POR UMA GEOGRAFIA DAS MIGRAÇÕES: Estratégias de mobilidade e permanência em migrantes haitianos
Conselho Editorial Série Letra Capital Acadêmica Beatriz Anselmo Olinto (Unicentro-PR) Carlos Roberto dos Anjos Candeiro (UFTM) Claudio Cezar Henriques (UERJ) Ezilda Maciel da Silva (UNIFESSPA) João Medeiros Filho (UCL) Leonardo Santana da Silva (UFRJ) Luciana Marino do Nascimento (UFRJ) Maria Luiza Bustamante Pereira de Sá (UERJ) Michela Rosa di Candia (UFRJ) Olavo Luppi Silva (UFABC) Orlando Alves dos Santos Junior (UFRJ) Pierre Alves Costa (Unicentro-PR) Rafael Soares Gonçalves (PUC-RIO) Robert Segal (UFRJ) Roberto Acízelo Quelhas de Souza (UERJ) Sandro Ornellas (UFBA) Sergio Azevedo (UENF) Sérgio Tadeu Gonçalves Muniz (UTFPR)
Isis do Mar Marques Martins
POR UMA GEOGRAFIA DAS MIGRAÇÕES: Estratégias de mobilidade e permanência em migrantes haitianos
Copyright © Isis do Mar Marques Martins, 2019 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida por meio impresso ou eletrônico, sem a autorização prévia por escrito da Editora/Autor.
Editor João Baptista Pinto
Capa Luiz Guimarães
Editoração Luiz Guimarães
Revisão Rafael Zilio Fernandes
CIP - BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ M343p Martins, Isis do Mar Marques Por uma geografia das migrações: estratégias de mobilidade e permanência em migrantes haitianos / Isis do Mar Marques Martins. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Letra Capital, 2019. 214 p. ; 15,4x23 cm. Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7785-649-7
1. Haitianos - Brasil. 2. Imigrantes - Brasil. 3. Haiti - Emigração e imigração. 4. Brasil Emigração e imigração. I. Título. 19-54901 CDD: 305.906912 CDU: 314.15.3-054.72 Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária CRB-7/6439
Letra Capital Editora Telefax: (21) 3553-2236/2215-3781 www.letracapital.com.br
Dedico a todos os migrantes, que fazem, perfazem e alimentam suas estratégias com vida. À Luisa do Mar, com todo amor e carinho, por ter me guiado ainda pequena nessa jornada. À Rafael Zilio, ao nosso encontro e às nossas potências juntos.
Sumário
Prefácio......................................................................................... 9 Apresentação............................................................................. 15 Introdução: Espacializando a história de trás para frente.................................................................................. 21 Capítulo I: Ser migrante, “sé nég” no Brasil e o espaço dos acontecimentos políticos.............................. 45
1.1 Brasil e Haiti – Século XIX: das transformações políticas, sociais e econômicas............................................. 45
1.2 O Século XX para o Brasil e para o Haiti: principais consequências da imigração e da emigração .... 57
1.3 O Brasil e o Haiti no Século XXI.................................. 77
Capítulo II: Geometrias de poder e haitianos no Brasil.... 93
2.1 Chegada ao Brasil: as relações e os processos de mobilidade....................................................................... 94
2.2 A fronteira acreana como ponto de passagem.............. 96
2.3 As ações da política brasileira..................................... 104
2.4 A capilaridade dos imigrantes haitianos..................... 119
Capítulo III: “O avesso do avesso” migrante em São Paulo........................................................................... 125
3.1 A saída de haitianos do Acre para São Paulo.............. 127
3.2 O papel das Organizações Não-Governamentais........ 139
3.3 Estratégias de mobilidade cruzam estratégias de permanência.................................................................. 147
3.4 Perspectivas da política brasileira via novos processos de mobilidade.................................................... 157
Capítulo IV: Os caminhos cruzados das estratégias de mobilidade e permanência.............................................. 171
4.1 Trabalho e moradia: os haitianos no sul do Brasil e a permanência consolidada.................................. 172
4.2 As estratégias de permanência via frentes de resistência...................................................................... 185
4.3 As estratégias de mobilidade via frentes de resistência...................................................................... 195
Por uma geografia das migrações: o espaço como prática de resistência migrante.............................................................. 201 Referências................................................................................. 206
Prefácio
O
Brasil é um país com longa história de recepção de imigrantes, assim como espaço de acolhida para povos escravizados, traficados através da violência. Simultaneamente, populações nativas do que viria a ser o território nacional foram submetidas aos objetivos da conquista, do povoamento e da subalternização de trabalhadores. Os imigrantes ditos “espontâneos” – portugueses, italianos, espanhóis, alemães, japoneses e outros – cuja história gostamos de rememorar e cuja descendência contribui para uma narrativa nacional que destaca o acolhimento, a mistura cultural, a ausência de conflitos são, porém, apenas um capítulo dessa história que é também de seletividade migratória, discriminação e violência. Encerrado o período da “grande imigração” subsidiada, que contribuiu de maneira decisiva para os processos de povoamento do território, de formação do mercado de trabalho nacional, e para o que seria um projeto civilizacional de privilegiar a vinda de europeus, o país viu-se, durante algumas décadas, face a uma quase total interrupção na chegada de migrações internacionais massivas. O pós-Segunda Guerra assistira a uma reduzida retomada dos fluxos anteriores ao conflito mundial, à chegada de refugiados em números bastante tímidos e, a partir do período ditatorial de 1964, a uma criminalização da presença do estrangeiro no país, além do entendimento da sua absorção pelo mercado de trabalho apenas sob parâmetros bastante rígidos. Ao mesmo tempo, a intensificação das migrações internas, na segunda metade do século XX, passava a atender a parte dos objetivos laborais até então cumpridos por trabalhadores estrangeiros, especialmente no Sudeste e no Sul. A Amazônia tornava-se fronteira para expansão econômica e demográfica destas ultimas regiões, ao mesmo tempo em que a fronteira internacional ao norte permanecia relativamente pouco povoada, 9
Prefácio
e objeto de preocupações securitárias, marcantes no pensamento geopolítico durante o período militar. A imigração parecia ter se tornado um processo pertencente ao passado, retrospectivamente valorizado através da sua idealização, ligada a processos de desenvolvimento agrícola e urbano-industrial e ao sempre lembrado, e suposto, “papel civilizador”. Todavia, a partir dos anos oitenta, e principalmente noventa, do século XX, novos processos passaram a se fazer sentir. Um deslocamento fronteiriço, de início buscando as cidades próximas aos limites internacionais, e nem sempre de caráter permanente, passou a contribuir com contingentes de sul-americanos, originários de países que não integravam a narrativa histórica “oficial” do Brasil como país de imigração. À medida em que esses contingentes foram se estabelecendo nos centros urbanos de maior porte, em especial a cidade de São Paulo, foi se tornando impossível ignorar tanto a sua presença quanto os desafios que impunha: necessidades de regularização e integração, problemas de exploração laboral, e um certo estranhamento social quanto aos “novos estrangeiros” que o país recebia. Outros grupos nacionais e étnicos, de origem asiática e africana, acentuaram ainda mais aquele estranhamento, e fizeram a sociedade brasileira se defrontar com o fato de uma nova inserção do país no quadro das migrações internacionais. O fechamento das fronteiras ao Norte Global, assim como a projeção de sociedade próspera e acolhedora que o Brasil difundiu a partir dos anos 2000, fizeram com que seu território passasse a se tornar, cada vez mais, lugar de recepção para migrantes e refugiados. Ainda que com um peso demográfico infinitamente distante daquele que imigrantes desempenharam no período dos grandes fluxos, a midiatização, por vezes desfavorável aos novos imigrantes, fez com que inúmeras vezes fossem (e são) representados de maneira pejorativa. Como se o Brasil devesse se pensar apenas como um destino para os supostos “melhores”, “desejáveis”, “civilizados” migrantes do Norte Global. Indicando tais representações um alto grau de idealização tanto do nosso passado imigratório quanto das 10
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condições em que se dá a migração internacional no mundo de hoje, com números que destacam principalmente os movimentos Sul-Sul. O terremoto no Haiti em 2010, e a intensa movimentação de nacionais daquele país que se seguiu, representaram uma crise humanitária e política de grandes proporções, que está longe de haver terminado. O Brasil, à frente de uma missão de intervenção das Nações Unidas no país desde antes do sismo, sendo um país que exportava uma imagem de acolhimento e de integração aos estrangeiros, contando com uma longa fronteira amazônica, não poderia evidentemente ter ficado à margem deste vasto processo de migração internacional. A idealizada história anterior de país de imigração, de incentivos à vinda de estrangeiros (desde que “civilizados” e qualificados) chocou-se com a realidade do ingresso, pelas fronteiras ao norte, de milhares de haitianos que, impossibilitados de se qualificar como candidatos à migração laboral segundo as normas restritivas do então Estatuto do Estrangeiro, solicitavam refúgio como estratégia para não permanecer na irregularidade. O fato de serem haitianos colaborou fortemente para a negatividade das representações veiculadas pela grande mídia – que chegou a fazer uso da palavra “invasão” – já que vinham de um país que sempre contou com representações bastante desfavoráveis. Desde o seu passado revolucionário do século XIX, até sua história mais recente de golpes e catástrofes naturais, para tudo isso confluindo o fato inegável da sua ascendência predominantemente africana. O Brasil precisava assim se ver, face à imigração haitiana, com uma longa história de negação do racismo constituinte da história nacional. Os haitianos que agora desembarcavam no território nacional, para além de diferirem radicalmente dos “europeus civilizadores” do passado, nos interpelavam quanto à pobreza e à discriminação de nossos próprios nacionais descendentes de escravos. Sendo assim, a recepção aos haitianos não se fez sem tensões e reviravoltas institucionais. Uma série de resoluções normativas, ainda no quadro da legislação então vigente, ofereceu a possibilidade de regularização para 11
Prefácio
algumas dezenas de milhares de migrantes haitianos, que se inseriram no mercado de trabalho nacional. Para além da questão da travessia fronteiriça, e do seu controle, a migração haitiana implicou também em longos deslocamentos no interior do território brasileiro, assim como na sua recepção por inúmeras instituições, governamentais e não-governamentais, nas metrópoles e nas cidades de pequeno e médio porte. A interpretação do Estatuto do Estrangeiro, de forma a favorecer a possibilidade de regularização dos haitianos, inaugurou novas medidas de acolhimento na história da política imigratória brasileira. Há, portanto, uma dimensão inovadora, que encontrou no caso específico dos haitianos a oportunidade para que fossem introduzidas, na nova Lei de Migração de 2017, medidas que preveem o acolhimento humanitário. Ao mesmo tempo, a inovação que foi a chegada dos haitianos e as medidas tomadas não poderia ser inteiramente apreendida sem uma análise histórica tanto da política brasileira de imigração quanto dos processos que levaram o Haiti a se tornar uma nação de origem de emigrantes. A noção de diáspora haitiana é, assim, fundamental à compreensão integral dos processos envolvidos. A pesquisa de Isis do Mar Marques Martins inicia-se, assim, com esse mergulho na história política e migratória dos dois países, e com as suas repercussões no tempo presente. O trabalho segue realizando uma análise detida dos processos de chegada ao Brasil dos migrantes haitianos, da complexa etapa de travessia da fronteira internacional no Acre, das ações de política com que os diversos atores buscaram intervir e com o espraiamento dessa migração pelo território brasileiro. A cidade de São Paulo, como lugar de acolhimento e como ponto de redistribuição dos migrantes haitianos, merece uma atenção especial da autora, assim como as dificuldades encontradas na região Sul, onde grande parte encontrou inserção em mercados de trabalho locais. O livro se encerra com uma consideração das estratégias tanto de mobilidade espacial como de permanência, encarando-as na perspectiva da resistência, da afirmação do direito a migrar, mesmo 12
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frente a condições adversas e a políticas de imigração ainda vacilantes e permeadas pelo preconceito e pela negação de direitos. A pesquisa realizada pela autora desenvolveu-se como trabalho de doutoramento em Planejamento Urbano e Regional, realizado no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR-UFRJ) e em constante interação com as atividades do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios (NIEM). Tive a alegria de acompanhar, na qualidade de orientador, este trabalho de imenso mérito e perspectiva inovadora sobre um dos processos definidores dos rumos da política imigratória brasileira mais recente. Em um momento de ameaças e perspectivas de restrição a direitos alcançados por migrantes e refugiados, tanto no nível nacional quanto no internacional, cabe saudar a pesquisa de Isis do Mar Marques Martins como uma contribuição decisiva para o conhecimento dos processos migratórios contemporâneos. Assim como para compreendê-los na perspectiva da História e no seu caráter interpelador quanto aos direitos à mobilidade que reivindicamos todos, como trabalhadores e como seres humanos. Helion Póvoa Neto.
Geógrafo, Mestre em Planejamento Urbano e Regional (UFRJ), Doutor em Geografia Humana (USP), Pós-Doutorado em Filosofia da Mobilidade Humana pelo Centro Studi Emigrazione e pelo Scalabrinian International Migration Institute, ambos em Roma, Itália. É professor no IPPUR-UFRJ e coordenador do NIEM.
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Apresentação
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uita e necessária atenção tem sido dada à condição de imigrantes de outras nacionalidades vindos principalmente no século XXI para o Brasil, sobretudo de imigrantes haitianos, seja por parte de pesquisadores, entidades sociais ou governamentais, a mídia, dentre outros. O que a imigração haitiana tem a nos dizer, a nos ensinar? Esta é a pergunta apropriada ao intento deste livro. É possível apreender cinco perspectivas mais comuns encontradas em pesquisas e opiniões sobre migração haitiana hoje no Brasil. A primeira perspectiva trata da travessia e das dificuldades da vinda. Apontam os problemas enfrentados a partir de diversos atores, dando ênfase aos chamados coiotes. Em junção à questão do tráfico e à promulgação de uma chamada “crise imigratória”, ocorrida devido à chegada de cerca de 50.000 haitianos em 3 anos de intensificação da entrada no país, essas pesquisas avançam nas propostas de mitigação da irregularidade de rotas que deflagram muita violência e muita displicência em relação a imigrantes. A segunda perspectiva trata dos números da migração e dos níveis de assistência revelados no processo de entrada e permanência de haitianos no país. É comum ver em compêndios de entidades de acolhimentos relatórios que ajudam com detalhes a compreensão da diáspora haitiana no Brasil. É também onde se localizam as informações quantitativas da comunidade acadêmica e de entidades governamentais, bem como relatórios integrados, de pesquisadores e governo, a fim de apoiar políticas efetivas. A terceira perspectiva aponta as ações dos governos e o reflexo durante e posterior à intensificação da entrada de imigrantes no Brasil. As mudanças ocorridas no processo da chegada e na regularização de grupos migrantes foram árduas e cheias de asperezas, o que revelou a necessidade de apontamentos críticos, principalmente às definições de imigrante e refugiado, e as imbricações políticas que 15