Catia Antonia da Silva (org.)
Pensamento vivo e humanismo concreto em Ana Clara Torres Ribeiro O pensamento vivo e humanismo concreto em Ana Clara Torres Ribeiro
Catia Antonia da Silva (org.)
O pensamento vivo e humanismo concreto em Ana Clara Torres Ribeiro
Copyright© Catia Antonia da Silva (org.), 2014 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem a autorização prévia por escrito da Editora, poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados.
Editor João Baptista Pinto Revisão Rita Luppi Projeto Gráfico e capa Rian Narcizo Mariano Comissão científica Andrelino Campos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro Catherine Prost, Universidade Federal da Bahia Nilo Sérgio d´Avila Modesto, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
P467 O pensamento vivo e humanismo concreto em Ana Clara Torres Ribeiro / organização Catia Antonia da Silva. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Letra Capital, 2014. 80 p. : il. ; 23 cm. ISBN 9788577852437 1. Ribeiro, Ana Clara Torres. 2. Sociologia urbana. 3. Territorialidade humana. 4. Filosofia. I. Silva, Catia Antonia da. 13-08004 CDD: 307.760981 CDU: 316.334.5(81)
Letra Capital Editora Telefax: (21) 2224-7071 / 2215-3781 letracapital@letracapital.com.br
Apresentação
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ste livro é resultado de trabalhos apresentados no IV Seminário Nacional Metrópole: Governo, Sociedade e Território & III Coloquio Internacional Metrópoles em Perspectivas, ocorrido de 1º a 3 de outubro de 2013 na Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Os eventos que dialogam entre si tiveram como temas respectivamente: metrópoles dos invisíveis e ação social: tempo, espaço e movimento e “Contradições do desenvolvimento brasileiro no contexto da América Latina”. Trouxeram ao público uma homenagem a sua formuladora teórico-conceitual e metodológica: a professora doutora Ana Clara Torres Ribeiro. Comprometida com o desvendamento do mundo, criativa, estimulante e de rara inteligência nos ensinou a arte de pensar uma outra metrópole, e compreender a totalidade da vida urbanometropolitana – vida coletiva construída a partir dos sentidos das ações sociais e das experiências e formas de apropriação urbana. Nunca quis se prender ao economicismo e ao estadismo exagerado, tão dominantes na produção literária sobre a metrópole, que acabam conservando uma visão que não vê ou que não quer compreender a metrópole a partir do movimento da sociedade e dos sentidos da ação social. Enfim, em geral, tal produção ainda hegemônica não vê os interstícios da vida coletiva e que propomos nestes eventos valorizar. Trata-se de buscar alcançar o sujeito corporificado que, nas brechas e fraturas da cidade dominante, constrói a cidade popular como condição de compreensão da possibilidade de acessar e praticar o humanismo concreto. Entendemos a cidade, em suas diferentes escalas, como obra coletiva, perfazendo referência às contribuições de Henri Lefebvre1, também incorporadas por ela em sua reflexão. Deste modo, a proposta do tema Metrópoles dos Invisíveis e Ação Social: tempo, território e
LEFEBVRE, Henri. Presence et l´absence: contribution à la théorie des representations. Paris: Casterman, 1980. 1
movimento traz para o debate analítico, teórico e metodológico a possibilidade de se inventar, metodologicamente, caminhos que valorizem formas criativas e insurgentes da produção social nas/das metrópoles brasileiras e formas de resistências frentes às atuais formas de dominação e de criminalização da vida social. Esta edição do Seminário é uma proposta que reconhece (1) as formas de dominação que fazem do outro invisível ou invisibilizado, ou que produz uma visibilidade forjada, ou seja, uma imagem estereotipada – certa invenção distorcida do outro –, quer seja este outro uma pessoa, quer seja um grupo social quer seja um espaço da metrópole, o que é muito comum na operação dos instrumentos de comunicação e informação; (2) o humanismo concreto como abordagem que orienta o fazer científico e ação política que busca reconhecer o tempo lento da vida coletiva, as criatividades tecidas nas relações culturais, de trabalho, da produção do tempo presente das etnias, grupos e raças, que produzem a força da periferia e a força da vida coletiva popular; (3) as intencionalidades ocultas dos agentes dominantes que escondem ações e projetos (devir) e buscam manipular as formas de mediações e/ou as propostas resultantes dos fóruns de participação social. Os eventos pretendem articular reflexões acerca da relação entre a ação do sujeito corporificado, a experiência da presença popular na metrópole do capitalismo periférico e os saberes que permitem a sobrevivência em contextos antagônicos (RIBEIRO, 20122). Pretende ainda contribuir na leitura dos “espaços opacos” (SANTOS, 19963) que abrigam as resistências e nas lutas territorializadas e que evidenciam disputas de projetos e desenham futuros possíveis. Neste livro, especificamente, dedicamos a apresentação de diálogos dos autores com a obra de Ana Clara Torres Ribeiro. São os autores dos artigos: Catia Antonia da Silva, Lilian Fessler Vaz, Julia Adão Bernardes e Anita Loureiro de Oliveira, que dialogam com a proposta dos eventos e que apresentaram na mesa-redonda 1: Vida urbanometropolitana, território e ação social: a produção da teoria da (in)visibilidade e a compreensão do tempo presente – mesa de homenagem à Ana Clara Torres Ribeiro, precursora do evento, que desde 2003 (primeira edição) nos ajuda a ver e abordar uma outra leitura de metrópole. RIBEIRO, Ana Clara Torres. Por uma sociologia do presente: ação, técnica e espaço. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2012. 3 SANTOS, Milton. A natureza do espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. São Paulo: Hucitec, 1996. 2
O primeiro artigo busca refletir sobre a contribuição da obra de Ana Clara Torres Ribeiro naquilo que a autora Catia Antonia da Silva denomina de Geografia das existências, valorizando a abordagem da totalidade do espaço e as possiblidades da episteme dialógica na relação entre sujeito pesquisador e sujeito estudado. O artigo de Lilian Vaz remete a um rico debate sobre as formas de resistências ao articular reflexões de Ana Clara Torres Ribeiro com as leituras sobre o “Buen Vivir” explicitados por Gudynas e Boaventura Santos. O artigo de Julia Adão Bernardes tem o propósito de salientar a importância do aporte conceitual, teórico e metodológico da socióloga Ana Clara Torres Ribeiro e de como o mesmo pode ser traduzido em pesquisas concretas. Enfatizar que o texto levou em consideração principalmente os cursos “Teorias da ação: política, território e vínculo social” (2007) e “Teorias da modernização” (2000), além de anotações de conferências proferidas e textos escritos por Ana Clara. Anita Loureiro de Oliveira apresenta em seu artigo análise que contribui para a reflexão sobre as resistências frentes aos atuais processos de modernização. Lembra a autora que o real está repleto de matizes, complexidades, mudanças e transições e a sua proposta é desvendá-lo de modo compromissado e rigoroso, mas também combinando a crítica, a criatividade e a liberdade de pensamento. Apresenta a proposta de consolidação de uma episteme dialógica, sensível e criativa, tal como nos orientava Ana Clara Torres Ribeiro. É fundamental ainda agradecer a Francisco Ribeiro, Hector Poggiesse e Maria Luiza Testa Tambellini e Tamara Tania C. Egler que participaram da mesa de homenagem à Ana Clara Torres Ribeiro. Agradecemos também ao diretor da FFP-UERJ, Manoel Martins de Santana Fillho, à sub-reitora de Extensão e Cultura da UERJ, Regina Lucia Monteiro Henriques. Agradecemos às agências de fomento CAPES e FAPERJ pela crença na importância dos eventos, e especificamente à FAPERJ pelo apoio a esta publicação.
Prefácio Thais de Bhanthumchinda Portela
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livro em suas mãos apresenta o seguinte desafio: como o pesquisador acadêmico pode inventar repertórios teóricos e metodológicos que possam revelar os inúmeros modos de dominação da vida coletiva e de opressão das resistências presentes no tecido social pelo/para o desenvolvimento hegemônico e, a partir do referencial teórico legado por Ana Clara Torres Ribeiro. É-me imprescindível,, para tratar da riqueza das respostas dadas ao desafio do livro, lembrar da ação cotidiana de Ana Clara como professora/orientadora e articuladora de redes de pensamento sobre o social brasileiro. Sempre me impressionou a capacidade da mestra de escutar e dialogar com as diferenças. Seus orientandos eram não apenas de disciplinas variadas (economia, arquitetura, sociologia, geografia, história...) como traziam repertórios teóricos distintos (marxistas, estruturalistas, pós-estruturalistas). E as redes? Ana Clara podia ser vista dialogando com os economistas do BNDES, com grupos de pesquisa distintos e com lideranças comunitárias. Como dar conta de universos tão abrangentes e muitas vezes divergentes? Ana Clara aprendia. Ela tinha o hábito da aprendizagem sobre/com os Outros. Até aqui poderíamos falar que se trata do mesmo hábito de qualquer pesquisador. Mas ao invés de buscar a ação no mundo e “convertê-la” ao seu repertório teórico-conceitual, dando-lhe “doutrina” e construindo “igrejas”, Ana Clara encarnava o saber do Outro, convivia e abria espaço para/com eles sem fundar um discurso único, num exercício cotidiano de construção da liberdade do pensamento e da práxis, raro no mundo acadêmico atual. Como ela fazia isso? Valorizando o pensamento Outro, exigindo que ele fosse apresentado em seus próprios termos – que cada um criasse seu repertório com autonomia e autoestima e que fizesse o mesmo
com os sujeitos com quem se trabalhava. Essa era a potência de sua ação, cada um que se aproximava, por mais diferente ou divergente que fosse, afastava-se mais forte e mais valorizado em sua própria ação. E isso pode ser presenciado na construção deste livro. Catia Antonia da Silva, Lilian Fessler Vaz, Julia Adão Bernardes e Anita Loureiro de Oliveira são pesquisadoras, cada qual com seu próprio repertório teórico-conceitual em diálogo com a vasta obra de Ana Clara Torres Ribeiro, que conseguem criar discurso e reflexão teórica para as variadas formas de resistências frente a atual gestão política da dominação e da criminalização da vida presentes na esfera e no espaço público. Elas se apropriam dos conceitos chave de Ana Clara: tecido social, vida coletiva, humanismo concreto, mercado socialmente necessário, desenvolvimento local e arte de resolver a vida, gestos cotidianos, envolvimento no lugar de desenvolvimento, sujeito social corporificado; cada autora de modo particular, inventando seu próprio arcabouço teórico-conceitual. Vejo a importância da ação presente na pesquisa dessas autoras quando me lembro de Kenneth Locke Hale, linguista e pesquisador do MIT falecido em 2001. Ele dizia que dos 6.000 idiomas falados na Terra, 3.000 já não eram falados pelas crianças. Em uma geração a diversidade cultural no mundo deveria ser reduzida para a metade. Ele dizia também que a cada duas semanas, uma pessoa idosa ia para a sepultura carregando a última palavra de um saber. Assim, toda uma filosofia, uma área de conhecimento sobre o mundo que tinham sido, empiricamente, recolhidos ao longo dos séculos, deveria desaparecer. O Brasil, que como Ana Clara dizia, são muitas nações e não apenas uma, vivencia esse processo a cada instante. Estamos envoltos em uma gestão política do tempo e do espaço que anda dizimando não apenas saberes seculares como também saberes novos inventados no cotidiano e precisamos de trabalhos, que como esses, transpirem o “Viva a vida!” Boa leitura a todos!
Sumário Um desafio epistemológico e metodológico: por uma geografia das existências........................................................... 13 Catia Antonia da Silva Viva a vida! Uma homenagem a Ana Clara Torres Ribeiro.................... 27 Lilian Fessler Vaz Modernização e território no Vale do Araguaia...................................... 39 Júlia Adão Bernardes A ciência e a escuta das vozes insurgentes vindas das ruas: resistências e manifestações político-culturais no Rio de Janeiro.......... 49 Anita Loureiro de Oliveira
Um desafio epistemológico e metodológico: Por uma Geografia das existências Catia Antonia da Silva1
Introdução: em busca do método No seu livro Lógica formal, lógica dialética, Lefebvre (1983) reflexiona que é fundamental produzir um princípio científico aberto, tanto do ponto de vista do método, quanto do ponto de vista da episteme. A aproximação com os pescadores como sujeitos sociais, portadores de um sentido próprio de fazer e de ler a natureza, a qual não é para eles uma metáfora, fez-nos reexaminar a necessidade de superação dos campos setoriais (geografia urbana, geografia econômica, geografia política e geografia cultural) dentro da Geografia como ciência do social. A natureza é uma das condições concretas do trabalho desses homens e mulheres. Em contextos urbanometropolitanos a natureza é violentamente transformada pelos altos índices de poluição e de intervenções urbanas – industriais, urbanização, cercamento e proibição das áreas de navegação e extração de pescado. Deste modo, partimos da problemática do trabalho urbano para compreender a pesca artesanal e esbarramos com um conjunto de dificuldades analíticas imensas, que as nossas referências conceituais eram demasiadamente pobres para superar. Discutir sobre a apropriação espacial da pesca artesanal não cabe simplesmente como debate econômico, ou do trabalho, ou cultural. Superá-las exige compreender a totalidade de uma atividade que se mostra econômica-cultural-social e política numa forte imbricação com a produção social do espaço conforme ensina Henri Lefebvre em seu livro Direito à cidade, quando analisar a cidade como obra de muitos. 1
Docente associado PPGHS, PPGG, Departamento de Geografia da FFP-UERJ.
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Nesta direção de busca epistêmica no sentido de compreender a dimensão do cotidiano praticado no bojo da busca da totalidade já proposta por Milton Santos no livro Natureza do Espaço (1996), e Ana Clara Torres Ribeiro (2005, 2006) nos ajuda a pensar sobre o “sentido das ações”, ou seja, cumpre deixar de ver de o Outro como sujeito, com referências externas a este outro, sem simplesmente explicar os atos e agir a partir do lugar do observador, com todo seu julgamento de valor (já ensinado por Max Weber, 2000). Inspirado nesta abordagem, vemos que é fundamental compreender o sentido da ação social dos pescadores. Nos ensinamentos de um diálogo profundo que realizamos com a socióloga Ana Clara, tratava-se, em verdade, do diálogo epistemológico travado entre a Sociologia e a Geografia. A Sociologia ensinada por Ribeiro é aquela que chama a atenção para o rigor teórico no significado do que é social, do que é ação social e do que é o “sentido” da ação social. O sentido não é do pesquisador. O sentido deve ser compreendido a partir do sujeito que se estuda, compreendendo seus pensamento, suas atitudes, suas angustias e seus desideratos. Trata-se da possibilidade de rupturas da relação sujeito pesquisador-objeto (observado) para sujeito (pesquisador) numa postura dialógica, como já ensinada por Morin (1992). Daí, alguns desafios contribuíram para a consciência sobre o próprio fazer científico em curso. Ao pensar o próprio fazer – fazendo – tivemos a consciência da problemática da pesca artesanal que somente poder ser explicada à luz da compreensão da relação entre o Estado, a sociedade e o território, quando se compreendem as relações políticas que tecem as formas institucionais da pesca artesanal. O objetivo desse artigo é propor novos ensaios que permitam contribuir à Geografia, por meio de reflexão de sua episteme e seu método, identificando novas possibilidades para compreender o tempo presente e as formas de lutas a partir da proposta da Geografia das existências, que dialoga com a proposta de Ana Clara Torres Ribeiro e de Milton Santos. Neste trabalho, apresentamos também os elementos epistêmicos conceituais e históricos que orientam o método de Ribeiro e que nos ajuda a pensar o espaço geografia na sua possibilidade existencial (cotidiano praticado pelos sujeitos) na escala da vida coletiva horizontal.
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Refletindo sobre o sujeito social e a nova episteme Compreender a problemática epistemológica já percebida por Engels sobre a leitura cientificista do que é natureza, ajuda a compreender os princípios da dicotomia entre homem e natureza, entre cultura e natureza, dicotomia essa que não tem servido senão para produzir fragmentações profundas de sentido de ação. Quase sempre, o pescador artesanal extrai em pequena escala os “frutos do mar”, compreendido por nós como sujeito social, porque é capaz de realizar sua ação e compreender o sentido de estar no mundo, frente às possibilidades e ao conjunto de problemas experimentados no seu cotidiano. Eles veem a necessidade de proteger a natureza como condição de manutenção de homens e mulheres na atividade, e de manter seus saberes e técnicas constituídas como heranças culturais que nela muito bem estiveram e com ela muito bem souberam lidar na sua produção de história e de cultura da pesca no Brasil e na América Latina2. Ao analisar a pesca artesanal, bem se nota quanto dela se distingue a pesca de larga escala, cuja produção não apenas é, por si só, muito predadora e devastadora, como ainda vem de permeio com a falta de saneamento, com a poluição industrial e com obras que mudam a dinâmica da natureza. No diversos trabalhos de campo realizados no Rio de Janeiro, e bem assim em contatos com pescadores da Bahia e do Rio Grande do Sul, a percepção de natureza e o desejo de cuidado apontado por estes pescadores aparecem como preocupação importante entre eles, pois estão pensando, sobretudo, na manutenção da pesca para as gerações futuras, e nos fazem pensar no exercício importante que é romper com a oposição entre homem e natureza. Interessante este debate que nos leva a indagar com a Sociologia e com as Teorias do Conhecimento em que a Filosofia pode nos ajudar a transcender a nossa imanência diária do fazer cientifico, muitas vezes rotinizado (SILVA, 2012), e buscar uma orientação metodológica que altere a relação entre o sujeito do conhecimento e o objeto do conhecimento. Esta nova episteme, como o observa Ribeiro (2006), requer que se supere a limitação de ver os pescadores artesanais como objetos estáticos e como incapazes de pensar sobre sua própria condição social e histórica. Em maio de 2013 observamos as lutas e o universo cosmológico, social, cultural, econômico e político dos pescadores peruanos da cidade de Chorrilhos, área metropolitana de Lima.
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Ao mesmo tempo a nova episteme questiona a arrogância dos sujeitos do conhecimento, os pesquisadores, gestores e técnicos que parecem capazes de procurar soluções, mas que na maioria das vezes o que fazem é reproduzir a rotinização, a burocratização e a abstração do saber que consistem em explicar o outro sem ouvir profundamente as questões e problemas que esse outro expõe, ou seja, relatando cientificamente o agir do outro sem saber de fato qual é o sentido da ação dele. Esta mudança necessária de sentido de fazer ciência apoia-se em autores e pensadores tais como Zaoual (2006) – economista marroquino que aponta a necessidade de compreender os sítios como uma relação existencial dos grupos com a sua relação econômica, social e política. O sítio é o lugar – território existencial, cuja linguagem e sentido somente podem ser compreendidos diante e para dentro do grupo. Neste sentido, Zaoual (2006) reconhece que na África o mercado é categoria social e relacional complexa e que a explicação simplesmente pela orientação da abordagem do mercado capitalista, ou seja, o mercado globalizado, mercado abstrato, impede ou torna invisível a complexidade das relações societais e da luta pelo sentido das ações. Interessante notar que na nossa análise da relação entre o trabalho e economia incorporamos a política – na análise das relações entre a pesca artesanal, o território e o Estado, incorporamos a cultura como possibilidade de compreender aquilo que não é visto imediatamente, que são o sentido das ações e o dos saberes. No sentido da criatividade e das técnicas mediadas pelo trabalho, as parcerias entre os pescadores são mediações diferentes das do trabalho assalariado, porém no trabalho compartilhado, orientando pela confiança, a norma das relações é tecida pelo grau de confiabilidade tecida nas relações da oralidade e da amizade e não da burocracia legal ou documental, comum ao trabalho assalariado. Na leitura marxista ortodoxa, a pesca artesanal apareceria como acumulação primitiva, pela presença dos pescadores como portadores de seus meios de produção, conforme orienta Diegues (1983). Mas, nesta leitura baseada na compreensão histórica dos estágios de desenvolvimento da humanidade, a pesca apareceria como tradição a ser superada. Aliás, independentemente da abordagem marxista, observamos em outras abordagens o desejo da superação dessa forma artesanal de extração e produção, para a valorização da pesca industrial e da aquicultura.
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Quando o fenômeno altera o método científico: a necessária passagem do tema ao problema Deste modo, a nossa proposição de compreender a Geografia como ciência, a partir da pesca, ultrapassa o limite de ver o fenômeno como tema para vê-lo como possibilidade de criar uma dialética epistêmica (pensar o fazer, pensar a ontologia do ser – do ser no espaço, da natureza do espaço, conforme minuciosamente explica Santos (1996). Ao analisar o fenômeno da pesca para melhor compreendê-lo, significa alterar o entendimento do que é Geografia. Lefebvre, no seu livro Direito à Cidade (2001), reconhece a cidade como obra. Esta afirmação muitas vezes passa como uma argumentação conceitual, quando, na verdade, o autor, enquanto filósofo, estava questionando a leitura dominante que apenas reconhece os grandes agentes da produção social do espaço. O espaço como obra é obra de muitos, de muitas ações, de muitos sentidos das ações. Neste contexto, ampliamos a nossa apreensão para a análise do ser pescador como um lugar social, composto por espacialidades próprias que não são demostradas somente pelas relações de poder – próprias da territorialidade (geografia do poder), mas tecidas na espacialidade como possibilidade de compreender as relações desses pescadores, produtores de saberes por meio do cotidiano praticado. O conceito de homem ordinário, de Michel de Certeau (2009), ajuda na afirmação sobre a reflexão de que ao produzir suas espacialidades tecidas no cotidiano, nos trajetos de casa ao trabalho, nos trajetos e redes sociais, nas leituras de espaço, nos glossários e verbetes sobre termos específicos, estão os pescadores produzindo uma linguagem e sentido próprio de seu fazer, uma leitura de mundo, como também ensina Lefebvre (1983) – produz-se um espaço concebido no diálogo com o espaço vivido e em confronto com o espaço concebido pelos agentes dominantes e pela norma legal. Por isso o saber construído pelo cotidiano praticado, como dizem os pescadores, “não se aprende na escola”, não se aprende com as institucionalidades do Estado, nem se prende no papel. Aprende-se pela oralidade, pelos trajetos e errâncias (JACQUES, 2012), aprende-se nos debates e no trabalho, pelas formas como são tecidas as sociabilidades. Por isso, ao ver o ambiente modificado, a poluição impregnada, a desconstrução espacial, instaura-se no sentimento do pescador a sensação de perda do norte, do
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lastro e do leme, ou seja, a crise de autoestima se instala e fortalece com os espaços luminosos que, por meio dos órgãos ambientais, criminalizam o pescador, e que lhe desvalorizam e julgam negativamente o trabalho. Além disso, os agentes modernizadores apresentam em vitrines outras formas de trabalho, sobretudo no contexto do urbano – a diversidade e a complexidade de trabalho, atividades e possibilidades de estratégias do fazer – que confronta expressivamente com o ser pescador. Aqueles que resistem são geralmente os adultos e idosos; os mais jovens vivem a crise societal de forma mais profunda, que se anuncia como crise do trabalho, crise de sentido, crise do fazer, crise do ser pescador. Na busca da totalidade analítica, tão questionada e ambicionada pelos filósofos, se partimos do espaço geográfico, o pescador tem pouca visibilidade. Se partimos do ser para o mundo, conforme ensina Sartre (2011), há que reconhecer que o humanismo se fortalece na sua relação com o existencialismo. Partindo do espaço, do mundo para o pescador artesanal, esbarramos com uma complexa teia de julgamentos de valores, de cisões e fragmentações engendradas pela força acelerada da modernidade e das formas de modernização. Para essa força, o pescador precisa desaparecer ou não aparecer, apesar de que “o camarão e o peixe fresco são gostosos, muitos saborosos e apreciados”. Num processo profundo de alienação e de feitiche da mercadoria, o pescador vira uma metáfora – um ser poético, uma pintura, um nome bonito de restaurante à beira-mar. Partindo do ser pescador para o mundo, esse sujeito que trabalha de noite e de madrugada, quando a sociedade urbana costuma dormir, é amigo da solidão, gosta de estar com seus parceiros comuns e olhar as estrelas, ele que conhece os ventos, adora o balançar das ondas e das marés. Este ser em geral está no mundo, mas vive o mundo diferente da sociedade global (SANTOS, 1996). Ora, a totalidade que buscamos necessita ser dialética e profundamente dialógica para compreender a geografia que vem sendo produzida no fazer do tempo presente, que estamos denominando de Geografia das existências. Estamos em busca de uma geografia das existências, não se trata de mais um campo para a Geografia, que, uma vez instituído, empobrece a disciplina, devido ao risco de dificuldade de diálogo interno amplo e neces-
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sário ao estudo geográfico e à sua conformação como disciplina no campo das Ciências Humanas. Por uma geografia das existências é uma proposta de “consciência do fazer” que fazemos aqui e agora e que interfere na formação de gerações de geógrafos, quer sejam bacharéis quer sejam professores. A geografia das existências busca possibilidades sobre o uso de novos metódos de pensar, que reconheça a dialética da dominação e da resistência e insurgência como um processo que somente pode ser compreendido como totalidade.
Contribuições de Ana Clara Torres Ribeiro na compreensão da totalidade do espaço A socióloga Ana Clara Torres Ribeiro produziu, na sua trajetória acadêmica, uma leitura de mundo que permite forte diálogo com várias disciplinas: Planejamento Urbano, Geografia, Urbanismo, Comunicação, Saúde, Antropologia, Educação e História. Com a Geografia, seu longo diálogo com Milton Santos, dentre outros geógrafos. Dentre suas muitas contribuições para alavancar o pensamento social e científico no Brasil e na América Latina, ao produzir um conjunto de argumentações e teorizações que contribuem de fato para a compreensão do conceito de território usado de Milton Santos, bem como dar densidade à compreensão do urbano, dos processos nacionais do capitalismo periférico ao valorizar a totalidade analítica e dialética como possibilidade epistemológica. Esta totalidade se inscreve no conjunto de sua obra no aprofundamento reflexivo sobre as formas de dominação política, cultural, nos contextos urbanometropolitanos, que contribui para o pensar sobre as grandes formas de dominação burocrática, e também simbólica e imagética da vida social do tempo presente. Para ela, esta dominação precisa ser compreendida no diálogo entre a relação sociedade/Estado/território, mediado por um conjunto de conceitos que tentarei apresentar aqui. Destacamos os seguintes conceitos: ação estratégia, vida urbanometropolitana, produção social e agenciamento da cultura, dominação das formas de comunicação e sociabilidade, crise societária, mercado e ação estratégica, paradigma administrativo, impulsos globais, criminalização do social (RIBEIRO, 2006, 2005, 2011, 2012, 2013). O processo da dominação, portanto, passa, segundo Ana Clara, pela
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disputa de projetos, de ações, de imposição de ações e de disputa de sentidos do futuro e de explicação social do mundo. Ensina ela que as formas de opressão ocorrem com os grandes mecanismos institucionais do Estado, mas acontecem também nas relações cotidianas, na vida social, nas cenas e fórum públicos quanto às participações sociais que são manipuladas e os gestos que são portadores de agressividades sutis: Existem elos (ir)relevantes entre cotidiano, lugar, indivíduo e pessoa. Através desses elos, tudo acontece e adquire sentido, permitindo a individuação e o pertencimento, e também nada importa ou tem significado, já que cada gesto pode ser envolto em enredos da cotidianidade alienada e na indiferença. Essas ondulações da tessitura do social, inscritas no chão de historicidade, construídas por influências institucionais... formam as condições espaço-temporais da ação social. É nessas condições que a sociabilidade pode ser alimentada ou destruída por uma atitude, um gesto, uma palavra, um sorriso ou um olhar. Por sua inscrição em numerosos e incertos eventos, a sociabilidade tende a escapar do pesquisador, entre as malhas da rede de conceitos acionável para o estudo dos contextos sociais. (RIBEIRO, 20053, p. 416).
Na busca pela nova episteme, reconhece na importância da totalidade o seu reverso, o reverso da dominação que ela gostava de denominar de resistência, insurgência, no qual a ciência deveria valorizar o “espaço banal” e os “homens lentos” de Milton Santos como possibilidades de identificar o simples, a arte de viver, a criatividade possibilitadora. Via a grande necessidade de compreender e valorizar o simples, o banal, pois, para ela, consiste em outras possibilidades de identificar outras formas de superação das formas de opressão: a festa, que é diferente do espetáculo (ação estratégica voltada para o lucro); a cartografia da ação social como possibilidade de compreender as ações dos sujeitos, suas estratégias e táRIBEIRO, A. C. T. Sociabilidade hoje; leitura da experiência urbana. Caderno CRH, Salvador, vol. 18, nº 45, p. 411-422 set./dez, 2005.
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