. Moacir Gadotti, ao escrever o livro A Escola e o Professor. Paulo Freire e a Paixão de Ensinar, no capítulo Continuar e Reinventar, indica que Freire permite que, neste texto, se legitime aproximar o diálogo que propõe com a atualidade do ato de educar, numa perspectiva de interação com a cultura das crianças e adolescentes de hoje, através de utilização das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC): Neste contexto, o pensamento de Paulo Freire é mais atual do que nunca, pois em toda a sua obra ele insistiu em metodologias, nas formas de aprender e ensinar, nos métodos de ensino e pesquisa, nas relações pessoais, enfim, no diálogo (GADOTTI, 2007, p. 87).
Embora muitos educadores já tenham vencido esse obstáculo, que os impede de aprender sempre mais com seus alunos, e esses apresentem menor resistência ao saber do professor, Paulo Freire em outro texto, a Pedagogia da Autonomia, sinaliza para uma perspectiva dialógica da ação pedagógica, primando, tal agir, pela dialogicidade. Assim, escreve que: 153
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Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender... Ensinar inexiste sem aprender e vice-versa, e foi aprendendo socialmente que, historicamente, mulheres e homens descobriram que era possível ensinar (FREIRE, 2011a, p. 25-26).
Nossa sociedade, hoje, é plena de tecnologias e a vida social dos nossos educandos se estrutura estreitamente em torno do universo da web, um campo para a ação pedagógica, um lugar para as trocas de conhecimentos e reconstruções didáticas, em que educadores também aprendem com seus educandos, sobretudo no domínio das tecnologias digitais e de seu uso. Os dispositivos móveis, sobretudo o celular, que anda nas mãos dos educandos, podem ser instrumentos utilizados na sala de aula e, também, como recurso extraclasse. Outro fato que se conjuga, é que não se pode absolutizar a figura do educador como o centro do saber, e essa constatação, por mais formulada que já esteja nos escritos sobre educação, enfrenta grande dificuldade de reajuste cultural, afinal, desde há muito tempo se legitimou como a maneira de interpretar a ação pedagógica. Ao constatar o fato de que os dispositivos móveis estão nas mãos dos educandos, os quais formam uma mesma comunidade de aprendizagem com os educadores, infere-se que os primeiros podem utilizar a tecnologia para captar e trazer conhecimento para a aula, de modo que se sintam mais motivados e também motivem mais o aprendizado. Sem dúvida, assim, os conteúdos são ampliados e, na relação de partilha, é realizado um intercâmbio de saberes. Portanto, a interpretação do educador como centro transforma-se, visto que o aprendizado ocorre numa rede partilhada de conheci154
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mentos, que envolve desde o manuseio tecnológico, a explanação de pesquisas efetuadas na web, até uma nova compreensão participativa e democrática do processo educacional, numa perspectiva real de dimensão socializadora do saber para o todo. A propósito, o pensamento acadêmico tem se preocupado com a formação e a mudança da compreensão dos educadores acerca do uso das tecnologias digitais como mediação das práticas pedagógicas, no sentido de transformar o processo educacional por meio de ações colaborativas entre educadores e educandos, numa perspectiva de construção gradativa do saber. Dentre tantos pesquisadores, pode ser trazido para colaborar com este texto um trecho da pesquisa de campo, realizada pela professora Maria Elizabeth Bianconcini de Almeida acerca da formação e inclusão digital de professores, no intuito de prepará-los cada vez mais para o diálogo com a cultura digital em sua ação didática. Assim, escreve a partir de relatos expostos em seminários de intercâmbio: As ações realizadas na formação constituíam um conjunto articulado entre si que devia desenvolver-se com a participação ativa dos professores, de modo a propiciarlhes a compreensão sobre as possibilidades de uso do computador em atividades que favoreciam transformar as aulas tradicionais, excessivamente diretivas e instrucionais, em ações colaborativas com alunos, nas quais todos são aprendizes em diálogo entre si e com o conhecimento em construção (ALMEIDA, 2004, p. 112).
Essa postura pedagógica tem sido cada vez mais assimilada na formação de novos educadores, ao sabor do que apregoa Paulo Freire para reforçar a necessidade da escola de não ser mera reprodutora, mas construtora de conhecimentos entre todos os seus atores. Isso pode ser lido na 155
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Dissertação de Mestrado em Educação: Currículo, defendida na casa formadora em que Paulo Freire lecionava, quando MENEZES (2013), ao abordar a questão da cultura digital como auxílio na construção de conhecimentos na escola, escreve: Neste sentido, a escola que é aberta ao contexto da cultura digital com a prática da produção, da autoria, assim como da publicação e compartilhamento de seus conteúdos deixa de ser mera consumidora de informação e passa a aprender, atuar e desenvolver conhecimentos. Além do mais, explora as potencialidades das TDIC - tecnologias digitais de informação e comunicação - e das mídias digitais como uma forma de registro e de consulta das suas produções, assim como possibilita contribuições externas, questionamentos e reflexões ao trabalho realizado, causando o aprofundamento do conhecimento construído, em parceria com os alunos (MENEZES, 2013, p. 41).
Com isso, o agir pedagógico assume um poder de incidir sobre a vida social, elaborando novos perfis existenciais, que manifestem novos sentidos. Isso é a cultura evoluindo, em suas variadas manifestações, como reflexo do que emana da alma humana, no sentido existencial, e se apresenta como marca do viver. Logo, a cultura educacional, inclui-se nessa digressão de sabor filosófico-teológico que até aqui se descreveu. Ao longo da história da humanidade, em todas as suas subclassificações: religiosa, política, econômica, educacional, tecnológica, etc., registram-se muitos ajustamentos culturais, desde os aspectos mais universais até os muito particulares, entretanto, nem sempre um vem em detrimento do outro. Trata-se de um movimento da história, que demonstra 156
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interpenetrações culturais inerentes ao contato humano, aos sinais de aproximações, quiçá, de diálogo cultural entre as gerações, que sempre deve considerar o que cada época e característica de uma geração tem a oferecer como contribuição para o desabrochar da vida, como marca efetiva da complementariedade histórica, sobretudo, no que tange à cultura educacional, em que a história das ações pedagógicas envolve relatos do desejo de intercomunicar pensamentos, ampliar aprendizagens e construir saberes. Como complementariedade histórico-pedagógico-cultural, vão se formando legados que não suplantam os anteriores, ainda que apresentem formas diferentes e até mais desenvolvidas, visto que uma pode aprender e se enriquecer com a outra. Nesse sentido, se fosse possível fazer um exame de suposta genética da cultura, constatar-se-ia que a história da pedagogia reflete um somatório de contribuições e possibilita entender a cultura como o retrato e patrimônio da história da vida, escrita com a pena do viver cada momento, seus desafios e estímulos. Trata-se da realização filosófica do ato de educar, como ação educacional do homem agindo no seu, já referido, tempo histórico. A educação pode ser pensada como atividade cultural a partir do tempo em que está se vivendo, abstraindo mudanças sociais que se apresentem como constantes desafios para as gerações. Tem que ser, como descreve Paulo Freire, “um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. Não pode fugir à discussão criadora, sob a pena de ser uma farsa” (FREIRE, 1978, p. 96). E o tempo histórico educa o homem, ensinando-o a educar o seu tempo. A propósito, para se localizar temporalmente, é necessário considerar a realidade antropológica da maioria das crianças e dos adolescentes de nossos tempos. Elas transportam prolongamentos de seus corpos, que servem para realizar grande parte de suas relações interpessoais e com a 157
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sociedade, em suas mãos, utilizando seus dedos dispositivos móveis, notebooks, tablets e smartphones. Esses equipamentos digitais os acompanham aonde forem, e são partes essenciais de suas relações sociais. Estão de tal modo atrelados a esses objetos, que podem ser considerados uma porta de entrada em suas vidas, um instrumento de acesso, que está se consolidando como a cultura de uma geração, capaz de interpenetrar em outras faixas etárias e, portanto, um fato social, uma expressão cultural. Nesse sentido, a educação, que sempre segue pelas vias da cultura, pode encontrar um caminho de interação que ajude o ato de educar. Facilita partir do que já existe, uma vez que lhes atrai a atenção e o afeto, enquanto canais facilitadores da missão de educar. A criança e o adolescente têm demonstrado uma natureza tecnológica voltada ao uso das máquinas como recursividade do seu tempo, dando-nos uma chave hermenêutica para compreender seus hábitos, aptidões e habilidades. Oriundos dos usos tecnológicos que alterou o jeito de brincar, através dos brinquedos eletrônicos, video games, etc., refletem o meio que lhes organizou a estrutura do aparato cerebral. Daí, para pensarmos como educar nossas crianças e adolescentes, temos que seguir as orientações escritas no capítulo A Educação e o Processo de Mudança Social, do livro Educação e Mudança: Não é possível fazer uma reflexão sobre o que é a educação sem refletir sobre o próprio homem. Por isso, é preciso fazer um estudo filosófico-antropológico. Comecemos por pensar sobre nós mesmos e tratemos de encontrar, na natureza do homem, algo que possa constituir o núcleo fundamental onde se sustente o processo de educação (FREIRE, 1979, p. 27).
Freire continua sua digressão focada em questões surgidas desde as décadas de 70 e 80, mas nós o relemos 158
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em nosso século, à luz de sua sensível compreensão do ser humano como ente de experiência existencial, e atualizamos sua interpretação da educação como um processo social que responda a outros tempos e características do viver. Atualmente, já precedida, há décadas, pela presença operante dos constructos da inteligência humana, que são as máquinas, vem ganhando força a automatização de suas tarefas básicas até as mais complexas. Assim é que desde o ato de despertar pela manhã com o som de um despertador que pode ter som suave ou executar uma música preferida, até um exame clínico de alta precisão médica que tem um poder de diagnóstico capaz de curar uma doença, a dinâmica da vida humana está interligada com a mecânica operacional da máquina. O homem, quando constrói as máquinas, não lhes dá uma alma, ou seja, no sentido estrito da palavra, uma vida espiritual, como se lhe desse um estatuto de superioridade, mas submete seus inventos ao domínio da sua inteligência, de modo a sempre serem aperfeiçoadas, devido à vitalidade do pensamento humano. Todavia, mesmo o homem dominando a máquina, para que esta obedeça aos seus comandos, e mostrar a quem deve servir, às vezes ele “maquina ideologicamente” um uso dominador desta para realizar o que idealiza, e isso constitui um perigo para todos. Então, o homem precisa estar sempre sensibilizado para o uso devido da máquina, de maneira a lhe servir, servir a todos, e às suas instituições, dentre elas a escola, no seu processo educacional. Na educação, ou seja, para aumentar as aprendizagens; tomar consciência real da sua história e programar sentidos melhores para sua vida; para colecionar e contar fatos e reproduzir conhecimentos; para inspirar outras correlações de saberes; para desenvolver aptidões; enfim, para servir como instrumento operacional de ação pedagógica. Eis aqui um ponto central para entender a relação entre 159
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o homem e a máquina, a programação desta em função do serviço à vida. Então, se o homem programa a máquina, conferindo-lhe sentido de serviço, temos que nos preocupar com sua operação enquanto instrumento mecânico. Como e quando o fazer? Aqui, uma interrogação importante: como programar a ação pedagógica, as intervenções didáticas, por meio das máquinas que entram na escola, seja por aquisição institucional ou nas mãos de nossos educandos e educadores, pelas vias da gestão do uso mais envolvida curricularmente.
A cultura digital como marca de um tempo A máquina avança, então, sobre a história da humanidade, evoluindo em formas e sendo aperfeiçoada tecnologicamente, de modo a sempre lançar desafios à própria inteligência, do como agir e interagir com o invento, transformando, produzindo, decidindo, criando, recriando e comunicando, para que assim o ser humano se categorize como o senhor da máquina. Pierre Lévy (2011, p. 22-23), no livro O que É o Virtual? apresenta muito bem quanto os novos espaços e as velocidades da existência incidem sobre a forma como o homem age no tempo e no espaço realizando sua interação com o viver, com a cultura que brota do existir e, em que a subjetividade humana vai inventando seu mundo, numa ampla compreensão do que é a produção cultural e comunicabilidade dos registros. Pierre Lévy ressalta que: Cada novo agenciamento, cada “máquina” tecnossocial acrescenta um espaço-tempo, uma cartografia especial, uma música singular a uma espécie de trama elástica e complicada em que as extensões se recobrem, se deformam e se conectam, em que as durações se opõem, in-
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terferem e se respondem. A multiplicação contemporânea dos espaços faz de nós nômades de um novo estilo: em vez de seguirmos linhas de errância e de migração dentro de uma extensão dada, saltamos de uma rede a outra, de um sistema de proximidade ao seguinte. Os espaços se metamorfoseiam e se bifurcam a nossos pés, forçando-nos à heterogênese.
A propósito, em texto escrito para a revista BITS, em maio de 1984, Paulo Freire já lançava as bases críticas de uma instrumentalização pedagógica da máquina como serviço de manutenção do status quo de um modelo educacional que não servisse para utilizar o produto da inteligência humana chamado computador para apenas reproduzir o que os esquemas ideológicos queriam impor como conteúdos a serem ingeridos. A máquina deveria fazer o homem avançar em seu processo educacional, criando novas fontes curriculares. A web pode ocupar o papel social de incrementar a ação pedagógica. Assim escreveu o pedagogo, com seu tom de crítica social altamente orientadora da missão educadora, num tempo em que o uso das tecnologias ainda não poderia ser descrito, como hoje, como fato social. Todavia, suas palavras são perfeitamente atuais: Em primeiro lugar, faço questão enorme de ser um homem de meu tempo e não um homem exilado dele, o que vale dizer que não tenho nada contra as máquinas. De um lado, elas resultam e de outro estimulam o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, que, por sua vez são criações humanas. O avanço da ciência e da tecnologia não é tarefa de demônios, mas sim a expressão da criatividade humana. Por isso mesmo, as recebo da melhor forma possível. Para mim, a questão que se coloca é: a serviço de quem as máquinas e a tecnologia 161
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avançada estão? Quero saber a favor de quem, ou contra quem as máquinas estão postas em uso. Então, por aí, observamos o seguinte: Não é a informática que pode responder. Uma pergunta política, que envolve uma direção ideológica, tem de ser respondida politicamente. Para mim os computadores são um negócio extraordinário. O problema é saber a serviço de quem eles entram na escola (FREIRE, 1984, s/p).
A preocupação de nosso pedagogo tem foco qualitativo para a utilização dos computadores na escola, apenas se atendo a que sejam utilizados na sua potencialidade geradora de possibilidades de ampliar as aprendizagens, e não como canais mantenedores de um serviço ideológico do ato de educar, que ajude a conservar as crianças e os adolescentes na esfera da ignorância do verdadeiro conhecimento das coisas e dos acontecimentos históricos como ocorreram de fato. Freire idealiza o computador a serviço do saber. Desse modo, ele já preconiza, no artigo antes transcrito (FREIRE, 1984) que essa questão vem ganhando mais força e lugar na ação didática, à medida que os computadores tornam-se instrumento de mediação pedagógica cada vez mais presente nas escolas, como interlocução com a história do tempo presente da cultura de nossas crianças e adolescentes. Trata-se de uma criação do homem, ou seja, a máquina contempla a ação inteligente de fazer crescer a cultura do seu mundo. Aliás, essa é a dimensão que permite entender o que vem a ser a cultura, ou seja, algo que na vida vai sendo cultivado, ganhando expressividade e presença, para se tornar algo comum, que interage com o viver cotidiano. O computador percorreu esse caminho e se aperfeiçoou, na esfera da digitalidade, de tal forma que a vida foi assimilando, para seus atos mais comuns, aplicações práticas que ampliaram a diversidade do agir e interagir na vida. 162
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Pelo que se vê, então, a digitalidade é uma resposta existencial ao modus culturalis de nossa época e, a ela, o modus operandi educacionales precisa também dar as mãos, para comunicar-se com as crianças e adolescentes digitais, que cresceram com esse perfil cultural.
Nossas crianças e nossos adolescentes de hoje são os programadores do amanhã O ponto de partida para entender essa atividade futura de nossas crianças e nossos adolescentes é a consciência do fato de que, ao incorporar os valores e as referências culturais do seu tempo, todos interagem com seus instrumentais, de modo que continuam sua ação inteligente de recriar intervenções na vida prática. Ora, o tempo e a inteligência dessas crianças e desses adolescentes se orientam em torno do universo digital, sua marca cultural. Quando nos debruçamos, encantados, para olhar os movimentos relacionais de nossas crianças e nossos adolescentes com a vida, constatamos a facilidade com que se interligam aos elementos novos do seu dia a dia. São muito corajosos e desenvolvem essa coragem a partir de condições inatas de subsistência no meio, o que nos remete a uma questão de instintividade associada a fatores culturais, demonstrados nas estimulações de seus familiares. Assim, desde o simples momento de tentarem se equilibrar em pé, depois de engatinhar bastante, cair, e aqueles que estão próximos lhes pegar pela mão e com palavras retomar os movimentos rumo aos passos seguintes, ou então quando ganharam sua bicicleta e precisaram vencer o desafio de dominar o equilíbrio e conquistar a velocidade, ainda que numa exercitação mais garantida, no que diz respeito à segurança, com os velocípedes, as motos e os carrinhos, utilizados mais próximo de seus pais, foram gradativamente treinando a musculatura para executar 163
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movimentos mais ousados e coordenados posteriormente. Tudo foi um aprendizado gradual, que obedeceu a critérios do desenvolvimento motor e do intelectivo, para culminar no dar voltas de exploração do mundo que as cercava, seu bairro e, depois, a cidade, quando, com motocicletas e carros, descobririam o entorno e muito mais. Já crescidos, e com seus dedinhos velozes, teclam digitando mensagens, em busca de conteúdos e conhecimentos em páginas na web, ou na interação em redes sociais. O percurso educacional segue a mesma dinâmica, isto é, de ser um processo gradativo, cheio de sonhos e desejos e voltado para fazer com que o ser humano avance sobre os horizontes, de modo a experimentar e gerar prazer para outros, num processo cheio de conquistas e aprimoramentos. Eis, então, o papel do educador, que, como esse que estimulou a habilidade de andar de bicicleta, depois de ter se desenvolvido no andar de moto ou carro, também precisa assumir um papel que ajude as crianças a entenderem quanto a máquina tem que estar a serviço da vida, ou seja, ensiná-las a humanizar o emprego das máquinas. Aqui sobressai uma centralidade no papel do educador, como formador da criança e do adolescente, seres que, na sua condição existencial, ainda não possum plenas autonomias emocional e intelectiva. Mesmo já possuindo tais faculdades, sempre necessitam da doação e do auxílio, o que significa a percepção da importância e da necessidade da presença do educador quando do uso da máquina na escola. A experiência do viver dá ao educador uma potencialidade pedagógica, sobretudo nas questões identificadas como de conteúdos filosóficos da história da sociedade e da educação. No fundo, também tem que ser transmitida para ser continuada e se transformar em patrimônio universal de todos os tempos. Tem-se que considerar que novos tempos, afora 164
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qualquer interpretação com uma leitura voltada para a aceitação passiva da globalização cultural, não se pode deixar de considerar que nossas crianças não mais brincam com seus brinquedos caseiros, de produção criativa e fantasiosa da própria criança, que dava vida e ludicidade a objetos como paus, latas, bolas de tecido e meias, aviões e barcos de folhas de papel, etc. Ou, tampouco, com brinquedos já industrializados, de plástico inerte, sem a dinâmica do movimento automatizado. Esse é um dado importante a ser destacado para apresentar a vida e a cultura do brincar de nossas crianças e adolescentes, foco primeiro de nossa missão de educar, ou seja, como transformar esse ato em espaço de aprendizagens. O que não é tão complexo, pois basta entender-lhes a dinâmica e orientar as ações pedagógicas a partir daí. Pode ser pensada, por exemplo, numa brinquedoteca digital, com uma seleção de jogos que não só aguçam reflexos, atenção, concentração, precisão visual, etc., mas que incorporem conteúdos programáticos e também aqueles que não estão previstos e, assim, ampliem dimensões curriculares. São os brinquedos eletrônicos que, cada vez mais, se fazem presentes, massivamente interferindo no modus ludicus operandi, ou seja, do como nossas crianças e adolescentes operacionalizam sua inteligência criativa para dar vivacidade aos seus jogos criativos e ludicidade na relação interativa entre o objeto do brincar e sua prática em si, na busca do prazer. Na verdade, as projeções da interatividade entre a inteligência da criança e do adolescente com o objeto do seu brincar, respondem mais adequadamente aos anseios culturais de um tempo em que, desde o crescente uso dos video games até os brinquedos eletrônicos com projeções virtuais, vão se desenhando e delineando o perfil da criança e do adolescente rumo à escola, ou seja, esses transportam sua inteligência, comunicam sua atividade mental com a escola, 165
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e se contorcem ao encontrar um modelo educacional que lhes negue os elementos comunicantes do seu mundo lúdico com o aprender. Em síntese, infere-se que a escola precisa adentrar no mundo da cultura lúdica da criança e do adolescente, como é de fato, e não como pretende interpretá-lo. Neste sentido, são muitos os elementos criativos que a ludicidade dos brinquedos eletrônicos, com sua virtualidade, podem contribuir para tornar a escola cada vez mais próxima da criança e do adolescente. Tal como se percebem ricos elementos de interatividade, capazes de elaborar construções de conhecimento que se casam ao processo mental que comporta o aumento das aprendizagens. E o educador, a partir dessa contextualização, pode interagir intensamente, no sentido de colocar a criança e o adolescente, com sua cultura digital, em conexão com o prazer de aprender.
Acesso às tecnologias: uma crítica social Uma questão inicial, de suma importância para a abordagem de nosso texto, é uma crítica social que certamente o pedagogo Paulo Freire levantaria como denúncia de uma ação pedagógica prejudicada, que não está ainda acontecendo em toda a sua potência por falta de condições de ser realizada, ou seja, a riqueza cultural da vida de nossos jovens não está sendo amplamente utilizada para ampliar suas aprendizagens, devido à não acessibilidade a esse universo de comunicação de dados e informações. Trata-se do uso das tecnologias digitais como caminho da educação do presente rumo ao cidadão da educação, que se tornará o agente construtor do amanhã, sobretudo, primando pela lógica de um mundo cada vez mais tecnologizado digitalmente e que requererá programadores eficientes, responsáveis e humanizados, afinal, a máquina tem sua função marcada enquanto um dos instrumentos com o qual elaboramos nossas relações com a humanidade toda. 166
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Temos que proceder, em nossos caminhos educacionais, movidos por sonhos e desejos de tratar cada experiência que a vida nos apresenta como momentos únicos e exclusivos para dialogar com nosso tempo, e dele abstrairmos comunicação e interação e também negociação de sentidos. O tempo é este, de uma atuação digital que caminha com nossos dedos, em que nossos pés apenas nos transportam aos ambientes físicos, para que neles desvendemos os ambientes virtuais, com a certeza de que lá podemos ampliar nossas aprendizagens. Então, que nossos pés nos levem às nossas escolas, e que estas movimentem nossos dedos por navegações de aprendizagens a partir da cultura de nosso tempo presente, que pode construir uma cultura pedagógica para a educação do século XXI. Utilizar tal recursividade digital como instrumento de apoio pedagógico, servindo-se dos atuais equipamentos e tecnologias, tem se demonstrado prática muito distante de nossas escolas, que precisam lidar com o fato dessa realidade da vida prática ser uma utopia para muitas unidades escolares, sobretudo as públicas. Referimo-nos à ação pedagógica que caminhe pelas vias da utilização do universo digital, como marca prática dos nossos tempos, numa perspectiva de acessibilidade a todos. À guisa de finalização, para mostrar a atualidade da pedagogia de Paulo Freire, numas sociedade e cultura que precisam cada vez mais de humanização, o texto de Moacir Gadotti (2007, p. 86-87) expressa muito da essência da paixão de educar de Paulo Freire: Pelo contrário, a sua pedagogia continua válida não só porque ainda há opressão no mundo, mas porque ela responde a necessidades fundamentais da educação hoje. A escola e os sistemas educacionais encontram-se hoje frente a novos e grandes desafios diante da generalização da informação na sociedade que é chamada por muitos 167
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de “sociedade do conhecimento”, de sociedade da aprendizagem. As cidades estão se tornando educadoras e aprendentes, multiplicando seus espaços de formação. A escola, nesse novo contexto de impregnação do conhecimento, não pode ser mais um espaço, entre outros de formação. Precisa ser um espaço organizador dos múltiplos espaços de formação, exercendo uma função mais formativa e menos informativa. Precisa tornar-se um “círculo de cultura”, como dizia Paulo Freire, muito mais gestora do conhecimento social do que lecionadora.
Conclusão O ato de educar sempre parte das condições sociais, como pontos efetivos que se orientam para um alcance mais profundo desse objetivo, ou seja, ao utilizarmos os instrumentos da vida cultural para aumentar as aprendizagens, reconhecemos o papel e a importância dos elementos que compõem essa cultura. Por isso, nos fazemos seres históricos, à medida que não negamos a história com sua incidência na construção da vida e intervenção na sociedade. Logo, temos que mergulhar na realidade. No ato de educar, podemos abstrair dos próprios sujeitos da educação fontes de ação e não nos viciarmos em elaborar construções de saber que não dialoguem com os mesmos em sua realidade existencial. Portanto, as riquezas culturais das gerações escrevem as páginas da nossa educação. Servir-se da vida cultural dos educandos gera motivação e adesão natural ao processo de aprendizagem, beneficiando não somente educandos, mas também educadores, pois por meio do diálogo cultural, interdialogam seus saberes, enriquecendo-se culturalmente em seu todo. Eis a razão para aproximarmos as dimensões existenciais, realidades institucionais e os currículos educacionais como fatos do nosso modus operandi educacionales hoje. 168
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O campo de ação pedagógica, então, vai se construindo em meio à interatividade de mundos distintos, mas muito iguais, frente ao dado do tempo presente que coloca educador e educando lado a lado na realização da história da vida social. E, nesse sentido, a educação deve abstrair um lugar de interação e conectividade, do universo digital, como mediações para desenvolver ações didáticas. Todo esse proceder, na verdade, promove uma expansão cultural do que se tem, porque exercita o intelecto na sua atividade básica de produção de conhecimento. Tudo se faz mais fácil e atraente quanto se parte do que existe para expandir o que é possível! Paulo Freire lança um desafio, enquanto educadores, de saltarmos sobre nossos medos e inseguranças, acreditando sempre numa força interior que toda pessoa possui e que pode comunicar, afim de, conscientemente, beneficiar toda a sociedade.
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Nota 1 Reitor do Colégio São João Gualberto; membro dos Comitês de Ética e Pesquisa (CEP) da PUC-SP e do Hospital Santa Catarina/SP; graduado em Filosofia, Pedagogia e Teologia; mestre em Ciências da Religião; doutor em Ciências Sociais - Antropologia e pós-doutor em Educação. Atualmente, faz mestrado em Direito Canônico, com foco de pesquisa no múnus de ensinar-educar. Concentra suas pesquisas no uso de TIC como fonte de aprendizagem, principalmente na Educação Infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental, e gestão educacional. E-mail: domrobson@ gualberto.g12.br
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Apresentação O vertiginoso processo de mudanças no contexto atual da sociedade tem recebido denominações variadas: sociedade do conhecimento (LÉVY, 1999); era da informação (OLIVER, 1999); sociedade em rede (CASTELLS, 2000). Para Castells (2001), conhecimento e informação são fatores centrais em muitas, se não em todas, sociedades historicamente conhecidas, e aponta como novos, no período atual, “a tecnologia do processamento da informação e o impacto dessa tecnologia na geração e na aplicação do conhecimento” (CASTELLS, 2001, p.140). Neste contexto, as Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) provocam mudanças nas maneiras de pensar, trabalhar e se comunicar (PRETTO, 2005; ALONSO, 2008; LAPA, 2010; ALMEIDA; SILVA, 2011; MORAN, 2012), integrando-se às práticas sociais e criando nova cultura, assim entendida como cultura digital. Para Almeida e Silva (2011, p. 3): A disseminação e uso de tecnologias digitais, marcadamente dos computadores e da internet, favoreceu o desenvolvimento de uma cultura de uso das mídias e, por conseguinte, de uma configuração social pautada num modelo digital de pensar, criar, produzir, comunicar, aprender – viver. E as tecnologias móveis e a web 2.0, 172
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principalmente, são responsáveis por grande parte dessa nova configuração social do mundo que se entrelaça com o espaço digital.
A escola, principal espaço de formação e transformação, precisa problematizar o controle que as TDIC podem exercer sobre a vida das pessoas e promover uma apropriação crítica e criativa, não apenas para aceitá-las ou negá-las, mas para seu uso consciente, tendo em vista que: [...] o exercício de pensar o tempo, de pensar a técnica, de pensar o conhecimento enquanto se conhece, de pensar o quê das coisas, o para quê, o como, o em favor de quê, de quem, o contra quê, o contra quem são exigências fundamentais de uma educação democrática à altura dos desafios do nosso tempo (FREIRE, 2000, p. 102).
A integração crítica das mídias no contexto escolar configura-se como um dos desafios deste tempo. Uma integração, nessa perspectiva, não significa simplesmente a inclusão de novos recursos tecnológicos, mas, para além disso, implica o desenvolvimento de estratégias didáticometodológicas que superem o uso instrumental, ou seja, práticas pedagógicas que instiguem novas leituras das mídias e favoreçam novas maneiras de aprender, pensar e agir. Nesse sentido, o universo virtual apresenta-se como um espaço propício à interação, a informações e à construção coletiva do conhecimento. Assim, as TDIC criam novas formas de relação entre as pessoas e, entre estas, com a informação e o conhecimento, facilitando a constituição de grupos de sujeitos ligados por vínculos não formalizados, com características comuns, formando comunidades virtuais (MUSSOI; FLORES; BEHAR, 2007). 173
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Para as autoras supracitadas, o conceito de Comunidade Virtual (CV) foi inicialmente difundido por Howard Rheingold, em 1993. Ele define a comunidade virtual como uma agregação cultural formada pelo encontro sistemático de um grupo de pessoas no ciberespaço. Este tipo de comunidade é caracterizada pela coatuação de seus participantes, os quais compartilham valores, interesses, metas e posturas de apoio mútuo, através de interações no universo on-line (MUSSOI; FLORES; BEHAR, 2007, p. 2).
As principais características das CVs são a aproximação de sujeitos em torno de interesses comuns; a troca de informações, conhecimentos e práticas entre esses sujeitos no ambiente virtual. Sujeitos que, na maioria das vezes estão dispersos geograficamente e contam com o potencial das TDIC para promover a interação necessária e desejada. Entre as CVs, encontram-se aquelas que se constituem como espaços formais de educação, criadas a partir de objetivos bem definidos, com estratégias planejadas para o desenvolvimento de habilidades e competências específicas. Nessa situação, essas comunidades podem tornar-se o espaço privilegiado da possibilidade porque são um lugar de encontro, ou seja, produzem um espaço que é novo e também vivo; que é ordenado, mas não completamente controlado; que é gerenciado, mas acolhe a espontaneidade; que é fechado, mas cheio de canais de comunicação (LAPA, 2005, p. 77).
Percebe-se que a constituição e o uso dessas comunidades tem se intensificado com o passar do tempo. No entanto, essas utilizações, por motivos que trataremos adiante, nem sempre conseguem aproveitar todo o poten174
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cial desse universo on-line. É na busca de um uso mais consciente e eficaz das Comunidades Virtuais de Aprendizagem (CVA) para a formação crítica do sujeito que chegamos às ideias de Paulo Freire. O fato de ser considerado um dos maiores intelectuais brasileiros do século XX, torna desnecessária a apresentação detalhada desse ilustre educador, além de fugir do escopo deste trabalho. Sabendo que, em suas bases, está o diálogo para a conscientização com vistas à formação crítica de sujeitos transformadores das ordens social, econômica e política estabelecidas, já é suficiente para justificar sua menção neste trabalho. Segundo Delizoicov (2008), para Freire, a educação tem que desempenhar papel importante para elevar o nível de consciência dos educandos a respeito de suas condições de vida. Tendo como meta fornecer instrumentos que levem à compreensão dessas condições e dos modos que podem atuar em perspectiva de transformações, o que se pretende aqui é explorar algumas de suas ideias com vistas à constituição, ao desenvolvimento e às práticas nas CVAs, viabilizadas pelas TDIC, com vistas à formação crítica de sujeitos imersos numa sociedade caracterizada pelo alto desenvolvimento tecnológico e por novos espaços e modos de interação.
Comunidades Virtuais de Aprendizagem Com o advento das TDIC, mais precisamente da WEB 2.0, segunda geração da Internet, grupos de pessoas interconectadas, utilizando o computador e a Internet como ferramentas de comunicação e interação, acabaram por constituir as primeiras comunidades virtuais (MUSSOI; FLORES; BEHAR, 2007). Assim:
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O conceito-chave contemporâneo é o de rede, onde se estabelecem novas formas de se produzir conhecimento e cultura, estabelecendo links entre culturas diferentes, que se comunicam, se expõem umas às outras, em um processo gradativo, às vezes combatido, às vezes exaltado, de interação (ARTUSO, 2006, p. 17).
Nesse contexto, por meio da ação a distância, é possível desenvolver novas sociabilidades e subjetividades, tornandose um espaço que materializa a comunicação, a cultura e a educação (SARTORI; ROESLER, 2003). Como a Internet é muito dinâmica, a sua evolução tem nos proporcionado novos recursos que promovem interação e participação por meio de comunidades (MUSSOI; FLORES; BEHAR, 2007). Em certa medida, a comunidade é um grupo de pessoas que interagem. Em se tratando do ciberespaço, essa interação é mútua e se dá na mediação pelas TDIC. Seu funcionamento, primeiramente, deve-se às redes de conexões proporcionadas pelas TDIC e, no segundo momento, à possibilidade de pessoas com objetivos comuns se encontrarem, estabelecerem relações e desenvolverem novas subjetividades nesses espaços (SARTORI; ROESLER, 2003). Espera-se que a comunidade mantenha um núcleo com laços fortes, que consistirá no grupo mantenedor da estrutura. Nesse sentido, o interesse comum é fundamental para um grupo constituir-se em comunidade virtual, já que estabelece a cooperação como princípio (RECUERO, 2005, p. 14). Para esta autora, a interação dentro desse espaço pode ser cooperativa, competitiva, ou geradora de conflito. A interação que é cooperativa pode gerar a sedimentação das relações sociais, proporcionando o surgimento de uma estrutura. Quanto mais interações cooperativas, mais forte se torna o laço social desta estrutura, podendo gerar um grupo coeso e organizado. Na organização 176
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da comunidade virtual, portanto, é necessário que exista uma predominância de interações cooperativas, no sentido de gerar e manter sua estrutura de comunidade.
Como já apresentado, entre as CVs, encontram-se as CVAs. Além de seguir as características apresentadas até o momento, que são comuns às CVs, as CVAs são criadas a partir de objetivos e estratégias bem definidos, com vistas ao desenvolvimento de habilidades e competências específicas, como forma de promover educação, cultura e comunicação, a partir do compartilhamento de conhecimentos e práticas. Atualmente, há CVAs sendo constituídas em blogs, nos diversos Ambientes Virtuais de Aprendizagem (AVA) disponíveis (Moodle, TelEduc, Claroline, E-proinfo, entre outros); e nas diversas redes sociais (Orkut, Facebook, Laifi, Google+, MySpace, Instagram, entre outras), reforçando a compreensão de que é impossível pensar que a aprendizagem acontece exclusivamente no ambiente escolar, mais especificamente dentro da sala de aula. Essa constatação possibilita um novo modo de ser, saber e aprender, que criam novos desafios e implicam novas competências e novas formas de construir o conhecimento (MAGDALENA; COSTA, 2005). Em se tratando das CVAs, é mister elencar os pressupostos apresentados por Palloff e Pratt (1999), ao abordarem as especificidades dessas comunidades. São eles: – Destinar-se a interesses comuns a todos os sujeitos participantes da comunidade; – Ênfase no trabalho em equipe; – A comunidade deve centrar sua dinâmica nos objetivos a serem alcançados; – Todos os sujeitos têm o mesmo direito de participar; – As normas, os valores e comportamentos são definidos na própria comunidade; – O educador assume o papel de orientador e animador da comunidade; 177
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– A aprendizagem é cooperativa/colaborativa; – O sujeito assume o papel ativo na construção do seu conhecimento, de acordo com o tema da comunidade; – Interação permanente. Conhecer esses pressupostos e segui-los é muito importante para o melhor aproveitamento de todo o potencial que as CVAs podem oferecer ao processo de ensino-aprendizagem. Nessa direção, Palloff e Pratt (2004) incluem o planejamento de abordagens centradas no aluno como responsável pelo sucesso das CVAs. Para Lapa (2005), a participação na comunidade pode permanecer na superficialidade, sem passar de uma simples troca de informações, mas pode também promover a criação de verdadeiros espaços sociais de interação entre as pessoas. No que diz respeito à constituição das CVAs, é necessário pensar em estratégias que promovam a participação crítica dos sujeitos envolvidos, estreita interação entre esses sujeitos e o compartilhamento de conhecimentos e práticas. É nessa perspectiva que se busca suporte nas ideias de Paulo Freire, principalmente nas categorias dialogicidade e problematização. Percebendo a dialogicidade como caminho para estruturar as possibilidades de produção e construção do conhecimento nas CVAs e a problematização como forma de aproximar as diversas leituras do mundo dos diferentes participantes nessas comunidades.
Contribuições Freireanas para Constituição e Utilização de CVA A estrutura fornecida pela WEB 2.0 integra funcionalidades e conteúdos, promovendo a interação e participação. O uso do computador on-line abre as portas para a inserção de todos no mundo do virtual. Assim, é importante refletir acerca de estratégias que potencializem a participação e o 178
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possível impacto da inserção dos sujeitos no mundo virtual. Como foi visto no tópico anterior, há atualmente uma variedade considerável de recursos que viabilizam a constituição de CVA. No entanto, Entende-se que, para o surgimento de comunidades virtuais, não basta o estabelecimento da comunicação entre as pessoas, propiciado pelo estabelecimento de redes de computadores, nem que todo agrupamento de pessoas que se comunicam por intermédio de redes de computadores seja uma comunidade virtual (LAPA, 2005, p. 70).
Paloff e Pratt (2002) apontam alguns indicadores de que uma CVA está em formação. Conhecendo esses indicadores, é possível buscar estratégias que potencializem a constituição e ampliação de CVA. São eles: a) interação ativa em relação ao conteúdo do curso e à comunicação interpessoal, ou seja, para que um aluno seja considerado “presente” em aula, não basta acessar a aula, é preciso participar enviando suas reflexões/ideias; b) aprendizagem colaborativa, percebida por meio das trocas de mensagens e/ou comentários entre os alunos e entre estes e o professor; c) significado construído socialmente, evidenciado a partir de discussões envolvendo acordos ou questionamentos, à medida que a aula/curso desenvolve-se; d) compartilhamento de recursos (livros, artigos encontrados na Internet, fontes de pesquisa) entre alunos, possibilitando ampliar a bibliografia para além dos textos selecionados pelo professor; e) troca de expressões de estímulo entre alunos e vontade de avaliar criticamente os trabalhos dos colegas. Portanto, em se tratando da aprendizagem nas CVAs, faz-se necessário a adoção de um referencial para 179
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o processo de ensino-aprendizagem e, consequentemente, para a formação desejada, que, além de respeitar esses indicadores, possa potencializá-los. Nesse sentido, percebendo a importância da formação crítica do sujeito, com vistas à participação mais ativa nesses meios e a transformação social, adotamos as ideias de Freire como referencial para o fortalecimento de sujeitos e do diálogo entre eles. Tendo em vista que “o diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu (FREIRE, 2011b, p. 109). As TDIC são parte importante nesse processo de mediatização homem-homem, homem-mundo, pois, para Freire, o sujeito deve estar alinhado com o seu tempo, possuir um sentido de pertencimento ao vivê-lo plenamente e adequando-se às tecnologias vigentes. Mesmo não tendo vivido plenamente o tempo da Internet, o pedagogo reconhece que: [...] Não é possível à sociedade revolucionária atribuir à tecnologia as mesmas finalidades que lhe eram atribuídas pela sociedade anterior. Consequentemente, nelas varia, igualmente, a formação dos homens. Neste sentido, a formação técnica-científica não é antagônica à formação humanista dos homens, desde que a ciência e tecnologia, na sociedade revolucionária, devem estar a serviço de sua libertação permanente, de sua humanização. (FREIRE, 2011b, p. 214-215).
Segundo Freire (1968), a educação tem que desempenhar um papel importante para elevar o nível de consciência dos educandos em relação às suas condições de vida, de modo que obtenham capacidade de transformar a realidade. Nesse sentido, perceber a importância e saber utilizar as TDICs a esse favor é fundamental. Como possibilidade de articular a realidade local com o processo de ensino/ 180
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aprendizagem, Freire (1968) também propõe a ideia de tema gerador, em que o diálogo é a força motriz. O que se pretende com o diálogo, em qualquer hipótese (seja em torno de um conhecimento científico e técnico, seja de um conhecimento “experiencial”), é a problematização do próprio conhecimento em sua indiscutível relação com a realidade concreta na qual se gera e sobre a qual incide, para melhor compreendê-la, explicá-la, transformá-la (FREIRE, 2011a, p.65).
Lapa (2005) apresenta um estudo que aponta uma maneira de formar criticamente o sujeito por meio da educação a distância, elaborando uma análise socioespacial do ciberespaço e de práticas educativas libertadoras. A autora afirma que, nessa direção, uma ponte com a teoria freireana pode ser realizada em duas direções. A primeira, na valorização de uma educação contextualizada, a princípio, na consideração do contexto individual dos alunos como parte integrante da prática pedagógica. A segunda direção é a da possibilidade de criar um espaço do devir. Considerando como um espaço: [...] vivo e espontâneo, que não está completamente ordenado e programado, mas que é construído cotidianamente, através da comunicação dialógica, em espaços coletivos de interação. De forma que as comunidades de aprendizagem trazem latente a possibilidade de se constituírem em espaços sociais construídos pelos professores e alunos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem, que podem transcender o ensino burocrático de conteúdos, da visão bancária, e se constituírem nos espaços necessários para a transformação social almejada no ensino problematizador (LAPA, 2005, p. 134).
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Partindo do pressuposto central de que a ação dialógica é prática pedagógica necessária para a formação crítica, Lapa (2005) desdobra a ação dialógica em cinco elementos essenciais: relacionamento horizontal; compartilhamento de ideias; prática social; reflexão crítica; e ação política, que podem ser tomados como variáveis sistematizadas na verificação da existência da ação dialógica em ambientes virtuais de aprendizagem. • Relacionamento horizontal - para que o aluno não seja apenas o receptor de um conteúdo sistematizado, mas sim o construtor desses significados. • Compartilhamento de ideias - o embate de diferenças permite que novos pontos de vista surjam e sejam colocados ao coletivo, enriquecendo o debate acerca do mundo, e, principalmente, de qualquer novo conhecimento proposto em sua relação com o mundo. • Reflexão crítica - pressupõe a busca de conhecer, compreender o mundo, e refletir criticamente sobre como ele se apresenta e se há alternativas a essa concepção predominante. • Prática social - deve atender aos requisitos de uma prática democrática da ação comunicativa em espaços sociais de interação. • Ação política - em um processo educativo libertador, o que se pode pretender é que os sujeitos se encontrem para a pronúncia do mundo, mas, sobretudo, para a sua transformação. Estes cincos elementos combatem a teoria antidialógica, criticada por Freire (2011a), contida na invasão cultural. Para o autor, toda invasão sugere, obviamente, um sujeito que invade. O invasor reduz os homens do espaço invadido a meros objetos de sua ação. Descaracteriza a cultura invadida, rompe seu perfil, enche-a de subprodutos da cultura invasora. Por outro lado, 182
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O diálogo e a problematização não adormecem a ninguém. Conscientizam. Na dialogicidade, na problematização, educador-educando e educando-educador vão ambos desenvolvendo uma postura crítica da qual resulta a percepção de que este conjunto de saber se encontra em interação. Saber que reflete o mundo e os homens, no mundo e com ele, explicando o mundo, mas sobretudo, tendo de justificar-se na sua transformação (FREIRE, 2011a, p. 71).
Para Freire (2011a), a educação como prática de liberdade não é a transferência ou a transmissão do saber nem da cultura; é, sobretudo, e antes de tudo, uma situação verdadeiramente gnosiológica, aquela em que o ato cognoscente não termina no objeto cognoscível, visto que se comunica a outros sujeitos igualmente cognoscentes. Educando e educador são ambos sujeitos cognoscentes diante de objetos cognoscíveis, que os mediatizam. A tarefa do educador é problematizar aos educandos o conteúdo que os mediatiza. Quanto mais assumam os homens uma postura ativa na investigação de sua temática, tanto mais aprofundam a sua tomada de consciência em torna da realidade e, explicitando sua temática significativa, se apropriam dela (FREIRE, 2011b, p. 137).
Nesse sentido, os conteúdos problemáticos, que vão constituir o programa em torno do qual os sujeitos exercerão sua ação gnosiológica não podem ser escolhidos isoladamente por um dos polos dialógicos. Ou seja, não é qualquer tema que, abordado em uma CVA, promoverá o diálogo esperado. Cabe reforçar que a seleção dos temas não pode ser ingênua e deve estar integrada à realidade dos sujeitos envolvidos; deve emergir dessa realidade. Além disso, a mediação do educador deve ser no sentido de contextua183
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lizar o tema; problematizar a realidade em questão; promovendo o diálogo e instigando, bem como encorajando os educandos à leitura do mundo e à transformações.
Algumas Considerações Para a constituição de uma CVA, não é suficiente dispor de um espaço e sujeitos nele inseridos. Inicialmente, é necessário que tenham interesses comuns, porém, isso não parece suficiente para manter e/ou ampliar a comunidade. Para manter a CVA e alcançar os objetivos pretendidos, no que diz respeito ao processo de ensino-aprendizagem, é indispensável adotar uma prática que respeite o outro, a sua identidade, suas diferenças e supere a educação bancária, indo ao encontro de uma educação problematizadora. Nesse sentido, é necessário assumir o educando como um sujeito do conhecimento, ou seja, tem papel ativo e responsabilidade no processo de construção do conhecimento. E como cada sujeito possui modos diferentes de aprender, uma comunidade deve agregar diferentes estilos de aprendizagem, propondo atividades e formas de avaliação variadas. Pouco adianta contar com uma infinidade de recursos para formar as CVAs e com TDIC que potencializam o diálogo, se assumirmos uma postura autoritária e que se reconhece como detentora da verdade. Assim, em vez de uma educação problematizadora, está se reforçando uma educação antidialógica, como a criticada por Freire. É preciso explorar o potencial desses recursos para quebrar as barreiras que impedem o diálogo entre os sujeitos envolvidos. Caso contrário, não modificará em nada o processo já instalado, podendo ainda reforçar barreiras que separam educando do educador e o controle existente na escola. A partir das questões abordadas neste trabalho, percebe-se que uma educação coerente com as ideias de 184
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Freire supõe interação, compartilhamento e colaboração entre os educadores e educandos e que as CVAs podem ser beneficiadas, assim como os sujeitos que dela participam, se essas ideias forem tomadas como balizadoras desde a constituição até o desenvolvimento das comunidades. Não é possível encerrar este trabalho sem tocar em um tema ainda deficitário: a formação do educador. Um dos principais agente de transformações, é urgente repensar a sua formação e lutar pela valorização de sua função. A formação inicial precisa ultrapassar o instrumentalismo técnico e criar a noção de que a simples inclusão das tecnologias não resolve todos os problemas educacionais, mas é o uso consciente e crítico delas que contribui com o enfrentamento desses problemas. Além disso, em uma sociedade em constante processo de mudança, é necessário investir nos processos de formação continuada.
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PRETTO, N. L. (Org.). Tecnologias e novas educações. Salvador: EDUFBA, 2005. RECUERO, Raquel. Comunidades virtuais em redes sociais na internet: uma proposta de estudo. Ecompos, Internet, v. 4, dez. 2005. SARTORI, Ademilde Silveira; ROESLER, Jucimara. Comunidades virtuais de aprendizagem: espaços de desenvolvimento de socialidades, comunicação e cultura. Artigo apresentado no II SIMPÓSIO: E-AGOR@, PROFESSOR? PARA ONDE VAMOS? realizado no período de 7 a 8 de novembro de 2003, pela ComfilPUC-SP/Cogeae. Disponível em: <http://www.pucsp.br/tead/ n1a/artigos%20pdf/artigo1.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2014.
Nota Doutorando do programa de Pós-graduação em Educação Científica e Tecnológica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É mestre em Educação Científica e Tecnológica pela UFSC. Especialista em Práticas Pedagógicas Interdisciplinares pela Portal Faculdades (2007) e licenciado em Física pela UFSC (2004). É professor colaborador do Centro de Educação a Distância da Universidade do Estado de Santa Catarina. Participa do Grupo Mídia Educação e Comunicação Educacional (Comunic). Tem experiência na área de Ensino de Física, com ênfase em Física Moderna e Contemporânea, no uso de novas tecnologias e na formação de professores. Email: aryfsc@gmail.com 1
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A
s ideias e os ideais do legado feiriano que conhecemos não têm o tempo e nem o espaço onde ocorreram, uma vez que li, ouvi, discuti e participei de eventos diversificados, quando pude captar escritos ou falados em sua magistral obra.
Não há transição que não implique um ponto de partida, um processo e um ponto de chegada. Todo amanhã se cria num ontem, através de em hoje. De modo que o nosso futuro baseia-se no passado e se corporifica no presente. Temos de saber o que fomos e o que somos para saber o que seremos (FREIRE, 1979, p. 15).
A história e a historicidade para o pedagogo era um aspecto fundante de seus olhares, seus sentidos, e construção da humanidade, num eterno refletir sobre a perspectiva da transversalidade que transforma as realidades vulneráveis e injustas. Trabalhar na lógica da construção coletiva e participativa do conhecimento, a partir do pensamento crítico e libertador, criva a realidade dialógica e firma a identidade dos sujeitos em sua emancipação e seu protagonismo na gestão compartilhada, como possibilidade, baseada no emponderamento e comprometimento de todos em suas relações sociais, na conquista dos Direitos Humanos e da Cidadania. 188
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A participação social como instrumento da democracia e do controle social das políticas públicas. O envolvimento coletivo organizado e orgânico tem se constituído num efetivo engajamento proativo de inúmeros movimentos sociais, sindicais e populares capazes de criar formas e maneiras alternativas e alterativas de participação social que materializam os processos e procedimentos democráticos que, de um lado, atuam integradamente como controle, monitoramento das políticas públicas e, de outro, criam as reais possibilidades de seu nascedouro em todas as áreas que dela necessitam (saúde, educação, meio ambiente, trabalho, relações étnico-raciais). A questão da violência não é só física, direta, mas subreptícia, simbólica, violência e fome, violência e interesses econômicos das grandes potências, violência e religião, violência e política, violência e racismo, violência e sexismo, violência e classes sociais. A luta pela PAZ, que não significa a luta pela abolição, sequer pela negação dos conflitos, mas pela confrontação justa, crítica dos mesmos e a procura de soluções corretas para eles é uma exigência imperiosa de nossa época. A PAZ, porém, não precede a Justiça. Por isso a melhor maneira de falar pela paz é fazer justiça (FREIRE, 1960, p. 60).
Aqui, Paulo Freire propõe a mudança de paradigma; reconhece o envelhecimento analítico e crítico das instituições e lideranças; congrega a todos o uso da comunicação; pressupõe a formação das pessoas e dos grupos em práticas sociais, como agentes de mudanças do refletir, pensar, agir, por travessias pela paz, igualdade, justiça, ou seja, pela inserção concreta no mundo e a melhoria existencial de todos.
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Gosto de ser gente porque a história em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades, e não de determinismos. Daí que insisto tanto na problematização do futuro e recuse sua inexorabilidade (FREIRE, 1997, p. 22).
Essa dimensão do pensamento e da ação, que Paulo Freire viveu intensamente em sua vida plena, cria a transversalidade da Pedagogia libertadora, construída no bojo do concreto e contribuindo substantivamente para a consolidação do “inédito viável” da dignidade humana, possibilitando o exercício da cidadania, de forma corajosa e inovadora. Pelo enfrentamento dos desafios, trazendo à tona vivências, sonhos, saberes e fazeres, por meio da epistemologia na práxis. Escrever, para mim, vem sendo tanto um prazer profundamente experimentado quanto irrecusável, uma tarefa política a ser cumprida [...] escrever não é só uma questão apenas de satisfação. Não escrevo somente porque me dá prazer escrever, mas também porque me sinto politicamente comprometido, porque gostaria de convencer outras pessoas, sem a elas mentir, de que o sonho ou os sonhos de que falo, são que escreve e porque luto, valem a pena ser tentados (FREIRE, 1994, p.15-16).
Nota-se o engajamento sistematizado, registrado, carimbado, da sua realização em escrever para si e para a humanidade, pelo seu compromisso politicamente comprometido de que sonhar é um verbo possível e exequível. São os sonhos que o acalentaram e a razão de ser de sua luta. E, por essa razão, sempre menciona a educação como ato de amor, e, por isso, um ato de coragem que analisa a realidade sem fugir da discussão criadora.
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A conscientização é, nesse sentido, um teste da realidade. Quanto maior a conscientização mais se desvela a realidade, mais se penetra na essência fenomênica do objeto ante o qual nos encontramos para analisá-lo. Por essa razão a conscientização não consiste em estar diante da realidade assumindo uma posição falsamente intelectual. A consciência não pode existir fora da práxis, isto é, sem o ato de ação-reflexão-ação. Esta unidade dialética constitui de maneira permanente o modo de ser ou de transformar o mundo que caracteriza os homens (FREIRE, 1974, p. 30).
A proposta de Freire, nesse sentido, convida a ter consciência (ciência dos fatos e acontecimentos sociais) e, com base nesse desvelamento da realidade e em sua essencialidade, mergulhar para dentro dela, por meio da ação conscientizada, ou seja, conscientiza-ação. Por essa razão, edifica-se sua concepção ação-reflexão-ação como modo de ser e transformar o mundo que nos rodeia. Essa postura intelectual identifica o comprometimento dos sujeitos com a transformação social. Ou seja, seres em interação, sujeitos de relação no mundo, com o mundo e com os outros, por meio da linguagem, como afirma Fiore, na introdução da Pedagogia do Oprimido: “[...] através do diálogo que se opera a superação de que resulta termonovo; não mais educador do educando, não mais educando educador, mas educador - educando com educando educador” (FREIRE, 1980, p. 78). Refere-se à importante ação de dialogar, falar, entender, trocar, intercambiar, como “ato” político e essa dimensão não se negocia. Ouvir e escutar o outro é fundamental. A utopia, para Freire, não é vista como irrealizável, mas como dialetização dos atos de denunciar e anunciar as estruturas desumanizadoras, para construir novos horizontes, pois outro mundo é possível. 191
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Talvez essa conclusão que trouxe para todos nós seja o epicentro de sua magistral obra, num perene movimento de descobrir e mergulhar para conhecer-se em ações críticas e criativas. Somos seres inacabados, num permanente processo social de busca e leitura de mundo. “Aprender não é um ato findo, Aprender é um exercício constante de renovação” (FREIRE, s/d). O importante na vida é a busca de encontrar caminhos novos amorosos e formas alternativas e alterativa de caminhar com alegria. E finalmente, Paulo Freire (2002, p. 75) nos diria: É preciso que saibamos que, sem certas qualidades ou virtudes como amorosidade, respeito aos outros, tolerância, humildade, gosto pela alegria, gosto pela vida, abertura ao novo, disponibilidade de mudança, persistência na luta, recusa aos fatalismos, identificação com a esperança, abertura à justiça, não é possível a prática pedagógica progressista, que não se faz apenas com a ciência e técnica.
A construção das bases reflexivas sobre a educação social-libertadora, em sua ação político-pedagógica, poderá constituir-se como sedimentação dos Direitos Humanos, quando descobrir-se como sujeito da práxis. Essa ação protagônica e discernida do sujeito aprendente que entende o processo de construção e edificação do conhecimento, a partir de sua prática educativa, consegue fazer perceber as contradições do regime opressor, de qualquer circunstância, como aprendiz. Esse momento inovador de avaliar as condições objetivas de dada circunstância do processo educativo em curso, pode favorecer um diagnóstico interventivo da prática observada e vivida como também a visão de si, e a leitura do mundo que o rodeia. 192
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Tendo clareza das mazelas do cotidiano e principalmente os aviltamentos dos direitos humanos, poderá pela luta coletiva e popular, agir e defender os direitos humanos concretos de quem tem sido aviltado e desrespeitado em sua trajetória de vida. Daqueles que em situações vulneráveis, discriminatórias e oprimidas pelas desigualdades sociais, têm sofrido exclusão de diferentes ordens, como: sociais, econômicas, políticas e culturais em seu âmbito existencial. Somente quando os oprimidos descobrem, nitidamente, o opressor, [...] começam a crer em si mesmos [...] para que seja práxis (FREIRE, 1975, p. 56).
Ocorre que a aprendizagem dos Direitos Humanos se concretiza a partir de profunda vivência no cotidiano e, acima de tudo, da aprendizagem que demanda consciência (com–ciência) bem como conscientização (com–ciência– ação) da realidade que circunda o nosso viver e, principalmente, nossa inserção no mundo contemporâneo e retrospectivo em que vivenciamos nossa história. Passaremos a acreditar fielmente nessa luta quando tivermos a oportunidade de verificar as desigualdades que cercam os espaços de nossa vivência, quando observarmos o povo da rua largado nos logradouros públicos, ou quando policiais avançarem em direção a adolescentes e jovens que vivem nas ruas dos grandes centros urbanos, muitas vezes viciados em crack. Paulo Freire é o único que destaca em sua obra magistral, não só na Pedagogia do Oprimido e na Pedagogia da Autonomia, uma proposta libertadora de ação e constrói uma matriz curricular substantiva e bojuda, que explicita e consolida a educação para a liberdade; que referenda, traduz e explicita todo o volume de direitos humanos de dada sociedade, em qualquer tempo, seja há 50 anos, ou hoje, no mundo contemporâneo. 193
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Chama a atenção para a coisificação, alienação, o desinteresse em aprender e apreender, quando é o educador o sujeito dos processos de ensino e o educando o ser vítima de processos violadores dos direitos humanos; aprendiz que assume seu próprio processo como sujeito da aprendizagem, ganhando espaço consciente de seu papel na história de sua libertação. Quando Paulo Freire (1975, p. 29) escreve que “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho, os homens se libertam em comunhão”, mostra que a liberdade é uma conquista da conjunção de esforços dos homens e das mulheres, de dada sociedade, a partir da luta organizada e orgânica de sujeitos que conquistam seus direitos juntos, em comunhão, através de um caminho da prática social refletida, ou seja, na práxis. “Neste sentido, é que a práxis constitui a razão nova da consciência oprimida, e que a revolução, que inaugura um novo momento histórico” (FREIRE, 1975, p. 57). Esse momento histórico é um processo de educação, formação e, consequentemente, de libertação. É um exercício prático de seres humanos se afirmando como seres que constroem, inventam. São, portanto, sujeitos pela prática da liberdade e da libertação; sabem lutar, pois estão alcançando o processo de humanização pela consciência da liberdade. Freire (1975, p. 59-60) afirma que “tal liberdade requer que o indivíduo seja ativo e responsável, não um escravo nem uma peça bem alimentada da máquina”. Essa luta libertária, portanto, deveria levar ao “caminho do amor à vida” do sujeito político, ativo, responsável. A condição libertária exige a criação, construção, admiração e aventureirismo dos direitos humanos concretizados na prática da ação livre, que se traduz na prática da liberdade de sujeitos no ato de criar conhecimentos, na ação reflexiva participativa dos sujeitos engajados. Mais uma vez, Freire (1975, p. 61) escreve: 194
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Ao alcançarem, na reflexão e na ação em comum, este sabor da realidade, se descobrem como seus refazedores permanentes. Deste modo, a presença dos oprimidos na busca de sua libertação, mais que pseudo-participação é o que dever ser: engajamento.
Portanto, a liberdade, como condição humana práticahistórica é indispensável para aprender, apreender e colocar em prática os direitos humanos, engajadamente. O engajamento traduz-se, pois, por um compromisso forte com a luta libertária de todos em relação não só à concretude da vivência libertadora dos direitos humanos, mas à consolidação de sua aprendizagem, bem como do processo de sua socialização e replicagem: vivendo a libertação em plenitude. Na obra Educação como Prática da Liberdade, afirma: “o conceito de relação, é da esfera puramente humana, guarda, em si, conotações de pluralidade, de transcendência, de consequência e de temporalidade” (FREIRE, 1977, p. 39-40). Para compreender, portanto, a educação libertadora, há que se entender todas essas dimensões da educação dos direitos humanos, que exigem que homens e mulheres sejam seres históricos, sujeitos, construtores de seus futuros, via edificação de programas e projetos que visem à transformação social da realidade histórica onde se inserem. Paulo Freire (1975, p. 119) diz: “os homens são por que estão em situação de sê-los. E serão tanto mais quanto não só pensem criticamente sobre sua forma de estar, mas criticamente atuem sobre a situação em que estão”. As violações dos direitos humanos ocorrem, portanto, nos seres históricos que são sujeitos violados que necessitam de esclarecimentos sobre os seus direitos, por meio de sua conscientização, do processo educativo que alimentaria sua liberdade, a partir da consolidação de sua humanização. E libertar-se é conhecer e conscientizar-se a fundo da 195
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realidade de opressão; é construir-se como sujeito protagonista da sua história e da história de seu povo, via ação reflexiva; é propor-se a transformar o mundo e superar a contradição entre o opressor e o oprimido (FREIRE, 1975, p. 40). A mediação dessa complexa relação é feita pelo diálogo, pela forma e pelas maneiras das relações sociais entre os sujeitos sociais, que, ao mesmo tempo em que se interam e se relacionam, se educam mutuamente, como sujeitos do e no próprio processo, de respeito recíproco. Para Freire (1975, p. 79), “ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si próprio, os homens se educam em comunhão mediatizados pelo mundo”. É um processo caracterizado pela intercomunicação, em que se dá o conhecimento; portanto, aprender é uma construção em relação, de onde pode-se deduzir que a aprendizagem dos direitos humanos é um ato interativo concretizado através do diálogo: “dizer a palavra é um direito”, e Freire o entendia como “exigência existencial” por que funda-se no amor, na confiança e na esperança, que alimentam e consolidam a luta em que as pessoas se escutam, se relacionam, se inteiram e se respeitam reciprocamente. Por essas razões, a Pedagogia libertadora é apropriada para a educação dos Direitos Humanos, uma vez que enfrenta e estabelece o respeito mútuo entre os seres humanos. Os princípios freireanos para uma prática libertadora, portanto, distinguem os seguintes indicadores: a) Os legados de Paulo Freire partem da cultura de cada um, ou de cada grupo, ou seja, da realidade social onde vivem, agem, pensam e fazem o cotidiano da vida. – sua filosofia é humanista; – sua concepção de Educação é libertadora, porque as pessoas são livres para expressar o que pensam; – a perseverança, a alegria e a esperança são instru196
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b)
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mentos da ação humana como sujeitos de construção de sua história e de seu grupo: é fonte que liberta; Há vínculos com os processos organizativos e projetos políticos e culturais, que fortalecem os atores sociais, construindo ambientes participativos que produzem consciência através da compreensão dialogicamente crítica dos contextos sociais e das práticas sociais. O desenvolvimento comunitário, a animação cultural, os instrumentos de participação e organização popular são condições de luta dos sujeitos contra a opressão, exploração, exclusão e injustiça social, como proposta educativa, como Ato Político, não individual mas coletivamente (as pessoas se libertam em comunhão). O encontro multicultural, a solidariedade, comunicação, autonomia, alegria e esperança são condições necessárias de qualquer fazer pedagógico entendido como experiência humana, histórica e política. Essa ação pedagógica pretende humanizar, dignificar e democratizar as relações sociais a partir das expressões culturais e práticas organizativas que, na atualidade são sistematicamente marginalizadas e excluídas, pelos sistemas social, político e econômico neoliberal. Nesse sentido, toda ação educativa é uma ação política por que: – pensa a superação da opressão, discriminação, possibilidade passada por uma compensação crítica da história (ou sua história); – ocorre por relações interculturais que se dão de maneira contraditória e dinâmica. Necessitam de processos e projetos políticos-pe dagógicos, descartando o assistencialismo, as práticas adaptadoras ou transmissoras, ou bancárias, de conhecimento. A teoria de Paulo Freire é uma tradição de pensar o papel social de qualquer fazer educativo, de refletir a 197
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pedagogia como construção social intencional ligada à cultura e política que visam alcançar transformações individuais e coletivas em contextos marcados pela opressão, exploração, injustiça ou conflitividade. i) Integra as relações constitutivas referentes de contexto, a política e ética, a partir de critérios que geram a construção de propostas, com paradigma orientador das práticas. j) As premissas e ideia-força de sua obra envolvem: – aplicação do método dialético na pedagogia; – transformação de consciência ligada à transformação de prática social; – relação prática (experiência), teoria (análise crítica), prática (mudança de situação); – relação dinâmica entre ação e reflexão, do mundo da palavra (discurso) e do trabalho; – diálogo de saberes, negociações culturais; – práticas sociais populares referentes e conteúdos das propostas educativas. k) Valorização de uma metodologia ativa, crítica e fundada em concepções do processo educativo como dinâmica da construção de sujeitos mediante diálogo de saberes e participação consciente e decidida dos envolvidos, a partir de enfoques políticos e culturais emancipatórios. l) Os objetivos das propostas educativas populares são: – ruptura com enfoques bancários verticais e autoritários de Educação; – parte-se da realidade dos participantes, sua situação histórica concreta, propiciando a tomada de consciência crítica da situação econômica e da social; – valorização da cultura popular e a identidade cultural própria; – busca de uma relação pedagógica horizontal; – auto-aprendizagem, auto-avaliação e autogestão no processo; 198
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– procedimentos grupais que expressa à cooperação, a solidariedade comunitária e de classe; – a prática educativa estimula a organização, permite a participação da comunidade e sua intervenção efetiva no processo de tomada de decisões; – adota os modos de conhecer e elaborar conhecimento dos setores populares; – utiliza técnicas e instrumentos novos participativos, simples, atrativos e eficazes; – desenvolvimento de uma articulação alternativa e distinta dos instrumentos no processo educativo, em função de finalidades. Portanto: Aspectos
Núcleos de desenvolvimento metodológico
Político
Sujeito social, democracia, exercício de poder, movimento e organização social
Cultural
Multiculturalidade, identidade, aproximação cultural, produção e consumo cultural, linguagens, códigos, imaginários
Ético
Valor da vida, vida digna, direitos humanos, solidariedade, cooperação
Metodológico
Sensibilização, conscientização, ação participativa, interação, diálogo de saberes, comunicação alternativa, investigação, sistematização
Eixos Articuladores
Construção de espaços democráticos, trabalho, emprego, qualidade de vida, meio ambiente, desenvolvimento local, grupos étnicos, comunicação, organização popular, movimento social, redes, transformação social
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Assim os assuntos fundamentais de prática educativa são: Assuntos estruturados das propostas de Educação Popular - - - - - - - - -
Contexto histórico Intencionalidades políticas Atores sociais: protagonistas Perspectivas socioeducacionais Metodologia dialética Conteúdos da conjuntura e estrutura social Processos coletivos Projetos sociopolíticos alternativos Participação reflexiva do educando
a) Prática educativa como fazer contextualizando: reco nhecer, de maneira crítica, o contexto sociocultural, econômico e político em que se dá a experiência, com participação consciente na reconstrução da sociedade e na compreensão crítica do momento (análise de conjuntura) em que passa o País. b) Prática educativa em fazer intencionado: ensinar exige convicção de que a mudança é possível, somos sujeitos, damos a direção da ação político-pedagógica. É necessário que as práticas sejam coerentes com os fins a que se quer chegar. Participar de forma coletiva e criativa, para conseguir se libertar. c) Sujeitos de prática educativa: que produzem saber frente suas necessidades e mudam tudo que os rodeia, transformam, criam e recriam o mundo da cultura e da história e sempre se reconhecem como inacabados. Homens e mulheres, seres históricos e sociais, com caráter formador, com intuição, sentimentos, emoções, sonhos e desejos. É o próprio corpo que conhece. Pensar a experiência enquanto prática e inseri-la na prática social é trabalho sério e indispensável em todo processo educativo orientado para a construção de sujeito sociais. 200
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Portanto, o processo educativo constitui-se num exercício crítico de pensar e prática. – Perspectiva dialógica da prática educativa – diálogo como encontro de homens para a tarefa comum de saber atuar. O diálogo exige humildade, valentia, confiança e respeito em nós mesmos e aos outros. Ninguém sabe tudo e ninguém ignora tudo. A tolerância é a virtude que nos ensina a conviver com o diferente, a aprender com o diferente, a respeitar o diferente. O ato de tolerar implica estabelecer um clima de diálogo com princípios, limites, que devem ser respeitados. A ação dialógica caracteriza-se, pois, por relações contraditórias e dialéticas entre: Colaboração ↔ Conquista União ↔ Divisão Organização ↔ Desorganização Autonomia ↔ Manipulação Aproximação ↔ Invasão, alienação Negociação cultura ↔ Cultura O diálogo é o encontro de homens e mulheres para a tarefa comum de saber e atuar; é a fonte de poder com carga de autencidade e de realidade contidas nas linguagens, palavras e interações. O diálogo e a capacidade de reinvenção, de conhecimento e reconhecimento, são atitudes e uma práxis que se impõe diante do autoritarismo, da arrogância, intolerância e massificação. O diálogo agrega-se, em Paulo Freire, ao significado dos desejos, sonhos, das aspirações e da esperança, ao possibilitar o intercâmbio de discursos, conversas críticas carregadas de real possibilidade.
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Conteúdos e metodologias na prática educativa – o processo de conhecer e de ensinar não é neutro nem indiferente. A conscientização exige rigorosa compreensão crítica da realidade, não neutra ou este rilizada. Educação é uma certa teoria de conhecimento colocada em prática. A metodologia deve levar os sujeitos a se sentirem capazes de ir mais e mais, em observar o objeto para alcançar a sua razão de ser. O ato de conhecer, para Paulo Freire, é um movimento dialético que passa da ação à reflexão e da reflexão sobre a ação a uma nova ação. Reconhece a objetividade e a subjetividade numa unidade. Por isso, existe um reconhecimento no diálogo autêntico entre educador e educando como sujeitos de conhecimento e o contexto real dos fatos concretos da realidade social em que os sujeitos existem. Por isso, pergunta: Quais são nossas concepções de teoria do conhecimento? Como abordamos o objeto do conhecimento? Nós os possuímos? Esperança, alegria e autonomia: como fundamentos da prática educativa – Freire amava a curiosidade, a afirmação de si mesmo e o risco da aventura, o respeito pelos outros e por si mesmo. Ele entendia a história como possibilidade. E a alegria, a esperança e a autonomia se constituem socialmente em um dos ambientes educativos. O clima é de alegria e a esperança é a possibilidade de construir conhecimento juntos vivendo o novo. O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é o imperativo ético e não um favor que concedemos uns aos outros.
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A compreensão e conceitualização da prática pedagógica A compreensão e conceitualização tem que ver com a possibilidade que os sujeitos envolvidos na prática educativa dialógica libertadora têm de superar a descrição e a explicação científica, chegando a compreendê-la, interpretá-la e significá-la; para com os novos sentidos recontextualizar, resolver, generalizar respostas e por em prática ações alternativas. Conceitualizar é participar da história refazendo-se a si mesmo. Reconhecendo contextos, sujeitos, fins, mensagens, metodologias e resultados em diferentes setores e níveis da vida de um grupo.
Referências FREIRE, Paulo. Conscientização: Teoria e prática da libertação uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979. ______. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977. ______. Extensão e comunicação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971. ______. Pedagogia da autonomia. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. ______. Pedagogia da esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. ______. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Unesp, 1960. ______. Pedagogia do oprimido. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
Nota 1 Professora titular da Faculdade de Educação, coordenadora do Curso de Pedagogia da PUC-SP; membro do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e Adolescente de 2011-2013; pesquisadora da área da infância e adolescência; coordenadora do Núcleo de Trabalhos Comunitários (NTC/PUC-SP), autora do livro Pedagogia Social (Editora Cortez, 2014), além de outras obras na área de Educação. Email: ntc@pucsp.br
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Introdução
E
ste trabalho integra um projeto de pesquisa amplo e coletivo que tem como propósito o estudo da influência e das contribuições do pensamento de Paulo Freire na Educação brasileira a partir da década de 90. O estudo foi desenvolvido em diversos municípios e estados brasileiros, no âmbito da Cátedra Paulo Freire da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), sob a coordenação da professora Drª Ana Maria Saul. A presente pesquisa pretende contribuir com esse macroprojeto investigando quais são as possibilidades e os limites da construção de uma proposta de política pública educacional, popular e democrática, na rede municipal de Diadema, cidade localizada no estado de São Paulo, no período de 2005 a 2008, com fundamento na epistemologia e pedagogia crítico-emancipatória de Paulo Freire. Em específico, busca aprofundar a compreensão de uma das ações dentro dessa proposta de política pública educacional, ou seja, a organização curricular em ciclos de aprendizagem na rede municipal de Diadema. Os pressupostos teóricos dos ciclos de aprendizagem implantados em Diadema estão ancorados nos princípios freireanos e na experiência da rede municipal de São Paulo, na gestão de 1989 a 1992. Além disso, a presente pesquisa tem como objetivo também investigar os pressupostos que presidiram a estru204
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tura curricular do ensino fundamental, em Diadema, e as práticas pedagógicas evidenciadas no currículo em ciclos. No levantamento do referencial teórico para esta pesquisa, foi atualizado o estado do conhecimento sobre o tema da organização curricular em ciclos, por meio da análise de dissertações e teses produzidas no período de 2003 a 2009 e localizadas pela consulta ao Banco de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e nas Bibliotecas Digitais (Instituto Brasileiro de Ciência e Tecnologia - Ibicit e Domínio Público).
A política curricular na rede municipal de São Paulo (1989 a 1992) Em 1989, iniciou-se, no Município de São Paulo, a administração da prefeita Luiza Erundina de Souza, cujo mandato foi exercido de janeiro de 1989 a dezembro de 1992. Assumiu, a Secretaria Municipal de Educação (SME), o professor Paulo Freire, no período de janeiro de 1989 a maio de 1991, quando, a pedido, foi substituído pelo professor Mário Sérgio Cortella, que permaneceu à frente da secretaria até o final dessa gestão. A SME implantou a Escola Democrática, uma proposta político-pedagógica que objetivava a construção de uma escola pública popular, democrática e de qualidade. A proposta político-pedagógica alicerçou-se em dois princípios básicos: participação e autonomia, a partir de cinco prioridades: • • •
Ampliar o acesso e a permanência dos setores populares; Democratizar a gestão, o poder pedagógico e educativo; Melhorar a qualidade da educação, mediante a construção coletiva de um currículo interdisciplinar e a formação permanente do pessoal docente;
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• •
Eliminar o analfabetismo de jovens e adultos em São Paulo; Formar cidadãos críticos e responsáveis (FREIRE, 2001, p. 98).
A reforma político-pedagógica propôs um caminho na contramão da história oficial do Município de São Paulo, porque buscou o resgate das experiências socioculturais de educadores e educandos no processo de construção e sistematização do conhecimento. O desenvolvimento da autonomia requer a construção de saberes e fazeres por meio da participação de todos os envolvidos no processo. Paulo Freire pensou a existência concreta, a vida humana, e propôs uma concepção de educação popular, uma epistemologia, uma pedagogia crítico-emancipatória e anti-hegemônica, comprometida historicamente com o sujeito coletivo, com a participação popular na recriação da Cultura e da Educação. Nas palavras de Freire (2002, p. 19): Entendo a educação popular como o esforço de mobilização, organização e capacitação das classes populares; capacidade científica e técnica. Entendo que esse esforço não se esquece, que é preciso poder, ou seja, é preciso transformar essa organização do poder burguês que está aí, para que se possa fazer escola de outro jeito.
A proposta político-pedagógica da administração objetivou um fazer escola de outro jeito, procurando superar a dicotomia entre ensinar-aprender, teoria-prática, saber popular-conhecimento científico, consciência-mundo, palavra e poder, entre os que pensam e os que executam a Educação. Na visão de Freire, a mudança na escola não se faz por imposição de um decreto, de forma autoritária, burocrá206
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tica, com medidas centralizadoras, de cima para baixo, por alguns experts em Educação. Pelo contrário, afirmava que tal medida não garantiria em nada a melhoria da escola. A mudança da escola não se faz de um dia para outro, como dizia, coloquialmente, de terça para quarta-feira, ela se faz pelos seus instituintes, pelo movimento, com os princípios da participação e da dialogicidade, ou seja, ouvindo e dialogando com todos da comunidade escolar (pais, educadores, alunos, funcionários, a própria comunidade em que a escola se situa, e os especialistas das diferentes áreas de conhecimento). Também assim já havia se pronunciado Paulo Freire (2001, p. 97): Mudar a escola na direção que esta administração deseja, implica um trabalho profundo e sério com os educadores que tem a ver com a questão ideológica, com o assumir compromisso, com a qualificação dos profissionais e este caminho é, no meu entender, a dificuldade maior a transpor. Não considero também que seja uma dificuldade intransponível.
Por isso, a administração fez a opção de iniciar a implantação de sua proposta com o Movimento de Reorientação Curricular associado a um trabalho de formação permanente dos educadores, denominados Grupos de Formação, com assessoria interna (com funcionários da Diretoria de Orientação Técnica - DOT e dos Núcleos de Ação Educativa - NAEs) e externa, das universidades (Universidade de São Paulo - USP, Pontifícia Universidade Católica - PUC e Universidade de Campinas - Unicamp), para desencadear, juntamente com os profissionais das escolas, a reflexão crítica sobre a prática pedagógica, com a intencionalidade de superá-la e de reinventá-la. O Movimento de Reorientação Curricular foi definido 207
A proposta curricular em ciclos de aprendizagem: possibilidades e desafios
pela via da interdisciplinaridade e estruturado a partir de conhecimentos significativos para os educandos, como um processo de produção coletiva por todos os envolvidos, ou seja, escola, comunidade e especialistas nas diferentes áreas do conhecimento. O Movimento de Reorientação Curricular estava imbricado com uma nova maneira de organização na escola; a flexibilização curricular por meio dos ciclos de aprendizagem, com o objetivo de romper e superar com a lógica seriada, a concepção de educação bancária, a linearidade e a fragmentação curricular, a organização rígida do tempo e do espaço escolar, a avaliação etapista, classificatória, excludente, a retenção e a expulsão escolar, a dicotomia entre ensinar e aprender. A organização da escola em ciclos de aprendizagem implicou no respeito ao saber do aluno, ao ritmo de desenvolvimento humano, ou seja, os aspectos cognitivo, motor, social e afetivo. Teve por objetivo articular teoriaprática, assegurando ao aluno a continuidade do processo ensino-aprendizagem, respeitando seu ritmo, o seu saber de experiência feito, o conhecimento que o educando constrói, sua história de vida e cultura. A proposta dos ciclos de aprendizagem objetivou ressignificar o processo de construção do conhecimento pelo educando, a partir do paradigma epistemológico crítico-emancipatório, que articula a dimensão sociocultural, considerando a realidade local, de cada escola e dos educandos, com a dimensão metodológica no processo de ensino-aprendizagem. Para subsidiar todo esse movimento estrutural e radical de mudança na escola pública, a SME priorizou as seguintes ações: – reestruturação da carreira do magistério; – valorização salarial dos profissionais da educação; – fortalecimento do trabalho coletivo dos profissionais na escola; – formação permanente dos professores, 208
Denise Regina da Costa Aguiar
destacando-se a modalidade de grupos de formação permanente, em horários coletivos remunerados e incorporados à jornada de trabalho, para promover a reflexão entre os professores, coordenadores pedagógicos e diretores de escola; – participação e envolvimento de toda a comunidade escolar; – construção do programa curricular por escola, de acordo com a realidade local, utilizando o “estudo preliminar da realidade local para resgatar o cotidiano da escola; a “problematização das situações-limites” para denunciá-las, anunciando sua superação; e da “sistematização” dos temas geradores, a partir do levantamento de conteúdos significativos para os alunos. A secretaria preocupou-se em avaliar e monitorar continuamente o projeto curricular implantado, retomando as dúvidas, questões e alterando-o sempre que considerou necessário, de maneira processual. Também buscou consolidar a democratização da gestão e a administração escolar por colegiados, promovendo o Conselho de Escola como órgão deliberativo; a participação nas decisões da gestão escolar, criando os Conselhos Regionais de Escola (Creces) por representatividade, e incentivando a participação no Grêmio Estudantil e na Associação de Pais e Mestres (APM). Nessa perspectiva, descentralizou os recursos financeiros para as escolas, de modo que as verbas fossem aplicadas de acordo com as reais necessidades e demandas apresentadas, garantindo efetiva liberdade de escolha para a realização de projetos educacionais, objetivando promover, então, a autonomia pedagógica das unidades escolares. Estudos acadêmicos confirmam que a experiência pioneira de implantação da flexibilização curricular em ciclos de aprendizagem, para todo o ensino fundamental, à época, ensino de 1o Grau, compromissada com a democratização do ensino e com a obrigatoriedade da educação para as camadas populares, ocorreu na gestão (1989 a 1992) de 209
A proposta curricular em ciclos de aprendizagem: possibilidades e desafios
Luiza Erundina, quando a frente da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo a proposta de Paulo Freire. A proposta de organização curricular em ciclos de aprendizagem alicerçada em pressupostos freireanos expandiu-se para várias redes de ensino, sendo reestruturada de acordo com cada contexto histórico-social, econômico e cultural, e de acordo com a realidade local, numa perspectiva de construção de uma escola pública, popular e democrática.
A proposta político-pedagógica da Secretaria Municipal de Educação de Diadema Desde 2001, a SME de Diadema objetivou a estruturação de uma proposta de política pública educacional, em toda a rede municipal, visando atender os diferentes anseios, às diversas prioridades e concretas demandas de cada escola e da cidade. Tal proposta pretendeu a construção de uma escola pública popular, democrática, com qualidade e, para isso, pautou-se em dois princípios fundamentados em pressupostos freireanos que nortearam o conjunto das ações: participação e autonomia. A administração visou o atendimento de três grandes objetivos: democratização do acesso e da permanência das crianças das camadas populares, democratização da gestão e qualidade social da educação (SME, Caderno Introdutório, 2007, p. 4). A democratização do acesso e da permanência das crianças das camadas populares na escola pública constituise como um direito social subjetivo, é dever e responsabilidade do poder público e está garantido nos textos legais da Constituição Federal promulgada em 1988 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de nº 9394/96. Isso significa que todas as crianças ingressem e concluam o ensino fundamental com a melhor qualidade. Desse modo, pensar em acesso/quantidade está inex210
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tricavelmente imbricado com o pensar em permanência/ qualidade. Essa relação entre acesso e permanência é contraditória e histórica e está posta como um desafio para as propostas de políticas públicas contemporâneas, entendendo-se que, para a superação dessa contradição, o uso bem-feito do tempo escolar para a aprendizagem deve ser repensado e ressignificado dentro de uma concepção crítico-emancipatória de educação, ou seja, com qualidade social. Pensar em permanência do educando na escola significa uma reorganização do espaço e tempo, e da escola, um tempo de permanência de aprendizagens, em que se efetive a construção e reconstrução do conhecimento significativo, contextualizado, o ciclo gnosiológico, para todos os educandos. Nas palavras de Freire (2001, p. 54): Não me parece possível pensar a prática educativa, portanto a escola, sem pensar a questão do tempo, de como usar o tempo para aquisição de conhecimento, não apenas na relação educador-educandos, mas na experiência inteira, diária da criança na escola.
A prática educativa, numa concepção epistemológica freireana, parte do “saber de experiência feito”, do conhecimento que o educando traz, do saber popular, articulando-o ao saber científico, para que a apreensão do conhecimento seja significativa e relevante para o educando. Não há hierarquização política do conhecimento, ou seja, todo conhecimento tem valor; não há uma supervalorização do conhecimento científico em detrimento ao conhecimento popular, ou a supervalorização de uma cultura em detrimento da outra. A escola pública, que tem essa intencionalidade político-pedagógica, deve estimular o educando a perguntar; a criticar; a ser curioso; a construir e reconstruir conhecimentos; 211
A proposta curricular em ciclos de aprendizagem: possibilidades e desafios
a conviver com os diferentes; a ler o mundo; ter “paixão de conhecer”. Para Freire (2001, p. 83): O que se propõe é que o conhecimento com o qual se trabalha na escola seja relevante e significativo para a formação do educando. [...] Proponho e defendo uma pedagogia crítico-dialógica, uma pedagogia da pergunta. A escola pública que desejo é a escola onde tem lugar de destaque a apreensão crítica do conhecimento significativo através da relação dialógica. É a escola que estimula o aluno a perguntar, a criticar, a criar; onde se propõe a construção do conhecimento coletivo, articulando o saber popular e o saber crítico, mediados pelas experiências no mundo.
Além disso, o Projeto Político-Pedagógico da SME de Diadema expressou ações para o combate às desigualdades, opressões e exclusões sociais, por meio dos princípios da democracia, participação e da autonomia. Nesse sentido: O Projeto da Secretaria de Educação fundamenta-se nos princípios da democracia, solidariedade, justiça, liberdade, tolerância, equidade, de modo que ele contribua para a realização das pessoas e da sociedade, considerando a diversidade, respeitando os diferentes, fortalecendo-os e tornando a escola um espaço de permanência prazerosa e significativa, na direção de ser uma referência da comunidade local, uma vez que é lugar de todos e precisa ser feito com todos (SME, Caderno Introdutório, 2007, p. 7).
A democratização da gestão teve o propósito de contribuir para a concretização da democratização do ensino, do acesso e da permanência das crianças na escola, com qualidade social na educação e permitir que a escola e o conjunto 212
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do sistema sejam geridos por instâncias coletivas representativas, como um espaço público de direitos. Para aperfeiçoar as práticas democráticas, a Secretaria efetivou as seguintes ações: o fortalecimento da gestão por colegiados, do Conselho Municipal de Educação e do Conselho de Escola; a eleição dos coordenadores das equipes diretivas das escolas; o fortalecimento do Grêmio Estudantil e do Conselho Mirim; e promoção de assembleias para o estudo e a aprovação do Orçamento Participativo. A democratização da gestão teve como princípio a democratização do poder pedagógico-administrativo, por meio da efetiva participação de todos na vida cotidiana da escola, ou seja, dialogando com todos os componentes da comunidade escolar: pais, educadores, educandos, funcionários, a própria comunidade em que a escola se situa e os especialistas das diferentes áreas de conhecimento. Nessa perspectiva, a Secretaria Municipal de Educação de Diadema defendeu o conceito de qualidade social da educação, entendendo que, uma educação com qualidade compromete-se com a vida e com o objetivo de formar educandos que exerçam os seus direitos e vivam com dignidade humana. Considera a função social da escola e a escola como um espaço-tempo de construção e produção de conhecimento significativo, histórico e de identidades culturais individuais e coletivas. A secretaria desencadeou um processo de reconstrução curricular com a efetiva participação de todos os educadores da rede e comunidade, reavaliando as propostas curriculares anteriores no coletivo e viabilizando, em toda a rede municipal, a discussão em plenárias locais, nas escolas, sobre a prática político-pedagógica, e em plenárias regionais. Foram produzidos registros sínteses dos debates, proposições e organizados seis cadernos temáticos materializam as ações e intenções do Movimento de Reorientação Curricular. 213
A proposta curricular em ciclos de aprendizagem: possibilidades e desafios
O foco principal de toda proposta curricular foi partir da caracterização sociocultural dos educandos, da situação concreta da comunidade, da escola e da cidade, para elaborar os objetivos de aprendizagens e princípios propostos para cada ciclo. Trata-se da “opção da Secretaria de Educação de articular as dimensões socioculturais, considerando a realidade de cada escola e da cidade, com as dimensões metodológicas de ensino-aprendizagem” (SME, Caderno Introdutório, 2007, p. 7). O currículo consolidou-se num paradigma epistemológico crítico-emancipatório que considerava, as características socioculturais da escola e dos educandos no processo de aprendizagem. O currículo envolve a construção de significados e valores culturais. O currículo não está simplesmente envolvido com a transmissão de fatos e conhecimentos objetivos. Os significados estão estritamente ligados a relações sociais de poder e de desigualdade (GIROUX, 1987, apud SME, Caderno Introdutório, 2007, p.11).
A organização curricular se estruturou por eixos temáticos. Estes concentraram conceitos e/ou temas extraídos do levantamento preliminar de situações significativas e da problematizarão da realidade social imediata, que foram sistematizados para estudo e aprofundamento nas atividades. A fundamentação teórica que alicerçou a construção dos eixos temáticos foram os conceitos de temas geradores e de ética propostos por Paulo Freire. Assim, chegaram à intencionalidade político-pedagógica de desenvolver, nos âmbitos da Educação Infantil, do Ensino Fundamental e na Educação de Jovens e Adultos (EJA), um Movimento de Reorientação Curricular, a partir de sete eixos temáticos, considerando as demandas histo214
Denise Regina da Costa Aguiar
ricamente acumuladas e as demandas contemporâneas emergentes (SME, Caderno Introdutório, 2007, p.12), eixo 1– dignidade e humanismo, eixo 2 – cultura, eixo 3 – democratização da gestão, eixo 4 – formação de formadores, eixo 5 – as diferentes linguagens, eixo 6 – meio ambiente: uma questão social e urgente, eixo 7 – educar e cuidar: dimensões indissociáveis da prática educativa. Os eixos tiveram, por função, articular interdisciplinarmente, o conhecimento trabalhado e (re)construído na escola. Os eixos serviram para tematizar as diferentes áreas do conhecimento e para orientar os educadores na escolha e priorização dos conteúdos, de acordo com a realidade conhecida, vivida e problematizada. O currículo, organizado a partir dos eixos temáticos, estava imbricado com a compreensão de um conhecimento, enquanto saber dinâmico, flexível, numa dimensão de totalidade. Implicava a opção por uma prática pedagógica que rompia, com a fragmentação e a linearidade, a partir de uma prática criativa, curiosa, inventiva, que favorecesse a possibilidade da leitura de mundo pelos educandos e pela comunidade. Os eixos temáticos se complementavam e, com eles, se buscava garantir, ao longo do processo ensino-aprendizagem, a construção da identidade; o respeito à diversidade cultural, às práticas solidárias, à autonomia, criatividade e ao compromisso social. Esse movimento se estendeu a todas as unidades educacionais, e estava articulado à concretização de um outro Projeto Político-Pedagógico. Nas palavras de Paulo Freire (2001, p. 44-45): “todo projeto pedagógico é político e se acha molhado de ideologia. A questão é a favor de quê e de quem, contra quê e contra quem se faz a política de que a educação jamais prescinde”. Por isso, cada escola construiu seu Projeto Político-Pedagógico a partir dos eixos temáticos, da matriz curricular 215
A proposta curricular em ciclos de aprendizagem: possibilidades e desafios
em diálogo com a realidade local, de forma democrática, autônoma e participativa. O Projeto Político-Pedagógico expressou a moldura educacional proposta pela SME de Diadema que, ao definir os eixos temáticos, explicitou a intencionalidade política da educação a favor das camadas populares onde conhecimentos e valores de solidariedade, justiça social, respeito e liberdade nortearam todas as ações educacionais. Os eixos curriculares estruturaram-se em temáticas que expressam a ética universal do ser humano como forma de superar a opressão, física e/ou simbólica, por meio de uma educação libertadora, que buscou o ato do conhecimento para todos, conforme defende Freire (2001, p. 18-19). A ética de que falo é a que se sabe afrontada na manifestação discriminatória de raça, de gênero e de classe. É por essa ética inseparável da prática educativa, não importa se trabalhamos com crianças, jovens ou adultos, que devemos lutar. E a melhor maneira de por ela lutar é vivê-la em nossa prática, é testemunhá-la, vivaz, aos educandos em nossa relação com eles. Na maneira como lidamos com os conteúdos que ensinamos. [...] Não podemos nos assumir como sujeitos da procura, da decisão, da ruptura, da opção, como sujeitos históricos, transformadores, a não ser assumindo-nos como sujeitos éticos.
Nesse sentido, a proposta de trabalho com os temas geradores permitiu o levantamento de conteúdos a partir do saber de experiência feito dos educandos, que expressam as situações-limites vividas por eles na cotidianidade, situações discriminatórias e opressoras da realidade. “O momento deste buscar é que inaugura o diálogo da educação libertadora” (FREIRE, 1987, p. 87). A partir do levantamento da temática significativa, o professor construiu o programa para trabalhar o conteúdo 216
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como uma problematização da realidade. A problematização constitui-se como ação conscientizadora e transformadora da realidade e busca a superação da situação opressora. Conhecer é um meio para mudar o mundo. Esta investigação implica necessariamente, uma metodologia que não pode contradizer a dialogicidade da educação libertadora. Daí que seja igualmente dialógica. Daí que, conscientizadora, também proporcione ao mesmo tempo a apreensão dos temas geradores e a tomada de consciência dos indivíduos em torno dos mesmos (FREIRE, 1987, p. 87).
Torna-se condição, para isso, o diálogo entre educadores e educandos, sem o diálogo, não há possibilidade do ato de conhecer e de uma educação libertadora. O ato de conhecimento se dá na relação com o outro, intermediado por objetos de conhecimento. Todo conhecimento é construído numa relação dialética e numa situação de diálogo considerando a tríade A com B, mediatizados pelo mundo, ou na prática educativa, a tríade educador-educando, mediatizados por objetos de conhecimento. O que, nas palavras de Freire (1987, p. 68) significa dizer que “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”. Essa concepção de ato do conhecimento está imbricada com a concepção de ensino-aprendizagem. Ensinar e aprender são práticas sociais, históricas e indissociáveis. Para Freire (1996, p. 26): Ensinar inexiste sem aprender e vice-versa e foi aprendendo socialmente que, historicamente, mulheres e homens perceberam que era possível – depois, preciso – trabalhar maneiras, caminhos, métodos de ensinar. Aprender precedeu ensinar ou, em outras palavras, 217
A proposta curricular em ciclos de aprendizagem: possibilidades e desafios
ensinar se diluía na experiência realmente fundante de aprender. Não temo dizer que inexiste validade no ensino de que não resulta um aprendizado em que o aprendiz não se tornou capaz de recriar ou de refazer o ensinado, em que o ensinado que não foi apreendido não pode ser realmente aprendido pelo aprendiz.
A expectativa é a de que o conhecimento seja construído, por educandos e por educadores em comunhão, onde nesse contexto, não há um conhecimento absoluto ou uma cultura pré-estabelecida como verdadeira. Tal prática educativa favorece a realização dos sonhos, das utopias, das esperanças, das histórias de vida dos educandos e educadores, porque os consideram sujeitos do processo histórico de ensinar e aprender. Nessa perspectiva, evidenciam-se dois momentos, no processo de educar. O primeiro é a construção do conhecimento dentro do ciclo gnosiológico do que é conhecer e o segundo é a socialização, onde os educandos, através da solução dos problemas cotidianos de sua realidade, apreendem e desenvolvem valores de respeito, solidariedade, justiça, valores universais para a existência humana. Tornam-se assim éticos e humanos. A dinâmica da organização curricular em ciclos de aprendizagem na Rede Municipal de Diadema A SME de Diadema optou por estruturar o sistema de ensino municipal em ciclos de aprendizagem, implantados nas primeiras etapas da educação básica, seguindo uma lógica que organiza a infância, na escola, por faixa etária/ desenvolvimento/aprendizagem: Educação Infantil: Ciclo 1 (0-3anos) – correspondente ao período de atendimento realizado pelas creches; 218
Denise Regina da Costa Aguiar
Ciclo 2 (4-6 anos) – correspondente ao período de atendimento realizado pelas creches e escolas de educação infantil; Ensino Fundamental (1o segmento): Ciclo 3 (6-8 anos) – período destinado à alfabetização; Ciclo 4 (9-10 anos) – período destinado à consolidação da alfabetização.
Além dessa organização, em 2006, conforme o previsto na LDB nº 9.394/96, no Plano Nacional de Educação e na Lei nº 11.114, de 16/05/05; a secretaria implantou o Ensino Fundamental de 9 anos, juntamente com o currículo interdisciplinar em ciclos de aprendizagem, como uma outra maneira possível de organização da escola, de fazer escola, com o objetivo de construção de um outro paradigma educativo, eliminando totalmente a repetência. A opção por essa organização curricular veio acompanhada por um conjunto de ações políticas e pedagógicas simultâneas, destacadas nos documentos da SME (SME, Ensino Fundamental, 2007, p. 27-32): 1. A reorganização radical do sistema escolar; 2. Gestão democrática; 3. A proposta de formação permanente dos educadores; 4. O processo de avaliação emancipatória da aprendizagem; 5. A organização das turmas, a flexibilização do tempo de aprendizagem e a reorganização dos espaços escolares. 1. A reorganização radical do sistema escolar – Em 2006, o Ensino Fundamental de 9 anos foi estruturado, do 1o ao 5o ano do Ciclo I, em dois ciclos, a progressão escolar dos educandos é continuada, sem reprovação por nota/ conceito, em qualquer ano do ciclo ou no final de cada ciclo. A progressão continuada, em Diadema, objetivou a construção de uma proposta curricular interdisciplinar com intencionalidade político-pedagógica, que atendesse às reais necessidades dos educandos, considerando as diferenças e 219
A proposta curricular em ciclos de aprendizagem: possibilidades e desafios
que garantisse a efetiva aprendizagem de todos, contrariamente à proposta de progressão continuada, instituída de forma equivocada como promoção automática, em algumas redes de ensino, onde os educandos percorrem todo o percurso escolar sem condições efetivas de aprendizagem e são aprovados ao longo do percurso. Uma grande preocupação expressa nos documentos da SME, com a implantação da proposta curricular em ciclos, foi de proporcionar o atendimento às reais necessidades da infância, e, em especial, das crianças que passaram a ingressar no Ensino Fundamental com 6 anos de idade. Por isso, a proposição do movimento de reorientação curricular se realizou juntamente com a proposta de formação permanente dos educadores, de modo que esses dois movimentos possibilitassem subsidiar o trabalho político-pedagógico, nas escolas. Houve a preocupação contínua de ofertar uma proposta político-pedagógica que considerasse, uma concepção de educação, em que a criança exerça significativamente a sua infância, ou seja, a possibilidade de brincar, correr, cantar, falar, expressar-se, criar, perguntar, inventar, ser curiosa, ter “paixão de conhecer” e ter acesso a diferentes linguagens e às múltiplas culturas na escola, não limitando o trabalho pedagógico apenas ao ensino convencional de leitura, escrita e da matemática. O ensino da leitura da palavra, da escrita, da matemática, são imprescindíveis para o sucesso escolar, desde que, desafiadores, contextualizados, com conteúdos significativos, de construção de conhecimento, no processo ensino-aprendizagem. 2. A gestão democrática – Objetivar a construção de uma escola pública, popular e democrática exigiu, da Secretaria de Educação, um trabalho coletivo, fundamentado no princípio da participação e autonomia e de envolvimento, de todos da comunidade educativa no processo. 220
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Com a gestão democrática, objetivava-se a construção pela participação, de um projeto de educação com qualidade social, transformador e libertador. A escola, em seu tempo-espaço, garantiria o exercício dos direitos sociais, na formação de sujeitos cidadãos, com princípios coletivos de democracia, solidariedade, tolerância, tendo como horizonte a construção de uma sociedade mais justa e humana. A democratização da gestão se deu na contradição existente no cotidiano do trabalho, implicou uma organização em que predominassem as decisões coletivas, pensadas num contexto amplo, que extrapolassem os muros da escola. A participação da comunidade educativa foi condição imprescindível para a concretização dessa gestão democrática. Nesse processo, tornaram-se fundamentais os espaços/ momentos na escola que favorecessem a atuação do Grêmio Estudantil, do Conselho Escolar, do Conselho de Ciclo, o horário de trabalho pedagógico coletivo; e as trocas metodológicas. Também, foram fundamentais os espaços/tempos, na cidade, que favoreciam a integração com o Conselho Tutelar, Conselho Municipal de Educação e com as reuniões de orçamento participativo.
A proposta de formação permanente dos educadores O processo de formação permanente dos educadores realizou-se em dois formatos: um dentro de cada unidade, denominado, pela secretaria, grupo-escola, nos horários coletivos de trabalho pedagógico - reuniões aglutinadas, horários estes remunerados e previstos nas jornadas de trabalhos dos educadores, acompanhado pelo grupo de intervenção metodológica (GIM), com o objetivo de questionar a prática pedagógica do professor, e também por instâncias centrais da Secretaria da Educação. E outro, fora das unidades, com cursos de formação escolhidos, por cada educador ou pelo grupo de educadores, 221
A proposta curricular em ciclos de aprendizagem: possibilidades e desafios
de acordo com as necessidades dos professores, por meio de assessoria pedagógica externa, cursos de formação acadêmica, de extensão, de atualização profissional, entre outros.
O processo de avaliação emancipatória da aprendizagem A ressignificação do conceito de avaliação, como instrumento formativo e de emancipação dos educandos, foi um ponto central na organização da escola em ciclos de aprendizagem, em Diadema. A proposta dos ciclos requer um outro olhar sobre o processo ensino-aprendizagem e, consequentemente, sobre a avaliação. Nesse sentido, ressignificar a avaliação, na rede municipal, demandou, para a SME, intenso processo formativo, objetivando redimensionar a prática pedagógica, e o desenvolvimento de estratégias e instrumentos de registros diversificados, que permitissem a observação atenta, o acompanhamento do percurso de desenvolvimento e aprendizagem de cada criança (o diário de ciclo, relatório do percurso de aprendizagem individual, relatório de avaliação, fichas de autoavaliação, relatório de diagnóstico, perfil de saída do aluno em cada ciclo, entre outros). Para o aprimoramento dos educadores, no processo de avaliação do ensino-aprendizagem, a secretaria criou o Conselho de Ciclos, espaço de reflexão, síntese e compartilhamento do processo pedagógico. Assim, foi um momento coletivo organizado pelos educadores e equipe gestora da escola para o estudo sobre temas específicos do processo ensino-aprendizagem, para apresentação de propostas e resultados para encaminhamentos, apropriação e compartilhamento pelo coletivo de educadores dos percursos de aprendizagem de todos os educandos da escola. O Conselho de Ciclos acontecia, ao longo do período letivo, em três momentos, abril/maio, agosto, novembro/ dezembro. 222
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5. A organização das turmas, a flexibilização do tempo de aprendizagem e a reorganização dos espaços escolares A proposta da organização curricular em ciclos implicou a organização das turmas de forma heterogênea, considerando que cada criança possui conhecimento, um saber de experiência feito construído em diferentes contextos sociais e realidades culturais. Na organização heterogênea, nesse sentido, foram consideradas e respeitadas as diferenças culturais, de gênero, étnicas e de classes sociais. Caberia a cada educador proporcionar atividades relevantes, curiosas, desafiadoras, que explorassem a riqueza da diversidade cultural existente no grupo-classe, diagnosticando as reais necessidades das crianças e garantindo a construção do conhecimento significativo e a aprendizagem por todos. Uma das principais características da escola organizada por ciclos foi a possibilidade de flexibilização da proposta curricular de acordo com o tempo de aprendizagem da criança e dos percursos formativos. A organização da escola em ciclos possibilitou o ensino-aprendizagem por meio da diversificação e ampliação, de acordo com os percursos de aprendizagem de cada criança. Para isso, a SME adotou a estratégia de organização de agrupamentos diferenciados para o trabalho cotidiano com as crianças. As turmas foram organizadas, com base nos seguintes critérios: idade, faixa etária, denominadas agrupamentos de referência ou agrupamento classe; diagnóstico dos interesses manifestados pelas crianças, como, por exemplo, oficinas de teatro; temas para discussão, demandas específicas, necessidades de aprendizagem, como por exemplo, oficina com gêneros textuais.
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A proposta curricular em ciclos de aprendizagem: possibilidades e desafios
Conclusão A proposta da organização curricular em ciclos de aprendizagem numa perspectiva freireana, crítico-emancipatória, caracteriza-se por outro jeito de fazer escola, um projeto ousado, inovador, em permanente construção, porque provoca uma ruptura com fazeres e saberes tão arraigados na organização da escola numa concepção de educação bancária voltada para a seletividade e expulsão, sobretudo das camadas populares, ao acesso ao conhecimento, à cultura, ao direito de ser cidadão, enfim, ao direito à vida. É uma proposta que “esperança” combater o fracasso e a exclusão, presentes no cotidiano escolar, reflexo também de uma estrutura maior, de uma sociedade injusta, violenta e discriminatória. É uma possibilidade de fazer do processo ensino-aprendizagem um processo permanente de formação humana, um processo flexível e mais justo, de apreensão crítica de um conhecimento significativo para a transformação da realidade social.
Referências DIADEMA. Secretaria Municipal de Educação de Diadema. Caderno introdutório: o movimento de reorientação curricular em Diadema. 2007. DIADEMA. Secretaria Municipal de Educação de Diadema. Caderno: Diadema – ensino fundamental – proposta curricular: diretrizes político-pedagógicas. 2007. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 38.ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. ______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 20.ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996. ______. A educação na cidade. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2001. ______. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 9.ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001. 224
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______. Que fazer: teoria e prática em educação popular. 7. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. ______; SHOR, Ira. Medo e Ousadia: o cotidiano do professor. 10.ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.
Nota 1 Doutora e pós-doutoranda em Educação: Currículo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com Mestrado em Educação pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Integra o grupo de pesquisa da Cátedra Paulo Freire, no Programa de Pós-graduação em Educação: Currículo na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, sob a coordenação da Profª. Drª. Ana Maria Saul. Professora Convidada do Programa de Pós-graduação Lato Sensu da Universidade Nove de Julho (Uninove) e Professora Titular do curso de Pedagogia da Universidade Camilo Castelo Branco (Unicastelo). Atua na Rede Municipal de Ensino de São Paulo, desde 1991, como professora, coordenadora pedagógica e supervisora escolar. E-mail: costaag@uol.com.br
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A educação profissional por vias da educação ambiental crítica: contribuições para uma formação humana emancipatória Mariluza Sartori Deorce1
Paulo Freire: um referencial para a constituição de uma educação ambiental e um currículo crítico
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m breves linhas, são apresentadas algumas relações entre educação ambiental, currículo crítico e pensamentos freireanos, para tornar visíveis as potencialidades emergentes do/no cotidiano escolar educação profissional técnica. Como todo conhecimento é poder, as análises sobre currículo, sociedade, cultura, poder, ideologia e controle social podem ser enriquecidos pelas categorias freireanas aqui abordadas. Assim, as perguntas que norteiam este artigo e abrem possibilidades para outros desdobramentos de pesquisas são as seguintes: Como podemos pensar no diálogo entre currículos e Educação Ambiental (EA) 2? Como os estudos freireanos entrelaçam o campo da EA? Que contribuições o pensamento pedagógico de Paulo Freire traz, por meio da relação ser humano-mundo e da dimensão crítica da educação, para a EA e o currículo? Com esse propósito, sinalizamos algumas categorias freireanas que emergem das práticas e dos discursos ambientais que enriquecem as redes curriculares do curso técnico em Mecânica e contribuem para a formação humana mais emancipatória.
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Mariluza Sartori Deorce
Em vez de se preocupar com a técnica (como fazer) e com a pretensiosa neutralidade do currículo – aspectos da teorização tradicional do currículo –, as teorias críticas responsabilizam o status quo pelas desigualdades e injustiças sociais. Na perspectiva crítica, o currículo não é o elenco desinteressado de conteúdos, mas território de contestação e poder, perpassado por ideologias e interesses. Assim, o currículo tanto pode servir à manutenção do status quo quanto ser território de contestação dos discursos dominantes e alienantes. Segundo Silva (1999, p. 16), as teorias tradicionais pretendem ser apenas teorias neutras, científicas, desinteressadas, concentrando-se em questões técnicas e de organização, enquanto [...] as teorias críticas e as teorias pós-críticas argumentam que nenhuma teoria é neutra, científica ou desinteressada, mas que está, inevitavelmente implicada em relações de poder [...] Não se limitam a perguntar ‘o quê?’, mas ‘por quê’. Por que esse conhecimento e não outro? Quais interesses fazem com que esse conhecimento e não outro esteja no currículo? Por que privilegiar um determinado tipo de identidade ou subjetividade e não outro?
Por meio da prática dialógica, podemos trabalhar o currículo como política cultural, tal como Giroux (in SILVA, 1999). Assim, é possível canalizar o potencial de resistência dos educandos e educadores para desenvolver uma pedagogia e um currículo com conteúdos político e crítico das situações opressoras. Nesse contexto, dá-se voz aos educandos e se aposta no poder de intervenção dos sujeitos escolares. O currículo é política cultural à medida que envolve a construção de significados e valores culturais e sociais, 227
A educação profissional por vias da educação ambiental crítica...
os quais se articulam às relações sociais de poder e desigualdade. Desse modo, percebemos que as teorias críticas pretendem trazer as relações sociais e sua discussão para a sala de aula: questões de raça e religião, dominação política e ideológica, diferenças culturais. Em consonância com a pedagogia do oprimido (FREIRE, 2005), as teorias críticas do currículo denunciam o caráter bancário e desinteressado do currículo tradicional. Também em Freire podemos constatar que a relação ser humano-mundo é socioambiental, o que possibilita partir de alguns pressupostos para entender como a dimensão crítica do currículo estabelece uma relação intrínseca com a EA. Um dos pontos de destaque é que o ser humano é inacabado, inconcluso e está sempre se fazendo na relação com o mundo e com os outros. A consciência de inacabamento possibilita a educabilidade e permite-lhe ir além de si mesmo; como ser relacional, comunica-se pelo diálogo – exigência fundamental da existência humana (FREIRE, 2005). Ademais, quando pensamos em visão de mundo, percebemo-lo como suporte da vida, da existência humana. É o lugar, o contexto, a realidade objetiva. O mundo, como o ser humano, também é inacabado e, por consequência, toda ação humana pode humanizar ou desumanizar o mundo. É no mundo que se realiza a história, que se estabelecem as relações e que os seres humanos agem e fazem cultura (FREIRE, 1980, 2005). Esse “mundo” é mediador do processo educativo e, como realidade objetiva, é cognoscível. O diálogo entre educadores e educandos é fundamental para que se construam novos conhecimentos e para que os sujeitos se compreendam, nesse processo, como seres sociais e habitantes do mesmo planeta (FREIRE, 1996, 2005). Assim, a EA é uma dimensão educativa crítica que possibilita a formação de um sujeito-aluno cidadão, compro228
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metido com a sustentabilidade ambiental, mediante a apreensão e compreensão do mundo como realidade complexa. A perspectiva educacional de pensar as problemáticas socioambientais em suas múltiplas e complexas dimensões demanda um enfoque interdisciplinar e multirreferencial superador da visão fragmentada da realidade, possibilitando aos educandos compreender os problemas em vista de ações coerentes e responsáveis com o mundo. Partindo do pensamento de Paulo Freire para as práticas em EA, educar torna-se um ato político de pensar formas de vidas menos opressoras e mais humanas, de reflexão construtiva do conhecimento para uma formação integral do ser humano em vista do desenvolvimento de sujeitos éticos e cidadãos capazes de agir na realidade em que vivem. Desse modo, uma EA comprometida com a formação integral do educando encontra na teoria freireana contribuições significativas para sua práxis, pois busca, de forma integrada, a libertação do ser humano, a conscientização política e a formação ética da responsabilidade para com os outros e com o Planeta. Além disso, assume que as mudanças e transformações do mundo estão relacionadas a momentos pedagógicos em que educadores e educandos se formam no movimento dialético entre reflexão e ação, como cidadãos politicamente conscientes de seus espaços de vida. Nesse contexto de pensar uma formação humana mais emancipatória, associada a um percurso curricular mais crítico, concluímos que uma nova humanidade só é possível mediante a ética da solidariedade, em que o cuidado e o compromisso com o outro e com o planeta sejam atitudes agregadoras de um processo civilizatório mais justo e igualitário. A ética de que fala Freire contrapõe-se àquela que está posta hoje, ou seja, a ética do mercado, da negação do outro e, consequentemente, da exclusão social. Nesse contexto excludente, a ética restrita aos ditames do mercado sustenta a exploração insustentável dos bens naturais em nome de 229
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um progresso desordenado e de promessas inalcançáveis de melhor qualidade de vida a todos os habitantes do planeta. Cabe ressaltar aqui a crítica que faz Freire a uma educação profissional pragmatista, submissa à ética menor – a do mercado. O que ele propõe é um processo de formação humana que vincule os conhecimentos técnicos e científicos às suas historicidades e funções social e política de libertação humana. A formação técnico-científica de que precisamos é muito mais do que puro treinamento ou adestramento para o uso de procedimentos tecnológicos. No fundo a educação de adultos como a educação em geral não podem prescindir do exercício de pensar criticamente a própria técnica [...] A compreensão crítica da tecnologia é a que vê nela uma intervenção crescentemente sofisticada no mundo a ser necessariamente submetida a um crivo político e ético [...] Uma ética, a serviço das gentes de sua vocação ontológica, a do ser mais e não de uma ética estreita e malvada, como a do lucro, a do mercado [...] (FREIRE, 2000, p. 101-102).
Apostando na práxis libertadora, é possível pensar em outros mundos viáveis, mais éticos e sustentáveis. Na educação técnica, é válido pensar alternativas credíveis para libertação e transformação, em que as lógicas de dominação e subordinação sejam subvertidas para produzirmos relações existenciais mais solidárias e estéticas com o outro e com o nosso planeta. Enfim, lutar por práxis transformadoras é também engajar-se numa educação para a sustentabilidade social e planetária.
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Metodologia da pesquisa Como professora da escola pesquisada, sou constantemente inquietada pelas práticas em EA desenvolvidas por docentes e discentes: experiências curriculares dialógicas que subvertem as lógicas de dominação e opressão. Embora não prescritas no currículo oficial, essas práticas merecem ser visibilizadas e legitimadas por englobarem posturas éticas e humanizadoras. Com esse propósito, e inspirada nos ideais e categorias freireanos de transformação do mundo e em articulação com a EA e currículo críticos, exponho, neste artigo, um estudo resultante do processo de pesquisa de doutorado, realizado no curso técnico em Mecânica do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes), visando à reorientação da proposta curricular desse curso, tomando a EA como saber problematizador das condições opressoras de vida com foco nas possibilidades de práticas educativas libertadoras. A opção metodológica para o desenvolvimento da pesquisa foi o estudo de caso com privilégio da abordagem qualitativa de análise. Para propósito da coleta de dados, realizaram-se entrevistas com os professores e grupos focais com os educandos. Os resultados revelaram que a maioria dos professores pesquisados reconhece a importância da EA, propondo-se a aprofundar os seus conhecimentos sobre as questões ambientais e trabalhar com os educandos na perspectiva da organização de um currículo crítico que tenha como centro organizador a EA. A seguir, apresentamos as categorias freireanas que sustentam práticas curriculares ambientais enriquecedoras de um cotidiano escolar mais solidário e dinâmico em suas expressões de vida e formação humana.
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Tecendo os fios das redes ambientais com as categorias freireanas No cotidiano da escola técnica pesquisada, a EA configura-se, principalmente, nas atividades de gestão ambiental de resíduos sólidos e efluentes; na preocupação com a segurança e saúde do trabalhador; e com a organização do espaço escolar3. Na tentativa de matematizar as questões ambientais que se traduzem em práticas cotidianas de sala de aula, pudemos perceber uma das correntes da EA – a educação para a gestão ambiental4. De acordo com Layrargues (2002), a gestão ambiental não visa à substituição da EA, mas sobressai, atualmente, como portadora de conceitos e práticas que podem responder aos desafios de trabalhar uma EA voltada ao desenvolvimento da ação coletiva para o enfrentamento político dos conflitos socioambientais. Assim, os termos para definir os processos pedagógicos voltados à questão ambiental devem ser entendidos como componentes da EA, e não como seus equivalentes ou substitutos. É esse também o entendimento de Quintas (2004), ao afirmar que o processo de gestão ambiental não nos remete a uma nova EA, mas a um processo de mediação de disputas pelo acesso e uso dos bens ambientais em nome do interesse público, já que, via de regra, reconhece-se a existência de diversos atores sociais nos conflitos socioambientais e também a assimetria dos poderes políticos e econômicos contidos nas sociedades. Assim, não podemos desqualificar os saberes e as práticas associados ao gerenciamento de resíduos e efluentes, porque a destinação destes é um desafio que se apresenta no cotidiano dos professores e alunos pesquisados. Portanto, é a esses desafios que respondem educadores e educandos. Sem pretender engessar os movimentos constituintes do cotidiano escolar, mas na tentativa de comunicar as energias emancipatórias e utópicas que circulam nas redes5 em EA, 232
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organizamos didaticamente as categorias freireanas emergentes nessas redes em quatro dimensões, a saber: Conscientização, Ética, Prática Dialógica e Utopia6. As categorias aqui apresentadas não pretendem nem encerram a totalidade e a complexidade dos ideais freireanos, mas carregam em si a estética potencializadora de uma pedagogia da autonomia e de uma EA emancipatória, como veremos a seguir.
Conscientização A palavra consciência e seus derivados “conscientização” e “conscientizar” são frequentes nos discursos sobre meio ambiente, compondo o campo de significados da EA. Isso se deve, num primeiro momento, aos debates ambientalistas e consequente consenso popular sobre a urgência de conscientizar os indivíduos da necessidade de preservar o meio ambiente. Como esclarece Carvalho (2006, p. 52-53), [...] a EA é concebida inicialmente como preocupação dos movimentos ecológicos com uma prática de conscientização capaz de chamar a atenção para a finitude e a má distribuição no acesso aos recursos naturais e envolver os cidadãos em ações sociais ambientalmente apropriadas. É em um segundo momento que a EA vai se transformando em uma proposta educativa no sentido forte, isto é, que dialoga com o campo educacional, com suas tradições, teorias e saberes.
No entanto, a própria autora afirma que o emprego da palavra consciência e de seus derivados não conduz necessariamente à reflexão da problemática socioambiental. Carvalho (2001) compreende essas palavras em uma abordagem comportamental de EA, que se coaduna com a psicologia comportamental ou “da consciência”. Nessa 233
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abordagem, o papel da educação é transmitir informações sobre o meio ambiente e, assim, sensibilizar o indivíduo a mudar hábitos e comportamentos considerados predatórios, ou seja, por um processo racional de acesso a informações coerentes e da tomada de consciência, o indivíduo é capaz de desenvolver hábitos e comportamentos tidos como compatíveis com a preservação dos recursos naturais. Complementando a crítica de Carvalho, Tristão (2004, p. 177) esclarece que os termos consciência e conscientização “[...] associam o sujeito a uma intencionalidade subjetiva da consciência”, em que o sujeito aprende pela via única da razão. O sujeito da consciência, senhor de sua vontade, se bem informado acerca de hábitos e atitudes ecologicamente corretos, é capaz de tomar consciência e agir em favor da preservação do meio. No contexto de abordagem comportamental, o corpo não participa do processo de conscientização já que os indivíduos são reduzidos à sua dimensão racional e a aprendizagem é reduzida à mente. Assim, a corporeidade do sujeito que aprende (ASSMAN, 1998) é desconsiderada nos processos cognitivos, reforçando a cisão mente e corpo, dicotomia clássica da ciência moderna. Pelo exposto, a educação reduzida às esferas comportamental e individual pouco se articula à ação coletiva e à problematização das questões socioambientais, não se comunicando com a esfera política de debate e decisões relativas aos bens ambientais. Os valores éticos e estéticos de compreensão do mundo necessários à transformação socioambiental não ocorrem apenas por um convencimento racional sobre a crise ambiental, mas, sobretudo, por meio de sensibilidades solidárias, democráticas e emancipatórias. Tomemos agora, pois, o entendimento de Freire (2001, p. 75-76) acerca do termo consciência:
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A consciência de, a intencionalidade da consciência, não se esgota na racionalidade. A consciência do mundo que implica a consciência de mim no mundo, com ele e com os outros, que implica também a nossa capacidade de perceber o mundo, de compreendê-lo, não se reduz a uma experiência racionalista. É como uma totalidade razão, sentimentos, emoções desejos -, que meu corpo consciente do mundo e de mim capta o mundo a que intenciona (destaques nossos).
A ideia é tomar a conscientização como caminho precioso que nos conduza a uma EA crítica, superando os perigos da consciência ingênua que [...] revela certa simplicidade, tendendo a um simplismo na interpretação dos problemas, isto é, encara um desafio de maneira simplista ou com simplicidade. Não se aprofunda na causalidade do próprio fato. Suas conclusões são apressadas, superficiais (FREIRE, 1981, p.40).
A palavra consciência aparece na narrativa de 23 docentes no que se refere à indagação da importância da EA no Ifes. É também uma categoria que figura entre os educandos do curso. Leiamos as opiniões docentes e também discentes, representativas dessa categoria: Imagine um técnico em manutenção, se ele não tiver essa conscientização que o óleo ou a graxa que ele vai trocar vai prejudicar o ambiente de trabalho dele, ele vai fazer o trabalho relapso. Não é nem por maldade, mas porque ele não tem conhecimento (Educando). Se for hoje fazer uma dinâmica de grupo na Vale, na CST ou em qualquer lugar, eles perguntam sobre a questão ambiental e se não tiver noção você trava porque não consegue dialogar a respeito da exploração de 235
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uma jazida e sobre reflorestamento (Educando). Então, é preciso que o aluno leve essa consciência para a indústria para que ele possa contribuir também para essa preservação. Para essa adequação da tecnologia, do conhecimento em relação à atividade profissional dele, qualquer que seja ela (Professor de Eletricidade).
A abordagem de uma EA crítica num contexto de formação profissional técnica fomenta a criticidade e a autonomia dos educandos que se assumem como sujeitos no mundo num processo de mediação homem/mundo. Com Freire (1980, 2005), podemos entender que a consciência ambiental não se reduz ao acúmulo de informações ecologicamente corretas porque carrega em si não apenas a razão, mas também sensibilidades éticas e estéticas de ser/estar no mundo. A conscientização crítica exige, sobretudo, o questionamento da nossa relação com a natureza. Essa reflexão implica uma postura epistemológica questionadora de uma visão utilitarista e mecanizada da natureza. É possível confirmar a atitude na fala do professor de Gestão. E aí quando a gente faz uma análise sobre a Revolução Industrial, falamos que havia essa total despreocupação histórica [preocupação com o meio ambiente]. Você tinha recursos abundantes. Então, quando você tem essa evolução e essa sofisticação do mundo do trabalho, passa a ter essa preocupação maior. Aqui no plano [de ensino] está Evolução dos Sistemas de Trabalho; não está escrito educação ambiental, porque eu entendo que na minha prática esse é um tema abordado de forma universal, como se fosse o tema Ética. Você não vai ver o tema Ética abordado ali, e tem que falar isso (Professor de Gestão).
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No âmbito da EA, não podemos dissociar o técnico do político-social, sob pena de reduzirmos a práxis educativa à lógica mercantil-privatista. O sentido mais radical de uma EA transformadora vai além de sensibilizar a população para o problema. É preciso que nos conscientizemos de que os problemas socioambientais são complexos e planetários e, por isso mesmo, exigem um engajamento político coletivo, em nível tanto local quanto global.
Ética Em suas últimas obras, notadamente em Pedagogia da Autonomia (1996) e Pedagogia da Indignação (2000), Freire, de modo incisivo, esboça os traços daquilo que nomeou de ética universal: o respeito pelos diferentes saberes; a lealdade; a não discriminação de sexo, gênero, raça, classe, idade, condição social; a consideração da individualidade; o respeito pela diversidade e todas as formas de existências; a valorização da liberdade; as relações de afeto e solidariedade. Quando, porém, falo da ética universal do ser humano estou falando da ética enquanto marca da natureza humana, enquanto algo absolutamente indispensável à convivência humana [...]. Na verdade, falo da ética universal do ser humano da mesma forma como falo de sua vocação ontológica para o ser mais [...] (FREIRE, 1996, p.18).
Articulando o pensamento freireano ao de Grün (2007), reafirmamos que a busca por uma ética de parceria com a natureza em EA não aceita a concepção da natureza como simples objeto de exploração, mas a concebe numa relação de outridade – o outro com quem convivemos. O que se propõe numa ética de parceria é uma simbiose em que os elementos se relacionam num regime de integração 237
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e solidariedade, opondo-se à visão mecanicista e dicotômica de natureza e sociedade. Em um contexto social hegemonizado pelo mercado, os objetivos da EA tendem a ser desviados para uma abordagem pragmatista. Quando há a imposição dos valores econômicos sobre os demais princípios e valores, a dimensão técnico-natural do desenvolvimento sustentável se legitima, acirrando ainda mais as desigualdades sociais. Daí a importância da inclusão da ética da solidariedade ou da parceria nas práticas ambientais: a substituição da ética antropocêntrica por uma mais global faz surgir a perspectiva biocêntrica. A busca por uma ética parceira da EA desloca o antropocentrismo, o individualismo e os determinismos da ciência e da tecnologia de seus territórios consolidados. A ética é o fundamento das sensibilidades ecológicas e dos valores emancipatórios que sustentam as práticas educativas ambientalmente sustentáveis, pois favorece a religação do homem ao seu entorno e ao seu semelhante. Como bem sintetizou um professor, “a nossa sobrevivência está muito voltada à parte ambiental” (Professor de Torno). Além deste: Ele [o educando] tem que aprender que você tem que manter o ambiente saudável. Não só a família dele, mas o ambiente dos próximos, como filhos, netos... Ele tem que manter um ambiente bom (Professor de Solda). Mineração, por exemplo, é uma indústria importante e é uma indústria que agride o meio ambiente e às vezes vai embora. Ela vira as costas e os problemas atravessam várias gerações (Professor de Segurança).
A ética solidária exige uma postura de alteridade para com a natureza. A sociedade e a natureza não podem mais ser pensadas como dimensões separadas ou autônomas, mas intrinsecamente relacionadas. Trata-se, como afirma 238
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Carvalho (2006), de um “aprendizado no qual estaria em jogo a humanização das relações com a natureza e a ‘ecologização’ das relações sociais” (p. 141).
Prática dialógica A teoria da ação dialógica supõe a conscientização da realidade para combater o naturalismo que afirma uma história linear e mecânica, pela qual nada se pode fazer nem intervir. A dialogicidade põe o ser humano como fazedor da própria história. Implica a convicção de que a mudança é possível e necessária para a transformação das inúmeras desigualdades que nos cercam. Também nas práticas dialógicas, as dificuldades e os conflitos que emergem das situações são resolvidos por argumentos, e não por relações de opressão. Portanto, os diálogos que envolvem as crises socioambientais buscam pelo entendimento e reflexões sobre as ações e os conhecimentos para resolver as situações cotidianas desafiadoras. O currículo crítico, forjado por meio de um diálogo problematizador, busca o potencial libertador nas brechas das contradições e das resistências. Nesse contexto, há de se primar pelo diálogo entre saberes e sujeitos num sentimento de ligação do que está disjunto. A educação ambiental está norteando hoje toda a área da tecnologia. Então, na realidade, não só pela questão da tecnologia, mas também pela questão do planeta, da terra que estamos vivendo, das condições de saúde do trabalhador, do meio ambiente (Professor de Manutenção). Você não pode mais dissociar, separar meio ambiente, qualidade e segurança da sua produção. É uma coisa integrada. Não existe a possibilidade de dar certo se não for associado. Tem que ser integrado. Faz parte do processo (Professor de Segurança, Meio Ambiente e Saúde).
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A percepção da conexão entre diferentes saberes amplia as redes de saberes e fazeres em EA e alimenta o movimento de diálogo entre os sujeitos e entre as disciplinas curriculares. O sentimento dos docentes do curso é que realmente haja o movimento interdisciplinar entre os conhecimentos da área de mecânica e até entre cursos. Dentro das ementas do curso se, de repente, colocassem um tema que perpassasse por todas as disciplinas, seria uma forma interessante de se falar. Para não ficar aquela coisa maçante de uma única disciplina tratando desse tema. Todos os Laboratórios aqui do Ifes, todos, até mesmo a parte de usinagem, solda, têm alguma coisa que pode ser levada em consideração e pode ser tratada dentro das disciplinas (Professor de Caldeiraria). Embora sejamos um grupo de cursos, não há uma integração dos cursos, uma integração interdisciplinar. [...] Deveria haver uma interdisciplinaridade mais efetiva para que esses ambientes estivessem mais presentes nessa formação técnica e social do aluno (Professor de Máquinas Térmicas).
É válido destacar que, entre os princípios metodológicos da pedagogia de Freire que corroboram a dialogicidade das questões socioambientais, são centrais os temas gerados em torno de questões concretas dos sujeitos envolvidos, local e globalmente, problematizando o atual padrão de vida civilizatório, a ideologia dominante, as situações-limite e construindo premissas para uma sociedade sustentável e solidária – no horizonte do inédito-viável. No curso pesquisado, o diálogo em torno das questões socioambientais se desenrola em torno da ciência, técnica, tecnologia e das demandas empresariais. Nesse sentido, aposta-se no diálogo libertador, crítico, das relações desiguais que se desenrolam no contexto excludente da globalização hegemônica. 240
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Utopia No contexto de problematização da realidade, vislumbra-se outra expressão freireana - a de situações-limite. São situações desafiadoras, mas não obstáculos insuperáveis, que se manifestam codificadas por contradições existenciais “naturalizadas” que precisam ser decodificadas por meio de discussões, tomadas de decisões, ideias, enfim, diálogo, um dos pilares da teoria de Freire. Em Pedagogia do Oprimido (2005, p. 108), Freire elucida a necessidade de superação das situações-limite: [...] os temas se encontram encobertos pelas ‘situações -limites’, que se apresentam aos homens como se fossem determinantes históricas, esmagadoras, em face das quais não lhes cabe outra alternativa, senão adaptar-se. Desta forma, os homens não chegam a transcender as ‘situações-limites’ e a descobrir ou a divisar, mais além delas e em relação com elas, o ‘inédito viável’.
Freire denomina as ações necessárias para romper as situações-limite, de “atos-limites”. Os homens dirigem-se, então, à superação e à negação do dado, da aceitação dócil e passiva do que está aí, implicando dessa forma uma postura decidida ante o mundo. Por meio dessa postura, o homem acredita em algo inédito, ainda não conhecido e vivido, mas sonhado pelos que pensam utopicamente naquilo que é possível tornar a ser, antes inviável de ser concretizado. O inédito viável leva-nos à crença de que não há um reino do definitivo, do pronto e do acabado e, por isso mesmo, configura-se permanentemente como um devenir de possibilidades quando agimos em direção à concretização dos sonhos possíveis. O inédito viável aposta nos sonhos e na utopia por melhores condições existenciais e na transformação do mundo e dos seres humanos. A utopia fortalece a práxis 241
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transformadora diante das desigualdades sociais, do desequilíbrio ambiental, da insustentabilidade planetária e da lógica mercantilista e privatista. “[...] o utópico não é o irrealizável; a utopia não é o idealismo, é a dialetização dos atos de denunciar e anunciar, a ato de denunciar a estrutura desumanizante e de anunciar a estrutura humanizante” (FREIRE, 1980, p. 27). A utopia, o inédito viável e os tantos sonhos possíveis não se realizarão sem a denúncia da realidade injusta e o anúncio de um mundo melhor: [...] uma das bonitezas do anúncio profético está em que não anuncia o que virá necessariamente, mas o que pode vir, ou não. Na real profecia, o futuro não é inexorável, é problemático. Há diferentes possibilidades de futuro [...] contra qualquer tipo de fatalismo, o discurso profético insiste no direito que tem o ser humano de comparecer à História não apenas como seu objeto, mas também como sujeito. O ser humano é, naturalmente, um ser da intervenção no mundo à razão de que faz a História. Nela, por isso mesmo, deve deixar as suas marcas de sujeito e não pegadas de puro objeto (FREIRE, 2000, p.119).
As utopias que sustentam as redes ambientais cotidianas problematizam a racionalidade moderna e anunciam sensibilidades mais éticas e estéticas de ser/estar no mundo. Assim, há de tornar críveis os pensamentos, discursos e as práticas cotidianos, individuais ou coletivos, comprometidos com formas de vidas mais dignas e prudentes. Como bem argumenta o professor, autor da primeira citação, a EA não é algo descolado da vida; mas é conhecimento do mundo, por meio da qual projetamos um futuro melhor. Eu espero que ele [o aluno] entenda a questão ambiental não sendo uma coisa regrada e simplesmente impos242
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ta. E que não é um conhecimento apenas de Escola, é um conhecimento de mundo, é um conhecimento de necessidade da humanidade. E que ele aplique, exija, faça a sua parte (Professor de Pneumática). Que ele [o aluno] tenha uma condição de trabalho melhor, que ele possa proteger o meio ambiente com as suas ações. Não esperar que o outro faça (Professor de Manutenção). [...] Nenhum educador tem a sua prática neutra, ele se posiciona de certa forma. A gente pensa que embasar uma prática pedagógica pela educação ambiental é você defender um planeta melhor para as futuras gerações, é você ter uma preocupação com o futuro do planeta, não só para o presente, mas também para o tempo futuro (Professor de Gestão).
A crença desses três professores traduz a esperança por alternativas de futuros mais sustentáveis e a confiança no potencial transformador do ser humano. São discursos elucidativos dos demais discursos e práticas do professorado, os quais, por estarem comprometidos com uma concepção libertadora de educação, são também vetores de energias utópicas. E para concluir esta breve análise reflexiva, apostamos na crença freireana de que, “na verdade, a educação precisa tanto da formação técnica, científica e profissional quanto do sonho e da utopia” (FREIRE, 2001, p. 29).
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Notas Doutora do Programa de Pós-graduação Educação: Currículo, PUC-SP. Mestre em Pedagogia Profissional - ISPEPT, Cuba. Revalidação pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora do Instituto Federal de Educação Tecnológica do Espírito Santo. E-mail: mariluza@ifes.edu.br. 1
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Pela recorrência do termo Educação Ambiental, optamos por utilizar a
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abreviatura EA, ao longo do artigo. 3 No esforço de matematização, verificamos que a gestão ambiental aparece em 35 citações de falas, obtidas por meio das entrevistas. Outras preocupações não menos significativas, enredadas nos processos de gestão ou Educação Ambiental, também aparecem nas respostas das entrevistas. São elas: segurança e saúde do trabalhador (14); organização e limpeza do ambiente escolar ou da empresa (9); redução do consumo (8); melhor relação e respeito com o meio ambiente (7); sustentabilidade (5); escassez de bens naturais (4); poluição (4); fontes alternativas de energia (3); respeito ao próximo (3); conservação e preservação (2). 4 A Educação para a Gestão Ambiental foi formulada em âmbito governamental no Brasil por José da Silva Quintas e Maria José Gualda (1995), educadores da Divisão de Educação Ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). O que deve ser destacado não é propriamente um novo termo, mas os processos de mediação de conflitos e interesses individuais e coletivos, por vezes, antagônicos, que se desenrolam na apropriação dos bens ambientais. 5 Assumimos essa forma de escrita com Alves (2002), Garcia (2002), Ferraço (2001) e outros pesquisadores do cotidiano que, ao enfatizarem as redes de conhecimento ou de saberes e fazeres, se aproximam da ideia de “tecer tudo junto”, sinalizando que os processos de aprendizagens são enredados, heterogêneos, múltiplos. É uma tentativa também de expressar novos modos de pensar e fazer, diferentes da fragmentação herdada da racionalidade modernidade.
As categorias foram selecionadas com base nas entrevistas com os professores e nos grupos focais com educandos do curso de Mecânica, isto é, dos discursos e práticas por eles potencializados. Os conceitos de libertação, autonomia, criticidade, emancipação e democratização, centrais nas obras freireanas, perpassam as categorias elencadas e são apresentadas ao longo de todo o artigo. 6
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Diálogos possíveis: Paulo Freire em diferentes áreas do conhecimento – a construção de um teatro dialógico Alexandre Saul 1 Fernanda Quatorze Voltas2
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negáveis são as contribuições de Paulo Freire para os debates que se desenvolvem no quadro da Educação Crítica. Em suas pesquisas, Ana Maria Saul e Antônio Gouvêa da Silva (2012) destacam a ampliação de trabalhos em diferentes áreas do conhecimento, inspirados no legado freireano nas duas últimas décadas e, no presente, como uma das evidências da atualidade do pensamento desse educador:
A ampliação de centros de pesquisa criados ao redor do mundo para estudar e recriar o legado freireano, a crescente publicação de suas obras em mais de vinte idiomas e as experiências teórico-práticas que se desenvolvem, a partir de referenciais freireanos, em diferentes áreas do conhecimento, indicam a atualidade e a vitalidade do pensamento desse autor. Na área acadêmica, a produção bibliográfica dos últimos vinte anos sobre, e, a partir da obra de Paulo Freire, tem aumentado consideravelmente. Tal fato denota grande interesse em pesquisar o pensamento desse autor, quer para compreendê-lo, quer para investigar as múltiplas possibilidades de seu legado para 247
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a construção e reconstrução da práxis, na perspectiva crítico-emancipatória (p. 9-10).
O presente texto propõe-se a apresentar um mapeamento no qual a matriz freireana se apresenta como fonte de referência para teses e dissertações, em diferentes áreas do conhecimento, em sua interface com a Educação. E, para concretizar essa possibilidade, tem o propósito de demonstrar, a partir dos resultados de uma pesquisa realizada em nível de Mestrado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) (SAUL, 2011), como a proposta de educação de Paulo Freire inspirou a criação de uma prática teatral dialógica, crítica e emancipadora, na escola.
1. Repercussões do pensamento de Paulo Freire em diferentes áreas do conhecimento Streck et al. (2008) destacam a fecundidade do pensamento pedagógico freireano, sempre aberto à diversidade cultural e aos novos desafios do tempo histórico para a inspiração de práticas alternativas, inovadoras e comprometidas com a humanização. Para esse autor, a matriz freireana mostra-se adequada para todos aqueles que buscam caminhos e fundamentos para um trabalho de reconstrução do real, a favor dos oprimidos: Paulo Freire nos ensinou a ler o mundo, hoje devemos buscar novas formas de expressá-lo, em inúmeras linguagens, tais como: a poesia, as artes dramáticas, a ciência e a tecnologia, a filosofia, a teologia, a mímica, o lúdico, a expressão corporal, a cidadania, a participação política, o grito de libertação nas ruas, enfim, tudo o que manifesta nossa vontade de ser mais e construir um mundo mais humanizado (STRECK; ZITKOSKI; REDIN, 2008, p. 25-26). 248
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A pesquisa Paulo Freire na Atualidade: Legado e Reinvenção3, apresentada no texto de A. M. Saul e Silva (2011), aponta dados importantes que evidenciam como o pensamento de Freire vem sendo reinventado em diferentes áreas do conhecimento: No período 1987-2010, estão registradas [no portal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes/MEC] 1.441 trabalhos [1.153 Dissertações e 288 Teses] que utilizaram o referencial freireano em diferentes áreas de conhecimento. Essas pesquisas estão distribuídas nas seguintes grandes áreas do conhecimento: 1.080 produções (75%) estão na área de Humanas; nas Exatas, encontram-se 87 trabalhos (6%) e, na área das Ciências Biológicas, localizam-se 274 pesquisas, equivalendo a 19% da produção (p. 5).
Instigados por esses achados, os autores do presente texto se propuseram a explorar possíveis repercussões do pensamento de Paulo Freire nas pesquisas desenvolvidas em múltiplos campos de estudo que extrapolam a Educação. Para tanto, procedeu-se à busca de dissertações e teses registradas no portal Capes/MEC4 que continham em seus resumos o termo exato “Paulo Freire”. No período 2011-20125, foi possível localizar 363 pesquisas que correspondiam a esse perfil, ou seja, que traziam tal expressão em seus títulos, resumos e/ou palavraschave. Desse total, 135 foram selecionadas para análise por não se vincularem diretamente à area da Educação. De acordo com a subárea do conhecimento à qual pertenciam, sua distribuição deu-se da seguinte forma: Enfermagem (30); Teologia (13); Letras (12); Sociais e Humanidades (10); Saúde e Biológicas (6); Sociologia (6); Comunicação (5); Psicologia (5); Direito (4); Geografia (4); Música (4); Saúde coletiva (4); Saúde pública (4); Serviço social (3); Administração (2); 249
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Artes (2); Ciências ambientais (2); Engenharia/Tecnologia/ Gestão (2); Química (2); Sociologia do desenvolvimento (2); Arquitetura e urbanismo (1); Dança (1); Direito público (1); Enfermagem de saúde pública (1); Extensão rural (1); Geografia Regional (1); Linguística (1); Literatura Brasileira (1); Nutrição (1); Odontologia (1); Pediatria (1); Teatro (1); Tratamento e prevenção psicológica (1). De posse desse levantamento, os pesquisadores iniciaram a leitura dos 135 resumos selecionados. Tal atividade possibilitou a apreensão dos variados temas aos quais o referencial freireano tem sido relacionado nas pesquisas, bem como dos principais resultados nelas anunciados. O Quadro 1 sintetiza os resultados da análise desses resumos. A análise do material permitiu apreender os principais conceitos de Paulo Freire utilizados nessas pesquisas. Esses conceitos estavam assim distribuídos: diálogo (17%), problematização (8%), pensamento crítico (7%), participação (4%), autonomia (4%), libertação (4%), seleção de conteúdo programático (3%), identidade cultural (3%), saber de experiência feito (3%), conscientização (3%), outros (44%). No conjunto, os autores buscaram respeitar as especificações utilizadas pelos pesquisadores na categorização dos principais temas e conceitos freireanos utilizados nas pesquisas. No entanto, nos casos em que os conceitos e temas não foram explicitados, após cuidadosa releitura dos resumos, as especificações foram inferidas pelos autores da análise. Nesse exercício, buscou-se manter a coerência com as intenções e o contexto da pesquisa, e com os princípios e categorias da pedagogia freireana.
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Quadro 1- Resultados da análise dos resumos Principais temáticas encontradas
Resultados anunciados nas pesquisas
(Ciências biológicas): Formação de profissionais que trabalham com a saúde da família
Tomada de consciência sobre a realidade e identificação de temáticas significativas
(Sociologia): Participação popular na elaboração do orçamento participativo do município e discussões étnico-raciais na universidade
Ampliação da consciência crítica, da participação e da autonomia dos sujeitos envolvidos
(Jornalismo): Produção de jornais e fanzines populares
Empoderamento de grupos populares
(Direito): Produção de conteúdo para uma rádio comunitária; direito de conhecer o Direito e construção de direitos da mulher
Fortalecimento de identidades culturais e de culturas locais
(Saúde pública): Estudos de campanhas de combate à dengue e de adesão ou não ao tratamento da tuberculose
Ampliação de direitos e da cidadania de grupos populares
(Teatro): Ampliação das possibilidades críticas de leitura do mundo
Desconstrução de culturas de silêncio e de medo; a construção de relações dialógicas e solidárias
(Engenharia): Possibilidades de mediação entre o “saber de experiência feito” e o conhecimento sistematizado; construção de software para auxiliar na alfabetização de adultos
Construção de conhecimento significativo
(Literatura): Matriz analítica para compreender a educação em diferentes períodos sócio-históricos
Potencialização de aspectos do desenvolvimento humano
(Nutrição/Pediatria): Promoção e apoio da amamentação
Compreensão e superação de causas de sofrimento humano
(Psicologia): Compreensão crítica de questões que atravessam o cotidiano, contribuindo para elaboração e superação do sofrimento humano
Superação de situações de “educação bancária” e o fortalecimento da luta contra a opressão
Fonte: Elaboração própria
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É preciso salientar que a presença desses conceitos nos resumos revela a influência da matriz de pensamento freireana nos trabalhos, porém, uma investigação acerca das formas como esses conceitos foram utilizados nas pesquisas, requer um estudo aprofundado dos textos, na íntegra, o que não foi objeto deste trabalho. A análise dos documentos acessados, no entanto, permitiu identificar alguns limites teórico-práticos em relação ao trabalho com o referencial freireano. Em alguns resumos, foi possível detectar indícios de redução da pedagogia de Paulo Freire a um método ou técnica. Em outros, chamou a atenção o pluralismo e a inconsistência na montagem do referencial teórico das pesquisas nas quais o pensamento de Freire foi utilizado junto a autores que lhe são antagônicos, sem que os autores apresentassem a devida crítica. Foram evidenciadas, também, interpretações equivocadas da proposta político-pedagógica de Freire e, em particular, de alguns dos conceitos trabalhados em sua obra. Isso significou, em alguns casos, assumir a proposta de Paulo Freire de forma ingênua e mecânica, como alavanca de mudança social. Ou, paradoxalmente, como referência de pesquisas que não indicavam compromisso ético-político com a transformação da realidade. Constatou-se, também, que alguns resumos anunciaram a utilização de conceitos freireanos para a análise dos dados, mas tal intenção parece ter sido abandonada pelo pesquisador. Em síntese, a análise das temáticas e dos principais resultados, anunciados nos resumos, permitiu concluir que as pesquisas desenvolvidas nas diferentes áreas do conhecimento têm buscado interlocução com a pedagogia freireana, percebendo-a como processo instituinte de ações transformadoras. Isso pode indicar que o conservadorismo de algumas abordagens e metodologias de pesquisa, susten252
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tadas em racionalidades técnico-instrumentalizadoras, presente em variados campos científicos, não está respondendo aos desafios e tarefas da realidade contemporânea. Os achados iniciais deste estudo são importantes e acrescem evidências às investigações realizadas no âmbito da pesquisa Paulo Freire na Atualidade: Legado e Reinvenção. Porém, é necessário reconhecer que o trabalho de levantamento de informações por meio de resumos apresenta algumas limitações. Uma das dificuldades encontradas foi a variedade de formatos de apresentação dos resumos analisados que, por vezes, obstaculizou a categorização e a análise dos conteúdos. Alguns textos apresentaram-se extremamente sucintos, com pouca clareza, ou ainda, incompletos, faltando-lhes informações essenciais, tais como, objetivo(s), referencial teórico, metodologia e resultados. Essa análise preliminar dos resumos das dissertações e teses constitui-se em ponto de partida para futuras investigações sendo necessário, portanto, avançar e investir em pesquisas mais aprofundadas que possibilitem investigar a íntegra das dissertações e teses e realizar uma análise crítica e criteriosa dos conhecimentos produzidos por pesquisadores que tomam o pensamento de Paulo Freire como referência. O desenvolvimento de pesquisas, nessa direção, pode se revelar importante, tendo em vista sua potencialidade de subsidiar práticas e políticas públicas, que compartilhem o horizonte humanizador proposto pela Pedagogia Freireana.
2. A construção de uma prática teatral dialógica inspirada em Paulo Freire Com o objetivo de demonstrar a possibilidade de se trabalhar com o referencial freireano, em interface com diferentes áreas do conhecimento, será apresentada a pesquisa Prática Teatral Dialógica: Uma Experiência na Escola, com Jovens e Adultos, defendida por Alexandre Saul, em 2011, 253
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no Programa de Pós-graduação Educação: Currículo, da PUC-SP, sob a orientação do prof. Dr. Mário Sérgio Cortella. A referida pesquisa orientou-se pela seguinte questão: “Como o teatro pode se constituir em uma prática artístico-educativa que estimule a reflexão crítica, com a intenção de que uma comunidade escolar possa compreender cada vez melhor suas situações-limites6, e se mobilizar para superá-las?”. Diante desse problema de investigação, o autor trabalhou com as ideias centrais do pensamento freireano no que se refere à construção de conhecimento e a uma prática emancipatória, articuladas a um fazer teatral, com a intenção de codificar e debater, com uma comunidade escolar da cidade de São Paulo, as situações-limites por ela vivenciadas em seu próprio ambiente. Por compartilhar dos pressupostos da educação dialógica proposta por Freire, na qual o diálogo é uma categoria fundante, e assumir o diálogo como método de trabalho, a prática teatral desenvolvida na pesquisa, foi nomeada de “teatro dialógico”. Essa expressão carrega em si o entendimento de que um fazer teatral pode se constituir em um espaço/tempo democrático - onde as pessoas possam dialogar e deliberar sobre sua história. O teatro dialógico é, portanto, uma reunião pública e um ato intrinsecamente político, um lócus fecundo para encontrar, para ver, ouvir e “dizer a sua palavra”; uma forma de construir conhecimento e desenvolver a consciência comunitária. Destaca-se, aqui, a expressão dizer a sua palavra que, no teatro dialógico, tem um sentido especial, que está muito além da reprodução falada de textos teatrais. Esse sentido aproxima-se daquele explicitado por Freire (1981, p. 129), em Ação Cultural para a Liberdade: Dizer sua palavra, [...], não é apenas dizer “bom-dia” ou seguir as prescrições dos que, com seu poder, coman254
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dam e exploraram. Dizer a palavra é fazer história e por ela ser feito e refeito. As classes dominadas, silenciosas e esmagadas, só dizem sua palavra quando, tomando a história em suas mãos, desmontam o sistema opressor que as destrói. É na práxis revolucionária, com uma liderança vigilante e crítica, que as classes dominadas aprendem a “pronunciar” seu mundo, descobrindo, assim, as verdadeiras razões de seu silêncio anterior.
A partir dessa concepção, foram apresentados pelo pesquisador alguns pontos centrais que deveriam servir de base para propostas de desenvolvimento de práticas teatrais dialógicas. Dentre eles, destacam-se: a) A prática teatral dialógica procura promover ativamente o estabelecimento de uma relação horizontal entre os sujeitos porque pressupõe que todos sabem alguma coisa, saberes críticos ou não. É justamente essa condição que permite a construção de novos conhecimentos em diálogo, contextualizados pelo momento histórico e com intencionalidade política; b) Em uma prática teatral dialógica, na escola, o diálogo entre os atores e a comunidade escolar deve marcar os momentos de concepção, construção, apresentação e pós-apresentação de espetáculos teatrais, podendo constituir-se, assim, em caminho para investigação e aprendizado de diferentes contextos sociais e condições humanas, trabalhando-se com os saberes de todos os envolvidos. Uma prática com essas características permite que a comunidade possa criar e vivenciar outras lógicas construtoras de sentidos, diferentes daquelas mais comuns na vida cotidiana que expressam posições autoritárias comprometidas com os interesses das classes dominantes; c) O teatro dialógico pode se constituir em uma ação cultural que se estende para além da estrita construção e apresentação de espetáculos teatrais. Isso significa que, 255
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em torno dele e a partir dele, podem ser desencadeadas ações agregadoras de uma comunidade com a intenção de refletir sobre a realidade na perspectiva de transformá-la. Essas ações agregadoras podem envolver o debate crítico e a experimentação prática – por meio de jogos teatrais, sobre temas importantes para a comunidade, que emergem de situações-limites. Tais temas devem ser analisados no bojo de um quadro conceitual mais amplo, no qual se inserem a cultura, as relações de poder, o mundo do trabalho, a estética, a política, a moral e a ética.
3. Caminhos para um teatro dialógico A pesquisa foi desenvolvida no Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos (CIEJA) Mandaqui, que a partir de 2010, passou a se chamar CIEJA Santana/Tucuruvi, por determinação da Diretoria Regional de Ensino (DRE) Jaçanã/Tremembé, responsável por essa unidade, localizada no bairro Parque Mandaqui e envolveu o grupo teatral Arte Tangível7, do qual os autores fazem parte. Com inspiração no caminho para o desenvolvimento de um trabalho educativo com a comunidade, apresentado por Paulo Freire (1970) no capítulo três da Pedagogia do Oprimido8, foram propostos os seguintes momentos para o planejamento e a execução das ações do grupo teatral: – Encontros com a comunidade escolar para debates sobre situações da realidade dessa comunidade que se articulavam com as histórias da peça Macbeth9, de Shakespeare, para levantamento de temas significativos; – Análise, pelo grupo de teatro, dos registros dos debates com a comunidade, para identificação de situações-limites e temas geradores para a seleção de falas significativas dos participantes, com vistas a integrar o roteiro da encenação teatral;
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– Preparação do roteiro de um espetáculo teatral com codificação das situações-limites e temas geradores registrados nos encontros; – Criação e ensaio do espetáculo teatral com o grupo de atores; – Preparação de encontros mensais com a comunidade escolar para prosseguir o diálogo sobre a temática levantada e discutir o desenvolvimento do trabalho artístico-teatral; – Encenação da peça que combinava a história original de Shakespeare e situações-limites expressas pelos educandos nos encontros; – Realização de debates após a apresentação da peça, para refletir criticamente sobre caminhos e ações possíveis para a transformação de aspectos da vida cotidiana da comunidade, a partir das situações codificadas no espetáculo. A seguir, serão sintetizados os procedimentos utilizados em cada um dos sete momentos. 3.1 Primeiros encontros com os educandos Em 2009, foram realizados os primeiros quatro encontros, em noites consecutivas, com cerca de 20 educandos, convidados pelos gestores do CIEJA que lhes fizeram breve apresentação da proposta da pesquisa. Esses encontros tiveram seu formato inspirado nos Círculos de Investigação Temática, como propostos por Paulo Freire, nos quais os educandos dialogavam sobre a sua realidade concreta, sobre seus temas de interesse e a partir de suas experiências. Esses Círculos tiveram o objetivo de investigar a temática significativa da comunidade. 3.2 Análise dos debates com os educandos para criação de um espetáculo teatral Nesse segundo momento, o grupo Arte Tangível realizou uma análise dos relatos registrados nos debates, 257
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refletindo criticamente sobre eles e identificando as situações-limites e os temas geradores que poderiam ser codificados no espetáculo “Macbeth de Oió”10 e trabalhados nos encontros seguintes com os educandos. A partir de então, foi sendo criado o roteiro do espetáculo, integrando a história original de Macbeth e falas dos educandos que pudessem estimular, em debates pós-espetáculo, discussões sobre as causas de algumas das situações-limites da comunidade escolar e possíveis soluções para elas. Na sequência, procedeu-se à criação do espetáculo e ensaios realizados pelo grupo teatral. 3.3 Encontros teatrais pedagógicos Os encontros mensais com a comunidade, conduzidos pelos integrantes do grupo Arte Tangível, foram chamados de “Encontros Teatrais Pedagógicos” e receberam, em média, 35 participantes. Inspirados nos Círculos de Cultura, tais encontros foram assim chamados porque contiveram, ao mesmo tempo, momentos de prática teatral e exercícios de construção crítica de conhecimento. Neles, a prática teatral deu-se por meio de jogos teatrais, realizados com todos os participantes. Esses jogos trabalharam categorias importantes do fazer artístico-teatral, como: ritmo, conhecimento corporal, desenvolvimento dos sentidos orgânicos e emoções, ao mesmo tempo em que sugeriam metáforas sobre a realidade cotidiana. Nos debates realizados com os participantes, logo após a experiência com os jogos teatrais, os educandos foram ouvidos e se estimulou a discussão sobre temas candentes que emergiram da prática. Os encontros teatrais pedagógicos, em número de sete, ocorreram nos dois semestres de 2010 e no primeiro semestre de 2011, com participantes oriundos de diferentes turmas. Tais encontros aconteceram na última terça-feira do
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mês, durante o período letivo e contaram com o total apoio dos gestores do CIEJA. A partir de 2011, em conjunto com o coordenador pedagógico, contando com a anuência da professora, e de uma das turmas do CIEJA, o encontro passou a ser realizado sempre com essa turma, com o objetivo de aprofundar os debates e a experiência com os jogos teatrais. 3.4 Apresentação de espetáculos teatrais na escola Desde o início da pesquisa, foram apresentados, pelo Arte Tangível, no CIEJA Santana/Tucuruvi, a peça “Sobre Sonhos e Esperança”11 e, também, os três primeiros atos – ainda em fase de construção – do espetáculo “Macbeth de Oió”. O objetivo de apresentar parte da peça “Macbeth de Oió”, ainda inconclusa, foi abrir o processo criativo da companhia para a comunidade, com a intenção de debater, não só os temas da peça, mas também as propostas estéticas e as condições de produção teatral na cidade de São Paulo. 3.5 Debates pós-espetáculo O debate com espectadores, no contexto da proposta do grupo Arte Tangível e da pesquisa desenvolvida na escola, tiveram uma importância fundamental. Nos debates, foi possível alongar o diálogo com o público, diálogo esse que começou com a escolha da temática e do espetáculo a ser encenado, passou pelos momentos em que a peça foi sendo construída, pela apresentação, e culminou com o direito de cada um dizer a sua palavra. Tais momentos se mostraram como um exercício excelente de escuta, tolerância, alegria, amorosidade, crítica, respeito e construção de conhecimento. Os debates pós-espetáculo foram momentos de descodificação dos temas apresentados na peça e também serviram ao propósito de identificar novas situações-limites e temas geradores dessa comunidade, no momento histórico que atravessavam. 259
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4. Evidenciando os referenciais freireanos na prática teatral dialógica Os momentos do fazer artístico-educativo, referidos na investigação, guardaram relação com as fases do caminho metodológico da educação problematizadora proposta por Freire, desde os seus primeiros escritos, para um trabalho de conscientização e consequente alfabetização. Essas fases incluem a investigação de palavras e temas geradores, a busca dos núcleos fundamentais dos temas em um processo de “redução” temática e a sua codificação/descodificação. Pode-se dizer que as características de cada uma dessas fases se interpenetraram e puderam ser encontradas em diferentes momentos do trabalho artístico-educativo desenvolvido nessa escola. Embora não seja adequado estabelecer uma relação unívoca entre as fases da proposta freireana e os momentos da construção do teatro dialógico, a relação estabelecida entre as fases e os momentos, é uma questão de ênfase. Isso porque, em um mesmo momento, as características de diferentes fases da proposta de Freire estiveram presentes. Assim, a investigação temática teve ênfase no planejamento das ações do grupo teatral em conjunto com a coordenação e a direção da escola, na participação em atividades da escola e nos Encontros Teatrais Pedagógicos (em especial, nos primeiros encontros com a comunidade escolar). A busca pelos núcleos fundamentais dos temas geradores permeou todo o planejamento das atividades do grupo teatral. A codificação/descodificação figurou no planejamento das atividades do grupo teatral, nos ensaios e produção das obras teatrais, nos Encontros Teatrais Pedagógicos, nas apresentações públicas de espetáculos, nos debates com espectadores e na avaliação e reflexão sobre as práticas.
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O diálogo freireano foi assumido como um valor essencial e também como fundamento epistemológico para a direção das ações e construção das práticas da pesquisa e, como veremos a seguir, pôde ser evidenciado em diferentes momentos da investigação. 4.1 O diálogo na preparação da prática teatral Desde os primeiros contatos, foi possível observar a disposição do grupo de teatro e da coordenação da escola para o desenvolvimento de um trabalho conjunto a partir das necessidades da escola e da comunidade, integrando essas necessidades em uma atividade concreta, organizada, democrática, alegre e polifônica, no interior da escola. Nos primeiros encontros com educandos do CIEJA Santana/Tucuruvi, onde se buscou levantar, com a comunidade, situações-limites e temas geradores que foram incluídos na prática teatral, já foi possível vivenciar a importância e a dificuldade de construir uma ação dialógica de acordo com os princípios freireanos. Procurou-se fugir de dogmatismos e de posturas autoritárias, buscando, a todo o momento, reunir argumentos convincentes para, no diálogo, estimular um pensamento crítico. Por meio do diálogo entre o grupo teatral e a comunidade, foi possível investigar alguns valores, princípios e ideias para que todos pudessem ensinar e aprender como lidar melhor com os desafios que envolveram os temas debatidos. Uma das riquezas do trabalho com os educandos, a partir de suas situações-limites, foi a possibilidade de estimular o engajamento do grupo na reflexão sobre a situação discutida, sob diferentes ângulos. Isso permitiu gerar conhecimentos sobre os fatores determinantes da situação-limite, sobre a natureza dos fenômenos em questão, suas repercussões e perspectivas de superação.
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4.2 O diálogo nos encontros teatrais pedagógicos O respeito, condição para o diálogo, marcou a preparação e o desenvolvimento dos encontros. Em sintonia com a proposta de Freire, o educando foi reconhecido como sujeito de conhecimento, como alguém capaz de realizar escolhas, na constante construção de sua autonomia. Essa construção, porém, exigiu que todos os envolvidos na pesquisa partilhassem decisões sobre a frequência e viabilidade dos encontros. Nos encontros, houve esforço para garantir a clareza da comunicação, tendo em vista a compreensão das atividades propostas e de suas intencionalidades. Procurou-se estabelecer, com os estudantes, um clima de confiança para o desenvolvimento do diálogo. Isso envolveu acordos sobre a garantia de cuidar das relações, evitando acusações, julgamentos, ridicularização e agressões. Assim, foram exercitadas virtudes como tolerância, humildade e escuta. As expectativas e interesses dos educandos, tais como: gosto por teatro, interesse por novidades, fazer amigos, participar de uma aula diferente, aprender a ler e escrever, a partir das atividades com teatro, foram considerados, nos diálogos, para o encaminhamento e a preparação dos encontros seguintes. Estar atento à voz dos educandos e tomar as suas expectativas e interesses como objetos do diálogo foi também um compromisso que reafirmou a participação e a autonomia, como valores, nessa prática artísticoteatral. Nesse sentido, procurou-se trabalhar sempre a favor do desenvolvimento de uma autonomia que permitisse ao sujeito ir além da mera execução criativa das decisões que outros já tomaram por ele. Os encontros mostraram-se como valiosa oportunidade para ampliar as possibilidades de percepção e questionamento de diferentes aspectos da realidade cotidiana, em um constante processo de busca por explicações e superação das dificuldades da vida. Por guardar, em sua essência, a 262
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ação, o movimento, o teatro é capaz de inspirar também a necessária luta para a transformação. 4.3 O diálogo na apresentação dos espetáculos O diálogo na apresentação dos três atos da peça “Macbeth de Oió”, em ensaio aberto, aconteceu desde a organização do espaço de apresentação. Buscando uma reação à educação bancária, em consonância com as ideias de Freire, houve uma preocupação de dispor o público em um formato de semicírculo ou semiarena, com a intenção de manter a inspiração da proposta de organização dos Círculos de Cultura, dispondo as pessoas em círculo, com os atores, na própria peça, completando o círculo. Conseguese com isso, minimizar a noção de hierarquia entre aqueles que estão no palco e aqueles os que estão na plateia. O debate pós-espetáculo, a partir da codificação teatral, configurou-se na pesquisa como uma proposta educacional relevante para a construção de conhecimento na perspectiva transformadora frente a situações-limites, implicando um ato de criação, que procurou resgatar a visão da totalidade a partir da reflexão sobre as partes. No debate, após a apresentação dos atos da peça teatral, a violência emergiu como tema de discussão com a comunidade escolar. Nessa ocasião, as situações apresentadas permitiram reconhecer elementos das situações de violência vividas e relatadas nos encontros, por membros dessa comunidade, o que possibilitou o distanciamento necessário para uma melhor compreensão da realidade e um entendimento mais amplo da violência, na medida em que foram debatidas as relações de poder, as condições e interações sociais como fatores determinantes desse fenômeno.
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5. Possibilidades e limites de um teatro dialógico, inspirado em referenciais freireanos As análises das evidências colhidas ao longo da aludida investigação demonstraram ser possível construir um teatro dialógico, sobretudo porque a prática realizada guardou similaridade com a proposta de Freire para o desenvolvimento de um trabalho educativo, recriado no contexto de uma ação artística-educativa-crítica, com educandos do CIEJA Santana/Tucuruvi. Os critérios que caracterizam um teatro dialógico: a exigência do diálogo, a construção de um conhecimento crítico, a ampliação das formas de participação, o estímulo ao desenvolvimento de valores importantes para a humanização do ser humano, a ampliação da consciência sobre situações-limites da comunidade e a visualização de possibilidades de superação, puderam ser identificados na trajetória e nos resultados do trabalho. Dentre os resultados, destacou-se o fato de que as atividades realizadas na pesquisa evidenciaram aprendizado e foram momentos de troca de experiências entre todos os participantes. A investigação revelou que os educandos adotaram uma postura curiosa diante do fazer artísticoteatral, disposição para participar e interesse em debater criticamente os temas geradores. Além disso, houve indícios de que os educandos foram capazes de identificar a produção de conhecimento como uma construção histórica, social, econômica e política, no espaço/tempo da pesquisa. Em relação aos limites encontrados na investigação, há que se destacar que um trabalho teatral que buscou abrir espaço na grade curricular, não obstante o acolhimento encontrado nessa escola, não se fez sem dificuldades. A luta contra o tempo se impôs como limite para a preparação dos encontros, para a criação e ensaios do espetáculo e para o desenvolvimento e aprofundamento das discussões nos encontros teatrais pedagógicos. O maior envolvimento 264
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dos professores do CIEJA e das famílias dos educandos colocaram-se como desafios a serem enfrentados. O trabalho de codificação em linguagem teatral mostrou acertos e erros e exigiu constante avaliação e replanejamento das ações, quer na direção de maior clareza, quer de maior congruência com a realidade. Nas considerações finais, o pesquisador alerta para o fato de que o movimento de codificação/descodificação das situações-limites requer tempo. Como ensina Freire, a mudança não acontece de segunda, para terça-feira. Criar as necessárias relações de confiança com a comunidade escolar, estabelecer pactos que permitam ao trabalho avançar diante de diferenças e adversidades, conhecer a política da escola e seu currículo, exige dedicação, trabalho constante e rigoroso. A partir das conclusões da pesquisa, pode-se dizer que, ao trabalhar essencialmente com o ser humano, o teatro abre um campo de possibilidades para a educação transformadora. O contato com um fazer artístico e o impacto que uma obra de arte pode exercer, ampliando o repertório de conhecimento de quem dela se aproxima são, sem dúvida, experiências transformadoras. Essa transformação, todavia, vai além do acréscimo de conhecimento, do extasiar-se. Um teatro dialógico é transformador porque ontologicamente está voltado para o ser mais, isto é, para a atualização de um projeto de vida que permita ao ser humano uma vida plena, com dignidade e justiça social. Um teatro dialógico problematiza, é gerador de relações entre pessoas, descortina o cotidiano, estimula a crítica, permite a conscientização a partir de uma leitura da realidade. Tem como meta central a transformação da opressão em liberdade, por meio da liberdade de expressão. A pesquisa demonstrou a possibilidade de construção de uma prática teatral dialógica na escola, a partir de referenciais freireanos. Evidenciou-se que essa prática tem 265
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potencialidades de gerar um conhecimento transformador e contribuir com os processos de emancipação e conscientização dos sujeitos da escola.
Referências BANDEIRA, Manuel. Nota do tradutor. In: SHAKESPEARE, William. Macbeth. Tradução de Manuel Bandeira. São Paulo: Cosac & Naify, 2009. p. 9-11. FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade: e outros escritos. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. ______. Pedagogia do oprimido. 50. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011. SAUL, Alexandre. Prática teatral dialógica de inspiração freireana: uma experiência na escola, com jovens e adultos. 2011. Dissertação (Mestrado em Educação: Currículo) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 2011. Disponível em: <http://www.sapientia.pucsp.br//tde_busca/arquivo.php?codArquivo=13822>. Acesso em: 1o maio 2014. SAUL, Ana Maria; SILVA, Antonio Fernando Gouvêa da. O pensamento de Paulo Freire em sistemas públicos de ensino: pesquisando o currículo em um mesmo território, sob diferentes olhares. Revista Teias, Rio de Janeiro, v. 13, n. 27, p. 9-26, jan./ abr. 2012. Disponível em: <http://www.periodicos.proped.pro. br/index.php/revistateias/article/viewFile/1137/821>. Acesso em: 1o maio 2014. SAUL, Ana Maria; SILVA, Antonio Fernando Gouvêa da. O pensamento de Paulo Freire no campo de força das políticas de currículo: a democratização da escola. Revista e-Curriculum, São Paulo, v. 7, n. 3, p. 1-24, dez., 2011. Disponível em: <http://rev istas.pucsp.br/index.php/curriculum/article/ view/7597>. Acesso em: 1 maio 2014. STRECK, Danilo; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime José (Orgs.). Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
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Notas 1 Doutorando do Programa de Pós-graduação em Educação: Currículo da PUC-/SP. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). E-mail: asaul@hotmail.com
Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP). E-mail: fernanda14voltas@hotmail.com 2
Pesquisa coordenada pela profa. Dra. Ana Maria Saul, da Cátedra Paulo Freire da PUC-SP, desenvolvida com a participação da Rede Freireana de Pesquisadores. O objetivo central da pesquisa, segundo Saul (2014, p. 1) é: “Investigar a presença de Paulo Freire em espaços públicos de educação na realidade brasileira. A pesquisa vem sendo realizada desde 2010, com apoio do CNPq, por pesquisadores de 14 programas de Pós-graduação em Educação, em 10 estados brasileiros”. 3
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Acesso em: 02 maio 2014.
O recorte da pesquisa foi limitado a esse período pois, em maio de 2014, época da realização do levantamento, o banco de teses da Capes encontrava-se em processo de reformulação, fato que impossibilitou o acesso dos autores às pesquisas produzidas nos anos anteriores a 2011 e posteriores a 2012. 5
6 Tal como na acepção de Paulo Freire, as situações-limites são aqui entendidas como as situações de opressão e autoritarismo, que se constituem em impedimentos para o processo de humanização e libertação dos seres humanos. 7 O grupo Arte Tangível constitui, há 12 anos, um núcleo artístico formado por quatro artistas/pesquisadores que desenvolvem investigações sobre a arte do ator, a estética teatral e o potencial pedagógico e transformador do teatro. As pesquisas do grupo fundamentam a criação de oficinas e espetáculos teatrais que estimulam os artistas e o público a desenvolverem um sensível olhar pensante sobre a realidade, isto é, uma reflexão crítica sobre o mundo e as percepções que dele se tem, evitando separar, nessa reflexão, razão e sensibilidade, ética e estética, teoria e prática. A prática artística e educativa, desenvolvida pelo grupo Arte Tangível, propõe-se a ser participativa e crítica, dinâmica e processual. Isso implica socializar os momentos da produção teatral, buscando problematizar questões críticas junto à comunidade, tais como: tempo de produção das obras teatrais, condições de financiamento das atividades, processos de divisão do trabalho, direitos e deveres, superação das contradições entre o trabalho material e criativo, e outras. Implica, também, trabalhar com temas significativos para a comunidade escolar, que dizem respeito à sua realidade concreta e que passam a impregnar as pesquisas e as práticas do grupo. Com essa proposta, trabalha-se com a hipótese de que a atividade
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Diálogos possíveis: Paulo Freire em diferentes áreas do conhecimento...
teatral, na escola, despertará o interesse da comunidade, envolvendo-a em situações em que podem ser estabelecidas novas relações entre as pessoas, e entre as pessoas e a produção artística, criando novos conhecimentos e sentidos para viver em sociedade. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1970. 8
9 “Macbeth é, senão a mais profunda, a mais sinistra e sanguinária tragédia [de Shakespeare]. (...) A peça é uma sequência de combates e violências, de traições e assassínios, que se sucedem, da primeira à última cena em ritmo precipitado, implacável. (...) Macbeth é, por excelência, a tragédia da ambição.” (BANDEIRA, 2009, p. 9-10). A peça foi utilizada como instrumento de sensibilização da comunidade, como uma forma de provocar os educandos, por meio da problematização, a contar suas próprias histórias, nas quais as temáticas da fábula se engendravam nos cotidianos, explicitando situações-limites, situações existenciais, contraditórias e conflituosas, carregadas de sentimentos e emoções. Nessa peça, estão consignados temas importantes, conflitantes e sempre atuais, porque ligados à essência do ser humano. São exemplos desses temas: amor, amizade, fidelidade, traição, livre arbítrio, destino e limites da violência e da ganância. A peça original funcionou como proposta de codificação porque esses são temas estampados, cotidianamente, nas páginas dos jornais, das revistas, nos programas de televisão e rádio, que conformam um ideário coletivo, embora possam ter interpretações contraditórias. Devido a isso esses temas puderam ser assumidos como significativos também para essa comunidade escolar, com a perspectiva de descodificá-los e recodificá-los em novos encontros e na encenação da adaptação de Macbeth. O roteiro adaptado, construído ao longo do processo, considerou os temas geradores encobertos pelas situações-limites dessa comunidade, seus interesses, suas experiências, sua realidade, orientando a organização da prática teatral-educativa e permitindo novas descodificações mais profundas e cada vez mais críticas.
O título “Macbeth de Oió” faz uma alusão imediata à peça Macbeth, tragédia escrita por William Shakespeare. Porém, a adjetivação dada à personagem Macbeth, referenciando seu local de origem, possibilita pensar que se trata de uma reescritura ou de uma adaptação do texto original. O título anuncia, também, que a adaptação se serviu da mitologia afro-brasileira, mais especificamente dos mitos dos deuses africanos (Orixás) e do Candomblé brasileiro, para recontar a fábula de Shakespeare e remodelar as personagens presentes na obra. Tomando “Oió”, como a cidade de origem da personagem Macbeth, se estabelece uma relação entre Macbeth e Xangô, orixá que teria sido o mais representativo rei dessa cidade. Xangô, um dia, destronou o irmão Ajacá-Dadá, e o exilou como rei de uma pequena e distante cidade. Xangô foi, assim, coroado o quarto rei de Oió, o “obá” da capital de todas as grandes cidades iorubas. Vê-se, assim, que 10
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os temas centrais do texto original de Shakespeare: a sede de poder e a traição entre amigos, também estão fortemente presentes nos mitos africanos de “Oió” e de Xangô, possibilitando a conexão entre esse mundo e o de Macbeth. 11
Espetáculo inspirado na vida e na obra do educador Paulo Freire.
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Referenciais freireanos para a organização do currículo escolar: a experiência de Diadema/SP Patricia Lima Dubeux Abensur1
Introdução
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presente texto, cujo tema é o currículo escolar na perspectiva freireana, é fruto de uma dissertação de mestrado (ABENSUR, 2009) que integrou a pesquisa coletiva nacional intitulada A Presença de Paulo Freire na Educação Brasileira: Análise de Sistemas Públicos de Ensino, a Partir da Década de 90, desenvolvida na Cátedra Paulo Freire do Programa de Pós-graduação em Educação: Currículo da PUC-SP, sob a coordenação da professora Drª Ana Maria Saul. Relata-se a experiência vivida pelas comunidades interna e externa de uma escola de educação infantil e de jovens e adultos (EJA) do Município de Diadema/SP, na construção do seu currículo, com o objetivo de identificar e analisar os princípios e a contribuição da pedagogia freireana a esse processo, a partir da implantação da política curricular proposta pela Secretaria de Educação do Município de Diadema/SP, campo de pesquisa no período de 2006 a 2008. Para alcançar o objetivo proposto neste trabalho, realizou-se um estudo de caso do tipo etnográfico fundamentado nos pressupostos da pesquisa qualitativa. Procedeu-se à organização, análise e interpretação dos dados coletados a partir das observações na escola e no Município de Diadema, das entrevistas, realizadas com as professoras, a coordena270
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dora e vice-coordenadora, e dos documentos institucionais, a fim de obter maior fidelidade com o cotidiano investigado. Traz-se, para o texto, alguns momentos vivenciados na unidade escolar, momentos do cotidiano, de festas, cenas do entorno, de vida, mesmo. Acredita-se que nem tudo o que é percebido por nosso olhar é traduzido em sua plenitude por meio das palavras a seguir descritas, mas esperase que este relato possibilite que o leitor utilize sua imaginação para conhecer e descobrir uma realidade além da que está descrita. Para orientar tanto a coleta como a análise dos dados, foram eleitos quatro eixos temáticos - a construção coletiva; o respeito ao princípio da autonomia na escola; a valorização da unidade teoria-prática; e a formação permanente dos profissionais de ensino - os quais guiaram a reorientação curricular na Gestão Paulo Freire como secretário municipal de Educação em São Paulo (1989-1991). Na sequência do texto, discute-se o conceito de currículo na perspectiva freireana, apresentam-se cada um dos eixos do Movimento de Reorientação Curricular na Gestão Paulo Freire e as revelações do campo investigado.
Currículo: a coerência de um discurso na Gestão Paulo Freire2 Paulo Freire é reconhecido por ter concebido um paradigma no qual defende a educação fundamentada em uma pedagogia humanizadora e libertadora, para que cada pessoa busque permanentemente ser mais, reflita sobre sua realidade e desenvolva uma consciência crítica, numa relação dialógica e ativa, na qual educador e educando tornem-se sujeitos que se educam mutuamente. Na concretização desse novo paradigma de educação, destaca-se a importância do currículo, instrumento organizador da escola, entendido como um processo de inte271
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ração de todas as práticas e reflexões que marcam os processos educativos, os quais têm como ponto de partida o conhecimento cotidiano e as experiências de vida de todos os sujeitos educacionais e objetivam a partilha e construção de um conhecimento elaborado, vislumbrando a emancipação do ser humano e a consequente transformação social. “Na verdade, a compreensão do currículo abarca a vida mesma da escola, o que nela se faz ou não se faz, as relações entre todos e todas as que fazem a escola. Abarca a força da ideologia e sua representação não só enquanto ideias mas como prática concreta” (FREIRE, 2001, p.123). O currículo escolar deve fortalecer a democracia dos saberes e possibilitar, além da informação e do conhecimento científico, a valorização do conhecimento cotidiano (FREIRE, 2001). Torna-se preciso, então, considerar que a construção do currículo deve partir da situação concreta e existencial dos educandos. A vida, o cotidiano, com seus problemas, suas possibilidades, seus limites e seus desafios; a cultura e a tradição, os valores e os princípios necessitam compor o currículo da escola, deixando explícitos os seus caráteres político, histórico e cultural. Segundo Freire (1994, p. 35), [...] de modo geral, a escola autoritária e elitista que aí está não leva em consideração, na organização curricular e na maneira como trata os conteúdos programáticos, os saberes que vêm se gerando na cotidianidade dramática das classes sociais submetidas e exploradas.
Em consonância com o seu novo paradigma educacional, Freire propõe um currículo flexível, não padronizado. Um currículo organizado a partir da seleção de temas socialmente relevantes para os educandos. Elaborado democraticamente, com ênfase na importância da participação 272
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dos educandos, educadores, pais, funcionários e da comunidade do entorno da escola. Durante a sua gestão como secretário de Educação, Freire deu início ao Movimento de Reorientação Curricular3, processo que envolveu a discussão e revisão da prática pedagógica realizada pelas escolas. Teve como pontos de partida a análise e a reflexão, com os educadores, do currículo em ação, do conjunto de decisões e ações desenvolvido no interior da escola, e foi proposta uma mudança de foco na questão curricular. A reorientação curricular da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, na Gestão Paulo Freire, procurou modificar os tradicionais conceitos de conhecimento e envolver o educador no repensar da prática curricular (FREIRE, 2001, p.123). Exigiu, assim, uma inversão na forma de construir e reformular o currículo e, para isso, seguiu quatro princípios orientadores: A construção coletiva; O respeito ao princípio da autonomia da escola; A valorização da unidade teoria-prática; e A formação permanente dos profissionais de ensino. A “construção coletiva” foi explicitada em amplo processo participativo nas decisões e ações relacionadas ao currículo (SÃO PAULO, 1989, p.2). A iniciativa de construir um currículo democraticamente, em vez de autoritariamente, partiu da concepção de conhecimento construído histórica e coletivamente. Construir conhecimento é característica intrínseca a todo ser humano, independentemente de raça, cor, sexo, ou classe social. Todos nós somos criadores e re-criadores de conhecimento. Juntos, educadores, educandos, funcionários, coordenadores, comunidade, especialistas, e Secretaria de Educação, com o exercício permanente do diálogo e da escuta, concretizam essa prática democrática na construção do currículo escolar. Segundo Freire (2001, p.24),
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[...] a reformulação do currículo não pode ser algo feito, elaborado, pensado por uma dúzia de iluminados cujos resultados finais são encaminhados em forma de ‘pacotes’ para serem executados de acordo ainda com as instruções e guias igualmente elaborados pelos iluminados. A reformulação do currículo é sempre um processo político-pedagógico e, para nós, substantivamente democrático.
O “respeito ao princípio da autonomia da escola”, outro princípio orientador, permitiu o resgate e a valorização de práticas desenvolvidas nas unidades escolares, bem como a criação e a recriação de experiências curriculares que favorecessem a diversidade (SÃO PAULO, 1989, p. 2). O respeito à autonomia valoriza as pessoas que fazem parte da escola, estimula e incentiva a criatividade e a inovação das práticas docentes, bem como eleva a autoestima de toda a comunidade escolar, que se vê não apenas como executora, mas também como produtora e criadora de sua prática. Uma escola que se deseja autônoma, almeja que sua comunidade também o seja. Indivíduos autônomos não são formados de imediato, mas vão se construindo na prática, com a experiência das decisões. Segundo Freire (2002, p.121), [...] a autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser. Não ocorre em data marcada. É neste sentido que uma pedagogia da autonomia tem que estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas da liberdade.
A “valorização da unidade teoria-prática”, terceiro princípio, traduziu-se na constante ação-reflexão-ação de 274
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educadores e educandos e de outros indivíduos envolvidos no processo educativo e no dia a dia da escola (TORRES; O’CADIZ; WONG, 2002, p.138). A teoria e a prática são atos indissociáveis. Ao trabalhar de maneira isolada, somente com a teoria ou somente com a prática, corremos o risco de esvaziar nossa reflexão e de não perceber a realidade em sua multiplicidade. Como defende Freire (2002, p. 40), [...] impõe-se que tenhamos uma clara e lúcida compreensão de nossa ação, que envolve uma teoria, quer o saibamos ou não. [...] se a teoria e a prática são algo indicotomizável, a reflexão sobre a ação ressalta a teoria, sem a qual a ação (ou a prática) não é verdadeira.
Por isso a importância de uma formação de educadores que contribua para a reflexão e a revisão das práticas e do fazer docente. Segundo Freire (2001, p.123), “uma das mais importantes tarefas em que a formação permanente dos educadores se deveria centrar seria convidá-los a pensar criticamente sobre o que fazem”. A “formação permanente dos profissionais de ensino”, quarto e último princípio orientador, tomou como base a análise crítica do currículo em vigor na escola, localizando os pontos que exigiam mais fundamentação, revisão e superação das práticas (SÃO PAULO, 1989, p. 2). A Gestão Paulo Freire propôs uma formação que partia da prática das professoras, diretoras e coordenadoras para, daí, construir uma nova forma de trabalhar com os educandos. Defendeu que “a formação do educador deve instrumentalizá-lo para que ele crie e recrie a sua prática através da reflexão sobre o seu cotidiano” (FREIRE, 2001, p. 80). Nessa perspectiva, priorizou uma formação que se realizou 275
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[...] no âmbito da própria escola, com pequenos grupos de educadores ou com grupos ampliados, resultantes do agrupamento das escolas próximas. Este trabalho consiste no acompanhamento da ação-reflexão-ação dos educadores que atuam nas escolas; envolve a explicação e análise da prática pedagógica, levantamento de temas de análise da prática que requerem fundamentação teórica e a reanálise da prática pedagógica considerando a reflexão sobre a prática e a reflexão teórica (FREIRE, 2001, p. 80-81).
No decorrer do texto, descreve-se a realidade investigada em cada um dos eixos temáticos, apresentam-se as reflexões sobre o desenvolvimento da proposta curricular do Município de Diadema na escola, evidenciando seus pontos fortes e trazendo sugestões para superar seus limites, no intuito de contribuir com o objetivo, do município e da escola, de ofertar uma educação transformadora, emancipadora e libertadora.
As Revelações do Trabalho de Campo 1. A construção coletiva Ao participar do cotidiano da Escola Municipal Santa Rita (EMSR), uma característica evidencia-se: a busca por temáticas locais da vida da comunidade para integrar e nortear a organização do seu currículo. A satisfação não se restringe à oferta do acesso e do espaço físico da escola à comunidade, mas ambiciona atrair sua participação na construção do seu Projeto Político Pedagógico (PPP), tentando, para isso, trabalhar com temas significativos para a população. Freire oferece relevante contribuição para o exercício da participação, por meio de uma educação fundamentada 276
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em um método ativo, dialógico, participativo, que contribui para a inserção decisória dos educandos nos rumos da sociedade. Uma educação democrática, em que o educando não é paciente, mas sujeito desse processo. Segundo Freire (2002, p. 20), [...] mais do que um ser no mundo, o ser humano se tornou uma Presença no mundo, com o mundo e com os outros. [...] Presença que se pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz mas também do que sonha, que constata, compara, avalia, valora, que decide, que rompe.
Presença que participa. Nas observações e entrevistas realizadas na escola, a participação pôde ser sentida durante a construção do PPP, que envolveu toda a comunidade escolar, tanto a interna como a externa. Participaram desse processo os pais, a comunidade do entorno, os alunos da EJA e da educação infantil, os funcionários e as professoras. Essa vivência de participação pode ser percebida na seguinte fala: [No início de cada ano letivo], [...], nós já temos a reunião com os pais, no primeiro dia. Então, é passada para os pais toda a rotina que acontece na escola e nós fazemos uma pergunta que é antes trabalhada [pelas professoras] no planejamento. [...]. Então, primeiro é feita uma pesquisa com os pais, nesta primeira reunião, e a partir daí vamos pensar no projeto (Professora 1).
A prática da participação na escola ocorre de formas variadas – pesquisa, avaliação, festas, cursos, reuniões, conversas – e todas pedem a construção de uma relação horizontal e a abertura para o diálogo e a escuta; oferecem a oportunidade da discussão, do debate e confronto de 277
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opiniões entre pais, alunos, funcionários e o corpo docente da Escola, possibilitando a troca de saberes, os atos de ensinar e aprender com o outro. Segundo Freire (2003, p.74), [...] o diálogo é uma espécie de postura necessária, na medida em que os seres humanos se transformam cada vez mais em seres criticamente comunicativos. O diálogo é um momento em que os humanos se encontram para refletir sobre a sua realidade tal como a fazem e a refazem.
Nas observações, percebeu-se a prática do diálogo em atividades do corpo docente da escola, comoem momentos de sistematizar as informações coletadas com a comunidade e com os alunos; na avaliação diagnóstica feita com os alunos para a construção dos projetos temáticos; e na seleção de conteúdos que serão trabalhados em sala de aula. Acredita-se que esses momentos exigem, como diria Freire, humildade para reconhecer entre os pares “outros eus”, para criar momentos de discussão, reflexões e estudos baseados em uma relação de cooperação que fortalece o coletivo. Destaca-se também a importância do respeito à opinião do outro e o exercício da escuta. Uma das falas da coordenadora descreve aspectos do exercício do diálogo realizado entre professoras e alunos que, posteriormente, geram a discussão e construção dos projetos e a seleção de conteúdos nas reuniões pedagógicas: Os projetos foram escolhidos a partir da avaliação diagnóstica [...]. Os projetos de sala de aula, que chamamos de Projetos Temáticos, são escolhidos em função desse diagnóstico, que detecta o interesse da turma ou o desconhecimento da turma e, às vezes, o interesse do professor também, de uma coisa nova, ou resultados de 278
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anos anteriores que deram certo. Então, depois dessa avaliação diagnóstica que fazemos no começo do ano, é que os professores escolhem os projetos que serão realizados na sala de aula (Coordenadora1).
Como se observa, o diálogo exercido entre as professoras para planejar as atividades e metodologias pedagógicas estende-se para a escuta dos alunos no processo de definição de conteúdos e projetos que serão trabalhados durante o ano. Há um esforço em identificar as necessidades de aprendizagem dos alunos e, com isso, contemplar um conteúdo que seja significativo para eles. Freire (2002, p. 135) afirma que “escutar [...] significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro”. Lidar com diferentes visões de mundo, culturas e tradições, é esse o cotidiano dessa escola que vem superando as dificuldades, como conta a sua coordenadora, na busca de uma escola pública popular: No começo, sentimos dificuldade com alguns professores, porque tinha aquela fala: “Ah, agora as mães vão vir aqui e vão querer mandar na escola”. “E como é que vai ficar?”. Mas elas foram vendo que era um outro lado, que a escola não é nossa. É da comunidade como um todo. Então, também foram vendo que os pais também aprendiam com os professores e os professores também, com os pais, respeito, a importância [do trabalho do professor] e isso valorizou mais o trabalho dos professores; porque, participando das ações, os pais conseguiram ver como é difícil lidar com determinados problemas aqui na Escola, como a gente resolve (Coordenadora 2).
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A luta pela melhoria desse trabalho conjunto é constante. É um processo que exige permanente avaliação e contínua reflexão de todos os que participam da escola, cultivando a alegria de fazer parte dela e de gostar de estar e se encontrar nela.
2. O respeito ao princípio da autonomia da escola A autonomia é algo que se conquista e se aprende com pequenas ações do cotidiano, as quais, de forma gradual, vão exigindo decisões, responsabilidades e compromissos. A escola é um local que contribui para a formação de seres autônomos. Segundo Freire (2002, p. 65-66), um [...] saber necessário à prática educativa [...] é o que fala do respeito devido à autonomia do ser do educando. Do educando criança, jovem ou adulto. Como educador devo estar constantemente advertido em relação a este respeito que implica igualmente o que devo ter por mim mesmo.
Para formar sujeitos autônomos, é preciso, no entanto, que a escola também seja autônoma. Falar em autonomia da escola implica abordar dois aspectos distintos, mas ao mesmo tempo interdependentes, que são: o pedagógico e o administrativo. Autonomia pedagógica para elaborar seus projetos de trabalho. Autonomia administrativa para decidir e gerir projetos, assuntos e ações que compõem a rotina escolar. Ao recordar o processo participativo na construção curricular da EMSR, observa-se a autonomia em sua dimensão pedagógica, visto que a própria escola elabora e define o PPP e seus projetos temáticos. A construção do PPP é uma ação autônoma que envolve, em diferentes momentos, a participação e o diálogo entre a 280
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comunidade interna e a comunidade externa, para discutir a situação atual da unidade de ensino e decidir as prioridades e as medidas para melhorar a qualidade da escola. Vejamos a descrição a seguir: A elaboração do PPP aconteceu a partir da avaliação realizada com a comunidade escolar: professores, funcionários, alunos e pais, no final [do ano]. [Em dezembro] o grupo [...] discutiu, considerou, pontuou os sucessos e insucessos das ações, bem como, levantou as possibilidades de mudanças e avanços. [Em fevereiro, do ano seguinte,] as professoras [...] discutiram os objetivos da escola, valores filosóficos que queremos cultivar com nossos alunos, concepção de educação, de aprendizagem significativa, visão de mundo entre outros. Durante o mês de março, realizamos uma pesquisa qualitativa do entorno cujos resultados serviram de subsídios para elaboração do projeto da escola (DIADEMA, 2006, p. 3).
Acrescenta-se, ainda, o depoimento de uma professora que ressalta o vínculo existente entre os projetos da escola e a realidade da comunidade, mostrando a autonomia da escola para elaborar projetos significativos para a sua comunidade: Sempre tivemos uma autonomia, em nosso plano de escola. [...] Nós que trabalhamos aqui, em Diadema, temos uma política de trabalho que nos leva a a pensar nas questões da comunidade. Temos esse olhar de projetos que auxiliam as questões da realidade deles (Professora 4).
A autonomia na escola é exercitada em vários momentos. A prática é que possibilita aos sujeitos aprenderem a ser e a se tornarem autônomos. Segundo Freire 281
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(2002, p.120), “ninguém é autônomo primeiro para depois decidir. A autonomia vai se constituindo na experiência de várias, inúmeras decisões, que vão sendo tomadas”. Pode-se, ainda, destacar como exemplo de autonomia, a definição da rotina de cada turma relatada a seguir por uma das coordenadoras: A rotina de cada turma é definida com as professoras no início do ano. Algumas coisas, a coordenação decide e passa. É lógico que isso pode ser discutido depois, mas geralmente a gente [coordenação] já faz alguma prévia no início do ano. A gente [coordenação] volta um pouco antes [das professoras] e algumas coisas determina e coloca para o grupo. Mas o grupo tem liberdade para questionar, mudar ou trocar. Isso é só para dar uma ideia. [...] Por exemplo, o parque seria para todas as turmas, todos os dias, meia hora. Se o professor não quer, porque tem professor que acha que a turma de 6 anos não tem que ir ao parque todo dia, ela tira, mas a gente deixou aquele espaço livre (Coordenadora 1).
Em relação à autonomia administrativa, destaca-se a dinâmica elaborada pela EMSR para a reunião bimestral de mães e pais. O modelo de reunião utilizado anteriormente, no qual a professora em um mesmo horário, conversava com todos os 32 pais de sua turma, sobre o desenvolvimento de seus alunos, era improdutivo, deixava os pais impacientes e, na pressa, muitos iam embora sem saber como estava o desempenho dos seus filhos na escola. Então, a coordenação e as professoras discutiram e resolveram adotar uma dinâmica própria, na qual os pais são organizados em pequenos grupos (de seis a sete pais), de acordo com as características comuns de seus filhos, para conversar com a professora. A definição do horário das horas aglutinadas da escola também é um exemplo de autonomia administrativa. É um 282
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momento de formação na escola e acontece uma vez por semana, com duração de duas horas. Como grande parte das professoras da EMSR trabalha em mais de uma escola, a coordenação e as professoras decidiram realizar as aglutinadas por turno. Assim, há três horários para a essa modalidade de formação. Os espaços possíveis encontrados pela EMSR para exercer a sua autonomia são aproveitados e ampliados com o intuito de formar sujeitos cada vez mais críticos e autônomos, por meio da educação libertadora, “compreendida como um momento, ou um processo ou uma prática onde estimulamos as pessoas a se mobilizar ou a se organizar para adquirir poder” (FREIRE; SHOR, 2003, p.47) e, assim, tornarem-se cada vez mais autônomas.
3. A valorização da unidade teoria-prática Freire e Shor (2003, p. 12) lembram que “a docência é uma atividade muito prática embora tudo que ocorra em classe seja a ponta de um iceberg teórico”. Teoria e prática são, portanto, indissociáveis, interdependentes e complementares. Na atividade docente em sala de aula, na atividade de planejamento dessa prática ou durante sua avaliação, acaba-se por realizar uma atividade que também é teórica. Na EMSR, as professoras possuem um espaço que oferece a oportunidade de discutir e refletir sobre sua prática, que são as horas aglutinadas semanais. Ao pensar sobre essa prática, cria-se também a chance de mudá-la, reorientá-la. Vejamos os depoimentos de professoras acerca das horas aglutinadas: Tem coisas que você faz que precisa rever. Sempre alguma coisa de bom a gente tira. Porque, se não, fica naquela de achar que já sabe tudo e não dá certo (Professora 2). 283
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[As horas aglutinadas] contribuem, porque as dúvidas são esclarecidas e, se tem dificuldades, você tem abertura para colocar e obter ajuda quando necessita. Então, nós vivenciamos muito isso aqui. Não ficamos isoladas (Professora 5).
Freire (2001, p. 106) lembra que quanto mais penso criticamente, rigorosamente, a prática de que participo ou a prática de outros, tanto mais tenho a possibilidade, primeiro, de compreender a razão de ser da própria prática, segundo, por isso mesmo, me vou tornando capaz de ter prática melhor.
A importância desse momento de ação-reflexão-ação, enfatizado por Freire e encontrado na fala das professoras, foi também percebida durante as observações. Dentre alguns momentos, destaca-se a reflexão/discussão sobre a avaliação diagnóstica dos alunos e a reflexão/discussão sobre a escolha de atividades para serem realizadas em sala de aula. A avaliação diagnóstica dos alunos é feita pelas professoras a cada dois meses. Essas avaliações são passadas para a coordenação, que faz a análise do diagnóstico apresentado pela professora. Concluída a análise, a coordenação a apresenta ao grupo nas horas aglutinadas. Inicia-se, então, a discussão e a reflexão sobre o diagnóstico dado pelas professoras e a análise das coordenadoras. Esse é um momento em que são externadas as diversas opiniões e os pensamentos que surgem sobre as avaliações; refletem-se sobre os casos mais delicados; oferecem-se sugestões umas às outras; ou, ainda, troca-se material. Segundo uma das coordenadoras, esse é um momento em que
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[...] um colega ajuda o outro. Porque, às vezes, ele sente dificuldade em ver em que nível de escrita está aquela criança, qual a hipótese silábica dela. Então, a professora fala: “Se fosse meu aluno, eu faria desta forma. Eu acho que você poderia fazer isto, e tal...” (Coordenadora 1).
O segundo momento em que se percebeu a valorização da unidade teoria e prática foi durante a discussão e reflexão sobre a escolha das atividades que são realizadas com os alunos em sala de aula. De acordo com algumas das professoras, o bom, desse momento, é que: Quem tem material, traz. E trocamos e discutimos. Vemos se está com dificuldade, também, em alguma coisa (Professora 3). É aquela tal história, já somos daqui. Isso já faz parte da nossa vida. Mas procuramos sempre preservar o colega. Não temos medo de nos expor. Temos vínculos que é pelo tempo do trabalho, somos casadas com a ideia da escola, [que] faz parte da nossa vida (Professora 4).
Desses momentos, deseja-se ressaltar a opção do grupo pelo trabalho coletivo na construção e reconstrução de sua prática, lembrando que esse coletivo [...] não anula cada indivíduo, mas que o reconhece como produtor crítico de conhecimento e não o concebe mais como um sujeito isolado, mas como alguém que junto com o outro constrói uma nova prática (SÃO PAULO, 1990, p. 11).
Identificou-se o trabalho coletivo tanto na organização de comemorações como também no planejamento de aulas, ocasião em que as professoras trocavam ideias, sugestões e 285
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materiais entre si. Essa forma de trabalho, além de contribuir para a formação daquelas professoras mais novas na carreira docente, renova a prática das professoras mais experientes. A discussão, a reflexão da prática e o fortalecimento do trabalho coletivo são avanços encontrados na EMSR, tanto nas observações como nas falas das professoras.
4. A formação permanente dos profissionais de ensino A EMSR ousa na organização de seu currículo, por meio de uma prática inovadora que vem contribuindo para a mudança do fazer educação na escola. Freire (2001, p. 38), em suas obras, lembra que “não se pode pensar em mudar a cara da escola, não se pode pensar em ajudar a escola a ir ficando séria, rigorosa, competente e alegre sem pensar na formação permanente da educadora”. As formações de professores do Município de Diadema têm como ponto central a reflexão sobre a prática pedagógica e, para isso, é organizada e acontece em várias instâncias; e envolve profissionais diversos, buscando o diálogo entre escola e academia, conforme definido em documento do município: [Diadema] entende que a “formação do formador” deve se dar em várias instâncias articuladas: professores/educadores com seus pares, individualmente, com o grupo-escola, com assessoria externa, em cursos de formação acadêmica, de extensão, de atualização profissional entre outros (DIADEMA, 2004, p. 9).
Destacam-se, a seguir, três instâncias de formação de professores que ocorrem no Município de Diadema. São elas: os seminários estendidos, as trocas metodológicas, reuniões pedagógicas e horas aglutinadas. Os “seminários estendidos” correspondem a encon286
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tros programados que acontecem ao longo de todo o ano, geralmente aos sábados pela manhã. Neles, toda a rede de ensino se encontra para discutir, refletir e apropriar-se dos avanços pedagógicos, científicos e tecnológicos. Há sempre um especialista convidado que apresenta seminário sobre uma temática vinculada à proposta curricular. O objetivo do encontro é “aprofundar as reflexões sobre a proposta curricular, estabelecendo relações entre os eixos curriculares, os projetos das escolas, as áreas do conhecimento e os objetivos finais de aprendizagem” (DIADEMA, 2007, p.7). Ao relembrar o processo de formação de sua gestão, Paulo Freire (2001, p. 39) cita a necessidade de ser criada a oportunidade de diálogo entre os especialistas e as professoras para refletirem a respeito da prática vivenciada na sala de aula, ao ressaltar que: [...] quando nos seja possível [...] juntaremos, por exemplo, professoras que trabalharem em alfabetização de crianças com especialistas competentes. O diálogo se dará em torno da prática das professoras. Falarão de seus problemas, de suas dificuldades e, na reflexão realizada sobre a prática de que falam, emergirá a teoria que ilumina a prática.
Os encontros de “trocas metodológicas” acontecem duas vezes por ano, geralmente nos fins de semana. Neles, as professoras apresentam experiências de sucesso que realizaram em suas escolas e também participam de oficinas com especialistas. O professor da rede é o formador dos seus pares, quando divulga sua experiência. “O meio social em que o profissional está inserido, seja no interior da própria escola ou no município tem ele próprio função formativa, favorecendo a troca de experiências na expectativa de buscar soluções para problemas comuns” (DIADEMA, 2004, p. 2). 287
Referenciais freireanos para a organização do currículo escolar...
A troca de experiências valoriza o fazer dos professores e contribui para que reflitam e pensem sobre a própria prática, sobre o que fazem em sala de aula, na sua relação com a comunidade e na própria organização curricular da escola. A importância e o sucesso das trocas metodológicas são testemunhados pelas próprias professoras da escola, em suas entrevistas, como segue: Você vai às trocas metodológicas, nossa! Ajuda bastante. Enriquece muito. [...] quando participa, você vê novidades, começa a aplicar outras novidades (Professora 1). Elas ocorrem duas vezes no ano. São professores que atuam na rede e apresentam o trabalho que vêm desenvolvendo, que sempre contribui para a melhoria do nosso trabalho (Professora 3).
A valorização do trabalho desenvolvido e apresentado pelo colega nas trocas metodológicas pode ser percebida na fala das professoras, ao revelar que contribui para a melhoria e qualidade da educação em Diadema, além de colaborar para a melhoria individual da prática de cada uma das professoras. As “reuniões pedagógicas e horas aglutinadas” são momentos que acontecem em cada uma das escolas, apenas com o quadro próprio de professoras. As reuniões pedagógicas agrupam todas as professoras de uma mesma unidade escolar, duas ou três vezes por ano, e as horas aglutinadas reúnem semanalmente as professoras de um mesmo turno. As reuniões pedagógicas são momentos utilizados para o planejamento de toda a escola; a discussão e reflexão de temas de interesse de todas as professoras, independentemente do nível de ensino que atuam, se educação infantil ou EJA. 288
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Esse é um momento rico, em que se presenciou o debate das diversas opiniões das professoras, divergências em relação às formações que não atenderam às expectativas de algumas professoras e, também, momento de sugestões para a melhoria do trabalho na escola. Esse trabalho coletivo contribui para a qualidade da educação e da formação do professor, uma vez que a ação de compartilhar diferentes visões e formas variadas de interpretar a realidade docente oferecerá ao professor a chance de enriquecer e ampliar a percepção de sua própria prática. As horas aglutinadas são um momento para que a prática seja discutida, refletida, com o objetivo de compreendê-la para melhorá-la. É um momento também de trocas, cooperação e ajuda entre as professoras e as coordenadoras. Freire (2001, p.104) enfatiza a importância de momentos como esse e testemunha que “quanto mais pensava a prática a que (...) [se] entregava tanto mais e melhor compreendia o que estava fazendo e (...) [se] preparava para praticar melhor”. Diadema procura proporcionar aos seus professores formações que atendam às suas variadas necessidades. O município defende que “a gente não se faz educador, a gente se forma, como educador, permanentemente, na prática e na reflexão sobre a prática” (FREIRE, 2001, p. 58). Por isso, a Secretaria de Educação de Diadema é persistente e insiste na importância da participação do professor nas formações oferecidas. Vejamos o comentário de uma das professoras a esse respeito: Eu acho que [as formações] sempre ajudam. Às vezes, com essa coisa de trabalhar muito, dá uma canseira de ir lá. “Ah!! No sábado, eu tenho que ir para o curso?” Mas aquilo é como se fosse um alimento. O professor precisa. E a prefeitura tem essa sensibilidade. Por mais que tenhamos resistência: “Ah! Eu tenho que ir no sábado?” Eles nunca desistem. É legal 289
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isso. Porque eu digo: “Gente, eu já fiz tanto curso, e já tenho tanta coisa. Eu preciso ir de novo?”. Mas, cada vez que vamos, aquilo anima, mexe a nossa cabeça e remexe na nossa prática. Voltamos para a sala de aula renovadas. Eu acredito que sempre contribui (Professora 4).
A Secretaria de Educação de Diadema luta pela melhoria da educação, busca qualidade, para que se formem cidadãos críticos e autônomos. Propõe, então, um novo paradigma de educação, que renove e inove a prática dos seus professores, por isso, investe em formação séria que contribui para essa mudança.
Para efeito de conclusão Diadema acredita na conquista de uma escola pública, popular e de qualidade para a sua população, por isso trabalha com um novo paradigma de educação que contempla nova proposta curricular. Reconhece que, para atingir esse objetivo, deve assumir como prioridade o desenvolvimento e a implementação de uma política de formação séria e de qualidade para todos aqueles que fazem a educação no município. Percebem-se muitos avanços no processo de construção curricular da EMSR, bem como alguns limites que precisam ser superados, dando concretude a alguns princípios fundamentais da pedagogia freireana, na busca da construção de uma escola pública, popular e democrática, de boa qualidade. Como destacado no decorrer do texto, a análise dos documentos, depoimentos ou das observações, indica que a escola está mudando. Mudando para melhor. Fruto da vontade das pessoas, dos alunos, dos professores, da comunidade e também do trabalho desenvolvido pelo município.
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Trabalho que já avançou muito, mas precisa superar, ainda, alguns desafios; trabalho que, por ser processo, não tem um ponto final. Pelo contrário, está inconcluso e permanentemente em busca de ser mais, assim como as pessoas que o fazem e lutam por um mundo melhor, mais digno e solidário, onde todos sejam livres e sujeitos participantes na construção de sua história.
Referências ABENSUR, Patricia Lima Dubeux. A construção curricular na perspectiva freireana: um estudo de caso na Escola Municipal Santa Rita, na cidade de Diadema-SP, 2009, 123f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-graduação em Educação: Currículo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. 6. ed. São Paulo: Olho d’ água, 2003. ______. Pedagogia da autonomia. 23. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. ______. Educação na cidade. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2001. ______. Cartas a Cristina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e ousadia – o cotidiano do professor. 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. DIADEMA. Prefeitura Municipal de Diadema. Secretaria Municipal de Educação, Cultura, Esporte e Lazer – Departamento de Educação. Seminários estendidos: proposta curricular em ação. Diadema, 2007. ______. Prefeitura Municipal de Diadema. Escola Municipal Santa Rita. Projeto político pedagógico. Diadema, 2006. ______. Prefeitura Municipal de Diadema. Secretaria Municipal de Educação – Departamento de Educação Infantil. Diário na escola. Proposta curricular para as escolas municipais. Diadema, 2004. SÃO PAULO. Prefeitura Municipal de São Paulo. Secretaria Municipal de Educação. Estudo preliminar da realidade local: resgatando o cotidiano. Cadernos de Formação n. 2, São Paulo, 1990.
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Notas 1 Pedagoga; doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação: Currículo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); técnica em Assuntos Educacionais do Centro de Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde da Universidade Federal de São Paulo (Cedess-Unifesp). Email: pdubeux@gmail.com 2 Paulo Freire esteve à frente da Secretaria de Educação do Município de São Paulo de 1989 a 1991. O professor Mario Sérgio Cortella, que assumiu a pasta até o final de 1992, manteve a mesma política dos anos iniciais dessa administração. Por isso, o período 1989-1992 é conhecido como Gestão Paulo Freire.
Esse processo foi iniciado em 1990, com 10 escolas-piloto em cada Núcleo de Ação Educativa (NAE). No final de 1992, tinha se estendido a cerca de cem escolas e se esperava sua extensão gradual a todo o sistema (TORRES; O’CADIZ; WONG, 2002, p. 82). 3
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O diálogo na educação on-line inspirada na pedagogia freireana: algumas aproximações Angélica Ramacciotti1 Jaciara de Sá Carvalho2 Julciane Rocha3
Introdução
O
homem concreto deve se instrumentar com os recursos da ciência e da tecnologia para melhor lutar pela causa de sua humanização e de sua libertação (FREIRE, 2001, p. 98).
É notório que o avanço de tecnologias tem ampliado as oportunidades de diálogo entre sujeitos distantes, geograficamente, uns dos outros. Os profissionais da Educação, integrantes dessa mesma realidade, também vêm cada vez mais se apropriando de ferramentas para promover alterações nos processos de ensino-aprendizagem; entre elas, proporcionar a interação entre os estudantes. Atualmente, no âmbito da Educação a Distância (EaD), a maioria das formações é realizada on-line. Segundo o Censo EaD.Br, 81,36% das instituições formadoras participantes da pesquisa oferecem cursos pela Internet (ABED, 2013, p. 105), por meio da qual é possível utilizar vários recursos 293
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para promover a interação entre os sujeitos. Em uma retrospectiva histórica da EaD (GARCÍA ARETIO, 2011), verificase que o diálogo entre educador e educando imperava; era geralmente bidirecional por conta das limitações tecnológicas, ainda que existissem meios para a comunicação entre os educandos, mas certamente mais difíceis. A interação entre educador e educando, e deste último com seus pares, é prevista hoje no planejamento da maioria dos cursos a distância e indica uma “preocupação por parte das instituições formadoras e das fornecedoras quanto à importância da interatividade entre educador e aluno, bem como entre os alunos no processo de ensino” (ABED, 2013, p. 104). No entanto, tal interação não tem sido bem avaliada pelos educandos. As instituições formadoras participantes do Censo EAD.BR informam que, na avaliação dos cursos, os estudantes consideram como pontos fracos a participação em chat (44%), a interação com os colegas (42%) e a participação no fórum (31%): Pode-se afirmar, pois, que os participantes consideram as situações oferecidas para o ensino individual como os pontos fortes do curso (conteúdo, recursos e tutoria), mas que consideram, como pontos fracos, as situações que envolvem a participação em atividades em grupo, que envolvem a interação com colegas e docentes por meio de ferramentas tanto síncronas, como o chat, quanto assíncronas, como o fórum (ABED, 2013, p. 107).
Essas informações preocupam aqueles que veem a modalidade a distância como oportunidade de formação humana, oposta a uma “Educação bancária” (FREIRE, 2005). A formação humana exige processos essencialmente dialógicos e não apenas interativos. Os dados do Censo mostram que não basta ampliar as oportunidades de inte294
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ração entre os sujeitos por meio da incorporação de tecnologias, pois continua o desafio de promover o diálogo em formações a distância. Principalmente se o diálogo for compreendido em uma perspectiva freireana, comprometida com a conscientização dos sujeitos, em comunhão.
Sobre o diálogo em Paulo Freire Pesquisas recentes sobre a educação on-line vêm apontando o diálogo como essencial para o processo de ensino-aprendizagem (SILVA, 2002; ALMEIDA, 2005). Cabe ressaltar que, nessa modalidade, o diálogo é viabilizado pela máquina, pelo computador, mas quem dialoga são as pessoas que pronunciam o mundo. A potencialização humanizadora da máquina depende da forma e dos objetivos com que é utilizada. Emerge, assim, a necessidade de práticas dialógicas para a construção do conhecimento na educação on-line. É importante frisar que diálogo não é bate-papo. O ato de dialogar, em Freire, vai além da troca de ideias por meio de palavras. A relação dialógica consolida-se na práxis social transformadora. Em outras palavras, a ação e a reflexão aparecem em interação radical. Ou seja, para que haja diálogo, de fato, a ação está sempre associada à reflexão e a reflexão está sempre associada à ação. Assim como a palavra com reflexão e ausência de ação torna-se verbalismo, a palavra com ação e ausência de reflexão torna-se ativismo (FREIRE, 1980). A coerência com a proposta freireana de diálogo implica um conjunto de práticas e posturas. É possível afirmar que o diálogo em Freire requer, exige e possibilita: saber escutar; demonstrar tolerância; respeito ao conhecimento do educando; curiosidade epistemológica; criticidade; construção coletiva do conhecimento e emancipação (RAMACCIOTTI, 2010). 295
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Saber escutar, para Freire (1996), vai além da capacidade auditiva de cada um e difere da mera cordialidade. Significa a disponibilidade de quem escuta para a abertura à fala do outro. Nesse processo de fala e escuta, a disciplina do silêncio a ser assumido com rigor e a seu tempo pelos sujeitos que falam e escutam é uma condição da comunicação dialógica. A escuta não diminui o direito do exercício da discordância, oposição e do posicionamento. Ao contrário, quem sabe escutar tem a oportunidade de se preparar melhor, e manifestar sua posição com desenvoltura. A prática da escuta, entretanto, não exime o educador de suas responsabilidades em relação ao educando. Há que ter a possibilidade e a responsabilidade de sistematizar as contribuições do grupo de educandos. Ao negar o autoritarismo como nega a licenciosidade, a educação dialógica afirma a autoridade e a liberdade. A virtude da tolerância assume papel fundamental na pedagogia freireana. Em Professora Sim, Tia Não: Cartas a Quem Ousa Ensinar, Freire (1997) pontua que a tolerância “nos ensina a conviver com o diferente. A aprender com o diferente, a respeitar o diferente”. Nessa obra, ele desmitifica a ideia de que falar em tolerância é falar em favor, como se tolerar a presença indesejada do outro fosse uma maneira delicada de aceitação, uma forma civilizada de consentir uma convivência que causa repugnância. “Isso é hipocrisia, não tolerância. Hipocrisia é defeito, é desvalor. Tolerância é virtude.” Portanto, Freire (1997) assume a virtude da tolerância como algo que o faz coerente com o conceito de ser histórico, inconcluso, e com a sua opção político-democrática. Nas relações sociais, a intolerância livra os indivíduos do autoritarismo e da licenciosidade. Na concepção freireana, a curiosidade é uma necessidade ontológica e caracteriza a essência humana no seu 296
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processo de criação e recriação. Essa curiosidade, que a princípio pode ser ingênua e “desarmada” por estar associada ao senso comum, vai se tornando crítica ao ser exercitada, e, na medida em que se aproxima com rigorosidade metódica do objeto cognoscível, transforma-se em epistemológica. Em síntese, a criação do termo curiosidade epistemológica traduz o entendimento do autor sobre a postura necessária para o ato de conhecer se efetivar em uma perspectiva crítica, com historicidade. Por isso, é importante não apenas “conhecer o conhecimento existente”, mas também saber-se aberto e apto à produção do conhecimento ainda não existente, em um permanente exercício do pensar crítico. Se a consciência crítica desenvolve-se por intermédio da práxis, ou seja, da ação e da reflexão, demandando uma postura de busca do saber, há que problematizar o conhecimento. O educador que não se limita a “dissertar sobre conteúdos”, mas os problematiza com os educandos, abre “novos caminhos de compreensão do objeto da análise aos demais sujeitos” e pode “re-admirar” o objeto por meio da “ad-miração” dos educandos. Assim, o educador continua aprendendo (FREIRE, 2006, p. 82). Reside aí a força da educação que se constitui em situação gnosiológica: mulheres e homens tornam-se conscientes de como estavam conhecendo para reconhecer a necessidade de conhecer melhor. A relação de conhecimento, em Freire, não termina no objeto. É prolongada a outro sujeito, tornando-se uma relação sujeito-objetosujeito. Assim se dá o compartilhamento do mundo lido. “Enquanto relação democrática, o diálogo é a possibilidade de que disponho de, abrindo-me ao pensar dos outros, não fenecer no isolamento” (FREIRE, 2006, p. 120). Emancipar-se, na perspectiva freireana, é assumir o direito e o dever de optar, decidir, ajuizar, romper, lutar, fazer política. É a posição de quem luta para não ser apenas 297
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objeto, mas também sujeito da história (FREIRE, 1996). Assim, buscar uma reorientação curricular na racionalidade emancipatória implica a compreensão do currículo como “um processo no qual a participação dos sujeitos envolvidos na ação educativa é condição de sua construção” (SAUL e SILVA, 2008, p. 64). O processo de emancipação decorre de uma intencionalidade política declarada e assumida por mulheres e homens comprometidos com a superação dos condicionamentos e ocupados com a transformação das condições dos oprimidos. Planejar uma experiência educacional on-line que se inspire em princípios freireanos, especialmente no diálogo, implicaria almejar a construção de uma comunidade virtual de aprendizagem, nos termos que exploraremos a seguir. Em busca da comunidade virtual de aprendizagem Muitas são as abordagens em que a educação on-line4 pode ser desenvolvida. Almeida (2011) diferencia essas abordagens em dois grupos: instrucionistas e construcionistas. A primeira caracteriza-se pela apresentação dos conteúdos em ordem crescente de complexidade e os objetivos esperados são alcançados em maior ou menor escala dependendo dos acertos obtidos pelo aluno, que recebe feedback imediato (ALMEIDA, 2011). Na abordagem construcionista, as tecnologias são utilizadas “como elementos de mediação da interação do aluno com o conhecimento, com suas próprias ideias expressas na tela e com as informações disponíveis em distintas fontes” (ALMEIDA, 2011, p. 8). Nessa abordagem, destacam-se propostas que favoreçam a interação social, o compartilhamento e a colaboração. Assim, é possível encontrar na educação on-line desde processos autoinstrucionais, nos quais o sujeito “relacionase” apenas com o computador, obtendo dele orientações e respostas padrão para suas atividades, até a formação de 298
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redes e de Comunidades Virtuais de Aprendizagem (CVA). Nesses últimos dois “formatos”, o que sustenta o processo educativo é o diálogo desenvolvido pelos participantes em relação. O diálogo estrutura e mantém os participantes em rede ou em comunidade, a depender da intensidade desse processo colaborativo, no qual todos são responsáveis pelo ensinar e aprender (CARVALHO, 2011). De fato, a palavra “rede” tem sido frequentemente usada para designar sujeitos em relação, uma imagem composta por nós (as pessoas) e os fios que os conectam (as relações que estabelecem entre si). Embora as redes sociais sejam antigas, Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) têm potencializado o diálogo entre os sujeitos, que passam a compor redes virtuais. Há muitas delas espalhadas pela Internet, com múltiplos interesses e finalidades. No entanto, é possível distinguir tanto as redes quanto as comunidades com intencionalidade educativa: Uma rede de aprendizagem on-line distingue-se das demais redes do ciberespaço por apresentar uma proposta de aprendizagem inicialmente planejada – mas que permite novas proposições pelos participantes –, a presença do educador e um objetivo educativo explícito. Quando, além destas características, encontram-se nessas redes fortes laços e frequente colaboração entre os participantes, com certo compromisso desenvolvido entre eles, tem-se a formação de uma ou várias comunidades virtuais de aprendizagem – o que não exclui a possibilidade de um agrupamento já surgir como comunidade (CARVALHO, 2011, p. 72).
Nas comunidades virtuais de aprendizagem, os sujeitos são a estrutura e a organização desse sistema. Se não há diálogo e se os sujeitos não forem a centralidade do processo de ensino-aprendizagem, não se poderia falar em 299
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rede, muito menos em comunidade, mas em teia, onde há um núcleo: alguém que pensa e decide pelos demais. Essa, inclusive, é uma premissa não condizente com a teoria de conhecimento freireana. Almeida (2011, p. 36) chama a atenção para o caráter transformador de uma proposta de educação baseada na colaboração e na construção coletiva. Para a autora, as comunidades virtuais de aprendizagem alteram o uso comum da rede para consumo de conteúdo, passando assim a promover a produção de conteúdo e, por sua vez, do próprio currículo. Dessa maneira, avançamos no sentido de superar um currículo padronizado, “pois o que foi previamente planejado pode ser reconstruído no andamento da ação, gerando múltiplos currículos”. Por situarem o diálogo entre os sujeitos como centro do processo de ensino-aprendizagem, formações que buscam o desenvolvimento de comunidades virtuais possuem muita afinidade com a teoria freireana. O diálogo concebido por Freire, como tratamos anteriormente, contribui não apenas para que os sujeitos constituam uma CVA, mas para que essa vivência esteja comprometida com a emancipação dos participantes. Nem qualquer diálogo nem aprendizagem como fim em si mesmo. Grande parte dessa intencionalidade transformadora que orienta a aprendizagem dialógica é atribuída ao educador, mesmo porque estamos tratando de processos educativos. Ele “é o nó robusto” (CARVALHO, 2011, p. 88) que cria “condições em que se dê a superação do conhecimento no nível da doxa pelo verdadeiro conhecimento, o que se dá no nível do logos” (FREIRE, 2005, p. 80). O educador on-line participa da rede/CVA por meio de movimentos de simetria e assimetria junto aos demais sujeitos. Em um dos capítulos da Pedagogia da Autonomia, Freire (1996, p. 104) destaca que “ensinar exige liberdade e autoridade”, categorias que também devem orientar a participação 300
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do educador tanto em rede quanto em comunidades virtuais de aprendizagem. Os educandos que compõem uma CVA possuem liberdade para sugerir mudanças tanto na proposta inicialmente apresentada quanto nos rumos da formação, além de tomar decisões quanto ao seu próprio processo de ensino-aprendizagem. O educador tem a autoridade de apresentar questões que orientem tais mudanças e as decisões dos participantes. Deve ter o cuidado em não confundir liberdade com licenciosidade, assim como autoridade com autoritarismo. Uma educação on-line desenvolvida nesses “formatos” tende a favorecer a vivência de relações democráticas. Mas não é fácil a constituição de uma CVA. Formações que almejam alcançá-la exigem muito trabalho do educador e dos demais profissionais envolvidos para estimular o diálogo e a intensa participação. Nesse sentido, a construção de uma CVA situa-se no horizonte de ações educativas, em um esforço para que todo o designer educacional e a postura dos profissionais contribuam com a sua constituição. Aquelas comprometidas com o processo de emancipação dos sujeitos e a transformação da realidade certamente tem no diálogo sob a perspectiva freireana uma inspiração para alcançar esse objetivo.
Considerações finais Assumir o diálogo freireano como categoria fundante para o processo educativo on-line aumenta a probabilidade de seus participantes constituírem uma CVA. A dimensão colaborativa, que pode emergir da multiplicidade de intercâmbios na educação on-line que busca a formação de comunidade, evidencia propostas voltadas à construção coletiva do conhecimento e não apenas aos avanços cognitivos individuais dos educandos. Na medida em que currículos emancipatórios passam a ser concebidos nessa modalidade de educação, abrem-se 301
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novos caminhos direcionados à educação dialógica e libertadora defendida por Paulo Freire.
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Notas 1 Mestre em Educação: Currículo pela PUC-SP (2010) e graduada em Comunicação pela Universidade Católica de Santos (1999). Trabalha como editora e jornalista freelancer. Entre 2010 e 2012, foi coordenadora de Comunicação do Instituto Paulo Freire. Na mesma instituição, atuou como docente em projeto de formação de educadores. Em 2007, criou a Revista Científica Paidéi@ (ISSN: 1982-6109), da Universidade Metropolitana de Santos (Unimes Virtual), onde foi assistente pedagógica (2006), editora assistente (2007/2009) e editora (2010). Tem experiência nas áreas de Educação e Comunicação. E-mail: lica.ramacciotti@gmail.com 2 Doutoranda e mestre em Educação (FE-USP); especialista em Gestão da Comunicação (ECA-USP), graduada em Comunicação (PUC-SP); e professora (Magistério). Atuou como docente na Educação Infantil, no Ensino Fundamental e em Pós-graduação, além de ser jornalista na gran-
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de imprensa. Implementou e coordenou o Setor de Educação a Distância do Instituto Paulo Freire (2010-2012). Coordenou o portal EducaRede (www.educared.org) no Brasil (2006-2008) e desenvolveu, no mesmo programa internacional, o projeto Comunidades Virtuais de Aprendizagem (2008). Atualmente, dedica-se à conclusão da tese Educação Cidadã a Distância: Uma Abordagem Freireana para a Modalidade, sob orientação do Professor Moacir Gadotti, com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). E-mail: jsacarvalho@gmail.com 3 Mestre em Educação: Currículo pela PUC-SP. Coordenadora de Projetos Educacionais de Inovação na Fundação Lemann. Foi coordenadora de projetos no Instituto Paulo Freire, onde também atuou como Designer Instrucional (EaD), além de docente e coordenadora de módulo no curso de pós-graduação lato sensu Currículo e Práticas Docentes, oferecido aos professores da rede municipal de Osasco/SP. Ministrou aulas no curso de Pedagogia da Faculdade Sumaré. Pós-graduada em Design Instrucional para Educação On-line (2009) pela Universidade Federal de Juiz de Fora/ MG e Gestão Educacional (2007) pela Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU-SP). Graduada em Letras - Licenciatura em Português e Francês pela Universidade de São Paulo (2004). Já atuou como professora de Francês, alfabetizadora, e de Língua Portuguesa, nos Ensinos Fundamental Ciclo II e Médio. E-mail: julcirocha@gmail.com 4 “Educação on-line é uma ação sistemática de uso de tecnologias, abrangendo hipertexto e redes de comunicação interativa, para distribuição de conteúdo educacional e promoção da aprendizagem, sem limitação de tempo ou lugar (anytime, anyplace). Sua principal característica é a mediação tecnológica pela conexão em rede” (FILATRO, 2007, p. 47).
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Conclusão Escrever um texto com o pressuposto de concluir uma obra inacabada, por considerar que o pensamento de Paulo Freire continua muito forte e operante ainda hoje, é imensa ousadia, se for entendida como fecho de um movimento ininterrupto, ou seja, a influência de Freire na história da educação não perdeu sua força argumentativa, visto que suas questões retratam aspectos sociais de profundo cunho antropológico para a Educação e sua prática. Para Saul (2006, p. 02), A atualidade do pensamento de Paulo Freire vem sendo atestada pela multiplicidade de experiências que se desenvolvem tomando o seu pensamento como referência, em diferentes áreas do conhecimento, ao redor do mundo. A crescente publicação das obras de Paulo Freire, em dezenas de idiomas, a ampliação de fóruns, cátedras e centros de pesquisa criados para pesquisar e debater o legado freireano são indicações da grande vitalidade do seu pensamento.
Concluir, então, esta coletânea de textos, torna-se a perspectiva de uma espécie de ficção literária, em que apenas se pode concluir uma coleção de palavras, escritas por diversas mãos de autores que se inscrevem na história da Educação para comunicar aos demais, com suas ideias e palavras, um enriquecimento cultural. Um plano que Freire concebia para a Educação é o mergulho nas diversas dimensões culturais da vida como elemento capaz de se transformar em fonte para a ação pedagógica, como ressalta ao dizer que “a prática educativa é tudo isso: afetividade, alegria, capacidade científica, domínio técnico à serviço da 305
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mudança ou lamentavelmente, da permanência do hoje” FREIRE, 1996, p. 143). Paulo Freire, inspirador de todos os autores deste terceiro livro da série @aprendersempre.com, permite que continuemos suas ideias. Neste livro, pretende-se celebrar com palavras e ideias a comemoração de seus 90 anos de nascimento, com um brilho especial, como se todas as ideias e palavras aqui contidas fossem velas, luzes, que iluminam seu pensamento, tornando-o eterno na memória tanto dos que escrevem como dos que leem. Assim Freire torna-se eterno, porque continua em nosso modo de pensar a Educação e por meio dela ousar sonhar com um mundo melhor. A propósito, uma das mais profundas dimensões da existência humana é transcendentalizar-se, ou seja, alçar a horizontes mais altos, sonhar e conquistar os sonhos, como meio de torná-los reais. É quase uma relação religiosa, de elevar-se em busca de uma forma superior e maior do que todos nós. Eis uma das semelhanças que a Educação pode efetivar, isto é, elevar a pessoa a uma condição de dignidade, de alcance de superioridade e assim tornar, tanto a sua vida como a de muitos outros, cada vez melhor e, por que não acentuar, manter um viés de inspiração religiosa conjugada com a raiz etimológica da palavra Sagrada como vocação primordial da Educação. Empenhar-se por manter a existência cada vez mais sacrée, cada vez mais saudável, nisto consiste uma das razões do ato de educar, que a transcendentaliza para além de apenas transmitir conhecimentos! A Educação é o caminho da inserção do indivíduo na tomada de consciência de sua ação histórica; de ajudar na transformação da sociedade; de se esforçar por construir uma vida cada vez melhor para todos, como um patrimônio universal em que um indivíduo se sinta responsável pelo outro e com ele se envolva, desde suas ideias e palavras até seus atos mais concretos. É o que Freire 306
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pensa da Educação e tributa a cada educador como uma missão, dentro de suas possibilidades, com todas as suas habilidades e em todas as suas condições e realidades culturais. Para Freire (1996, p. 23): Uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições em que os educandos em relação uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar.
Nesse sentido, a preocupação é com o ato de educar, ação humana que se constrói e reconstrói, a cada momento, dada a sua característica de ser um inédito modo de intervir na vida, de viver a realidade e de escrever a história, que se compõe de momentos e atos que marcam a ação do homem em seu tempo. A propósito, neste livro, pudemos dialogar com muitos interlocutores da história da Educação, que, ao ter contato direto com o foco da homenagem do livro, também se admiraram e se deixaram penetrar pelos conhecimentos que Paulo Freire compilou em diversas obras, traduzidas hoje em variados idiomas, e que, como legado, foram sendo transmitidos desde a academia até as mais distantes práticas pedagógicas, sempre, devemos frisar, independentemente do lugar ou da condição social. Ainda que a preocupação de nosso educador tenha sido a Educação, sobretudo, dos mais pobres, que sofrem com a carência de acesso à boa educação, ainda hoje podemos afirmar que o foco é o ser humano, que sempre precisa crescer em conhecimentos e ter suas experiências concretas trazidas para a ação pedagógica. E por isso se pode dizer 307
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que Freire é um educador de profunda imersão na essência do que se deve entender como ato de educar, definido por ele como “um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa” (FREIRE, 1967, p. 97). Tal atualidade avança sobre seus 90 anos, aqui celebrados para aprofundar uma ação ininterrupta da atividade humana. Os tempos, as instituições e até mesmo as pessoas passam, mas a existência, como processo histórico, relembra, ressalta e revive as grandes lições, os profundos ensinamentos. Foi com esse espírito que, dentre os autores, se percebe uma coleção de palavras com a força de sensibilidade da memória da convivência, em trabalhar juntos no mesmo programa de Pós-graduação em Educação: Currículo, na PUC-SP; atuar juntos em bancas de mestrado e doutorado; lecionar e palestrar em conjunto em muitas instituições de ensino pelo Brasil; ter aulas com esse grande mestre; ouvir suas palestras, conferências e entrevistas em muitos lugares, ou então ler seus escritos. Resultou, desse amplo leque de inter-relacionamentos humanos, mais do que a produção acadêmica, um tributo a um envolvente educador brasileiro, que, como muitos outros, merece nossos aplausos. E a história perde seu ponto final à medida que revitalizamos a memória daquele que tributou à vida mais do que apenas uma presença biológica, física, penetrando no âmago do seu próprio espírito, porque ousou ser mais do que seus limites circunscreviam, do que seu tempo ideológico lhe determinava como ponto para avançar. Assim, Paulo Freire tornou-se eterno para o viver a Educação, pelo simples fato de que ousou avançar por águas mais profundas, em busca de encontrar-se com tantos outros e outras que precisavam do acesso à Educação com todas as suas possibilidades. 308
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Fica a lição de que educar é uma ação humana de quem avança sobre seu próprio tempo, sobre suas instituições, sua cultura, que naturalmente está sempre em constante expansão. E se, hoje, celebramos 90 anos desse grande mestre, celebraremos tantos outros aniversários dele e em nós, que carregamos na alma, no coração e no intelecto, um pedacinho desse marco da história da Educação brasileira. Paz eterna, Paulo Freire! Que se eternalize em cada um de nós e naqueles em que também deixarmos um pouco do que acolhemos de suas ideias. Assim confirmamos a acepção filosófico-teológica de que a memória que conservamos de uma pessoa a torna eterna, não só institucional mas também espiritualmente. Dom Robson Medeiros Alves OSB
Referências FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968. ________. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. SAUL, Ana Maria. A Cátedra Paulo Freire da PUC/SP. Revista E-curriculum, São Paulo, v.1, n.2, junho de 2006. Disponível em: <http://revistas. pucsp.br/index.php/curriculum/article/viewFile/3129/2067>. Acesso em 16 out. 2014.
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