Victor Leandro Chaves Gomes
Política e a i c cên Aquies amsci r G o i n o em Ant
Copyright© Victor Leandro Chaves Gomes, 2015 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem a autorização prévia por escrito da Editora, poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados.
Editor João Baptista Pinto
Revisão Abigail Ribeiro Gomes
Editoração Rian Narcizo Mariano
Capa Yuri Alcantara
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ G612p Gomes, Victor Leandro Chaves, 1976Por que os homens não se rebelam? : aquiescência e política em Antonio Gramsci / Victor Leandro Chaves Gomes. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Letra Capital, 2015. 110 p. : il. ; 21 cm. Inclui bibliografia ISBN 9788577853137 1. Gramsci, Antonio, 1891-1937. 2. Ciência política. I. Título. 15-19104 CDD: 320 CDU: 32 09/01/2015
09/01/2015
Letra Capital Editora Tels: (21) 3553-2236 / 2215-3781 letracapital@letracapital.com.br
Victor Leandro Chaves Gomes
POR QUE OS HOMENS Nテグ SE REBELAM? Aquiescテェncia e Polテュtica em Antonio Gramsci
Para Sophia
Agradecimentos Este livro é resultado da minha dissertação de mestrado, em Ciência Política, defendida ainda no antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) – atual Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP), vinculado à Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) – com o fundamental auxílio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Trata-se de uma etapa específica, para não dizer introdutória, da minha formação intelectual e, exatamente por isso, procurei me ater à versão original do texto como forma (in)consciente de recuperar o ambiente e o frescor da época em que foi apresentada. Inúmeras pessoas foram de significativa importância para a concretização deste momento. Neste sentido, aproveito a oportunidade para devotar a todos meus sinceros agradecimentos. Aos meus pais, Alberto e Tânia, pelo incentivo, afeto e ensinamentos constantes em todos os instantes desta inusitada e emocionante travessia chamada vida. À minha encantadora filha, Sophia, a quem dedico este livro por razões que talvez pareçam óbvias. Sua chegada em minha vida trouxe a percepção exata dos versos do poeta Mario Quintana, para quem “amar é mudar a alma de casa”. Hoje, não apenas minha alma trocou de endereço, como meu conceito básico de felicidade passa, necessariamente, por vê-la feliz. Obrigado, de coração, filha, por ser ao mesmo tempo minha maior fonte de aprendizado e de inspiração. À minha esposa, Isabel Cristina, por sua capacidade de transformar o nosso cotidiano em uma experiência incomparável e inesquecível. Sinto-me profundamente agraciado por tê-la ao meu lado. Grato demais por tudo, particularmente pelo carinho e companheirismo. Aos meus familiares, em especial, à minha querida e saudosa avó Nina; ao singular tio Paulinho; aos meus padrinhos, Jean e Ângela; aos meus sogros, Toninho e Maria Isabel; além das minhas Por que os homens não se rebelam? 7
eternas “crianças” Thaís, Hannah, Carolina e Thiago. Tê-los próximos é, e sempre será, uma dádiva. Aos admiráveis amigos Cleber Andrade, Luís Octavio Gomes de Souza, Fabrício Teixeira Neves, Augusto de Oliveira, Luciano Cerqueira, Célio Pitanga, Carla Soares, Bárbara Dias, João Martins Ladeira, Valéria Rodrigues Dias de Souza, Rosalia Barbosa Gonzalez, Simone de Oliveira Sampaio, Angela Mara Ribeiro Lima, Francisco das Chagas, Tatiana Bulhões, Paulo Cesar Gil Ferreira Júnior, Jaime Benchimol, Marcio Magalhães de Andrade, Maurice de Souza Gama, José Alan Dias Carneiro, Marilda Mendes, Sergio Lamarão, Reuber Scofano, Caio Bechtlufft, Agnes Weidlich, Luiz Bruno Dantas, José Márcio, Cidinho, Alex Guimarães, Daniel Simões, Beto Vieira, Michel Gherman, Felipe Brito, Alessandro Carvalho, Rodrigo Silva Lima, Renan Aguiar, Ivan Simões Garcia, Rogerio Borba, Sergiane Assunção, Vany Pessione, Raquel Lopes de Oliveira, George Soares, Abigail Ribeiro Gomes, José Cristiano da Silva, Ana Lole dos Santos, Hélio de Lena Júnior, Wellington Trotta, Carlos Eduardo Rebuá, Paulo Gajanigo, Marcio Melo Malta, Andréa Osório, Flávio Sarandy, Carlos Eugênio Lemos, George Gomes Coutinho e Luiz Eduardo Motta. Cada um, à sua maneira, contribuiu imensamente para que o autor conseguisse manter sua relativa sanidade em tempos de crise. Aos sensacionais companheiros Mauro de Mello Mattos, Mariana de Mello Mattos, Rejane Dantas Cavalcanti e João Baptista Pinto Silva. Sem sua inestimável ajuda este livro definitivamente não seria possível. De fato, pessoas cativantes como vocês têm a vocação da eternidade por mostrarem que ainda há espaço neste mundo, cada vez mais embrutecido, para o desprendimento e para a solidariedade. Aos camaradas do Laboratório de Estudo Marxistas José Ricardo Tauile (LEMA), do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pela ilustre possibilidade de contribuir minimamente para este intrépido e valoroso centro de referência acadêmica.
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Aos integrantes e colaboradores do Núcleo de Estudos Gramscianos (NEG) e do Laboratório de Estudos em Política Internacional (LEPIN/UFF) por nunca permitirem que o “pessimismo da inteligência” inviabilizasse o “otimismo da vontade”. Aos meus colegas de trabalho do Instituto de Estudos Estratégicos (INEST) da Universidade Federal Fluminense (UFF) pela oportunidade única de integrar um corpo docente tão comprometido, íntegro e qualificado. Aos meus perseverantes alunos, razão primeira da minha profissão e cada vez mais partícipes na missão expressa de disseminar o pensamento crítico mesmo que em doses paulatinas, quase imperceptíveis. Ao professor e generoso amigo Giovanni Semeraro, um dos mais importantes intelectuais gramscianos da atualidade. Pensador gregário e genuíno educador, ainda me concede a honra de escrever a orelha deste livro. Grazie sempre! Ao quadro docente do antigo IUPERJ, atual IESP, especialmente, ao professor Adalberto Cardoso, que muito me instigou a alçar voos acadêmicos mais ousados, e a quem eu tenho a satisfação e o privilégio de contar como o meu prefaciador. Ao meu estimado orientador, Cesar Guimarães, a quem tive a felicidade de conhecer e perceber que por meio da sua erudição, simplicidade, competência e principalmente bom humor os conturbados meandros de uma dissertação de mestrado podem parecer serenos. Jamais serei capaz de expressar a real dimensão da minha gratidão pela sua reciprocidade e dedicação no transcorrer da nossa convivência. Obrigado demais por sua confiança!
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Apresentação O livro de Victor Gomes é uma oportuna incursão a tema importante e difícil a que se dedica a reflexão política ocidental desde seus primórdios. Por que a obediência a governos? Por que a obediência, mesmo quando governos são tirânicos? Por que a revolta é incomum, rara a rebelião? E por outra parte: como governantes garantem a aquiescência dos governados? Sendo minoria, bastalhes o uso da força e as vantagens da organização ou precisam dispor de recursos de persuasão e (ou) legitimação? É um caminho longo este por que se interessa o autor. Platão o inaugurou e, mais recentemente, Weber e Gramsci muito nos disseram sobre ele, inspirando literatura ainda mais recente e produção que continua a renovar-se. Gramsci, contudo, é quem maior atenção recebe neste belo trabalho de Victor Gomes, que por isso mesmo se dedica a um entendimento próprio da noção de hegemonia na acepção em que o revolucionário italiano a utilizou. E em seus dois aspectos indissociáveis: força e consentimento, coerção e persuasão ou, em leitura diversa, poder e autoridade. Gramsci é autor mobilizado por quem, teórica e (ou) politicamente, se situa à esquerda do espectro político. Há de ser o caso de Victor Gomes, cabendo ressalvar que a esquerda melhor se descreve como um conjunto de esquerdas, hoje em dia mais ainda que no passado. De qualquer forma, vale observar que, até recentemente, o conceito gramsciano era invocado de uma forma ativa pelo pensar e (ou) agir de esquerda: como conquistar a hegemonia na luta política na e contra a ordem burguesa? Melhor valorizar a lenta guerra de posições do que estrondosa guerra de movimento? O sujeito histórico da conquista hegemônica é o Moderno Príncipe, ou seja, o partido político da formulação gramsciana. A preocupação fundamental estava em seu sucesso na empreitada da(s) esquerda(s). Por que os homens não se rebelam? 11
Subsidiariamente, mas não sem enorme importância, o conceito mostrava também seu poder analítico no entendimento da aceitação da ordem burguesa pelas massas e Americanismo e Fordismo é um clássico sobre a questão. Um clássico sobre o que se poderia considerar o aspecto passivo de hegemonia, sua aceitação legitimada, ou seja, aquilo a que Victor Gomes se refere como aquiescência, com o auxílio forte de La Boétie e de Foucault. A escolha analítica do autor é interessante, original mesmo, e nada tem de gratuita ou especiosamente acadêmica. Centra-se realisticamente no núcleo decisivo da obediência política em um mundo novo repleto de “democracias de livre mercado”, em relação às quais, no dizer de uma estadista de ocasião, “não há alternativa”. Victor Gomes sabe que a alegada ausência de alternativa às pequenas pompas e semigloriosas obras do neoliberalismo é um dos recursos retóricos de produção desta específica aquiescência a cujo estudo se dedica. É o que melhor descreve e analisa. Com adequado e corajoso realismo, acrescenta-se ao conjunto em expansão dos descontentes com a mesmice conservadora, cujo poder coator e persuasivo é enorme, mas já não é tão grande ou tão assustador. Cesar Guimarães Professor de Ciência Política do IESP/UERJ
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Prefácio Em meados da década de 1960 o mundo ocidental experimentava certa euforia apologética das virtudes do capitalismo organizado, ou seja, o capitalismo regulado pela social-democracia que, se imaginava, incluíra as massas trabalhadoras no mundo do consumo antes exclusivo das classes proprietárias ou das classes médias. Não foram poucos os autores que alardearam o “fim das ideologias”, o “fim das utopias”, ou o fim de projetos não-capitalistas de superação das desigualdades sociais e da exploração do trabalho. A utopia socialista e a revolução social que lhe traria à luz já não estariam no horizonte das massas trabalhadoras, agora mais interessadas em dar conforto a suas famílias e em usufruir das “benesses da civilização”, ambos assegurados por um Estado benefactor responsável pela redistribuição da renda produzida pelo trabalho na forma de serviços sociais universais. É o que ficou conhecido como “pacto social-democrata”, pelo qual os trabalhadores teriam enfim reconhecido a legitimidade do capitalismo (ou seja, a apropriação privada da riqueza socialmente produzida pelo trabalho) em troca de participação política e acesso à riqueza social. Essas leituras foram postas em questão (e na verdade surpreendidas) pelo intenso conflito social que varreu a Europa e, em parte, os Estados Unidos entre 1968 e 1974. Este conflito repôs na ordem do dia o problema da exploração do trabalho, ao lado de questões culturais mais gerais como os direitos das mulheres, dos negros, dos índios, dos jovens e de outras “minorias”, expondo assim um mal-estar civilizatório que a pretensa “paz” anterior teimava em esconder. O que teria acontecido? Qual a origem do mal-estar em sociedades que se acreditavam, ao contrário, de bem-estar social? Dentre os muitos vilões apontados pela teoria social de então estava o “trabalho em migalhas”, ou seja, a organização tayloristafordista do trabalho que condenava o trabalhador a tarefas rotineiras, cansativas, desinteressantes, não-qualificadas e, sobretudo, Por que os homens não se rebelam? 13
organizadas de forma hierárquica e autoritária. A democracia e a satisfação pessoal não vigoravam nos locais de trabalho. Em uma versão que se tornou corrente nos meios sindicais e políticos, era como se, ao vestir o macacão funcional, o trabalhador se despisse de sua cidadania, de sua dignidade e, mesmo, de sua humanidade. A social-democracia convivia com despotismo fabril, algo invisível porque confinado no mundo das relações privadas de trabalho; e convivia, também, com relações sociais, raciais e de gênero francamente autoritárias. É essa convivência que se teria mostrado explosiva no final dos anos 1960. Esse argumento busca explicar, aparentemente, “por que os homens se rebelam”, ao contrário do que pretende Victor Gomes neste livro. Afinal, operários, estudantes, negros, mulheres, foram todos às ruas no final da década de 1960, cada qual por motivos próprios, mas todos contra alguma faceta da ordem capitalista então vigente. A questão, porém, é: por que, desde então, nunca mais o mundo ocidental viu movimentos de massa da mesma natureza e violência, principalmente considerando que, de meados dos anos 1970 para cá, os Estados de Bem-Estar vêm perdendo densidade como mecanismos de proteção social? Ou seja, agora que as bases sociais do “pacto social-democrata” parecem solapadas pelos movimentos do mercado, o que impede que as pessoas mais frontalmente afetadas por esse processo se rebelem contra a perspectiva de perda de direitos e bem-estar? Esse rápido panorama tem o único propósito de mostrar a recorrente atualidade do problema da obediência e da aquiescência política em sociedades marcadas por clivagens sociais e econômicas profundas, problema sempre reposto nas mais diferentes (e por vezes, aparentemente pacíficas) conjunturas. O mérito deste trabalho de Victor Gomes é justamente chamar a atenção para isso e, ao mesmo tempo, brindar-nos com uma genealogia do problema da aquiescência para além dos dogmas de uma ou outra escola de pensamento. Ainda que o marxismo seja uma fonte permanente de inspiração, é em La Boétie e seu Discurso sobre a Servidão Voluntária, texto do século XVI, que o autor vai marcar o início 14 Victor Leandro Chaves Gomes
de seu inquérito. Ele então avança, por vezes de forma angustiada, através da obra de pensadores do porte de David Hume, Georg Lukács, Michel Foucault, Jürgen Habermas, Norberto Bobbio e outros, para desaguar em Gramsci e sua peculiar concepção da política como o lugar do exercício das potencialidades humanas, da construção de consensos e de hegemonia. O texto não desvenda o mistério proposto pelo título do livro, limite para o qual, aliás, o autor nos alerta desde logo. Mas não há problema algum nisso. O que está no horizonte da investigação proposta são as condições, mais ou menos reais, mais ou menos potenciais, da emancipação humana, questão que passa, necessariamente, pela possibilidade de questionamento racional das bases da autoridade e da dominação política. Na verdade, que passa pela possibilidade de sua crítica radical. Nesse ponto, Victor tem nítida preferência pela participação cívica, invocando a necessidade de despertar o interesse cidadão pela coisa pública. Isso o coloca em linha com o pensamento contemporâneo mais inovador e criativo, aquele que procura fundar as condições de uma democracia ativa, deliberativa e participativa. Isso, por si só, recomenda a leitura atenta deste pequeno, mas denso livro de estreia. Adalberto Moreira Cardoso Professor de Sociologia do IESP/UERJ
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“[...] É grande política tentar excluir a grande política do âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo a pequena política”. Antonio Gramsci
Sumário
Introdução.................................................................................... 21 Capítulo I: Aquiescência: em busca de uma interpretação.......... 27 Capítulo II: Razões para aquiescência em Gramsci.................... 61 II.I - A importância do intelectual................................ 71 Capítulo III: Gramsci: a microfísica da política.......................... 77 III.I - A ação política do Moderno Príncipe................. 89 Considerações finais..................................................................... 95 Referências bibliográficas..........................................................101
INTRODUÇÃO
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or que os homens não se rebelam? Por que aceitam passivamente tamanha exploração? Inúmeros intelectuais e filósofos já se aventuraram a responder estas intrincadas questões. Seja levantando hipóteses, desconstruindo outras, analisando comparativamente sociedades, muito se especulou a respeito, e seguramente ainda temos um longo caminho a percorrer. Afinal, a mudança aparenta ser um problema para certas correntes sociológicas que parecem se preocupar essencialmente com a manutenção da ordem. Ao falarmos em mudança na história instintivamente fazemos analogia com a ideia de revolução. A palavra “revolução” foi criada na Renascença em uma referência ao lento, regular e cíclico movimento das estrelas. É no século XVII que vem a ser usada como termo propriamente político, para indicar o retorno a um estado antecedente de coisas, a uma ordem preestabelecida que foi perturbada. Posteriormente, com o advento da Revolução Francesa, o significado do conceito se afasta do ideal restaurador e passa a confiar na possibilidade de criação de uma nova ordenação. Ora, com respeito ao conceito de revolução, um pensador naturalmente se destaca dentre os muitos que tornaram possível o debate político-filosófico sobre o caráter das transformações sociais; seu nome: Karl Heinrich Marx. A importância de Marx transcende o aspecto polêmico da crítica filosófica para atingir o cerne da questão – a sociedade capitalista – e abalar seus alicerces no seu fundamento, ou seja, o Por que os homens não se rebelam? 23
homem. Marx inaugura a perspectiva do socialismo e do homem novo pois, para ele, somente se transformando o ambiente social, pela via revolucionária, se renova o homem. É Marx quem põe de modo inequívoco a causa primária da revolução no depauperamento contínuo do homem em relação ao Estado, advertindo que nem mesmo o medo da morte por parte dos oprimidos será suficiente para evitar a revolução. Marx parece sustentar que o rompimento revolucionário com o passado é inevitável: como à organização feudal da sociedade seguiu a organização capitalista, assim, em seu auge, o capitalismo cederá lugar ao socialismo. De maneira geral, a doutrina marxista sublinha que a luta de classes é a locomotiva da história; por conseguinte, a revolução apressa a queda da velha ordem social e favorece a chegada da nova, permite a passagem do poder das mãos de uma classe às de outra, até chegar às mãos do proletariado. A aparente contradição que existe no pensamento marxista entre a inevitabilidade histórica do processo revolucionário e a necessidade de condições objetivas e subjetivas bem definidas para que ele se realize tem solução no papel atribuído ao partido comunista como vanguarda organizada do movimento operário. Basicamente, as condições subjetivas consistem na preparação meticulosa e abrangente, conduzida pelos comunistas, para o momento “adequado” de entrar em ação. Caso os comunistas ajam quando as condições objetivas não forem ainda aptas, provocarão um dano que fará recuar, muitos passos atrás, o movimento operário. Não pretendemos, aqui, fazer um levantamento rigoroso e minucioso da anatomia do processo revolucionário segundo as principais correntes do marxismo. Ao contrário, estamos especialmente interessados na reflexão de um grande discípulo de Marx: Antonio Gramsci – que ainda exerce grande influência entre os marxistas contemporâneos devido, principalmente, a originalidade de sua contribuição no que tange à renovação do pensamento crítico fundado por Marx. Gramsci nasceu na Sardenha em 1891. Estudou linguística, em Turim, e percebeu a importância pedagógica do estudo do latim, 24 Victor Leandro Chaves Gomes
por se tratar de uma língua morta e esquecida. Filho de camponeses pobres, em 1921, funda o Partido Comunista Italiano tecendo duras críticas a Benito Mussolini, instituidor e chefe do Partido Fascista na Itália, que chega ao poder em 1922. Em novembro de 1926, Gramsci foi preso quando exercia o mandato de deputado e buscava organizar, também por meio de atividade jornalística, a oposição ao regime fascista ainda em fase de estabelecimento. Condenado a mais de vinte anos de prisão e obtendo a liberdade condicional após cumprir dez anos da pena em inúmeros estabelecimentos carcerários italianos, não chegaria a experimentar uma vez mais a plena liberdade. Em 1929, Gramsci consegue organizar um cronograma de trabalho no qual prioriza o estudo de algumas questões, dentre estas podemos destacar duas: Americanismo e Risorgimento. Tais metas intelectuais traziam no seu bojo não apenas o anseio de refletir sobre o mundo que o cercava, mas, necessariamente, a única possibilidade viável de conservar sua lucidez. Em seus Cadernos do Cárcere, Gramsci acabou se apropriando do pensamento de Lenin no que havia de mais libertário neste, ou seja, a maximização da ação política e, ao mesmo tempo, conseguiu fugir das interpretações de cunho positivista que predominavam no marxismo, reduzindo-o a um mero determinismo econômico. Frequentemente, o filósofo italiano não nota que ele próprio vai se evadindo do cânon originário, propondo uma guerra de posição contínua que não se converte em guerra de movimento. É então que desenvolve o conceito de “revolução passiva”1, noção com a Nas palavras do próprio Gramsci: “[...] o fato histórico da ausência de uma iniciativa popular unitária no desenvolvimento da história italiana, bem como o fato de que o desenvolvimento se verificou como reação das classes ao subversivismo esporádico, elementar, não orgânico, das massas populares, através de ‘restaurações’ que acolheram uma certa parte das exigências que vinham de baixo; trata-se, portanto, de ‘restaurações progressistas’ ou ‘revoluçõesrestaurações’, ou, ainda,’ revoluções passivas’ [...]”. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere – Volume 1: Introdução ao Estudo da Filosofia. A Filosofia de Benedetto Croce. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001b. p. 393.
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qual analisa o período histórico de unificação e formação do Estado italiano – Risorgimento – em que buscou uma interpretação dos conflitos deflagrados entre os agentes envolvidos para compreender como foi possível o resultado: a permanência de elementos do “atraso” em um formato político que se pretendia “moderno”. Aliás, tais considerações permitiram aos escritos gramscianos boa acolhida entre os estudiosos brasileiros2 que se preocuparam com as explicações para um fenômeno sociopolítico paralelo no Brasil. A nossa intenção não se restringe a buscar entender as razões que contribuem para a emergência do fenômeno político da aquiescência, segundo a concepção gramsciana; objetivamos, ainda, valorizar o locus da política por meio da qual se conceberia o fim da alienação, da heteronomia dos homens diante de suas próprias criações coletivas. Com superações desta monta, abre-se a possibilidade para que os homens construam autonomamente sua própria história e controlem coletivamente suas relações sociais.
2 Entre os muitos autores que examinaram aspectos da história brasileira à luz das noções gramscianas podemos citar: COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999; NOGUEIRA, Marco Aurélio. As Desventuras do Liberalismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984 e VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e Sindicato no Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 1999.
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CAPÍTULO I
Aquiescência: em busca de uma interpretação
I
D
erivado do latim acquiescentia, o termo “aquiescência” denota um estado de passividade, anuência e assentimento no que se refere a fenômenos políticos. Trata-se de um comportamento ditado muitas vezes pelo sentimento de alienação que geralmente se relaciona com a perda da identidade individual ou coletiva, acarretando uma situação negativa de dependência e falta de autonomia. As instituições e as demais manifestações da vida política ocupam no horizonte psicológico do aquiescente, uma posição quase periférica. A aquiescência política é acompanhada do que se poderia chamar de uma reduzida receptividade em relação aos estímulos políticos de todo o tipo e, frequentemente, embora nem sempre, de um baixíssimo nível de informação sobre os acontecimentos políticos. Muito da noção de aquiescência aparentemente se assemelha à clássica acepção de apatia. Que, aliás, na filosofia, pode significar, em sua vertente pirrônica3, estado de total indiferença, constituindo o bem soberano. Já para os adeptos do estoicismo4, significa Termo derivado do filósofo grego Pirro de Élida (365-275 a. C.) fundador do ceticismo propriamente dito. Sua doutrina defende não só a suspensão da crença em algo, por ser impossível a certeza, mas também a suspensão do juízo, já que tudo o que pode ser afirmado pode ser negado com igual razão. Consequência prática: a indiferença absoluta em relação a tudo, uma vez que nada é bom ou mau em si, tudo é indiferente, eis o segredo da felicidade pirrônica.
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Escola filosófica grega fundada por Zenão de Cício (334-262 a. C.), segundo a qual o ideal do sábio consiste em viver em perfeito acordo e em total harmonia
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condição da alma alcançada pela vontade e que a torna não somente inacessível à perturbação das paixões, mas insensível à dor. Atualmente os fatores atribuídos à apatia são múltiplos: juntamente com certas propriedades estruturais do sistema político, ainda são consideradas certas características da cultura política, a presença ou a ausência de traços culturais que premiam ou desencorajam o interesse pelos fenômenos políticos. A nossa preferência pelo conceito de aquiescência repousa na percepção de que vivemos um fenômeno genuíno, mais profundo e denso se comparado à apatia, e justamente por isso necessitamos de outra terminologia para tentar entendê-lo em toda a sua complexidade. Neste sentido, cabe ressaltar que o indivíduo apático não age, nunca é ativo protagonista dos acontecimentos políticos, porém acompanha-os como espectador passivo e, frequentemente, ignora-os inteiramente. Já no que tange ao indivíduo aquiescente percebemos uma significativa diferença. Ele é capaz de agir. Apresenta um tipo de ação adequada ao quadro atual de degradação das relações sociais, ou seja, uma ação individualista, de caráter negativo, em benefício próprio, na qual esse mesmo indivíduo deixa de acreditar na possibilidade de transformação sociopolítica, gerando assim crises de ceticismo a respeito dos recursos estabelecidos para catalisar opiniões e efetivamente influir nas decisões de poder. Dito de outra maneira, apatia gera inação, enquanto aquiescência gera ação, mesmo que esta seja conformista e autocentrada. Em um sistema político caracterizado por uma ampla aquiescência, as margens de manobra das elites são muito maiores. Portanto, parece oportuno lembrar que exatamente este grande consentimento representa um obstáculo considerável ao alcance de metas político-sociais transformadoras, uma vez que estas pressupõem o envolvimento e a motivação de largos estratos da população. Entende-se porque este tema da aquiescência política motivou tantos intelectuais e pensadores a encontrarem razões com a natureza, dominando suas paixões e suportando os sofrimentos da vida cotidiana, até alcançar a mais completa indiferença e impassibilidade diante dos acontecimentos. 30 Victor Leandro Chaves Gomes
para a disseminação deste comportamento e, principalmente, a refletirem sobre os meios mais eficazes para romper com tal cenário de modo a subverter as relações de forças existentes. Contemporaneamente, se percebermos o tom de inevitabilidade com que se tratam as dificuldades da globalização e os caminhos da história, é plausível denunciar que se insinua uma ideologia de aquiescência política. Logo, nada mais atual do que nos aventurarmos a conhecer algumas versões desse processo de esvaziamento da prática política, melhor dizendo, de propagação de uma anuência passiva, com o propósito de contribuir para minimizá-lo em alguma medida. Cabe ressaltar, ainda, que, embora alguns autores selecionados não tenham tratado especificamente do tema da aquiescência, esperamos conseguir, mediante suas reflexões, lançar luz sobre algumas veredas interpretativas deste fenômeno político fértil e intrigante. Comecemos por Étienne de La Boétie, nobre francês e magistrado do sul da França, que viveu apenas 33 anos e teve toda a sua obra, escassa e póstuma, legada ao seu amigo mais dedicado, Montaigne. Entre seus momentos literários de maior relevo, La Boétie produziu Discurso sobre a Servidão Voluntária5, redigido provavelmente entre 1546 e 1548. Trata-se de um dos mais fortes e contundentes hinos à liberdade já escritos6. O repetido fascínio que esta obra exerce provém de igualmente lançar os fundamentos de um estudo dos vínculos entre o domínio e a servidão nas relações íntimas, interpessoais. O tirano não se 5 LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso sobre a Servidão Voluntária. Lisboa: Antígona, 1997.
Para se ter uma noção da controvérsia estimulada pela obra durante a Reforma Protestante, não obstante La Boétie ser católico, o Discurso sofreu uma série de perseguições a ponto de ser incluído no Index Librorum Prohibitorum, a lista de publicações proibidas pela Igreja Católica Opostólica Romana. Segundo a historiadora francesa Anne-Marie Cocula, a edição clandestina de 1576 foi condenada à fogueira, três anos mais tarde, por decisão do parlamento de Bordeaux. COCULA apud NUNES, Luís Henrique Monteiro. Ação e Reação: uma leitura da recepção histórica do Discurso da Servidão Voluntária. Cadernos de Ética e Filosofia Política. São Paulo: Programa de Pós-Graduação do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), n 7, p. 53-63, 2005. p. 56.
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reduz a uma categoria política, é também uma categoria mental, ou até metafísica. Esta conexão entre domínio e servidão não se trava somente na sociedade constituída, trava-se ainda no âmago da consciência. O autor francês espanta-se ao perceber o quão comum é ver milhões de homens a servir: [...] esmagados não por uma força maior, mas aparentemente dominados e encantados apenas pelo nome de um só homem cujo poder não deveria assustá-los, visto que é um só, e cujas qualidades não deviam prezar, porque os trata desumana e cruelmente7.
Contudo, não é necessário defender-se desse tirano, ele nem sequer precisa ser combatido, pois a sua destruição está inevitavelmente relacionada com o momento em que o povo se recuse a servi-lo. Ou melhor, não é preciso que o povo faça coisa alguma em seu favor, basta que nada faça contra si próprio. A tese de La Boétie consiste, portanto, que são “os próprios povos que se deixam oprimir, que tudo fazem para serem maltratados, pois deixariam de o ser no dia em que deixassem de servir”8. É o povo que aceita o seu mal e se escraviza, quando podendo escolher entre ser livre e ser escravo, decide-se pela falta de liberdade e prefere a submissão. A liberdade parece ser a única coisa que os homens não desejam – pois se a desejassem facilmente a alcançariam –, se recusam a obter esta preciosa conquista por ela ser tão simples de atingir. La Boétie não sugere que se derrubem tiranos, tão somente pede para que não sejam apoiados. O que acaba por afligi-lo é saber como esse desejo teimoso de servir se foi enraizando a ponto de o amor à liberdade parecer algo pouco natural. O povo, uma vez subjugado, cai em tão profundo esquecimento da liberdade que não 7
LA BOÉTIE (1997). Op. Cit. p. 18.
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Ibidem. p. 22.
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desperta nem a recupera. É verdade que, a princípio, serve com constrangimento e pela força, mas os que vêm depois, como não conhecem a liberdade nem sequer sabem o que seja, servem sem esforço e fazem de boa fé o que os seus antepassados tinham feito por obrigação. A começar disso, La Boétie encaminha a seguinte constatação: Os homens nascidos sob o jugo e depois criados na servidão, sem olharem para lá dela, limitam-se a viver tal como nasceram, nunca pensam ter outro direito nem outro bem senão o que encontraram ao nascer, aceitando como natural o estado que acharam à nascença9.
Não se lastima o que não se conhece. Apenas se tem desgosto depois de se ter gozado o prazer, e ao conhecimento do infortúnio sempre se junta a lembrança de alguma alegria passada. Assim, o costume – ou hábito – exerce um poder considerável sobre os homens, tendo a força de ensiná-los a servir. A natureza, embora tenha a prerrogativa de levar-nos aonde queira, exerce sobre nós menos poder do que o costume. No entendimento de La Boétie, as sementes do bem que a natureza coloca nos homens são tão “pequenas” e “inseguras” que não aguentam o embate do costume contrário. Não se mantêm facilmente, desfazem-se, reduzem-se a nada. Mas se a razão primeira da servidão voluntária é o hábito, àquela se soma outra, a de que sob a tirania os homens se tornam “covardes” e “tíbios”. Com a perda da liberdade, perde-se a valentia. La Boétie tenta corroborar tal afirmação através de um exame do comportamento dos homens em guerra. As pessoas escravizadas, segundo ele, não mostram no combate qualquer ousadia e intrepidez; vão para o perigo como que entorpecidas, como quem vai cumprir uma custosa obrigação. Entre homens livres, ao contrário, todos são obstinados, desejando ter o seu quinhão no mal da derrota ou no bem da vitória. 9
Ibidem. p. 32. Por que os homens não se rebelam? 33
As pessoas escravizadas, além desta falta de valor na guerra, também perdem a energia em todo o resto; têm o coração abatido e são incapazes de grandes ações. Os tiranos conhecem esse vício e tudo fazem para piorá-lo. Não há dúvida que o tirano sente-se em segurança quando tem como súditos homens sem valor. Para isso, os povos são atraídos para a servidão mediante engodos insignificantes. Os teatros, os jogos, os espetáculos, as medalhas, os quadros e outras “bugigangas”, para usar uma expressão do próprio La Boétie, eram as ferramentas da tirania, uma espécie de compensação para a liberdade perdida. Os povos, assim ludibriados, achavam agradáveis estes passatempos, divertiam-se com o vão prazer que lhes passava diante dos olhos e habituavam-se a servir com total simplicidade: “o povo ignorante sempre assim foi. Perante o prazer que honestamente não pode atingir, é aberto e dissoluto, e face ao agravo e à dor que honestamente não deveria sofrer, é insensível”10. Passemos agora ao que o autor francês chama de “segredo” e alicerce da disseminação da servidão. Trata-se, neste caso, das poucas pessoas que compactuam ou são cúmplices de um soberano, agem de forma a protegê-lo, e que efetivamente sujeitam os homens à servidão. Tamanha é a influência desses poucos sobre o tirano que o povo tem de sofrer não só a maldade deste como, ainda, a daqueles. Não basta que obedeçam ao tirano; esse seleto grupo que servilmente gira ao redor dele se despoja da plena liberdade que a natureza lhes deu em favor do soberano. Em suma, pelos favores, ganhos e lucros que os tiranos concedem, são quase tantas as pessoas a quem a tirania parece proveitosa como as que prezariam a liberdade. No entanto, parece oportuno lembrar que, se alguns poucos ganharam riquezas, pouquíssimos foram os capazes de conservá-las. La Boétie aponta, claramente, o quão grande é o número dos que, tendo ganho as boas graças dos príncipes, acabaram sendo aniquilados por estes com imensa facilidade. 10
Ibidem. p. 44.
34 Victor Leandro Chaves Gomes