Retalhos do quase nada

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Retalhos do quase nada



Evaldo Zaroni

Retalhos do quase nada


Copyright © Evaldo Zaroni, 2001 E-mail: evaldo@zaroni.com

Edição Rita Luppi Capa Marcela Pessoa Zaroni Editoração Eletrônica Luiz Carlos Guimarães Revisão Juliana Zaroni

Letra Capital Editora Telefax: (21) 2224-7071 letracapital@letracapital.com.br

Printed in Brazil 2001


Sumário duas estrelas..............................................................13 no cabresto................................................................13 tudo..........................................................................14 eta sorte sô!..............................................................15 imaginação................................................................15 o ceifeiro...................................................................16 garotos......................................................................16 no elevador................................................................17 aves em ninho...........................................................17 concreto....................................................................18 homens incoerentes ..................................................18 a lua e a lágrima........................................................19 a atriz........................................................................21 fala, meu filho!..........................................................22 gota a gota................................................................22 sob o travesseiro........................................................23 besteira......................................................................24 o moedor de poemas.................................................25 flor amarela...............................................................26 convidando................................................................26 prossiga.....................................................................27 ilusões.......................................................................27 impossível busca........................................................28 não espero boas coisas..............................................29 utopia........................................................................30 as maritacas...............................................................30 nada de novo.............................................................31 realidade....................................................................32 não custa tentar ........................................................33 carne viva..................................................................33 pai.............................................................................34 como se resolveu a questão?.....................................35


viver...........................................................................36 o que fazer?..............................................................36 o armário...................................................................37 preciso ......................................................................40 será?..........................................................................40 nesta altura, tanto faz................................................41 vida...........................................................................41 o ganso.....................................................................42 haja saco...................................................................43 morgana ...................................................................44 acontece....................................................................45 universos...................................................................46 sempre......................................................................46 nada..........................................................................47 eternas......................................................................47 meus vizinhos............................................................48 a borboleta................................................................49 viagem.......................................................................50 o casal.......................................................................51 consolo......................................................................52 a armadilha................................................................52 lua.............................................................................53 olhos ........................................................................53 a roda que roda sempre.............................................53 vazio..........................................................................54 mais dolorosa............................................................54 aguardando...............................................................55 vitória........................................................................55 tense, a formiguinha..................................................56 pássaros livres............................................................56 voltando é tudo igual.................................................58 as culpas do Chico.....................................................58 atração......................................................................59 à francesa..................................................................59


leitão.........................................................................60 competente...............................................................60 instável equilíbrio.......................................................61 amigos.......................................................................61 viva............................................................................63 o mundo de Alvin......................................................64 poetas.......................................................................65 não doute..................................................................65 o ancião.....................................................................66 mesma história..........................................................67 lua do amor...............................................................68 incomum I, II, III, IV, V.................................................71 o bode voltou!...........................................................72 já vem o trem............................................................72 castelos......................................................................73 o amor não tem barreiras...........................................74 mortos.......................................................................74 anjos desnudos..........................................................75 fases..........................................................................75 a muralha..................................................................75 risco fatal...................................................................77 espinhos e pássaros...................................................77 o perfume da rosa.....................................................80 isso não se faz!..........................................................80 cerveja choca.............................................................81 cansaço.....................................................................82 reunião fatal..............................................................83 acaso.........................................................................83 tempestade................................................................84 nós somos.................................................................85 sibéria........................................................................85 as estrelas e o atleta...................................................86 boas lembranças........................................................87 vencedores................................................................88


pelas ruas..................................................................88 ela.............................................................................89 relógio.......................................................................89 derradeiro pôr-do-sol.................................................90 cotidiano...................................................................90 não colou..................................................................94 nem mesmo Deus .....................................................94 gaiola........................................................................95 a pipa........................................................................95 quem sabe?...............................................................96 boi teimoso................................................................98 diabinho loiro............................................................98 ás águas do riacho seguem rumo ao mar...................99 um ovo qualquer, mas um ovo.................................100 o tigre e a serpente..................................................100 apenas um crânio avantajado...................................101 astros e a dor...........................................................101 decisão....................................................................101 solução....................................................................102 um mesmo ponto....................................................102 serei um dia.............................................................103 meu vizinho.............................................................103 com licença..............................................................103 confissão de fé.........................................................104 descuido..................................................................105 barbas e pintos e o nada..........................................106 mais um ..................................................................106 frustração................................................................107 louco não sou..........................................................107 minhas mãos...........................................................108 solidão.....................................................................109 eternamente............................................................109 folhas......................................................................110 folhas ao vento........................................................110


Neste mundo de sete facas, neste silêncio que fala, fico mudo. Se mudo já falo tudo. Se falo não faço nada. Assim permaneço eu, retalhos do quase nada



duas estrelas FUI NÔMADE e guerreiro no oriente. Cavalguei nas dunas e, com minha espada, lutei contra muitos inimigos. Estive onde desmaiam os desertos, junto às ondas daqueles mares banhados pelo prateado da lua gigantesca e cheia. Nas areias amei uma princesa que se desabrochou para mim como as pétalas da rosa. Para ela colhi no céu duas estrelas: “Tome-as porque são tuas”. Com olhos marejados, beijou-me, suave, os lábios. Ao olhar a imensidão do céu iluminado, quem ama intensamente uma mulher sempre percebe o vazio das estrelas que furtei.

no cabresto CHEGUEI sem esperanças, cansado, sujo, suado. Cheguei irritado, furioso, pronto a chutar o balde. Às favas tudo e todos! Sentei-me ao pé da jaqueira. Saquei meu facão da cintura e o cravava no chão. Ai de quem se aproximasse de mim. Seria briga feia de morte. Estava ali e, cada vez pior, mais brabo e mais furioso. É nessas horas que acontece a coisa certa... No alto da jaqueira um anjo anão me espiava e eu não sabia. Sentado num galho, quebrava gravetos entre os dedos e me olhava paciente... Na minha fúria, não sei como, de tão maluco que estava, notei a queda dos pequenos gravetos ao lado dos meus pés. Para me aporrinhar ainda mais, um passarinho, pensei, fazia ninho e ia cagar em cima de mim. Nada como uma pedrada para espantá-lo. Olhei para cima e vi o anão empoleirado num galho. Agiu rápido. Tomou nas mãos uma jaca e a arremessou em minha cabeça. Antes de desmaiar, senti aquele cheiro da jaca que, como gosma, se entranha na gente. Acordei com um peso no pescoço e duas perninhas se balançando no meu ombro. Era o anjo montado em mim. Segurava duas rédeas. Na boca senti as travas e, nas costas, duas esporas, 13


uma de cada lado. Parti para briga mas não suportei o relho me cortando as carnes, as esporadas e as travas de cavalo na boca. Lutei, lutei e me entreguei cansado de joelhos. O safado do anão desceu então do meu lombo esticando-me as orelhas como quem arranca pelancas de carne no açougue. “Você não é de nada. Arrota, amedronta, mas não me impressiona. Sentiu o cheiro da jaca antes de desmaiar? Sua sorte. Abra a boca”. Obedeci prontamente abrindo a boca ao máximo. Mas não deu. Então ele a abriu ainda mais com seus dedos e, com violência, fez descer por minha garganta uma jaca inteira e madura, bem doce, com casca, caroço e tudo. Já se passaram muitos anos e eu não mudei muita coisa. Continuo furioso. Mas o anão sempre volta, senta no meu pescoço, me esporeia, me bate e me faz engolir outras jacas. Agora, de vez em quando, fico doce e tolerante. Fico piegas, carinhoso, e sinto constantemente na boca o gosto adocicado de jaca. Mas este anão não é fácil. Com tanto tempo passado, bem que já poderia, ao menos, não me fazer engolir os caroços...

tudo A MODORRA da masmorra é assim, úmida e fétida. A modorra da masmorra cheira a mofo, cheira a traça. A masmorra tem insetos bem nojentos, pegajosos, com antenas e mil pernas. A modorra da masmorra paralisa, é escura e não tem luz. Fora da masmorra pode ser que eu acorde e veja algo interessante. Sempre há algo interessante pra se ver. Talvez eu veja uma borboleta ou um pássaro se refugiando nos galhos de uma árvore. Talvez veja apenas a árvore. Talvez perceba que vejo. Aí já estarei vendo muita coisa.

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eta sorte sô! “SOU UM tremendo pé de coelho. Onde boto a mão nasce dinheiro. Se passo no CTI, os pacientes saem a vender saúde. A lua, quando me vê, vira o bum bum pro meu lado em respeito e reverência. Comigo mesmo esta sorte não funciona. Ela sempre me sorri, mas sempre é um riso contido, não o riso escancarado que exibe para os outros que me encontram. “Caro amigo, depois que eu sair do seu táxi, se prepare, vai ter fila de passageiros. É claro que pagarei a corrida, mas se soubesse quem sou você me pagaria por estar em seu carro e me cercaria todo dia para garantir a diária gorda que hoje terá ”. Falei isto e muito mais. Foram histórias e mais histórias durante todo o trajeto. O motorista que “rodara” até então sem passageiro, estava um tanto deprimido antes de me “pegar”. Quando desci, já sorria. Foi eu descer e outro entrar. Gostaria de saber como foi o resto do seu dia e quantos passageiros teve. Acho que toda esta minha conversa pode ter valido a pena. Um pouco de sorte tenho mesmo e nada me custa tentar...

imaginação TOCA O TELEFONE: é o namorado buscando a namorada que saiu.Toca de novo, toca outra vez, mais uma vez e toca de novo, mas ela não voltou, ainda não voltou. Enfim retorna e recebe seus recados. Na lanchonete comeu hambúrguer, batatas fritas, sorvetes, mousses e geléias. Ele, em sua casa, roeu as unhas e dormiu com fome.

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o ceifeiro AÍ VEM o ceifeiro. Aquela figura esquálida e longilínea, de rosto anguloso e de olheiras mórbidas, escondido sob seu capuz escuro. Em sua mão esquerda traz sempre a adaga de lâmina afiada ainda suja pelo sangue de sua última colheita. Na sua direita traz um ramalhete de flores perfumadas. Pára diante de mim e me olha com seu olhar frio e penetrante. Olho-o também, calmo e seguro. Sempre ficamos assim, estáticos, frente a frente por um longo tempo, medindo forças. Ele tenta ler meus sentimentos que não escondo, pois que serenos. Não consegue. São sentimentos que desconhece. Olho eu também o seu interior, mas nada vejo. É opaco. É como espelho sem aço, sem nada por trás. Continuamos firmes, olhos nos olhos. Não o temo e nem arredo pé. Meu orgulho supera sua prepotência. Minha coragem cala suas ameaças. Minha paz dilui seu ódio surdo. Assim permanecemos até que perceba que não cedo, que não cederei jamais e que, mais uma vez, foi inútil nosso confronto. Então ele se vira e vai-se com passos lentos. O ceifeiro sempre retorna e estou sempre pronto a recebê-lo. Não me preocupo com o desfecho deste nosso paciente relacionamento. Sua adaga me espera, mas nunca aceito o ramalhete de flores que sempre me oferece.

garotos “VÁ AO LÉU, mas sem perder o rumo. Siga alegre, porém atento. Viva a vida, porém respeitando-a. À revolta, anteponha a coragem de se ver. À precipitação, a imagem das conseqüências de teus atos. ” Entre estes conselhos, mastigados um a um, foi crescendo e fez-se teoricamente sábio. Na casa ao lado a coisa era diferente. O trabalho corria solto e as crianças viviam entre crianças, em meio a brigas, amizade, inimizade, alegrias e tristezas. Nenhuma teoria e toda a prática, e o exemplo da vida reta e honesta dos pais atarefados. 16


Hoje o primeiro pensa demais, fala por horas a fio e encanta com palavras. Nada faz que possa esvaziar seu copo negro de whisky. Ou se mata, ou se aleija, ou se consome em pensamentos intrincados que levam a lugar nenhum. Pura masturbação mental. O outro que nasceu na casa ao lado, vive.

no elevador DEPAREI-ME no elevador, com o homem que cria passarinhos; Sendo mais claro, que aprisiona passarinhos em gaiolas. – Bom dia! – Bom dia! – Como vão os passarinhos? – Bem, obrigado. – Bem obrigados! – O quê? – Nada.

aves em ninho ASSIM QUE os primeiros raios ainda inseguros da manhã clarearam a noite que se perdia fraca, deixou seu ninho o pássaro veloz, cheio de esperança e vida. Cresceu o dia com seus ruídos e vingou o sol. Toda a natureza e os homens lançaram-se à luta cruel por mais um dia. O pequenino pássaro, entoando seus trinados, distraído em seu trabalho árduo da sobrevivência, sequer se apercebeu que o dia se consumia e se aproximava novamente a noite. Veio o entardecer. Os homens se recolheram as suas casas. A natureza arrefeceu sua rotina e ele buscou sua árvore. Atordoado, viu-se perdido ao chegar. Nela não encontrou seu ninho. Entristecido, empoleirou-se num galho qualquer. Deixou-se ficar ali, piando, e piando melancólico. Nos finais das tardes, nos matagais, este lamento todo mundo ouve. Mas poucos sabem qual sentimento esconde. 17


concreto TIVE um pensamento que concreto me caiu nas mãos. Pesava como chumbo e me curvei depositando-o no chão, mas que surpresa: tamanho era seu peso que o solo, não o agüentando, se rompeu e ele, descendo, saiu do outro lado no Japão.

homens incoerentes ACORDOU, sentou-se à beira da cama e, ainda sonolento, seguiu até o banheiro, parando em frente ao espelho. Buscou nele sua imagem mas não a encontrou. Não viu suas rugas, seus cabelos brancos, suas pálpebras caídas nem seu olhar triste e opaco. Levou as mãos ao rosto e o sentiu entre elas. Ao menos continuava a existir... Rápido, retornou à cama, chegando no momento exato em que ele mesmo se levantava, como fizera há pouco. Reviu seus passos até o espelho e a repetição da mesma cena que vivera antes. Diante do espelho, ele, o outro, reagiu da mesma forma que o primeiro. Após o susto, após tocar seu rosto, seguiu até a cama procurando por si mesmo. Agora os dois, ao lado da cama, observavam o terceiro deles começando a despertar. Olharamse desconcertados, perguntando-se o que ocorria, quando a mesma cena repetiu-se pela terceira vez, pela quarta e mais por diversas outras vezes. Passados alguns minutos, uma multidão de mesmos homens reunia-se no quarto, na sala, na cozinha, no banheiro, em todos os recantos da casa. Todos perplexos. Solidários, permaneceram tentando entender o que ocorria. Depois, auxiliaram-se nas pequenas providências da manhã. Vestiram-se e partiram cada um rumo ao seu destino. O dia passou e o espelho refletiu apenas a paisagem imóvel a sua frente. Todos viveram suas vidas diversas naquele dia. Cada qual com sua personalidade diferente, com suas peculiaridades, seus hábitos, qualidades e defeitos. Embora distantes, sentiram-se uns aos outros ao longo das horas. À noite retornaram ao lar. 18


Um por um tomou suas providências usuais e foram para o mesmo leito. Cada um, se superpondo ao outro, recebia em si o que chegava. Neste instante, cada um rememorava os atos e sentimentos do outro que entrava nele. Passado um tempo, eram todos apenas um só, dormindo e sonhando o mesmo sonho. O sonho de ser uma única pessoa. O sonho da coerência. Talvez um dia se vejam todos em uma única imagem refletida no espelho...

a lua e a lágrima NA FLORESTA encantada, que povoa os sonhos criativos das crianças, viviam um rapaz e uma jovem em uma clareira que à noite se deixava pratear pela magia da lua cheia e bela, sempre presente no céu. Lá não existia o dia, apenas noites claras e tranqüilas... Ao pé de uma frondosa árvore, gastavam as horas a conversar. Ele, com seus olhos mergulhados em tristeza, assim como quem fita com saudade uma paisagem nunca vista, e ela, suave e doce, a tratá-lo como uma mãe carinhosa trata os filhos... Desfiavam horas a planejar atividades que nunca realizariam. Prisioneiros da noite da floresta, apenas conversavam carinhosamente, enquanto fitavam aquela senhora soberana e paciente que domina o céu, enorme e pálida. Como escapar dali e conhecer o dia? A luz? A cidade? Estas questões discutiam por horas a fio, sempre e sempre... Arquitetaram então um plano que lhes pareceu razoável. Com um tronco de palmeira fariam uma catapulta que lançaria o rapaz até a lua. De lá ele partiria em busca da liberdade para os dois. Executaram o plano. Quase tudo aconteceu como previsto. Ao alcançar a lua o rapaz segurou-se em uma de suas bordas mas ela não sustentou seu peso. Lentamente desceram ambos em linha reta. À medida que desciam, a lua diminuía de volume. Quando ele tocou o solo, ela, rígida e brilhante, já lhe cabia na palma da mão. Guardou-a no bolso da camisa junto ao coração. 19


Caminhou a noite toda até que, atônito, pela primeira vez, assistiu a um raiar do dia. Viu o sol pouco a pouco tingindo o céu de amarelo e, encantado, mergulhou seu olhar no azul do espaço infinito. Mas ao descer os olhos, em todas as direções, deparou-se apenas com dunas de areia a se perder no horizonte e nada mais. Caminhou por dias e dias. Seguia em frente na monotonia da paisagem sempre igual e sem fim. A luz, a sede, a fome, o cansaço e o calor impiedoso, torturaram-no. Se fosse qualquer outro, morreria. Mas ele não. Era um ser da floresta úmida, da noite, dos sapos, dos grilos, dos insetos, da brisa, das sinfonias de ruídos, das folhas e dos troncos. Era imortal. Era a própria floresta recheada de incontáveis vidas que se renovam num ciclo interminável. Carregava dentro de si o húmus da terra e, além disto, ainda trazia no bolso o encantamento e a suavidade da noite, a lua transformada em brilhante. Condenado estava a seguir sem rumo e triste. Antes ao menos vivia de sonhos. Agora, sem companhia, sentia apenas o delírio da mesmice, do sofrimento da repetição, em aridez e solidão. Num ato de desespero, em uma de suas noites escuras, tomou nas mãos o brilhante que um dia fora a lua. Correu, correu e o lançou aos céus com toda sua energia. A pedra riscou o espaço, iluminando a noite num clarão, deixando atrás de si um véu de luz e prata. Com ela, sua alma se foi abandonando seu corpo... Na clareira, a jovem fitava triste a escuridão quando uma estrela cadente rasgou o céu de um lado a outro. Lembrou-se do companheiro. Seus olhos marejaram. Uma pequenina lágrima prateada umedeceu-lhe o rosto e, suavemente, foi subindo até alcançar no céu o lugar onde brilhara a lua em outros tempos. Ainda entristecida, a jovem desvaneceu-se até sumir. Às vezes surge, durante o dia ou durante a noite, como nuvem diáfana que passeia a procurar entre nós, o companheiro que perdeu para sempre... No desertos, um olho d’água brotou na areia. Ao seu redor cresceram as palmeiras, as ramagens e os pequeninos arvoredos... É onde mitigam a sede os viajantes, sob a sombra das nuvens, que por vezes, surgem no céu sempre azul... 20


a atriz O JOVEM jogava conversa fora com sua colega de faculdade. Falava de suas paixões de adolescente. Toda vez que entrava em cartaz um filme daquela atriz, ele se alvoroçava. Assistia a todas as sessões embevecido. Não tirava os olhos dela, ignorando tudo o mais que aparecesse na tela. Ela era graciosa, corpinho lindo, olhos amendoados, boquinha carnuda e um sorriso (ah! que sorriso… ) Aí pronunciou o nome dela. Sua colega deu um salto de surpresa. A atriz de chanchadas a que ele se referia era sua tia, hoje uma senhora. Dias depois, a colega fez-lhe um convite. Iriam a um sítio no interior do estado onde vivia a atriz. Ela estava deprimida e a visita de um fã tão ardoroso certamente lhe faria bem. Ele acolheu o convite. Marcaram o dia da viagem. No sítio, quando chegou, deu-se um pequeno alvoroço, um corre-corre que ele percebeu. O marido da atriz, um senhor idoso, também conhecido em sua época, tratou-o muito bem. Falou sobre cinema, sobre sucessos, contou-lhe várias histórias… Comeram bolinhos e tomaram coca-cola, a moça, o jovem e o velhinho, mas o tempo passava e a atriz não aparecia… e os três espichando conversa. A colega do rapaz, depois de várias idas e vindas ao interior da casa, chamou-o a um canto. A expectativa daquela visita fora muito grande para sua tia. Na noite anterior não dormira de tanta ansiedade. Não queria ser vista como era agora. Seria melhor que seu admirador guardasse a sua imagem do cinema, sem as marcas cruéis do tempo, que transforma o belo em feio, o sorriso num amontoado de sulcos e rugas que se movem. Aquela visita fizera com que a atriz revivesse sua vida e toda sua carreira, que terminara em esquecimento e amargura. Decidira então que não iria recebê-lo. Pela manhã, começara a beber e bebera muito. Naquele instante estava completamente embriagada tomando banho numa cachoeira nos fundos do sítio. Cantava antigos sucessos e dançava com outros atores imaginários a coreografia 21


de seus filmes. Voltara no tempo. Queria, agora sim, que seu fã a visse e a ouvisse dançado e cantando. Que o trouxessem até lá. Levaram-no até a cachoeira, mas lá chegando, a atriz, acordando do delírio, envergonhada, embrenhou-se pelo mato a fugir dele. Bêbada e trôpega, corria e caia entre os arbustos e espinheiros, chorando muito. O rapaz e sua amiga retornaram à cidade, respeitando os sentimentos e as dificuldades da atriz. Anos depois, o antigo fã, num canal qualquer de tevê, deparou-se com aquela senhora representando muito bem o papel de uma antiga atriz de cinema. Em sua fala relembrava antigos sucessos e dançava com brilho nos olhos a coreografia de antigos filmes seus. Estampava no rosto o mesmo sorriso encantador, farto e belo, dos tempos em que era jovem, cheio de graça e luz...

fala, meu filho! CADA MENTIRA que contava fazia-lhe crescer em um milímetro cada fio de cabelo. Hoje rola por aí como um grande novelo todo embaraçado.

gota a gota APRISIONARAM-ME aqui neste calabouço, sem portas e janelas, de teto baixo e paredes lisas. Nele tudo é limpo e asséptico. No teto, em um dos cantos, formam-se gotas d’água que se agrupam e, sob seu próprio peso, caem uma a uma lentamente. Nesta prisão tenho uma única e vital atividade. Quando as gotas se encorpam no cimento, corro e me coloco bem abaixo delas. Olho para cima e aguardo até que caiam. É quando, aliviado, sinto-as umedecendo meus olhos ressequidos.

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sob o travesseiro TODA CIDADE grande é uma sucessão sem fim de concreto, fumaça e barulho. O verde é escasso: alguns jardins, algumas árvores de calçada, algumas plantas nas varandas e só. Naquela, nem isto existia. Nada de verde, nem capim no vão das pedras. Era duro viver ali. Nela, aquele sujeito era um corpo estranho. Jamais se acostumara ao néon e ao plástico. Tinha saudade do cheiro de mato e das gotículas de orvalho nas folhas úmidas das madrugadas Por necessidade, ou por saudade, encomendou, num certo dia, umas sementes. Aguardou-as por anos a fio sem perder a esperança. Por fim recebeu suas sementes como quem recebe algo proibido. Guardou-as sob o próprio travesseiro enquanto decidia a melhor forma de usá-las. Mas o tempo foi passando, passando e ele, sempre ocupado, delas se esqueceu... Viveu a vida comum que todos vivem na cidade grande. Já velho e alquebrado, rico em desencantos, lembrou-se então das sementes. Tomou-as e saiu sem rumo e sem planos. Já não dispunha de tempo para ver o germinar, o crescer das árvores e muito menos o amadurecer dos frutos. Mesmo assim, seguia pelas ruas... Num terreno cimentado, destes de se perder de vista de tão grande, ele parou bem no centro. Sob o sol de um verão intenso, suando e sem forças, cavou até sentir a terra entre seus dedos doloridos e nela lançou suas sementes. Ali permaneceu qual um anjo velando o que plantara. De seu corpo fez anteparo contra o sol. Com suas lágrimas umedeceu o solo. Foi-se o verão, chegou o outono e depois os dias frios do inverno e o ancião continuava firme em sua vigília, na solidão imensa do concreto. Por fim chegou a primavera e novamente o verão e depois outras e mais outras estações. . Dizem que o velho se foi ou que morreu de tristeza em sua espera, mas, naquele lugar, nada nasceu, nem mesmo um pé 23


de capim. Lágrimas não regam a terra e não há corpo que sirva de barreira ao calor que penetra o aço e o cimento. A cidade continua quase a mesma, mas não exatamente como era. Nela construíram um jardim, numa antiga área abandonada, numa daquelas tão grandes de se perder de vista.

besteira... A NOITE, como sempre, chegou depois do dia. Ora, sempre foi assim e sempre será. Mas a noite chegou. Bem, isto não é bem verdade. O certo é que o dia ficou escuro, ficou sem luz. Justo! O dia apagou sua lâmpada. A noite que chegou não era noite na realidade, era o dia de lâmpada apagada. Chegou então a noite... Chegou então o dia de lâmpada apagada. Muitos tomaram seus leitos. Tomaram não é bem o termo, deitaram-se em seus leitos. Leitos uma ova! Muitos deitaram-se em suas camas. O que pode não ser bem verdade, pois é certo que alguns deitaram-se em camas que não eram suas e sim de outros. Muitos então se deitaram. Muitos, portanto, dormiram. Muitos outros não se deitaram e nem dormiram. Besteira, redundância, pois se não se deitaram é certo que não dormiram. Muitos com muitos outros, formam todos. Todos ou dormiram ou continuaram sem dormir. E eu atravessei a noite tentando dizer que, enquanto muitos dormiam e muitos continuavam acordados, eu pensava no fato de muitos dormirem e muitos continuarem acordados.

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o moedor de poemas AI QUE saudade que tenho do meu amigo Aurélio, hoje senil, hoje velho, sequer se lembra de mim. Minha terra tem peneiras desta cheia de furinhos onde eles passarão, eu passarinho. E agora José? Você machucou seu pé, torceu-o no Paraná Um anjo torto nasceu morto, num fogo que é fogo que arde sem se ver. Que seja infinito enquanto dure o meu salário do mês. Se ele acabar sou poeta. E o poeta é um fingidor. Finge tão completamente que finge sentir que não é dor a dor do parto que sente. Jamais irei a Pasárgada, naquela terra sem lei em cama alguma ali jamais me deitarei. Vasto, vasto, vasto mundo... Sou o tal do Raimundo que navega por mares nunca dantes navegados de onde se ouviram, do Ipiranga um grito desesperado. Não ponha o nome de Gilda nesta terra querida pois quem se chama Gilda vira Brasil sem querer. Vira Brasil bem fuleiro terra de gente sem dinheiro terra do povo estrangeiro. 25


flor amarela NA INDIFERENÇA das ruas, o velhinho caminhava com passos inseguros. A vida da cidade se fazia de carros e pessoas apressadas. Ele lentamente vencia, metro a metro, o trajeto de sua casa até o bar. Já no boteco, pediu uma média de café com leite e um pão torrado que mastigou com dificuldade. De barriga cheia, retomou o caminho de volta. Seguia devagar, driblando as pessoas e os carros estacionados nas calçadas. Em frente a um prédio, parou. Apoiou-se numa mureta, ofegante. Viu diante de si, num vaso de plantas, uma flor amarela que lhe prendeu a atenção. Quedou-se a admirá-la. Ela destoava de toda a aridez ao seu redor. Suas pétalas aveludadas, seu caule esguio, em nada combinavam com o concreto e o asfalto em torno deles. O velhinho, absorto, pouco a pouco, foi-se desligando de tudo que o cercava e sua atenção, mais e mais, se concentrava naquela flor. A magia da flor inundou sua alma. Tornou-se ela todo o seu universo. Uma ambulância foi chamada em vão. Na calçada, um corpo jazia. Em seu rosto o velhinho congelou seu último sorriso, repleto de paz e luz. Ao seu lado, alguém depositou uma flor iluminada pelos raios do sol matinal.

convidando TODOS de pé e uma única cadeira, convidando... Todas as pernas doem, todos os pés estão cansados... e a cadeira convidando... É hora do mais esperto, do mais rápido. De quem está mais perto. E a cadeira convidando... Dentre todos, ele se senta. Os outros fingem não ver. Aquele que se sentou, finge não estar ali. Seu olhar está perdido. Remexe dentro da bolsa, folheia um jornal, faz qualquer coisa, só não olha para os outros, como se fosse um ladrão.

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prossiga SEREI EU ou será você? Quem será, já que tem que ser alguém? Seja lá quem for, nenhuma diferença isto faz. Apenas um de nós passará por esta experiência agora. E o que cada um sente, ninguém sente. Afinal somos bilhões de seres tão iguais quando vistos à distância. Tudo bem que somos, cada um, um universo sem igual. Nunca fomos clonados e jamais seremos. Mas nenhuma diferença há quando se troca uma insignificância por outra. Passado o instante, a roda do mundo girou e irrelevâncias caem no esquecimento. Moramos numa cidade grande e todas as coisas acontecem ao mesmo tempo. Seja o que for e seja lá com quem for, isto não tem importância. Esqueçamos. Um novo instante solicita nossa atenção.

ilusões O estômago se contrai. O corpo todo se retesa Para expelir a bílis verde e azeda. Vômito. Os olhos lacrimejam, A terra roda, As paredes passeiam, A luz cega e incomoda. O corpo se prepara E se limpa em golfadas. Expele pra longe... o veneno de uma garrafa de ilusões.

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impossível busca Apareceu naquele lugar inusitado, no alto de um poste entre várias vias de trânsito. Sentado numa cadeira fixada lá no alto, esquadrinhava o horizonte em todas as direções com seus binóculos, um daqueles bem antigos que já não existem. Só poderia ser um louco, um exibicionista ou um destes ativistas que protestam de forma imprevisível. As pessoas, ali em baixo aglomeradas, umas rindo outras apiedadas, observavam... Chegaram os bombeiros e isolaram o local. Alguns canais de tv acompanhavam o fato. Câmeras espocavam suas luzes. Seria o homem um suicida extravagante? Numa escada um bombeiro foi até ele. Conversaram longamente. Lá de baixo, viam-se o bombeiro e o homem, cada um fumando seu cigarro. O bombeiro desceu acabrunhado. Não deu entrevistas, não fez comentários. Foi até seus superiores, que também se mantiveram em absoluto mutismo. O mesmo se deu com a polícia, com o chefe da polícia, com o porta-voz do prefeito e do governador. Nenhuma providência foi tomada. O homem continuou lá. A população, a polícia e os bombeiros, solidários, supriam-lhe as necessidades de comida e higiene. O tempo passava e o homem, esquadrinhando atento o horizonte, não se cansava. Num certo dia não o viram lá. Sumira. Voltou a ser o assunto da cidade. Depois sua história caiu no esquecimento... Passado um tempo voltou às manchetes. Reaparecera reconhecido nas ruas. Era ele, o mesmo, porém mais belo, forte, bem vestido, rico, sorridente, carismático, um gentleman. Foi ao bombeiro, aquele primeiro. Foi ao chefe de policia, ao prefeito, ao governador. Agradeceu-lhes a tolerância e a discrição. Tornou-se querido por todos, participou de campanhas sociais, de iniciativas de mérito. Tudo fizeram para que se lançasse candidato a deputado, prefeito, senador. Ofereceram-lhe espaços na televisão como comentarista político, animador de domingos, tudo. Mas ele sempre recusava. Queria ser apenas ele mesmo. Buscara o recheio de vida que sempre lhe faltara e o localizara lá do alto do poste em que se alojara. O recheio da vida em certa noite surgira ao longe, bailando no ar como um disco voador a 28


chamá-lo. Descera e seguira a luz por veredas tortuosas, pelas ruas de solidão, pelos bares, nos cinemas, pelas estradas soturnas. Enfim, na hora que era a certa, a tal luz estacionou e aguardou que ele dela se aproximasse. Foi o que fez. Ela entrou em seu peito no espaço onde deveria existir um coração que nunca estivera ali. Preenchido, retomara sua vida, uma nova vida que desconhecia. Mas a vida é imprevisível e o futuro não sabemos. Ou é Deus quem o constrói ou somos nós que o fazemos. Talvez ambos, em parceria. Ele, pouco tempo depois, por razões que não se sabe, perdeu a luz interior, o recheio da vida e voltou a ser o que era. O poste foi derrubado e seu binóculo sumiu. Hoje só tem a tal cadeira e os recortes de jornal com sua história. Está alquebrado, envelheceu antes do tempo. É amargo, calado e triste. Se o poste lá estivesse talvez nele subisse novamente numa última tentativa de reencontro. Mas e seus temores? A morte lhe chegará de outra forma, de mansinho, naquela cadeira, com paciência... A piedade foi quem calou os lábios de todos que conheceram sua história. Jamais se vira um homem em busca de seu próprio coração.

não espero boas coisas Vou sair por aí como louco, sem rumo e sem fé. Já saí quase assim. Fui até a esquina e voltei. Vou sair por aí com rumo certo e confiante. Já fiz isto e tropecei no meio fio da calçada. Vou sair por aí copiando o padrão vigente. Já fiz isto, mas senti um grande tédio e um desgraçado de um vazio. Vou ficar aqui mesmo economizando a sola do sapato e dinheiro da passagem. Vou ficar por aqui fazendo nada. As horas haverão de me conduzir e farei tudo de novo. 29


utopia NA SOMBRA da noite todos os gatos são pardos. Aos olhos dos desatentos, precipitados, descrentes e pessimistas, todos os gatos são mesmo pardos. O mundo está confuso e parece mais confuso hoje do que era ontem. A mídia expõe as mazelas pessoais e coletivas. Há ganância, maior sede de lucro. Há empresas sem face, sem nação. Ninguém, no entanto, pode ver a cor de todos os gatos. Serão eles mesmo todos pardos? Em algum recanto, em pequenos grupos, em trabalhos anônimos, não existirão gatos coloridos? A utopia, mera idéia, será que não se realiza, ao menos entre duas, três, quatro pessoas? Não corre o risco de se alastrar, a despeito de todo nosso desencanto e da própria história? Da nossa natureza complicada? Dois mais dois são quatro. Assim foi e assim sempre será. Mas somos homens. Somos imprevisíveis. Verdades humanas nunca são exatas como matemática. Todas as conclusões devem ser provisórias. Nossas sombras interiores podem tornar mais pardos os gatos que podem não ser assim tão pardos. Quem pode afirmar que não existam gatos de cor indefinida, gatos cor de rosa? Escarlates? Não sou eu que farei afirmações definitivas em se tratando de pessoas. Erro muito, menos por duvidar. Não se pode ser cartesiano com o pensamento, com a evolução humana, com os sentimentos, com tanta coisa incerta que esconde este universo.

as maritacas NEM SEMPRE uma árvore é uma árvore como parece. Ela pode ser gente como nós por um desses mistérios que, quem não as conhece, desconhece. Para compreendê-la de verdade, temos que viver algum tempo perto delas senti-la na chuva, na noite, na madrugada e quando o sol desponta. No silêncio das tardes a árvore suspirava... As maritacas, em 30


revoada, fazem enorme algazarra. São como nuvem verde e barulhenta, uma fanfarra executando a música da alegria que só elas conhecem. Rejubilam-se quando sobrevoam os campos e as estradas, os rios e as florestas. Quando pousam na mata, vão se embrenhando entre as folhas verdes, como se fossem sugadas pelas copas das árvores onde desaparecem. Desaparecem, mas sua algazarra continua. Repentinamente alçam vôo e, frenéticas, retomam seus caminhos, colorindo o céu. É uma festa. O que sabem que não sabemos? O bando de maritacas pousou naquela árvore copada de tronco úmido. Foram centenas delas que mergulharam entre suas folhas. Depois, o que não é comum, silenciaram inexplicavelmente. Não havia nenhum ser humano naquele lugar, naquele momento. Apenas na véspera, um casal ali se amara intensamente durante a noite inteira. Não havia explicação racional que justificasse o que veio a acontecer. A árvore engravidou e, nove meses depois, pariu um homem de pele escura amarronzada, forte, tagarela e com dois olhos verdes muito lindos. O que acontece quando silenciam as maritacas?

nada de novo NÃO HÁ nada de novo no horizonte. Lá longe, continuo a ver as formas elegantes da palmeira e o disco alaranjado do sol, manchando o céu azulado que desmaia sobre o outro azul que se move, o azul das águas do mar. Olho, mas não vejo no alto nenhum pontinho branco, nenhuma gaivota voando. Não vejo também embaixo o barquinho com velas brancas nem o pescador distraído segurando sua vara de pescar.

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realidade O ÔNIBUS que me deixou na encruzilhada, no meio da noite, sumiu rápido. Levou com seus ruídos todos os vestígios de vida. Fiquei ali, sentado sobre minha mala. Fazia frio. A escuridão era de breu e absoluto o silêncio. Perdi a noção do tempo. Tateando, abri minha mala e vesti uma camisa por sobre a outra que já vestia. Melhorou um pouco. Na encruzilhada fiquei sentado sobre a mala, sem ver ou ouvir nada. Nem barulho de insetos, de um grilo, de um sapo. Meus pensamentos ecoavam alto em minha cabeça, preenchendo o silêncio. Eram pensamentos soltos, fúteis, rápidos. Ali permaneci por horas e me acostumei. Uma certa modorra, uma certa paz, tomaram conta de mim. Quase sentia sono. De repente, ao longe, avistei as luzes do outro ônibus que eu esperava. Levantei-me e fiz sinal para que parasse. Suas luzes e o barulho vieram crescendo. O motorista percebeu meus acenos e parou. Atordoado pela vida que ressurgia, embarquei. Sentei-me junto a uma janela e voltei meus olhos para o local exato onde permanecera sentado sobre a mala. Lentamente o ônibus ganhou a estrada. Meu olhar, no entanto, continuou grudado naquele pedacinho de chão, de grama amassada. À medida que nos distanciávamos, aquele cantinho se escurecia, engolido pouco a pouco pelo breu da noite, mas meu olhar insistia em não sair de lá. Recostei-me na poltrona. Fechei os olhos mas meu coração continuou naquele trechinho da estrada, naquele local silencioso, aconchegante, quente. Hoje, após toda uma vida passada, por vezes me alieno e me vejo lá, perdido naquela noite de breu e de silêncio e me sinto mais sereno. Esta lembrança é a minha chave para desligar a realidade quando ela se torna barulhenta, cansativa e cruel.

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não custa tentar NA decrepitude de seus noventa e oito anos, subia as escadas lentamente. Revia cenas de quando era um rapazinho de dezessete verdes anos. Ele na varanda, na cama, no banheiro, observando as manchas das paredes, na cozinha vigiando um ovo na panela. Sentia saudades daqueles tempos em que morava só em seu apartamento. Chegou enfim onde desejava. Diante da porta, tocou a campanhia. Uma senhora o atendeu: – Boa tarde, o Paulo se encontra? Enquanto perguntava esgueirava os olhos, sorvendo detalhes da sala que a porta entreaberta permitia ver. – Aqui não mora nenhum Paulo, respondeu-lhe ela. Ele olhava agora o corredor que ia dar ao quarto. – Obrigado e me desculpe, despediu-se e se foi, descendo as escadas satisfeito. Era ele mesmo o tal do Paulo que procurava há pouco. Morara ali há oitenta e um anos atrás...

carne viva VOU TE DAR um conselho e vai de graça. Não permita que o pó da rotina ou a ferrugem da desesperança cubram o teu sentir. Se isto acontece, teu olhar se turva e enxergarás em branco e preto sombras e fantasmas. Mergulharás no teu próprio egoísmo e no egoísmo que te cerca. Vivi por séculos, sou velho e alquebrado. As juntas do meu corpo já se movem lentas. Fui homem comum. Fiz asneiras. Errei momento após momento e muito pouco aprendi. Apresento a moeda falsa da idade e meus cabelos brancos por sabedoria que não tenho. Mas algo eu sei e sei que sei: nossos corações devem permanecer em carne viva, prontos para sentir o mais leve toque.

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pai Vivia cercado por dedicados amigos que tudo por ele faziam. O vetusto Helegin, seu pai, já se fora com sua sabedoria. Foi quem o pegara no colo e acompanhara seus passos até a sua puberdade. Sempre sereno, ouvia-lhe todos os queixumes e resolvia suas pendengas de infância. Carinhoso e paternal, partiu para outros mundos levado por uma brisa que soprara de mansinho. Zépor também era desta época. Era quem lhe puxava as orelhas e o fazia andar reto. Falava grosso, era alegre e jocoso. Já de cabelos brancos, está vivo até hoje. Nasceu numa casca de côco. É homem de mil gargalhadas e faz dançar as folhas do coqueiro quando ri. Elver lembra Helegin com a mesma sabedoria. Ouve e quase não fala. Com um olhar amansa até tempestades. Marcan é alto e forte. É a esperança que vive. Sempre a animar. Grande amigo. Parece um furacão. Por onde passa levanta as folhas mortas que, após seus discursos de incentivo, retomam o verde e retornam aos galhos das árvores. Arver é homem brabo. Fala grosso. É direto. É das demandas. Se o assunto for briga então é o certo. Uma manada de búfalos paralisa com as mãos. Zépor, Elver, Marcan e Arver, quatro amigos de verdade. Sempre a seu lado resolvendo seus problemas. Até que o dia chegou. Aconteceu tudo de uma vez. Zépor partiu num cruzeiro, Elver se foi para a Europa, Marcan se alistou no exército, Alver foi lutar numa guerra e ele ficou sozinho... Sozinho, se viu pequeno e desvalido. Sozinho, não soube agir. Sozinho, ficou parado. Sozinho, não faz mais nada. Sozinho, foi definhando, ficou triste e sorumbático. Então se lembrou de seu pai, apenas um homem comum. Mas o tempo não espera, o tempo não volta atrás. Queria apenas abraçá-lo e dizer-lhe “Meu pai, você foi o verdadeiro companheiro, sem bandeiras, sem qualidades maiores mas sempre esteve ao meu lado. Mesmo morto continua”. 34


Saiu da cadeira de rodas pensando no pai Helegin. Foi a lembrança deles que o ensinou a andar, mesmo com passos trôpegos e vacilantes. Os amigos? São grandes amigos mas seguem lá seus caminhos... Pai que é pai nunca morre, permanece escondido sempre em algum lugar.

como se resolveu a questão? O Deus da imensidões, quando criou o mundo, não o fez sozinho. Delegou as tarefas menos complicadas à uma equipe de anjos competentes. Mas dentre eles havia um que era atrapalhado. Coube a ele abastecer a terra de ar e água. Na mão direita trazia uma e na esquerda trazia a outra. Mas ar e água não se controlam assim com facilidade. O ar na mão direita escapava à direita e a água, da mesma forma, escapava à esquerda. No meio, ele se esticava segurando as duas. Anjo é anjo e se quiser é elástico. A água foi parar num canto do infinito e o ar no oposto. E ele, lá no meio, esticado como corda de violão, não sabia o que fazer. Anjo também sofre e ele já estava endurecendo. Num grito desesperado chamou seu mestre: “Socorre-me por favor. Sem ar e água não haverá vida na terra... será o desastre total.” O mestre veio até ele: “Meu caro amigo, confia e encontre a solução. Saiba, se é que não sabe, que nosso Deus é perfeito na escolha, por sinal em tudo mais. Se a tua tarefa foi esta, trate agora de cumpri-la”. Não sei o que fez o anjo mas de alguma forma encontrou a solução... Nesta terra eu bebo água e continuo respirando. Quando chove imagino que é o tal anjo jogando água. Quando venta será que é ele soprando o ar? Não sei não. Desconfio que o anjo continua esticado soprando ar com a boca e jogando água com a mão.

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viver SEMPRE CHEGO, a todo instante, a uma encruzilhada de mil caminhos. Qualquer deles que eu escolha me leva à outra encruzilhada de outros mil caminhos e qualquer novo caminho que escolha me leva a outros tantos, numa sucessão de opções que não terminam. Se eu paro penso e se penso não faço nada. Paraliso-me sob o peso de tantas decisões. Sei lidar com elas. Jogo com probabilidades. Decido por possibilidades, com bom senso ou no escuro, no ímpeto. Quando me engano, na encruzilhada da opção errada deixo fincada uma tabuleta com uma palavra: presunção, precipitação, imprevidência, leviandade, despeito, vingança, ódio, tristeza, desânimo, ansiedade. São e já foram tantas. Se me volto e olho o passado, mal consigo enxergar algo além das tabuletas que finquei. Mas, mesmo assim, avanço. Sigo neste incessante jogo de decisões seguidas. O tempo que passa quase já me engoliu a vida. Minhas mãos são calejadas de tantas tabuletas que preguei e de tantas palavras que escrevi. Quando acerto na escolha, sinto que nada faço além do que é óbvio. Acertar deveria ser minha rotina, mas errar é o que consigo a todo instante. Mesmo assim, tenho que continuar seguindo...

o que fazer? DOIDOS são os loucos que são malucos. Eu sou normal, sou normótico. Mistura de normal com neurótico. Equilíbrio é um belo nome pra remédio: Desculpe-me – diz alguém esbarrando em outro na rua – estou zonzo. Acabo de tomar dez gotas de Equilíbrio.

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o armário ERA UMA dessas fazendas que guardam histórias de escravos e feitores, de açoites e pelourinhos. Seu clima era sempre pesado, mesmo nos dias claros. As pessoas que lá moravam, querendo ou não, assumiam a personalidade do lugar, tornando-se silenciosas, graves, entediadas. Adamastor nascera na casa grande, filho único da jovem senhora que morrera tísica e deprimida pelas lembranças de sua adolescência na cidade grande. O pai dele, o fazendeiro, era surdo, quase não falava e nunca notara sua existência. Adamastor era sozinho. Vivia na casa apenas com dois criados idosos que executavam suas tarefas domésticas de modo mecânico, por força da rotina repetida por anos a fio. Um capataz mantinha a fazenda, cuidava do gado, vendia as reses e roubava Adamastor. Um ignorava a presença do outro. Suportavam-se por imposição das circunstâncias. Adamastor nada fazia de útil. Passava seus dias entediados andando de um lado para outro sempre distraído. Tudo se propunha a fazer, mas seu interesse durava pouco. Logo estava novamente à toa, buscando outra atividade que lhe consumisse o tempo. Já não era criança. Tinha entre trinta e quarenta anos. Não tinha memória pelo simples fato de não ter lembranças. Sua vida era um desastre tamanho que sequer merecia ser notada. A vida de uma de suas vacas era mais excitante do que a sua. Buscando o que fazer, decidiu pesquisar minuciosamente tudo o que existia em sua casa. Examinou arquivos, fotos, anotações do pai, documentos, escrituras, poemas de sua mãe, fotografias de família. Distraiu-se por algum tempo. Quando, já novamente entediado, buscava outra atividade, viu-se no quarto da mãe diante de um armário grande de madeira com quatro portas escuras. Aquele armário até seu pai nunca abrira. Era onde sua mãe guardava seus pertences – tudo que trouxera da cidade e não tinha serventia naquele fim de mundo. Adamastor abriu uma a uma as portas do armário, escancarou todas as janelas e a luz do dia, após anos, invadiu novamente aquele quarto soturno. 37


Nos cabides, cuidadosamente dispostos, deparou-se com roupas masculinas: camisas, calças, coletes, sapatos, tudo muito limpo e cheirando a novo como se colocadas ali há poucos instantes. A frente das roupas viu um bilhete e nele reconheceu a letra de sua mãe. Tomou-o nas mãos. Era endereçado a ele: “Meu filho, Esta tua mãe doente nada lhe deu. Mergulhada em minhas angústias e desencantos, falhei. Nunca estive em tua vida. Deixei-te aos cuidados dos caseiros ignorantes e de teu pai sempre ausente. Nunca te falei sobre a vida, sobre conquistas, sobre amor, sobre sonhos, sobre tudo que não existe aqui neste mausoléu em que vivemos. Tu és filho dos dias tristes. Teu alimento, a poeira das rotinas. Ao ler este bilhete certamente serás apenas um fantasma transparente e entediado. Não pode ser diferente. Mergulhada em dúvidas, sem saber se te faço um bem ou um mal, deixo-te estas roupas que vês a tua frente. Vista-as uma a cada dia. Elas despertarão em tua alma o que representam, gostos, maneiras e hábitos dos homens que as usaram. Tal experiência te devolverá o tempo que te foi roubado, a vida que não viveste. Beijos de tua mãe. Adeus “. Enfim algo diferente lhe ocorrera. Agora existiam expectativas em sua vida. Separou a primeira roupa do armário, desde as cuecas até o lenço e o paletó, dispôs tudo sobre a cama e saiu do quarto. Voltou pouco depois de banho tomado, envolto apenas em uma toalha, ainda com o corpo molhado. Sentado à beira da cama pôs-se a se vestir. As roupas caíramlhe perfeitamente. Levantou-se, parou diante do espelho. Assustado, não via roupa alguma, continuava nu. O corpo refletido era o dele, mas ao mesmo tempo não era. O porte, o olhar, os movimentos eram de alguém repleto de energia e esperança. A imagem refletida sorria simpática e segura. Pelo resto do dia Adamastor transformou-se naquele que vira ao espelho. Traçou planos para sua vida. Nova maneira de ad38


ministrar seu patrimônio. Viajaria pelo mundo, compraria novas máquinas, faria uma reforma total na fazenda. Eram planos e mais planos. Dormiu naquela noite com um sorriso nos lábios, olhando sem ver o teto sobre sua cama solitária. Dia após dia experimentava uma nova roupa do armário. A cada dia era um homem diferente. Um cientista que desenvolveria em sua fazenda novas espécies de animais e resolveria a fome do mundo. Noutro, um monge em busca do nirvana. No seguinte, era um homem devasso com planos de transformar a fazenda num covil de prazeres com lindas e despudoradas mulheres. Assim seguiu Adamastor. Foi todos os homens, um a cada dia. Vestiu todas as roupas até não lhe sobrar nenhuma. Em curto período, pensara e desejara o que cada um deseja a seu modo. Foi movido pelos anseios e sonhos de todos. Deu significado à sua vida assumindo os objetivos dos outros homens. Por fim, tudo acabou. Haviam se esgotado todas as vestimentas… Nu, diante do espelho, Adamastor riu-se muito de tudo que vivera em tão pouco tempo. Era tudo tão infantil, tudo tão passageiro e mutável, tudo tão repetitivo embora com roupagens diferentes… Mas já não era o mesmo. Mudara e mudara muito. As pessoas agora o fascinavam. Conhecia o interior de cada uma. Eram tão ricas e diversas. Aprendera a amá-las. Sentia prazer em acompanhar-lhes os sonhos, os planos, os desejos de realização, embora soubesse que estavam em busca de ideais passageiros. Despediu seu capataz. Aposentou seus fiéis caseiros. Vendeu sua fazenda. Partiu para a cidade. Adamastor vive hoje uma vida feliz, haja o que houver. Vê em cada homem o Adamastor que foi por um dia. Compreende cada e por isto os ama como são. E por isto é amado.

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preciso NA CASA de alguém que não sei quem, encontrei alguma coisa assim... Que me deixou aquela sensação que senti em algum lugar, naquele que, você sabe, não é bem aquilo que parece.

será? SOZINHO em minha sala de trabalho, ouvindo apenas o ruído do ar condicionado, vejo passar sobre minha cabeça a sombra negra de um presságio tenebroso. Apresenta longas unhas amareladas, mãos esquálidas, dedos nodosos, cor de parafina. O anjo negro pousa e me envolve o corpo. Seu manto frio me gela a alma. Fim. Tudo acabará em breve instante. Volto meu pensamento para minha filhinha que deixei na casa de seu primo. Vão viajar. Meu coração estremece. Nascem todos os pavores, todos os temores e presságios. Apago rápido as luzes do escritório. Fecho a porta e saio ansioso. Em poucos minutos estou no prédio em que ela se encontra. Pelo interfone, peço que desça. Minutos passados, surge. Pés descalços, sorri deixando entrever aquele aparelho metálico que as crianças usam nos dentes. Abraço-a com ternura. Fico leve. Vamos à banca de jornal na calçada em frente e compramos a revista que me pediu antes, a que traz na capa a fotografia do rapaz famoso. Feliz, folheando a revista, encanta-se com os olhos azuis do rapaz tão bonito. Suspira fundo: ah... Abraço-a mais uma vez e lhe beijo a testa. Despedimo-nos e parto rumo ao metrô, levando comigo, a seu pedido, a revista que tanto desejara. Num vagão quase vazio sento-me em um banco. Como que magnetizado, com um sorriso nos lábios, folheio a revista com um olhar meio que apaixonado. Olho enternecido as fotos românticas do ator. Ah! O amor. Ao meu lado, duas senhoras me observam perplexas. Seus olhares passeiam da revista para mim e vice-versa, várias vezes. Ah, este mundo de hoje está perdido. 40


nesta altura, tanto faz PIO, Piolho e Peruim. O três cresceram e viveram juntos, jogando bola, batendo papo, empinando pipas e outras coisas de criança. Adolescentes num bar, os hábitos já lhes são outros. O carro, as garotas, seus gemidos, suas coxas, os banhos na cachoeira, a cerveja e os primeiros porres. Pio, Piolho e Peruim sempre juntos. Casados, criaram os filhos. Vieram as dívidas, brigas com a mulher, televisão aos domingos, festas de casamento, batizados, enterros, dor na coluna, pedras nos rins e o pigarro de sempre. Ainda juntos, os três. Só entre eles seus nomes: Pio, Piolho e Peruim. Para os demais, outros nomes. Já velhos cansados, carecas e barrigudos, são dois que enterram um e um que enterrou os dois, naquele mesmo cemitério. Um permaneceu bem velhinho. Ou Pio, ou Piolho ou Peruim. Podem chamá-lo pelo nome, não atende. Atenderia se o chamassem por qualquer um dos três apelidos, mas estes ninguém conhece. Ele se lembra dos três, mas já não sabe quem é, se é Pio, Piolho ou Peruim. Nesta altura, tanto faz.

vida O INVERNO traz consigo dias nebulosos, o frio e a garoa fina. A natureza torna-se silenciosa e os ruídos ecoam com maior nitidez. A estátua de um guerreiro segurando um arco em sua mão direita, no pórtico do jardim, mal sabiam as pessoas, era viva e atenta. Observava e ouvia tudo ao seu redor. Representava um homem forte, espadaúdo, com as pernas semi-abertas bem plantadas no chão. Vestia exígua tanga. Seu dorso nu e musculoso era envolvido por uma faixa representando couro que servia de suporte a um tubo disposto em suas costas, repleto de flechas. Era a única estátua de um espaçoso jardim, um mosaico de pequenos canteiros bem cuidados, repletos de flores das mais diversas formas e matizes. A estátua estava ali há décadas, observando atenta o passar 41


dos anos, as mudanças das estações, os dias que nascem, as noites escuras, as noites claras de lua, dias de sol, dias de chuva. Seu olhar fixo permitia-lhe ver apenas uma faixa estreita da paisagem a sua frente, uma aléia larga margeada por árvores plantadas a espaços regulares, tendo ao fundo um palacete circundado por uma grande grade de ferro. Via apenas parte disto. Era o suficiente para distrair-se e desfiar suas intermináveis horas de observação silenciosa. Era uma estátua de pedra desgastada que guardava por dentro um coração humano que pulsava vivo. Nem sempre iguais eram suas horas. Em raros dias, conforme determinadas injunções dos astros em noites claras de lua, ganhava vida transmudando-se em um ser de carne e osso. Saía do pedestal, caminhava pelos jardins, tocava as flores, sentia seu perfume, sentia o atrito de seus pés contra o solo úmido, abraçava os troncos das árvores, dependurava-se em seus galhos, observava os grilos, os pequeninos insetos e caminhava, calma e despreocupada, olhando o céu, sentindo a brisa e o orvalho fino a lhe roçar a pele. Apenas nesses momentos o guerreiro se sentia melancólico, tomado por abissal solidão e cansaço de existir.

o ganso COM SUAS pernas longas escapando pelas calças curtas o menino, esguio como fiapo, enfiou o pescoço na sala interrompendo a aula. Todos se voltaram para ele, que sorriu amarelo. O professor, incontinenti, ordenou-lhe, – Entra e senta! Ia balbuciar alguma coisa mas o professor novamente foi incisivo – Entra e senta! Ele entrou e, ajeitando suas pernas longas no espaço estreito, sentou-se. A aula continuou. Tentava falar a todo instante mas não dava. O professor exigia silêncio e ele se calava. O jeito era ficar ali e não reclamar. Seria melhor evitar confusão com aquele homem nervoso. O menino assistiu a aula toda perdido como o sorriso amarelo que trazia nos lábios. Ele era da sexta série e a sala da quarta. 42


No mar de pequeninas cabecinhas a dele se destacava como um ganso entre um bando de pintinhos. Quase no final da aula, a Coordenadora entrou na sala e se deparou com aquele galalau perdido e apatetado entre as criancinhas. Caiu em sonoras gargalhadas. O rapazinho percebeu que o negócio era com ele e ficou ainda mais desconcertado. Olhou para ela implorando socorro: - me tira daqui! A Coordenadora ainda rindo saiu deixando-o lá no mesmo lugar. Depois da aula para alívio seu, desfez-se o mal entendido. Ele, aliviado, foi remetido a seus pares. Hoje, muito tempo depois, todos ainda lembram do ocorrido e ele, já um homem com barba e bigode, ao ouvir a história, ainda estampa no rosto o mesmo sorriso amarelo e assume o mesmo ar de quem, por descuido, entrou no lugar errado.

haja saco CANTEI, cantei, até meu canto se desfiar em lamentos desafinados. Falei, falei demais e no final, ninguém suportava ouvir os meus grunhidos, nem mesmo eu. Sonhei tanto que hoje deliro a mais cartesiana realidade. Minhas retas são curvas e meus círculos cheios de pernas. Quando paro, paro mesmo. Fico fincado no chão, na cadeira, no espaço. Eu me sinto um caroço de manga chupada. Um saco vazio de pipoca doce rodeado de mosquitos. A poça de água suja que permanece junto ao meio-fio da calçada. Se uma gaita de fole virar sorvete de amêndoas aí talvez eu volte a ser o que fui. Não era eu lá grande coisa mas ao menos me suportava.

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morgana MORGANA, nome de fada, mas ela era uma simples faxineira, meio gorda, pele morena, já conhecendo as rugas e celulites da idade. Andava pelos longos corredores com sua vassoura e seu balde. Desanimada, qual tartaruga cansada, executava a repetitiva rotina de limpar o chão, recolher o lixo que alguém sempre deixa fora da lixeira. Coisas assim sem valor, que ninguém nota, ninguém vê... Monossilábica, cumprimentava os moradores; os poucos que a percebiam, com voz sem vida e olhos de tristeza, como quem pede desculpas por existir. Como alguém que não é nada. Era um apetrecho descartável, destes que se muda com facilidade. Mão de obra sem qualificação, sem importância. Aconteceram mudanças no prédio, um desses condomínios de classe média, de mil andares, com mil apartamentos cada um. Mil vezes mil, um milhão de apartamentos. Todos seus corredores enfileirados seriam uma longa estrada sem fim. Ela os percorria todos com seu balde, com sua vassoura e o detergente. Seguia encurralada na indigência da vida de enfadonhas rotinas... Aconteceram mudanças. Novas incumbências lhe foram delegadas. Cuidar dos jardins do hall da entrada. De planta, nada sabia. Bastava regá-las, recolher folhas mortas, coisas bem simples. Mas gente gosta de plantas. Gosta de vê-las crescer e florir. Não sei se este era o caso de Morgana, aquela que não era fada, apenas a faxineira. Quem gosta de plantas sempre tem assunto com os que tratam delas: dá conselhos, faz perguntas, exalta sua beleza, conta que já teve uma, fala sobre adubos, sobre segredos que as fazem mais viçosas... Morgana foi se tornando humana para aquela gente. Estava agora perto do verde e das flores, onde todos passam e notam. Deixou de ser faxineira e recebeu um nome, o seu próprio, Morgana. Hoje já entende um pouco das coisas da natureza. Ouviu aqui, observou ali, experimentou, fez nascer, viu morrer, viu a transformação, os frutos do seu trabalho. Ainda é a mesma pessoa, porém seu ritmo é outro. Decidida, expedita, com a mangueira 44


rega os jardins com um sorriso nos lábios. Seu cumprimento tem a alegria da margarida matreira que se move ao vento dizendo eu estou aqui. Sou parte da natureza. Participo da beleza. Sou gente. Em seus olhos, vemos algo que não se vê, é a alegria de ser, ser como as plantas, ser como a gente. É um jardim bem cuidado que já faz parte da paisagem e agrada aos olhos e aos corações de quem percebe as sutis mutações da natureza.

acontece ERAM JOVENS apaixonados nascidos um para o outro, se completavam. Eram belos, saudáveis, sinceros, honestos. Eram alegres e felizes. Tratavam-se com carinho. Entendiam-se até nas desavenças. Eram verdadeiras almas gêmeas entre milhões de desencontros. No dia dos namorados, cada um foi comprar seu presente para o outro. Ele tinha problemas, não se sentia bem. Estava irritado, preocupado. Entrou numa loja suspeita num recanto lúgubre da cidade. Das mãos de um velho sovina, comprou uma jóia rara. Um relógio antigo cravejado de pedras rubras com ponteiros azuis. Ela também tinha lá outra sorte de problemas. Por uma dessas coincidências que ninguém explica, dirigiu-se à mesma loja e comprou das mãos do mesmo senhor, para ele, também um relógio parecido: ponteiros azuis, cravejado de pedras acinzentadas. Ambos sentiram um calafrio a lhes percorrer a espinha quando trocaram os presentes. Ele, com o relógio no pulso, dormiu pensando nela. Ela, no entanto, retirou o seu para dormir. Sentiu-se, sem ele, leve. Ele jamais acordou. Um mal estranho corroeu-lhe o corpo, secou seu sangue, envelheceu sua pele e pintou de branco seus cabelos. Mumificou-se. Ela perdeu a memória. Ao acordar, dele já se esquecera. Desfez-se do relógio jogando-o numa sarjeta qualquer. Rejuvenesceu. Permaneceu feliz e bela como sempre...

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universos ESTAVA eu dormindo junto à janela do trigésimo quinto pavimento do meu prédio quando, sonolento, vi aportar do lado de fora uma canoa que flutuava no ar. Sem saber se era sonho ou realidade, embarquei e ela saiu navegando suavemente. Contornou prédios e roçou a vegetação das montanhas. Escolhia apenas os lugares aprazíveis. Vi famílias dormindo em paz, casais apaixonados se beijando. Senti os perfumes da cidade. Assim transcorreu a noite, com todos os segredos que esconde. Pela manhã, ao raiar do dia, ela me trouxe de volta à cama e eu dormi com os anjos e acordei feliz. Noite após noite, a canoa singela repetiu comigo estes passeios, uns mais curtos, outros mais longos. Por vezes, voávamos alto além das nuvens. Percorríamos trajetos curvilíneos e ascendentes. Não me faltava o ar e eu sentia frio. Fomos longe, muito além da atmosfera. Contornamos a lua e estrelas distantes, onde o homem jamais chegará. Fomos além dos confins dos vizinhos universos. Assisti a fenômenos cósmicos que nenhum mortal imagina, maravilhas de cores e formas. Dialoguei com inteligências de pura energia, com fontes de bondade, de sabedoria e amor. Seguimos cada vez mais longe, até lugares que, definitivamente, sequer posso mencionar. Eu, um simples mortal, compreendi verdades que a mente não suporta. A canoa singela já não retorna mais. Foi-se definitivamente. Hoje me encanto, deslumbrado – entre outras maravilhas. Observo o caminhar de formigas nas trilhas dos jardins, os saltos repentinos dos grilos assustados, o vôo da abelha solitária, o coaxar dos sapos nas lagoas, a folha tenra se curvando ao vento.

sempre HÁ HORAS soturnas. São aquelas de trezentos e sessenta minutos, cada um deles com noventa segundos de chumbo.

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nada O BARULHO das ondas, o alvoroço das gaivotas. Nada despertava a atenção do jovem, sentado na areia com seu olhar perdido no horizonte. A natureza era um convite à alegria, mas ele permanecia em seus pensamentos. A maré subiu, as águas molharam seus pés e ele permaneceu imóvel. As sombras do entardecer o engoliram, contudo, seu olhar vazio continuou a fitar o nada. Veio a noite trazendo a lua que prateou as águas. Mas ele já não se encontrava ali. A praia estava vazia, sem ele. Não se lançara ao mar, não se fora. Apenas não estava ali. Transformara-se em aragem, em brisa. Numa dessas brisas que nos entristece sem que saibamos por quê.

eternas VETUSTAS senhoras alvoroçadas saem da igreja. Foram outrora um bando de coxas bem torneadas. Caminham serelepes, segurando entre os dedos seus terços. Seguravam outrora sequiosas o sexo dos namorados. Seus gemidos hoje são outros, são de dores. Algumas singraram os sete mares, Outras trazem calos criados junto ao fogão. Pariram filhos, criaram netos e bisnetos. Carregam maridos bêbados e outros esfarrapados, Maridos meticulosos, preguiçosos, ranhetas. Mas alimentam gargalhadas. Preparam doces e quitutes. E partilham segredos com as netas de coxas bem torneadas.

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meus vizinhos MORO numa rua de subúrbio onde todos se conhecem. Na casa vizinha à minha residia um casal de velhinhos. Ela, sempre arrumada, ativa e carinhosa com seu marido idoso que caminhava com dificuldades amparado num par de muletas de alumínio. Eram pessoas humildes que nunca recebiam visitas. Estavam sempre sozinhos. Desconfio que sequer possuíssem uma velha televisão que lhes espantasse as lembranças das noites silenciosas. Toda manhã, bem cedinho, ela trazia o velhinho pelo braço e o auxiliava a sentar-se numa cadeira de balanço junto à grade da calçada. Ele permanecia ao sol, observando o movimento da rua, dos raros automóveis, das crianças indo e vindo da escola, de uma ou outra senhora que passava com seu embrulho de pães sob o braço. Desde a manhã em que fui abordado por sua esposa, quando, meio constrangida, me pediu emprestado o caderno de esportes do jornal que sempre levava comigo para o trabalho, desenvolvi o hábito de parar ali, fazer um ou outro comentário sobre futebol e deixar com ele o caderno de esportes, que não lera e que ele, avidamente, folheava assim que o recebia de minhas mãos. Eu me sentia bem fazendo esta pequena gentileza. Ele era torcedor fanático de um time de futebol decadente, alvo de chacotas, que quase sempre protagonizava os maiores vexames dos campeonatos. Mesmo assim, todo dia, seus olhinhos brilhavam em busca do jornal. Minha vida se complicou e me tornei pouco afeito ao convívio com todos daquela rua. Não sentia vontade sequer de cumprimentá-los. Não queria conversas. Resolvi então que tinha direito a ler meu jornal por inteiro. O velhinho que pedisse o jornal a qualquer outro. Naquela quinta-feira, ao passar por ele, fingi não vê-lo. Ainda o ouvi balbuciar baixinho “o jornal”, mas segui em frente. Veio a sexta, o sábado e o domingo sem que eu lhe cedesse meu jornal. Foi no domingo que o inesperado ocorreu. Seu time do coração, não se sabe como, sagrara-se campeão de um importante 48


campeonato, o que não ocorria há décadas. Ao saber do fato no domingo à noite, me arrependi do que vinha fazendo. Na segunda pela manhã, separei e dobrei o caderno de esportes e o pôster do seu time campeão. Fui ao seu encontro. A cadeira, para surpresa minha, estava vazia, a porta e as janelas de sua casa, cerradas. Abri o portão, entrei, toquei a campainha mas ninguém me atendeu. Alguém que passava deu-me a notícia: no sábado o velhinho falecera. Sua esposa fora levada por parentes para um lugar distante. Fiquei aturdido. Ao sair, joguei o jornal e o pôster sobre a cadeira e me fui rapidamente. Tem sido doloroso para mim passar por ali e ver a casa fechada, a cadeira no mesmo lugar e o pôster, amarelado, aberto, colado ao chão.

a borboleta A MANHÃ era clara e a temperatura amena. Soprava uma leve brisa que agitava as folhas das árvores daquela rua de calçadas largas por onde eu caminhava. Seguia distraído, entregue a pensamentos melancólicos, quando, ao dobrar uma esquina, vi presa numa poça de lama uma borboleta amarela se debatendo. Parecia sofrer. Abaixeime, tomei-a na palma da mão e a libertei. Por breve instante ficou ali, parada, recuperando suas forças. Depois voou, célere, e desapareceu. Na hora certa, cheguei ao local onde iria discutir com um empresário a possibilidade de um negócio que faríamos. Dele precisava para reequilibrar minhas finanças e saldar dívidas que se acumulavam. O tal homem não apareceu. Seguira para outro compromisso e, segundo sua secretária, depois me telefonaria, marcando um novo encontro. O negócio era vital para mim, não para ele. Certamente dele desistira, concluí. Minhas esperanças se desvaneceram. Os fantasmas da preocupação embotavam minha mente. Minha nuca doía. 49


O sol já estava a pino e eu suava muito quando, voltando pelo mesmo caminho, ao passar de novo pela mesma rua de calçadas largas, vi a minha frente uma pequenina borboleta amarela. Voava, ora pousando aqui ora ali, ou atravessando os espaços entre as folhas das árvores a nossa frente. Segui por cerca de uns quinhentos metros e ela sempre a minha frente. Descreveu círculos graciosos ao redor de minha cabeça até que, aproximando-se, pousou em meu ombro. Caminhamos por um bom tempo. Eu, e ela pousada em mim. Depois alçou vôo descrevendo trajetórias sinuosas. Desapareceu. Como se acordasse de um pesadelo, refeito, afaguei meus cabelos. Repentinamente voltara a me sentir bem. Aquela borboleta levara consigo todos os meus fantasmas e preocupações. Continuei a caminhar quase que flutuando.

viagem O HOMEM é racional porque pensa e sabe que pensa, existe e sabe que existe; está e sabe que está, mas nem sempre. Basta que os pensamentos o dominem e ele se vai, desligando-se da realidade circundante. Vai-se com os pensamentos para caminhos de angústias, para paragens românticas, para intrincados problemas, para qualquer lugar que seu estado de espírito determine. O ônibus seguia pela estrada e a moça, rosto colado no vidro da janela, via passar sob seus olhos os fantasmas esbranquiçados das silhuetas dos matagais e o negro das depressões dos barrancos que margeavam o asfalto. Ela, no entanto, nada via. Não estava ali. Seu pensamento, bem longe, trazia-lhe a presença viva do homem que amava. Mentalmente contava-lhe tudo o que vira naquela viagem prestes a terminar. Descrevia inúmeros detalhes. Falava atabalhoadamente. Fugia de um assunto a outro, ansiosa, escolhia palavras precisas. Por todo o tempo que durou seu devaneio, não se deu conta de que o homem a quem amava se encontrava ali, ao seu lado, silencioso e atento. Ele sorria calmo, com tamanha ansiedade e, lá em sua casa, esperava sua chegada. 50


o casal ALTO, magro, cabelos negros e lisos, postura ereta, movimentos calmos, voz tranqüila, olhar profundo, cerca de trinta anos de idade, taciturno. Ali-Shaíba, profissão desconhecida, talvez maestro, artista plástico, psicanalista ou cirurgião. Por certo mora sozinho, ouve clássicos, é de família nobre, é culto, bebe vinhos, fuma cachimbos, dirige uma Ferrari, pratica equitação, joga golfe, veleja. Certamente é cortês com as mulheres. Romântico, envia flores no dia seguinte, dá presentes de bom gosto. Baixa, gordinha, cabelos loiros encaracolados, postura displicente, estabanada, voz estridente, olhar esperto, cerca de vinte anos, nervosa e insegura. Tamara Stein, profissão desconhecida, talvez professora primária, telefonista, secretária ou gerente de loja. Por certo mora com seus pais e vários irmãos mais novos, é de classe média, tem cultura de verniz, bebe só coca-cola e fuma muito. Dirige um carro usado que ainda paga em prestações, gosta de praia, joga cartas. Certamente é superficial com os homens, esquece-lhes os nomes, desmarca compromissos e gosta de se sentir submissa. Ali-Shaíba e Tamara Stein. Ele bancário de terceiro escalão, ela, piloto de jato. Ele desleixado, hipocondríaco, neurótico e fóbico. Ela tranqüila, metódica e segura. Ela atenta, ele distraído. Ela rica de berço, ele pobre. Amam-se profundamente e são felizes. Vivem um grande romance. Ele sequer sabe o dia do aniversário dela e ela cuida com carinho do álbum de fotografias dos dois e memoriza todas as datas de suas vidas em comum, inclusive o dia e a hora em que se beijaram pela primeira vez.

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consolo UM TROVÃO eclode no ar e faz tremer as taças de cristal. O menino estremece. O raio rasga o céu escuro e clareia a noite. Cega-lhe momentaneamente os olhos. Seu coração bate acelerado, seus lábios ficam lívidos, encolhe-se. Outros raios, outros trovões e ele molha as calças de tanto medo. Como uma gazela assustada, corre em busca de refúgio seguro nos braços de sua mãe. Pula em seu colo. Ela, contrariada, sente suas coxas umedecidas e o odor de urina. Furiosa, pôe-se a berrar e a repreendê-lo : “ menino porco, bobo e medroso”. Entre tapas na cabeça, nos braços, nas pernas, todo ardido, foge da mãe e busca no canto do salão o conforto das mãos carinhosas da avó que lhe afaga a cabeça. A mãe se vai ainda alterada e os dois ficam sozinhos. Ele secando as lágrimas com suas mãozinhas recuperando o fôlego, a avó, com o olhar perdido, pensa nos raios que castigam nossas vidas e os trovões das palavras duras que ouvimos. Tão confortante seria, e tão mais fácil viver, se nesses momentos pudéssemos recorrer aos afagos dos que aceitam nossos medos, nossas pequenas falhas e tranqüilizam nossa alma aflita.

a armadilha JAMAIS atravesse este riacho assim, tão descuidado. Sob suas águas claras se esconde um sorvedouro que engole os incautos que desdenham perigos escondidos. Quem nele pisa, afunda. E quem afunda, morre. E se morre parte para um lugar que é certo. Não é céu e nem inferno. É onde se recolhem os desmemoriados. É região do nada. Lá eles caminham com olhar perdido e fitam apenas o vazio. Tornam-se fantasmas transparentes. Não distinguem se esvai-se um século ou apenas um segundo. O riacho é raso e suas águas claras. É um convite ao descuido e ao devaneio. É a perfeita armadilha que poderá sugá-lo até secar a última gota de vida que lhe reste. 52


lua NA NOITE em que não dormi fiquei a fitar a lua, tão bela, tão cheia, tão triste. Foi quando desceu e veio juntar-se a mim. Era linda vestida em véus. Tinha cabelos negros, pele clara, coxas bem torneadas. Ficamos em silêncio e em silêncio nos amamos. Depois subiu, retornou ao seu lugar. Ninguém viu, ninguém se lembra, mas ela esteve aqui, carinhosa, meiga, delicada. Será que se lembra de mim?

olhos UM sentimento, às vezes, se intromete entre duas tragadas de um cigarro, feito assombração.

a roda que roda sempre A RODA que roda sempre roda, roda sempre sem parar. A peste que dizimou o mundo é a mesma que me salvou. As lágrimas umedeceram-me o rosto, mas o martelo da vida cravou-me ao peito a gosma pegajosa dos sonhos bolorentos. Triste é o fim. O princípio cheira a sapato novo. Na sombra do nada, nasceu uma flor de cabeça para baixo. Necessária é a solidão para que se faça a luz. Quem sou eu nesta ilha deserta com esta chave falsa de tesouros que se perderam nos confins do mundo? Não devia, mas vivo por insistência. A maçã caramelada está no armário vazio. Que aguarde! Eu não irei até lá! Sou o único poste da calçada da rua do cais. Aquele que cheira a peixe.

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vazio NÃO HÁ mais noites enluaradas, nem flores perfumadas. Apenas vejo os reflexos da televisão nas paredes e ouço um rádio tocando, ao longe, uma música de mau gosto. Não há mais a seiva da vida, apenas o passar das horas vazias. Já não sonho e não desejo. Já não corre mais sangue em minhas veias, apenas a falta de lucidez. Fechei meu caixa e confiro os trocados. Em meu chaveiro carrego apenas a chave da porta, que já perdi. Bebi até a última gota da bebida de que não gosto e fumei meu último cigarro, que levou em sua fumaça minha última esperança. De tudo que eu tinha, nada tenho agora. Eu mesmo suicidei os meus projetos. Afoguei-os nas lágrimas que não chorei. Não vou partir pois não tenho ninho. Em qualquer lugar serei apenas um fantasma assustado e errante.

mais dolorosa A LÂMINA desceu. Sua cabeça rolou na bacia. Seus olhos viam seu próprio pescoço ensangüentado mas ele estava tranqüilo. Perder a cabeça e não morrer. Parece estranho, mas acontece. Abrir uma porta, coçar a orelha é tudo a mesma coisa, como perder a cabeça. Levantou-se, lavou-se e caminhando, deixou pra trás a cabeça decepada. Até o vento assustado parou de soprar ao vê-lo assim. As pessoas, nem se fala. Sumiram apavoradas, desmaiaram, gritaram. Ele seguia caminhando e caminhando continua. – E o fulano, como vai? Perguntam alguns que desconhecem o fato. – Fulano? Você não sabe? Fulano perdeu a cabeça. Para aquele homem, a figura é mais dolorosa do que o fato real.

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aguardando UM anjo, certa vez, pousou sobre uma pedra na borda de uma lagoa. Resplandecia como a lua e sua imagem refletia-se no espelho das águas. Um velho sapo, ao vê-lo, aproximou-se e pulou em seu colo. O anjo, tomando-o nas mãos, perguntou-lhe o que desejava. O sapo, então, expôs-lhe seus desejos. Não queria ser um príncipe belo e rico e nem viver romance perfeito com princesa alguma. Desejava ser apenas um camponês feliz, ter uma choupana, umas cabras, uma enxada e um campo para plantar. Queria, ao fim do dia, sentar-se num toco de madeira, tranqüilo, fumar seu pito e ver o sol desmaiar atrás das montanhas. O anjo, enternecido, prometeu tentar junto a seus superiores autorização para realizar os desejos do sapo. Colocou-o de novo na relva e, alçando suas imponentes asas, partiu como uma estrela cadente, rasgando o céu até sumir na escuridão. O sapo, com seus olhos empapuçados, mirando as estrelas cheio de esperanças, petrificou-se. Ali permanece até hoje, de castigo, adornando o lago. Espera o anjo que jamais voltou. Pedira demais.

vitória CONCENTRO todas minhas forças e, num gesto sobre-humano dou meu primeiro passo, tão difícil, e subo o primeiro degrau. Concentro minhas esperanças, afugento a visão do futuro para me manter de pé e observo todos os degraus que tenho pela frente nesta escadaria sem fim: as angústias, as tristezas, as dores, a solidão, os medos, as perdas e os ódios. Nada, mas nada mesmo, me poupará do segundo passo e de todos os outros que terei que dar, queira ou não. Não existem outras possibilidades. Meu último passo me entregará à morte e, dizem, depois dela, ao céu ou ao inferno. Ainda assim me exigem que caminhe ereto, quando apenas caminhar já é vitória.

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tense, a formiguinha TENSE é uma formiguinha dessas mínimas. Aquele pontinho que se move e ninguém vê. Caminha célere e experimenta sabores. Subiu certo dia pelo pé de uma mesa e, na imensidão de sua superfície, localizou um torrão de açúcar. Voltou rapidamente para avisar suas irmãs, seguindo rumo ao formigueiro. Lá chegando, mostrou as evidências de seu achado. Descreveu o lugar, forneceu coordenadas. Não lhe deram ouvidos. Estavam todos muito atarefados. Tamanha foi a indiferença das companheiras que ela mesma começou a duvidar de sua própria sanidade. A faina diária fez com que esquecesse o ocorrido. Em seu inconsciente, no entanto, arquivou a lembrança de sua extraordinária descoberta que todo o formigueiro ainda desconhecia. Alimento puro, saboroso, preparado, granulado, diferente de todos que já experimentara. Tornou-se, sem razão aparente, uma formiguinha neurótica, aflita, irritadiça e neurastênica. Um sussurro no seu interior lhe dizia sempre que algo diferente existia, que havia melhores opções de sobrevivência. Tense passou a caminhar em círculos no mesmo lugar até que, esgotada, morreu. Sobre a mesa, o torrão de açúcar por muito tempo permaneceu ignorado. Quando enfim as formigas chegaram para comê -lo, nenhuma delas se lembrou de Tense e nem de sua vidinha tão sofrida, que assim foi porque antecipara-se ao tempo certo em que as coisas têm que acontecer.

pássaros livres ERA UM pássaro canhestro. Apenas saltitava no chão em busca de migalhas. Rechonchudo, não mirava o céu, não voava como os outros. Parecia mais uma galinha pequenina. Era bisonho e feio. Certo dia, veio comer ao seu lado um canarinho da terra, todo amarelinho, como ovo, desses que voam alto e descansam nas copas das árvores entoando trinados longos e harmoniosos. 56


Por falta de sorte ou por descuido, viram-se aprisionados ambos, em uma arapuca e depois transferidos para uma gaiola. Para o pássaro canhestro, a mudança de vida pouca diferença fez. As coisas ficaram até mais fáceis, a comida era abundante e a água sempre limpa. Já para o canário, a prisão era tristeza. Perdera sua liberdade e seu mundo amplo. Restringia-se agora àquele espaço mínimo e sem cor. Só não se deixou morrer porque consolava-o o pássaro canhestro, que se revelou companheiro e amigo, alimentando seus sonhos de liberdade e vida. Certo dia, descobriram uma fresta na gaiola e por ali fugiram. O canarinho, após longa despedida, se foi feliz, retomando sua vida, mas já não era o mesmo. Vivia agora insatisfeito e triste, apesar dos campos verdejantes, das sementes, das árvores, dos prazeres que sentia ao saudar os primeiros raios da manhã. Sentia falta do pássaro canhestro. O pássaro canhestro também retomou sua rotina, mas aprendeu a olhar para os céus em busca do amigo. Na ânsia de encontrá-lo, ensaiava pequeninos vôos. Aos poucos ganhou o ar. Já pousava nos galhos baixos das árvores e cada dia ia mais longe. Continuou feio e bisonho, porém adquiriu uma certa graça. Ficou mais esbelto. Para alegria de ambos, acabaram por se reencontrar e se vêem até hoje, todo dia, mas nunca num galho alto onde ficam os canarinhos e também nunca no chão onde vivem os pássaros rasteiros. Cada um cedeu um pouco. Encontram-se sempre num galho a meia altura. Trocam confidências, divertem-se com coisas banais, estão sempre juntinhos nas noites frias, nas ventanias, nos temporais. Cada um mantém-se livre, vivendo sua vida a seu modo e hoje são mais felizes. A amizade que os une espanta qualquer tristeza que paire em seus corações, embora um viva aqui e outro acolá…

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voltando é tudo igual ESCOAM as horas por onde eu não sei... Vão-se os minutos como pingos da torneira que não fecha. E o reservatório seca e nem um gole nos resta. Aí o tempo vale mais do que o dinheiro... Mas escoam as horas, por onde ainda não sei... Sei que escoam e deixam sulcos em nossas faces vividas. Levam os sonhos como gravetos do rio que desbastaram as arestas dos seixos rolados. Estas horas não voltam e isto me dói. Quisera reavê-las e sorvê-las de uma forma inteligente. Eu queria ser gente, não graveto. Queria não me sentir um dejeto mas, mesmo que o seja, as águas das horas do rio da vida haverão de me dissolver e alcançarei o mar diluído como eles…

as culpas do Chico ENGATILHOU o revólver e o cravou na nuca do Chico. “Deita no chão, desgraçado”. Chico prontamente atendeu sem ter a mínima idéia de por que ia morrer. O sujeito sentado em suas costas, com a mão livre lhe aplicava fortes tapas na orelha. Chico rezava “Ave Maria cheia de Graças rogai por nós agora e na hora de nossa morte. Amém”. Via o rosto da mãe no desespero. O sujeito esmurrava seus rins. “Não pensa que vou te matar assim tão fácil. Sofrerá como cão”, falou o homem. Chico, balbuciando, perguntou baixinho “O que fiz?” “Sei lá, vagabundo, você tem cara de culpado e eu não saio daqui sem lhe aplicar justiça. Alguém fez alguma coisa que não devia e você morre por isso”. Antes que seus miolos se espalhassem pelo chão, Chico pensou “Deve ter sido por causa daquelas mangas que roubei quando criança do quintal do meu vizinho”. Quando expirou, sentiu e viu, ao mesmo tempo, as mangas, a mãe e a dor da bala estraçalhando seu crânio.

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atração CAMINHAVA tranqüilo quando um carro branco desgovernado subiu na calçada e o atropelou. Ambulância, hospital, operação, febres, remédios. Teve alta e retomou sua vida. Estas coisas acontecem... Caminhava tranqüilo quando um outro carro branco desgovernado subiu na calçada e o atropelou. Ambulância, hospital, operações, febres, remédios. Teve alta novamente. Macumba? Azar? Um raio duas vezes no mesmo lugar? Vieram as depressões, o pânico, a fobia. Andava sobressaltado. Evitava as calçadas, o que é quase impossível. Era só vislumbrar um carro branco que ficava paralisado, lembrando-se das pernas quebradas, das costelas trituradas, do talho enorme na cabeça e das horríveis dores que sentira nos dois atropelamentos. A noite não dormia. Tomava tranqüilizantes. Acordava sobressaltado. Delirava. E pela manhã, cansado, saía a procurar o emprego que perdera em decorrência do seu precário estado emocional. Pela terceira vez foi atropelado por um carro branco desgovernado. Salvou-se e passou de novo por tudo que sofrera duas vezes. Teve alta... Com olhos arregalados saiu de casa assim que nela chegou. Esgueirando-se pelos cantos, parou junto ao muro da calçada atento em busca de um carro branco. Poucos minutos depois, o barulho da freada, o estrondo da batida. Um homem morto no meio da rua. Era ele. Feito doido pulara em frente ao carro. O motorista não tivera tempo de frear. Todos estavam certos de que ele não desejava viver.

à francesa devem ser iniciadas com letras minúsculas quando se deseja penetrar de mansinho... AS FRASES

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leitão PREZADO Leitão de bigode e barba; descruze as pernas e deixe de lado este ar tão grave. A vida continua sem você e sem mim. Não deteremos o curso da história pois que nada somos. Chifres, quem os tem, são os touros e os alces e você não é touro e nem é alce (Veado também não é. Nunca me passou tal hipótese pela cabeça) Relaxe, Leitão. Balance seu rabinho retorcido e se contente em ser apenas um leitão. Isto basta e já é muito. Receba um grande abraço deste seu amigo também leitão. Em breve nos encontraremos na mesma churrascaria e no mesmo espeto. Até lá.

competente O HOMEM sério resolvia intrincados problemas que requeriam esmerado preparo. Sua extensa bagagem o qualificava para tamanha responsabilidade. Em seu escritório, finamente decorado, seus auxiliares pisavam carpetes felpudos com pés de anjo para permitir-lhe o mais alto nível de concentração. Num desses instantes foi que o mico preto, pulando a janela, acocorou-se em seu ombro. Não foi notado e, falando com a mesma voz do homem, intrometeu-se em seus pensamentos. Mico preto pensa sem compromisso. Fala por falar, joga as palavras como dados. Se colar colou, se não colar, pouco importa. O homem sério, produzindo, arrematava conclusões e apontava caminhos. Mas das conclusões e caminhos mais de cinqüenta por cento eram de autoria do mico e o homem não percebia. Findo o relatório, remeteu-o às autoridades competentes. O homem sério, economista, foi promovido a ministro e o mico preto hoje é seu primeiro secretário.

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instável equilíbrio ENTROU na casa quase que arrombando a porta, desesperado. Olhou para a mãe e, aos prantos, lançou-se a seus braços. A senhora, com gestos tranqüilos, o acolheu em seu regaço. Ainda soluçando, secou as lágrimas com as costas das mãos. Entre as pessoas, há pouco, sentira-se tonto feito mosca. O pequeno cemitério em que estivera parecia salão de festas, de tanta gente trafegando entre as covas. Uma festa onde o choro substituía as gargalhadas. Mal enterravam um, todos corriam para enterrar outro. Do naufrágio ninguém se salvara. O barco partira lotado na véspera, levando sua noiva que agora estava no fundo lodoso do rio. Seu corpo não encontraram. A casa da mãe era seu último refúgio. Por isto estava ali. Ela, sorrindo, foi até o armário. Voltou com um avental branco rendado onde se lia o nome da noiva. Estendeu-o ao filho: “Que lindo. Acabei de fazê-lo”. Atônito, não entendeu a atitude da mãe. Sua noiva morrera. A senhora explicou. A moça sequer embarcara. Estava viva em sua casa. Na noite que antecedera a viagem ela tivera um sonho de maus presságios. Vira o filho no fundo do rio, envolto em lama. Se fosse ele a embarcar, talvez não o tivesse impedido, seu sonho tomaria por besteira. Como, no entanto, era a noiva quem iria, de pronto entendeu que recebera um sinal. Impedira que a moça partisse naquela viagem sem volta e que seu filho permanecesse vivo para sempre, preso no fundo escuro do rio...

amigos Correntes pesadas prendem-lhe os pés. Caminha com dificuldade a arrastá-las. Senta-se ao pé da mangueira e aguarda. Por duzentos anos, repete a mesma rotina. Viveu sua última vida com escravo e, mesmo sendo fantasma há tanto tempo, ainda não se livrou dos grilhões e dos açoites do feitor. Ereto como um cabo de vassoura, terno puído, botas de couro surradas, um chicote na mão que nem usa. Andando 61


rápido chega. Magrinho, atrás dos óculos redondos, vem e se senta também ao pé da mangueira. Fora o feitor da fazenda, um faz tudo competente e rigoroso. Embora fantasma, continua atarefado vigiando escravos fujões que não encontra. Vem o menino distraído trazendo na mão um ninho de passarinho. Encontrou-o no meio da estrada, dois filhotes de tico-tico. Abrem os bicos famintos e batem as asas peladas. Estão com fome. Senta-se o garoto entre os fantasmas com o ninho nas mãos. Eles vêem o menino e os passarinhos. O menino angustiado não sabe o que fazer com os filhotes. Eles também não têm a mínima idéia do que fariam em seu lugar. Pela primeira vez, timidamente trocam palavras sem brigas, esquecem as diferenças. Buscam uma forma de ajudar. Há mais de duzentos anos perambulam na fazenda. Um fora o feitor e o outro escravo. Odeiam-se até hoje. A fazenda está completamente diferente do que fora. Apenas a mangueira é a mesma. Por isso ali se reúnem para voltar ao passado. O garoto não, ele é de carne e osso e nada tem a ver com a pendenga. Apenas quer salvar os passarinhos que encontrou na estrada. Aos dois fantasmas, dois inúteis, embora tão velhos nenhuma idéia ocorre. Aguardam que o menino sozinho resolva o problema. O ninho fica no chão entre as pedras. O garoto foi embora. O escravo pensou, e as formigas? Vão comer os passarinhos ainda vivos. O feitor foi além, a chuva arrastaria o ninho ou o vento o faria. Diariamente o garoto retorna com papas de leite e água e alimenta os passarinhos. E eles criam penugem, amadurecem sues corpinhos tão flácidos. Sempre os fantasmas estavam lá vigiando, espantando formigas aos berros com caretas e pulos ou, quando o vento soprava mais forte, os dois seguravam o ninho. Para fantasmas esta tarefa é hercúlea. Por todo tempo em que filhotes são filhotes os três mantiveram a rotina. Os fantasmas mais nada faziam e em mais nada pensavam. Não lhes sobrava tempo. Fora isto nada importante tinham mesmo por fazer. Afinal eram dois vadios atrelados ao 62


passado que cismavam reviver. No presente só esta nova atividade de salvar os passarinhos e auxiliar o menino. Os pássaros cresceram e se foram. Eles comemoraram. Até se abraçaram como amigos que já eram e não sabiam, como fantasmas que já tem utilidade e isso começam a sentir. Não havia mais sentido viver atrelados ao passado. Iriam abraçar novas tarefas, sem os grilhões e o chicote. Andando lado a lado saíram e não voltaram examinando a redondeza. O anjo menino continua andando com um ninho caçando fantasmas perdidos no tempo...

viva OLHA, como é lindo. Ouve, como é belo. Escuta com a alma, vê com teu coração. Sinta. Viver é viver, apenas isto: existir, respirar, ver, pensar, ouvir, cheirar. Desnuda-te. Sinta na pele o prazer e a dor, sem encomendá-las, no entanto. Deixa que venham e partam sem que se façam senhores de tua vontade. Sê soberano. Busca. Busca sempre sem te tornar escravo desta ação. Estejas alerta, mas ao mesmo tempo distraído, para poder sonhar, pois que o sonho é que move o homem. É ele que faz a roda girar e leva tua vida sempre em frente. Vive por teus ideais. Se for capaz, morra por eles, senão, tente sequer. Outros, adiante de ti, realizarão esta árdua tarefa. Tua hora chegará. Viver é simples como o respirar. Não compliques. Se não consegues, comeces por observar as coisas simples que te cercam. Comece por um grão de areia, por uma pedra pequenina, por uma nuvem que passa, por uma brisa... Ou por uma lágrima que se esconde, envergonhada, num rosto qualquer... 63


o mundo de Alvin ALVIN nasceu com um dom incomum e, com muita habilidade, conseguia escondê-lo das demais pessoas. Sempre que se emocionava a palma de sua mão direita se iluminava e, nesta hora, se a dispunha sobre qualquer pessoa, esta se transformava. Se mentia, ao ser tocado por ele, dizia a verdade. Além de falar a verdade, se estava doente, curava-se; se triste, tornava-se alegre; se perdida, encontrava-se. Todas passavam a viver sempre a verdade. Alvin não era ingênuo e nem herói, por isto não se expunha. A verdade, quando exposta, quase sempre acarreta problemas graves. Ela é inimiga do homem social. Embora, a longo prazo, cure, de imediato pode arranhar. Alvin não era trouxa, sabia muito bem o risco que corria. Às vezes curava doentes tocando-os sem que o vissem. Não corria assim o risco de se tornar escravo dos desesperados do mundo. Se soubessem de seu poder, multidões transformariam sua vida num inferno. Tornar-se-ia escravo das necessidades dos outros, além de ficar exposto à fúria dos religiosos fanáticos que vêem satã em todos os fatos estranhos que não sabem explicar. Se religioso fosse, seu dom não seria dele, mas sim do espírito santo. Ainda havia os psiquiatras, que iriam elaborar teorias para explicar seus atos. Seria chamado de embusteiro, charlatão, oportunista. Estaria, enfim, exposto à ira dos que não sabem nada, mas, ossos do ofício, têm que saber. Assim que cresceu, Alvin tratou de desenvolver uma outra habilidade para sua mão esquerda, o que aconteceu sem muito esforço. Com ela fazia passar por verdadeiras todas as mentiras dos homens ou dava a elas maior credibilidade. Ao seu lado, as pessoas se sentiam mais seguras, mais capazes, e bem melhor do que eram realmente. Com o passar do tempo, o dom da mão direita de Alvin diminuiu até sumir. Quando isto aconteceu, ele deu graças a Deus. O dom da esquerda se aprimorou. Alvin, hoje, faz sucesso. É rico e realizado. O mundo merece Alvin e Alvin merece o mundo. 64


poetas MEUS OLHOS não são meus olhos. Minhas pernas não são as minhas. Minhas orelhas secaram e minha boca é banguela. Meu peito dói mas eu me queimo no cigarro. É um cigarro após o outro. Aquele poeta barrigudo de uísque, aquele que ficava no bar vendo bundas, falava que a vida é de encontros raros e desencontros constantes. Tava errado, rotundamente enganado. A vida é um só desencontro e dele vivem os poetas. É busca pela agulha no palheiro com picadas da palha nos dedos. O poeta é um sofredor. Disso entendia o outro. O outro é que era o poeta e tantos e tantos outros, os que sangraram de verdade... Não sou poeta, não fui e jamais serei. Mas eu entendo de sangue. De sangue sem serventia. Entendo de dor curtida. Do sangue que deságua em palavras. Se lidas ou não, tanto faz. Isto não muda nada.

não doute DOUTE ERA distraído e imprevidente. Não devia, mas fazia. Fazia, mas não pensava. E se arrependia sempre tarde demais. O juazeiro tem juá. E o juá tem espinho. E o espinho de juá, quando espeta, dói, como dói, dói demais! Doute pulou o muro de cuecas. Caiu no chão sentado no juazeiro: juá no traseiro, juá nos testículos, juá aqui e juá acolá. O espinho de juá quando enterra gruda como cola. E espinho de juá arde, arde demais, como arde! Doute ficou como louco. Berrou como louco. Não havia no lugarejo nem médico nem hospital. Nenhum remédio para dor. E nem pinça. A dor fala mais alto que o pudor. Doute, de pernas abertas, nu como veio ao mundo. O povo todo ao redor e ele urrando de dor.

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A velhinha que já viu tudo, ali cuidando de Doute: “Calma meu filho, calma, eu arranco o que nasceu contigo e deixo o que fincou no lugar”. Era a mãe da moça virgem que morava atrás do muro que Doute sempre pulava. E ela fez o que prometera.

o ancião O VELHO, sem camisa e pés descalços, era alto, magro de ossos à mostra. Caminhava devagar subindo a trilha do morro. Atrás dele apenas o deserto sem vegetação e a represa coberta pelo pó. Chegando ao alto, sentou-se numa pedra grande, junto à única árvore seca e sem folhas, tão seca quanto ele. A sua frente um poço abandonado e profundo. O eco de uma pedra lançada nele só era ouvido muitos minutos depois. Fora cavado há muito tempo ou sempre existira ali. Já não tinha serventia, ao menos pensavam todos. O ancião assumiu a posição de lótus e pôs-se a entoar baixinho uma melodia triste e sem fim... As horas passaram e a lua, imponente e clara, expôs-se no céu, soberana e bela. As horas passavam lentas... Interrompendo sua cantiga, o velho pôs-se de pé e abriu os braços. Nua, a sua frente, na pedra, pousara uma donzela esbelta, linda e prateada. Abriu ela também seus braços. Ficaram os dois assim, frente a frente, por longo tempo. Depois começaram a cantar uma outra canção alegre, com letra poética que enaltecia a fertilidade das sementes e o poder soberano da vida. Do fundo do poço cresceu um ruído, o ruído de mil cachoeiras. Do seu interior jorrou a água, clara e limpa, num jato permanente que subia alto. E não parou mais de jorrar. Pela manhã a represa estava cheia. A superfície das águas cintilava refletindo, como milhares de pequeninos espelhos, a luz do sol que nascera. Entre os campos verdejantes caminhava o ancião. Todos que 66


trabalhavam nas plantações, colhendo os frutos da terra, corriam a lhe ofertar pêras, laranjas, berinjelas, uvas, tâmaras, todas as hortaliças, legumes e frutas. Ele, agradecido e humilde, recebia os presentes e seguia seu caminho. Nos fundos de sua choupana, cultiva apenas flores, flores de toda espécie que jamais colhe. São todas elas, tão lindas, tão belas. São as flores daquela mulher.

mesma história NÃO SE entendiam mais. A tórrida paixão já era lembrança esmaecida. As afinidades desafinaram e ela não sabia como encerrar o esfarrapado romance. Deixou-se levar pelas primeiras máscaras das primeiras companhias. Mergulhou na noite ainda leve e inocente. Mas a noite também desnuda-se em camadas. E vieram aos poucos aquelas pequenas confusões, as sacanagens e as baixarias que ele conhecia bem: o vômito ao pé do poste, as crises de histeria, as correntes pegajosas da luxúria, a leviandade das borboletas sem rumo. Das primeiras mariposas foram-se as máscaras suaves abrindo espaço às faces deformadas de chumbo, de aço, de ácido que corrói. A noite expõe sua ossatura, ainda entranhada de carne putrefeita, que não se mostra aos olhos dos principiantes. Ele, calado, assistiu à descida dos degraus aguardando a hora certa de abrir a boca. No instante exato, desfiou suas mil perguntas. As respostas, se viessem, já saberia de antemão, seriam as óbvias. As mesmas que atravessam gerações. Para todas as perguntas, no entanto, ouviu a mesma resposta: Não sei! Não sei! Não sei! Ele sorriu. Buscou no bolso um cigarro e o acendeu com seu isqueiro de mais de trinta anos. Tomou-a com carinho em seus braços, beijou-lhe a testa, respondeu para si próprio, em pensamento, todas as perguntas que fizera: Eu sei! 67


Partiu levando consigo o isqueiro com os mil cigarros que fumara nas suas mil noites de boemia, conhecendo de cor as mil matizes de todas as lembranças. Não havia porque voltar... Afinal, as histórias se repetem há gerações.

lua do amor DORACI estava com o diabo no corpo. Célia não cedia, rejeitava seus carinhos embora sempre estivesse disponível a qualquer outro. Era quase uma rameira. Durona, só com ele, a quem desdenhava. Peão criado no lombo do cavalo, mãos calejadas da lida, não era homem de ser rejeitado. Já bebera várias doses de cachaça e, quanto mais bebia, mais furioso ficava. O dia já ia longe, quase terminando, e a lua cheia começava a brilhar. Como sempre acontecia em horas como estas, tão freqüentes, com o copo em uma das mãos fitava a lua e espumava de raiva. Socou de repente o balcão e saiu do bar decidido. Nesta noite, Célia, dos prazeres da luxúria, passou rápido aos estertores da morte lenta e dolorida. Seu corpo retalhado pelas estocadas furiosas do punhal, irreconhecível, transformou-se em massa informe banhada em sangue, espalhado em postas pelo chão. Doraci montou seu cavalo e partiu em disparada, deixando, atrás de si, um rastro de poeira até sumir na estrada. Lá na curva da paineira, entrou por um atalho e se embrenhou no mato, rumo ao topo do morro. Seu cavalo, arfando sob estocadas das esporas, subiu, subiu até chegar perto do céu. Entre Doraci e o céu, apenas a lua branca que tanto o incomodava. Desceu do cavalo e tomou do laço. Prendeu a ponta da corda na mão direita, mirou a lua e pôs-se a girá-la sobre sua cabeça. Zunindo no ar, o laço cortou os céus, subiu reto envolvendo a lua. Doraci, num tranco, prendeu-a em sua corda. Sorriu de orgulho. Só ele mesmo. Eta sujeito macho! Nem a lua lhe escapava. Puxou a corda devagar, trazendo-a em suas mãos, e a 68


enfiou num saco de estopa que guardava no arreio. A lua gorda estava presa, era sua, só sua. Com o saco nas costas, voltou à estrada. Ainda parou para outros goles nas biroscas do caminho. O cavalo seguia lento e o sono veio chegando. Foi arqueando o corpo para o lado até que despencou, derrubando consigo o saco repleto de lua, que na queda se abriu... Doraci dormiu junto ao barranco, enquanto a lua lentamente escapava para a vala que margeava a estrada. Por um longo trecho, aquele fiapo prateado seguia como cobra até se embrenhar pelo mato em direção a uma toca onde se aninhou. A lua não foi mais vista no céu. Todos os casais amavam-se agora no escuro, amores sem sentimentos. Amores que deixam de saldo o vazio e o asco, após saciada a carne. Amores sem beijos suaves e afagos carinhosos. Amores de gestos bruscos, dentes cerrados, gritos desafinados, tapas, empurrões. Amores de pura sacanagem, amores de bacanais, amores das bestas violentas, narcisistas, masoquistas, sádicas, assassinas. Doraci tinha um irmão diferente dele, Toninho, mais novo, que trabalhava na enxada cuidando da horta da fazenda. Era pacífico, tímido e recatado. Vivia para seu trabalho sempre fazendo o melhor. Fora isso, sua atenção se voltava só para Maria, irmã de Célia. Maria era o oposto da irmã, recatada, virtuosa e virgem. Era tímida, nunca havia namorado. Sonhava com Toninho. Todo dia quando ia ao curral buscar leite, seu coração se acelerava ao ver seu amado sem camisa a capinar os canteiros onde cresciam viçosas hortaliças. Nestas horas, ele parava, escorava o braço no cabo da enxada e, abrindo um largo sorriso, a cumprimentava. Conversavam alegres, inventando assuntos para permanecerem juntos. Amavam-se e muito. O namoro platônico dos dois era rico de emoções despertadas por fatos simples: troca de olhares na missa de domingo, uma flor que ele sorrateiramente fazia chegar as suas mãos, um bolinho de fubá que ela lhe ofertava... Eram felizes. Toninho e Maria passaram a se encontrar às escondidas. Pre69


feriam manter em segredo seu relacionamento, fugindo, assim, dos mexericos, dos comentários maldosos. Aos domingos marcavam encontros para lá da curva da paineira. Ela inventava que ia visitar Dona Cotinha e ele jogar futebol em Jataí. Caminhavam pelos campos de mãos dadas, entre as flores silvestres, ouvindo o canto dos pássaros. Eram só eles e mais ninguém. Eram os dois os senhores da felicidade e da paz. Assim eram todos os domingos, até que, num deles, perdidos nas horas de doce devaneio, deixaram-se ficar ali além do tempo e a noite chegou. A noite facilita a intimidade. Buscaram um lugar mais acolhedor ao lado da toca onde, não sabiam, a lua se escondera. Amaram-se pela primeira vez naquele cantinho perdido do mato. Na pureza deste amor, entregaram-se de corpo e alma um ao outro, na mais pura expressão de afeto e carinho. Os campos se iluminaram. Da toca, suavemente, a lua foi saindo de mansinho, um fiapo de luz prateada iluminando a noite. Aquele filete de luz subiu em direção aos céus. Eles não perceberam seus movimentos se reconduzindo ao alto, esplendorosa e cheia, se recompondo no céu. Maria, em silêncio, recostada no ombro de Toninho, fitava a lua. Ele, com o olhar perdido dos apaixonados, fazia o mesmo. No céu, a lua, tranqüila e serena, prateava o casal, Iluminava os campos, iluminava a noite, iluminava o mundo... Doraci viveu pouco. Morreu como Célia, na ponta de um punhal, numa briga qualquer, bêbado e corroído de remorsos. Mas a lua tem manchas negras onde acolhe os infelizes. De lá os dois aprendem lentamente na mansidão das noites claras, os caminhos da sensibilidade, do afeto e do amor. Observam os casais enamorados que a sustentam em seu lugar...

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incomum I A ÁGUA mole em pedra dura tanto bate até que dura faz a pedra mole que me engole.

incomum II Quem espera sempre espera a dor que me desespera. E a pedra do meu caminho é como espinho que fere.

incomum III Quem planta escolhe o que colhe. Eu plantei a flor solitária que murchou e já morreu.

incomum IV Mas se essa rua fosse minha de brilhantes já seria E meu anjo verdadeiro estaria morando lá.

incomum V Mas que saudades que tenho daquilo que nunca tive. Dos beijos que nunca dei na boca que não beijei.

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o bode voltou! “O BODE preto sai de lá de trás da cerca, onde mora aquela viúva de poucos amigos, toda noite, e vem até aqui. Seu cheiro chega antes dele. Com um sopro apaga de uma só vez todas as lâmpadas e se vai com seu mau cheiro“. Esta era a explicação que eu, criança, recebia quando o capataz desligava as luzes da fazenda para economizar água do açude no período de poucas chuvas. Hoje, nesta noite, aconteceu um “apagão” em quase toda esta nossa metrópole. Todos se preocuparam com tudo, mas eu apenas com o bode preto, que voltou depois de tantos anos.

já vem o trem JÁ OUVI o apito do trem. Minha alma estremece. Ali estão os trilhos, embora seu lamento pareça distante. Mas ele vem. Fiz minha mala, lustrei meus sapatos. Quero aguardá-lo com um mínimo de dignidade, como se eu fosse eterno. Já ouvi o apito do trem como um uivo soturno e o ranger dos ferros das rodas pesadas que esmagam os dormentes. Lá vem o trem. De costas para ele ajeito o nó da gravata (borboleta). Meu terno é surrado, mas minha camisa permanece alva, bem lavada e bem passada. Aguardo o trem que já chega. Minha caneta de prata, guardo no bolso, e examino meus documentos na carteira um a um. Caminho rumo a ele. Na plataforma ouço o ranger das rodas freando e vejo as faíscas que saltam dos trilhos. Pára ao meu lado pronto a me engolir. Sequer movo um músculo da face. Consulto meu relógio, são três horas, quinze minutos e vinte e cinco segundos. Vou embarcar. Subo os degraus com elegância. Antes que parta, retiro um cisco que se aloja na tampa deste caixão que me encerra nesta derradeira viagem. O trem, que já veio, me leva...

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castelos HÁ HORAS em que as coisas ficam negras. Ele estava num destes dias. Passara muitos anos alimentando sonhos de construir, no alto da montanha, o seu castelo. Escolhera material, preparara plantas, iniciara a obra. Com o passar do tempo, a silhueta de sua construção já era vista ao longe. Perseguia seu sonho. Tinha uma razão para lutar e viver. Nas horas de descanso, lançava seu olhar para o castelo e o imaginava concluído. Via-se em seu interior. Imaginava seus pequeninos detalhes requintados e, nestes momentos realimentava sua motivação. Com vontade redobrada, retomava a construção do imponente castelo que sempre imaginara... e o tempo passava... Foram muitos os anos em que permaneceu em sua lida. Cegou-se para a vida, obcecado por seu projeto. Dormia pensando em pedras, sonhava com argamassa e acordava planejando o trabalho. A montanha era cheia de vida, de pássaros e pequeninos animais. Eram inúmeros os jardins naturais entre riachos cristalinos repletos de flores e arbustos, numa feérica exuberância de cores. Árvores frondosas estendiam longos galhos cheios de frutos onde as abelhas faziam seu banquete. O lugar que escolhera era um verdadeiro paraíso. Em seu trabalho surgiu uma tarefa complicada. Um enorme bloco de pedra deveria ser alçado ao topo de uma torre. Preparou as escoras, instalou as roldanas e o amarrou às cordas, iniciando o içamento. Mas o inesperado ocorreu. As cordas se romperam e a pedra caiu sobre suas pernas, imobilizando-o. Nada poderia fazer senão permanecer ali. Gritar por socorro seria em vão. Estava distante de todos e visitas não receberia. Tornara-se solitário. Morrer daquela forma seria injusto. Assim pensava quando ouviu, claro e forte, junto a seu ouvido: – Acorda! Abriu os olhos e deparou-se com um homem a seu lado. Levanta!, ele lhe ordenou, e por fim: – Olha! E o homem desapareceu... Sem saber explicar como, viu-se de pé, livre da pedra. Resol73


veu, então, dar-se o tempo que nunca permitira. Saiu a caminhar atento pela montanha. Não encontrou as flores e os regatos, os animais e os passarinhos, as árvores e os frutos. Buscou em vão. Tudo a seu redor era um deserto só, cinza e sem vida. Naquela montanha morta, apenas o que se via era o arremedo de um castelo, desalinhado e tosco, qual fantasma, maltrapilho e triste...

o amor não tem barreiras ELE, um metro e noventa. Ela, um metro e quarenta. Já imaginou os dois se beijando de pé?

mortos NOITE e silêncio. Todos sempre dormem naqueles confins do mundo. O progresso nunca chegou ali, exceto o radinho de pilha que só emite chiados e chiados. Lá se recolhem homens cansados que, por uma falha ou outra, abandonaram seus sonhos e só carregam amargas lembranças. Desejam apenas pão e água. Chegam em silêncio e, através de olhares, se entendem. Não falam. Se falassem, apenas desfiariam dores que não param de doer. Não procuram paz, buscam a apatia. Sabem que já não vivem, embora vivos. Carregam no bolso máscaras surradas onde escondem fisionomias transpassadas de tristezas. Desejam passar despercebidos, não querem ser perturbados. Ali, nos confins do mundo, se reúnem. Não desejam o mal, desejam o bem. Apenas não têm ânimo para agir em seu próprio benefício ou em benefício alheio. Não desejam a morte, apenas a esperam. Quando ela chegar será tratada com indiferença. Apenas lhe pedirão que seja eficiente e rápida.

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anjos desnudos AO VIRAR a esquina, deparou-se com uma multidão de anjos, todos nus. Em sua ingênua pureza, trafegavam de um lado a outro, sorrindo e brincando. Brilhavam em corpos brancos. Cantavam. A rua, tão limpa, era um pedaço do céu. Ele se escondeu atrás de uma árvore e ali ficou observando... Após algum tempo, mudando a postura, os anjos partiram vestidos. Uns com armaduras e espadas em montarias aladas, outros com livros nas mãos e vestes brancas. Alguns como índios, com lanças e arcos, outros transvestidos de mendigos. Um por um eles se foram e o homem, atrás da árvore, olhou para seu corpo, agora também translúcido. Nas costas, as asas, nos pés, as sandálias. Humilde partiu e, sem eira e nem beira, tocou sua vida tão simples, comum.

fases EM ÉPOCA das chuvas ele se impõe caudaloso. Passa rugindo e o respeitam. Fala grosso e não está pra brincadeiras. Sequer nos olha e, se provocado, nos engole e arrasta feito moscas. Vai-se o verão, vem a seca. Suas costelas ficam à mostra. Escorre em fiapos entre pedras tristes. Curva-se, humilhado como vira-lata de rua, aos nossos pés. Assim é aquele rio no verão e no inverno. Assim eram meus projetos e hoje assim eles são.

a muralha UM ANJO aprendiz seguia apressado pelo céu quando, ao olhar para baixo, se deparou com uma cena inusitada. Um homem repetia seguidamente um mesmo ritual: distanciava-se de uma muralha e depois lançava-se de encontro a ela com todo o peso de seu corpo e caía ao chão. Levantava-se em seguida e repetia a mesma cena, sempre e sempre. 75


Perplexo, o anjo desceu e pousou ao seu lado, disposto a entender tão tresloucado comportamento. Ficou ali e, já cansado, sem chegar a uma conclusão aceitável, resolveu inquiri-lo sobre o porquê da sua atitude. O homem respondeu-lhe: -Tenho que seguir o meu caminho e ele passa por aqui. Se a muralha está à minha frente, nada posso fazer senão o que me cabe, removê-la. O anjo, penalizado, apresentou-lhe todas as hipóteses possíveis que lhe permitiriam livrar-se do martírio a que se impunha, mas todas ele descartou com sua argumentação. Pular a muralha não seria possível, era muito alta e ele não dispunha dos apetrechos que lhe permitissem fazê-lo. Faltava-lhe dinheiro para comprá-los e não poderia tomá-los emprestados. Contorná-la também era inviável. Sua extensão era quase que infinita e, ao longo de sua base, eram inúmeros os espinheiros intransponíveis e os abismos profundos. Abdicar de seu caminho e seguir por outro seria como negar a sua própria existência. Mas perguntou-lhe o anjo, pensativo: – Como terminará, então, a sua história? A muralha nem se abala com as suas investidas. Jamais cederá e você, humano que é, não resistirá a este embate insano, vencido pelo cansaço e pelos ferimentos. Respondeu-lhe o homem: – A cada investida minha, por um breve instante de delírio, acredito que romperei esta barreira e este átimo de esperança mantém minha alma viva. Prefiro antes morrer com ela a seguir vazio e sequer perceber quando é dia ou noite, se é primavera ou verão, seguir cego e surdo entregue às escuridões que não nos permitem ver os campos floridos e a vida que nos cerca. Prefiro as migalhas da esperança ao banquete que não desejo e que me agrava a fome. O anjo aprendiz, desconcertado, retomou sua viagem em busca de ações que julgava serem mais nobres, deixando para trás aquele homem. Afinal, anjo é apenas anjo, pensou, e não entende a complexidade e as contradições que se aninham nos corações humanos. Mais tarde aprenderia que, por vezes, apenas ouvir já basta, já é uma grande e nobre tarefa.

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risco fatal CRAVOU o facão na mesa tosca e todos estremeceram. Cravou um segundo facão da mesma forma que o primeiro. Todos estremeceram de novo. Da cinta sacou um punhal que segurou pela ponta e mirou um por um dos presentes. Silêncio e tensão, pavor e expectativa, adrenalina ( se é que eles têm), olhos esbugalhados (que olhos?), mãos tremendo (ah! isto não têm). O punhal rasgou o ar e cravou-se também na mesa, nas costas de uma barata. Todos os demais insetos na sala estremeceram de alívio. O açougueiro matava um deles todo dia, da mesma forma.

espinhos e pássaros VAMOS lá, garoto, levanta da cama, e rápido! O sol já despontou, os campos úmidos já se aquecem e você aí, enrolado neste cobertor. Vista-se rápido e tome seu café. Vamos armar os alçapões enquanto os pintassilgos estão no ninho. Hoje eu seria incapaz de privar um pássaro de sua liberdade. Mas naqueles tempos de criança não. Eles me encantavam e não havia nada mais precioso do que ser dono de um, principalmente um dos mais ariscos e bonitos. Era uma façanha aprisioná-los e indescritível vê-los de pertinho pulando e cantando na gaiola. Nossas origens podem ficar esquecidas por algum tempo, mas não se apagam. Estranho que esta óbvia constatação eu só a faça hoje, depois de tanto viver. O encanto do universo da fazenda ficou na minha lembrança. Nas férias de fim de ano eu sempre ia para lá. Não há como descrever os prazeres simples de um menino da cidade quando se vê livre correndo pelos pastos, vivenciando experiências novas, observando os hábitos das pessoas da roça. O negrão sentou-se no chão e puxou do bolso o canivete. Segurou seu pé com uma das mãos e, com a outra, rasgou, em cruz, seu calcanhar, deixando exposto o espinho que nele se 77


enterrara. Enfiou a lâmina fundo na carne, até a base do espinho e, num único movimento, o extraiu dali. O sangue brotou vermelho, mas o homem nem se alterou. Esta cena eu gravei em mim como o espinho que ele extraiu. Um ruído, um cheiro, uma música. Qualquer coisa, quando menos esperamos, pode abrir a caixinha das recordações e, neste processo inconsciente, o tempo se apaga e o passado vira presente por alguns instantes. Dona Vera fora uma grande concertista de piano há muitos anos atrás, na Europa. Tinha três filhos, cada um de uma nacionalidade, um inglês, outro alemão e uma brasileira. Os dois homens morreram na segunda guerra lutando de lado opostos. Era uma senhora empedernida. Usava um chale colorido e, na cabeça, sempre apresentava um coque todo arrumadinho. Sua pele era branquinha. Usava uma bengala quando, aos domingos, saía de seu sítio para almoçar conosco na fazenda. Depois, sentava-se ao piano e tocava clássicos, dentre eles, Capricho Italiano. Daquele ambiente tão simples ela destoava com seus modos refinados. Certa vez, a dona da fazenda levou-a para que apreciasse uma bela rosa branca que nascera em seu jardim. Dona Vera parou diante da rosa grande e linda, uma que ela jamais conseguiria fazer nascer em seu sítio e a namorou com um sorriso estranho nos lábios. Assim que se foi, a rosa murchou. Era uma pessoa amarga. Os adultos de minha infância estão mortos, com exceção de três dos meus tios que também passavam as férias lá. Em breve também já terão partido desta para melhor. O chato é que, quando isto acontecer, poucos restarão para compartilhar das minhas lembranças. Também já serão lembranças. Não sinto saudades do passado, foi ótimo, mas passou, deixa pra lá. Daqui a pouco eu morro também. Por que me preocupar? A vida é isso mesmo, mas a gente esquece que é. Chegamos

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ao guichê e não nos damos conta de que a viagem é inevitável, que o trem nos espera. A maria fumaça surgia de repente numa curva por entre as pedras enormes. Era um susto só. Aquele bicho enorme e preto vinha em minha direção resfolegando. Eu sempre temia que saísse dos trilhos e pulasse em cima de mim. Parava na estação, ainda respirando forte, ainda furiosa. Meu coração batia acelerado. O momento era mágico. Se o diabo existisse e fosse violento, chegaria de repente como aquele trem negro. A vida não tem replay, o que é uma pena. Seria ótimo se pudéssemos selecionar alguns fatos do passado e revivê-los como revemos um filme. Eu gostaria muito de ver de novo aquela locomotiva que soltava fumaça pelas ventas. Festas juninas eram aquelas. O tio rico trazia do Rio os foguetes, as bombinhas, os busca-pés e os balões. Era um incendiário nato. Sempre conseguia botar fogo no mato. Os pastos queimavam em labaredas e sua sogra, a fazendeira, ficava desesperada e punha todo mundo a correr para fazer o cerão, para impedir que o incêndio se alastrasse. Nestas horas ele se escondia num canto, igual a uma criança travessa que fez arte. O menino se chamava Tião Micael, era franzino e baixinho. Todo final de tarde passava pela estrada em frente à fazenda. A mulher do tio incendiário atiçava os cachorros contra ele, gratuitamente. O garoto saía correndo. Antes fugir daqueles cachorrinhos de cidade do que enfrentar sua dona no alto do seu poder imperial. Eu também atazanava a vida do Micael. Gostava de surpreendê-lo pulando, de repente, à sua frente para assustá-lo e depois tirava suas calças e a dependurava na cerca de arame farpado. Fiz isto umas três vezes. Numa festa junina ele deu o troco. Puxou de um canivete e tentou me apunhalar. Saltei para trás e livrei minha barriga, mas não meu rosto. Até hoje trago a cicatriz como lembrança do meu lado perverso. O meu tio incendiário, quando me viu sangrando, desmaiou. Tinha pavor de sangue. Na mesma noite, 79


joguei o Micael nas brasas da fogueira que era grande. Ele pulou feito cabrito. Estranho como podemos ser sensíveis e, ao mesmo tempo, cruéis. Hoje eu não consigo compreender como pude agir daquela forma com o coitado do menino tão novo que, com sua enxada, já trabalhava como um adulto na roça, de sol a sol. Era um homenzinho sofrido e eu, que tudo tinha, ainda lhe dava minha contribuição para que sua vida fosse pior. Coitado do Micael.

o perfume da rosa NO COVIL das cobras, num cantinho, escondidinha, nasceu uma rosa pequenina. Apenas uma, uma só. Foi quando um sujeito curioso se enfiou naquele buraco em busca de tesouros. Ao olhar no fundo, viu a flor, iluminada pelo único raio de sol que lá entrava. Fascinado, estendeu seu braço, tomando-a entre os dedos e saiu. No delírio da morte, nada sentia. Apenas a picada de cobra que ardia. E o perfume da rosa que colhera.

isso não se faz! MONTADO no lombo do pangaré, Zé Capiorra vinha pela estradinha mascando fumo. Abruptamente rugindo, parou a seu lado um carro esporte com uma loura doida de linda ao volante. O som do rock era tão alto que o coitado não entendia o que falava aquele anjo de belezura. Aquilo não era olho, era pedra preciosa. Aquilo não era cabelo, era seda pura. Aquilo não era mulher, era um anjo de perdição. O coração do Zé foi disparando. Gaguejava cada vez mais enquanto atendia a moça. Ela, se apercebendo da convulsão que provocava – essa gente da cidade gosta mesmo de curtir com a cara do povo da roça – decidiu brincar com ele. Debruçou-se contra a porta do carro, deixando à mostra os mamilos dos seios. O coração do Zé tentou saltar pela boca e, só no engasgo, 80


o segurou. Falando que nem marreco indicou o caminho pra moça. Ela saiu do carro, agarrou-o pelo pescoço, e tacou-lhe um daqueles beijos de desentupidor de pia e partiu. Atordoado, Zé montou no cavalo. Sentia tudo rodando e, no primeiro trote do bicho, não teve jeito, caiu. Ficou por um bom tempo vesgo, aparvalhado e esparramado no chão.

cerveja choca A TRISTEZA, disse-me ele, se aloja no espaço que há entre as sobrancelhas e os olhos. A angústia faz um redemoinho no peito. Eu ouvia e me calava. Afinal, ele era capaz de enxergar o que ninguém enxergava e esta sua capacidade era reconhecida. Numa revista, li que com as mãos ia até os olhos de uma pessoa e de lá arrancava as tristezas incrustadas. Do peito de outra, sugava a angústia e a lançava ao vento. Fazia muitas outras coisas... Estávamos numa mesa daquele bar sempre vazio, que se localiza na rua onde os ônibus fazem o seu ponto final. A conversa corria solta. Eu bebia água mineral e ele cerveja choca. Parecia não se importar. Falava alto e gesticulava muito, contando suas histórias e eu, como um colegial tímido, permanecia atento a cada gesto seu, a cada olhar. Afinal, já que via tudo, deveria estar vendo o que se passava em meu peito. Nele eu carregava um sentimento incômodo, mas não sabia definir qual. De vez em quando me distraía e meus pensamentos fugiam para bem longe. Era quando eu o olhava com olhos vazios e ele falava, então, ainda mais alto e gesticulava ainda mais. Parecia falar para uma grande platéia, mas quem o ouvia eram apenas eu e o dono do bar, que não despregava os olhos de nós dois. Lá pelas tantas, levantou-se e, com a mão esquerda, me segurou o ombro. Estremeci. Algo faria comigo e isso tinha a ver com o sentimento que me ia ao peito. Sem interromper suas histórias, espalmou a mão direita que bateu forte na altura do meu coração. Senti que algo se desprendia lá de dentro e me

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vinha à boca. Bateu de novo forte. De minha boca escancarada saltou uma enorme pedra, depois outras e mais outras... Eu estava agora leve e renovado. Já não sentia meus desenganos, a descrença e a amargura, companheiros que alimentara ao longo de minha vida. Rompera-se a couraça dura que me protegia. Ele me olhando, sorria... Permaneceu em silêncio e distraído por algum tempo. Depois despediu-se de mim com um forte e carinhoso abraço. Tomou um último gole da cerveja e, em silêncio, partiu. Hoje não sou como os outros homens.

cansaço FORAM-SE os dias de verdes sonhos. Na árvore em que se empoleirou, apenas verdes eram as folhas. Vieram os dias secos, galhos mortos como ele. Como um tronco, ficou imóvel no local em que se alojara. Em conferência, cinco anjos discutiam sua situação. Saíra ele de casa com a roupa do corpo e se embrenhara no mato. Ali se instalara junto a um ninho de passarinho. De tudo já tinham feito para tirá-lo de lá, mas nada o demovia. Nenhum argumento, nada mesmo. Já haviam se passado meses e ele permanecia lá, sentado. Vieram os ovos, nasceram filhotes, cresceram os passarinhos sob sua atenta vigilância. Jamais tocara o ninho e, como não se movia, os pássaros com ele se acostumaram. Era agora apenas isto, um guardião de fatos corriqueiros que acontecem no alto de uma árvore. Contrariava todas as regras da existência. Não comia, não bebia, não morria. Na organização do universo, era fato inusitado que os anjos não entendiam. Discutem daqui, discutem dali, repassam-se ocorrências, relembram-se fatos, desacertos, mais nada. O que fazer? Como intervir? Continuava o disparate: o homem, sentado no galho fiscalizando o ninho na chuva, no sol, nas ventanias à noite, de dia, de madrugada. Enfim, após muitos estudos, resolveram os anjos, de manei82


ra criativa, a estranha situação. Transformaram-no no próprio ninho. Ninho de muitos gravetos, recoberto com penugens. Está até hoje no galho e dentro dele já foram muitas as gerações de pássaros que nasceram, quebraram as cascas, protegidos entre as palhas que um dia foram seus dedos. Vez por outra, um dos anjos verifica se ele não se cansou. Mas que nada, daquela forma está sempre satisfeito. Ninguém o vê e nem o perturba, não deve satisfações e desligou-se do mundo. Quer ser apenas um ninho, um ninho de passarinhos...

reunião fatal AS CORES, que eram homens, se reuniram quando tudo começou para decidirem quais seriam suas tarefas. O vermelho pediu a palavra e, com a voz grossa, já saiu ordenando como o dono da verdade, um verdadeiro imperador. O amarelo, nervoso, subiu na mesa e, de dedo em riste, contrapôs seus argumentos com voz fina. O azul sorriu e pediu calma, propôs regras para o diálogo, sem impor sua vontade. O branco ficou num canto, calado e omisso. Ameaçava falar, mas não falava. De repente, chegou o negro. Era o maior dentre eles e não fora convidado. Escancarou uma bocarra e engoliu todos. Menos o branco, que ele sequer percebeu.

acaso NO SILÊNCIO, escondidinho no fundo de um buraquinho, um inseto transparente olhou a abóbada celeste, pensou em mil anos luz e viu-se obrigado a curvar-se ao Acaso. Ele, e só Ele, é Perfeito. Ele, e só Ele, fez tudo. Ele, e só Ele, encadeia, com micrométrica precisão, todos os fatos. Dão-lhe um nome restrito, chamam-no apenas Deus. Mas deuses existem tantos... Mas Deus apenas há um, Inconcebível em grandeza, Inconcebível em tudo. Tão Gigantesco e Poderoso que o inseto se encolheu ainda mais. Pensou em 83


bilhões de bilhões de anos luz, elevados a iguais potências elevadas a tantas outras, numa infinita sucessão... chegando, enfim, quase ao início do final deste nosso pequenino universo, partícula de outros universos contidos em outros tantos mais... Cadê o inseto?

tempestade AS NUVENS negras escureceram o céu por completo, trazendo repentinamente a noite. A atmosfera pesada e o vento forte anunciavam a tempestade que chegava. Nas baias, as montarias assustadas corriam de um lado a outro. Nas árvores, os passarinhos se espremiam silenciosos. Na sala, o vira-latas enrodilhou-se e colou o focinho ao chão com os olhos arregalados. Uma cobra atravessou o quintal, embrenhando-se no mato. Os dois homens na varanda entenderam os sinais. Sabiam que chegara o momento. A chuva despencou. Seus pingos batiam como balas num ângulo quase horizontal contra as paredes. As chibatadas do vento arrancavam árvores pelas raízes. A tempestade era furiosa e o barulho dos objetos arremessados soava como acordes de uma louca sinfonia. Raios riscavam os céus e os trovões faziam tremer as sombras Os dois homens, sentados à mesa, seguravam seus copos cheios de cachaça. Com as mãos crispadas fizeram um brinde. Ao estalar dos copos, para dentro deles escorreu, como água fugindo pelo ralo, toda a tempestade, com seus trovões, relâmpagos, ventania e nuvens carregadas. Numa única golada fizeram descer por suas gargantas a bebida quente e fumegante. Cravaram como estacas os copos vazios sobre a mesa. Eram valentes, desconheciam o medo. Após o gole, restabeleceu-se a paz e o sol voltou a brilhar. Os dois, mais uma vez, haviam controlado o mundo.

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nós somos ESTÓRIAS da Carochinha são estórias bonitinhas pra fazer neném dormir, mas, ao contá-las, embarcamos nos sonhos de nossas crianças. Seus olhinhos atentos, suas expressões faciais, suas mãozinhas pequeninas são o nosso passaporte rumo a um mundo melhor. Crianças são como flores, são votos de confiança que Deus deposita na gente. Há outras crianças feridas, perdidas por dentro e por fora, nas ruas, qual fantasmas prematuros. Crianças embrutecidas, violadas, violentadas, vagando sem nós... Meu Deus, como somos mesquinhos em nossas conchas, fechados, cegos, surdos e egoístas. Os filhos dos outros até parecem que não são nossos filhos também... No silêncio das noites, onde estão estas crianças? Na escuridão do nosso egoísmo, onde as escondemos?

sibéria COM olhos tristes tentava alcançar com seus dedos os dedos do homem que amava. Entre os dois, um vazio cheio de mágoas lhes impedia o contato. Amavam-se, mas as mágoas são como as ondas castigando o coração. Vêm e voltam, crescem, explodem e desaparecem temporariamente... Ele partira para a Sibéria e ela para Aruba e, em Paris, se encontraram em meio às flores secas de passadas primaveras. Entretanto, seus dedos não se tocavam... Foram-se tristonhos em direções opostas, desejando que as ondas voltem a ser apenas aquelas ondas românticas que sussurram carícias nas areias, como os enamorados.

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as estrelas e o atleta O ATLETA corria pelas trilhas dos campos. Subia morros, pulava valas, atravessava alagados, descia ladeiras. Sentia-se muito bem. Respirava forte e suava. Já correra muito e correria ainda mais. Foi quando enterrou sua perna até a altura do joelho num buraco cheio de lama pegajosa que parecia cola, e não conseguiu mais escapar dali, assim como acontece com a mosca quando presa no melado. Foi-se a manhã e o sol do meio dia. Tentava libertar-se, mas não conseguia. Veio a tarde e chegou a noite e ele continuou lá, meio inclinado, com uma perna solta e outra presa, apoiando-se em um dos braços. Já não tentava sair. A noite se encheu de ruídos de grilos e sapos, e o céu, cheio de estrelas. Cansado, deitou-se esticando a perna livre enquanto a outra, dobrada, continuava enterrada no buraco. Querendo, ou não, ficou obrigado a fitar o céu acima de sua cabeça, todo salpicado de estrelas. Sentia-se agora integrado ao universo, parte da natureza que vai além dos limites da terra e sobe ao alto do céu. Era uma estrela flutuando no espaço, companheira de tantas outras. Não sentia medo, nem fome e nem solidão. Durante toda a noite seus parentes e amigos vasculharam a vizinhança da cidade a procurá-lo. Foi encontrado naquela situação inusitada, pregado ao chão com olhar colado nas estrelas que se apagavam no céu. Calmo, tranqüilizou a todos, pediu desculpas pelo susto que lhes dera. E sua vida voltou ao normal. Continuou a correr todo dia, como sempre fizera. Apenas introduziu uma pequena mudança nos seus hábitos. Não corre mais pela manhã. Corre sempre a tardinha, quando começam a despontar a lua e os astros. Seu rosto não traz mais a determinação dos atletas, substituída que foi pelo sorriso tranqüilo dos sábios e poetas.

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boas lembranças DESDE criança, por educação ou por tendência natural, adquiriu a mania de levar sempre consigo um pequeno saco de pano que amarrava na cintura. Quando se deparava com um objeto que julgava interessante, o guardava no saquinho. Ali recolheu pequenas pedras, recortes de revistas, o soldadinho de chumbo predileto, o canhoto de um ingresso e assim por diante. Não guardava qualquer coisa, só aquelas que tinham um significado especial por sua beleza ou pela boa lembrança que despertava. Quando adulto, passou a colecionar coisas de adulto. Uma fotografia que lhe era cara, uma carta de amor, uma jóia, o recibo de depósito bancário e outras coisas mais. Era curioso ver aquele homem com aquele saco cheio, amarrado na cintura. Por ser um homem rico, era tido por excêntrico. Alguns o consideravam um sábio que agia daquela forma por uma razão muito importante. À medida que o tempo passava, o saco ficava mais cheio e pesado. Qualquer atividade lhe era sempre muito trabalhosa, pois, onde quer que fosse, tinha que levar consigo seu pesado saco. Como era previsível, tornou-se uma pessoa sedentária. Evitava se locomover e abdicava dos prazeres mais simples dado ao esforço que sempre tinha que fazer. Ninguém vai viver assim, grudado a alguma coisa que não tenha muito valor. Tornou-se alvo dos ladrões. Foi assaltado. Levaram-lhe o saco e, com ele, toda a sua vida, e isto deveria ser um grande desastre mas, qual nada, ele nem ligou. Despojado do seu saco, recolheu-se a um canto por um tempo, meio deprimido. Desenvolveu uma nova mania bem mais salutar. Tornou-se uma espécie de andarilho alegre, um grande contador de histórias que despertava as pessoas para a importância das pequeninas lembranças que fazem da vida uma viagem interessante. Ao invés de guardar recordações só para si, num saco fechado, compartilhava, agora com todos, as alegrias que representaram em sua vida. Se hoje carregasse um outro saco, apenas com as novas lembranças que tem, já teria o maior saco deste mundo. 87


vencedores SOBRE sua cabeça caíram doze urubus, um a um, em carreirinha. Quem viu, fugiu, e as beatas se benzeram. Era um homem no centro e, em volta dele, as aves mortas e penas pra todo lado. A cada dois dias, o fato passou a se repetir e o homem, apavorado, buscou o centro de Umbanda. Tomou banho de sal grosso, encomendou seus despachos, mas a “chuva” continuava. Um vexame, um estorvo. Foi ao padre e ao pastor, foi até exorcizado. O fato continuava. Na feira, na portaria do prédio, na entrada do metrô, num momento inesperado, vinha zunindo do céu o primeiro urubu, depois outro e mais outro até completar uma dúzia. Passou a viver atento, sempre olhando para cima. Em dias claros e belos, passou a usar guarda-chuvas. Entretanto, nada evitava a “cascata de urubus”. Por fim trancou-se em casa. Via o mundo da janela: nos fios de luz entre os postes havia milhares de urubus, todos vestidos de preto, pacientes, esperando... Deu tiros e soltou bombas, mas de nada adiantou. Continuavam esperando... E o sujeito morreu trancado em casa com pavor de uma ”enxurrada de urubus”.

pelas ruas NUMA certa noite, dessas em que nosso coração se angustia sem sabermos porque; dessas em que nos recolhemos para ficarmos sós. Naquela em que desejamos abortar os pensamentos para ficarmos vazios. Foi numa dessas que decidiu se divertir. Pelas ruas escuras de tristezas, e em cada esquina, deparouse com um dissabor. O barulho dos motores soavam como lamentos de quem teme a morte. Encontrou pessoas vagando sem alma. Viu sorrisos de desgosto e ouviu gritos de socorro que ninguém ouve. Voltou para casa e sonhou toda a paz que desejava.

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ela O BÊBADO segurava o poste como se segura uma mulher, pela cintura. Falava palavras doces para ele, como se fala aos ouvidos da mulher amada. Rodopiava ao segurá-lo, como se dançasse uma valsa. De repente, um estrondo, um trovão. Pula do chão ao poste assustado, como um menino medroso no colo da mãe.

relógio O ANJO da morte, passei por ele, estava na beira da estrada envolto em panos negros segurando sua foice em sua mão direita. Senti frio, não senti medo. Ele trazia na cinta um relógio de ponteiros finos. Não se moveu. Sequer me olhou, mas retornei. Postei-me à sua frente e puxei conversa. Falei sozinho. Continuou indiferente e continuei falando com bom humor, porém com o respeito. Afinal, a lâmina reluzia próxima à minha cabeça. Algo me dizia que o encontrara por acaso. Abracei-o e desejei-lhe boa sorte e fui-me embora. Meses depois, entre bêbados e vadios, numa cadeira de um boteco decadente tomava eu uma cerveja. A noite era tensa naquele local que sempre explode em violência. Foi quando ouvi uma voz que me chamava. Era ele na calçada me olhando. Levou-me até uma esquina próxima. Pensei, agora chegou a minha hora. Mas me mandou voltar. Aliviado eu retornava ao bar quando ouvi um estampido. Em pânico, busquei em mim algum buraco, alguma dor. Graças a Deus aquela bala não era minha. No espaldar da cadeira onde me sentara segundos atrás, vi um buraco circular de bala. Se ele não me tivesse tirado de lá, ela estaria no meu peito. Corri à rua em busca do anjo das desgraças para agradecerlhe. Caminhando, levantou a foice e o ouvi dizer “Até breve”.

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derradeiro pôr-do-sol AUDRIN não passava de um inseto que nascera e se criara numa redoma de vidro. Inseto ou homem, pouco importa, nenhuma diferença faz. Se inseto fosse, sua existência nada acrescentaria ao mundo, se homem, seus pensamentos e atos também não, pois que entre ele e o mundo a barreira de vidro sempre impedira qualquer tipo de interação. Isolado, sua voz não alcançava ninguém. Seus gestos e movimentos através do vidro, se percebidos, seriam apenas como miragens de um fantasma difuso e sem importância. O tempo de sua existência já transcorrera quase todo e tudo permanecia igual, em absoluta insignificância. Audrin rebelou-se, por fim. Viver sem existir é permanecer morto, embora vivo. Se inseto, escapou por um orifício, buscou a luz de um poste e, na multidão de seus pares, viveu o delírio de uma única noite de festa e luz, extinguindo-se no calor das lâmpadas. Se homem, tomou a redoma com invisíveis mãos e a estilhaçou contra o muro. Os cacos pontiagudos feriram mortalmente o próprio Audrin. Seu sangue banhou-lhe o rosto. Com pés feridos caminhava submetido a fortes dores. Assim mesmo seguia em frente. Lívido de morte, encaminhou-se a um bar e saboreou a dose de uma bebida qualquer, colheu uma flor em um jardim e, junto ao mar, assistiu a seu derradeiro pôr de sol. Apenas o grande astro deu pela falta de Audrin. Em sua homenagem, pintou com cores suaves as nuvens diáfanas do céu, tingindo em amarelo toda a imensidão das águas.

cotidiano USAVA seus dedos como garras que se entranhavam nas frestas da escarpa íngreme em que estava pendurado. Seus pés buscavam reentrâncias para sustentar-lhe o corpo.

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No fundo do despenhadeiro o solo rochoso o aguardava. Já lhe faltavam forças para continuar naquela desesperada luta. Não havia possibilidade de socorro. O local era ermo e ele desprovido de qualquer apetrecho desses que os alpinistas usam para mover-se na vertical como lagartixas. O sangue aflorava na ponta de seus dedos. O suor escorria em seus olhos turvando-lhe a visão e seus músculos retesados já não lhe suportavam o peso. Assim mesmo os minutos passavam e, inacreditavelmente, permanecia grudado na rocha quente do penhasco. Ninguém por perto. Solidão absoluta. Permanecia vivo, delirando, alimentado pelo instinto primário de sobrevivência. O sol, sádico carrasco, como bola de fogo, castigava-o impiedosamente aguardando sua inexorável queda... Num movimento firme e gracioso lançou-se ao ar sentindo a brisa refrescante acariciá-lo como bálsamo. Leve, viu-se a planar suavemente sustentado por asas invisíveis. Diante de seus olhos descortinou-se a paisagem em toda sua magnitude e beleza. Depois das montanhas via os campos verdejantes e, neles, o riacho serpenteando por entre as árvores deixava ouvir o murmúrio das águas límpidas que quebram nas pedras, levantando miríades de gotículas translúcidas, esculpindo véus de graça e luz. Na margem do riacho pousou, agora refeito e descansado. Deixou-se recostar na relva macia, embalado pelo frescor do fim da tarde que trazia de volta aos ninhos os pássaros em revoadas barulhentas de alegria. Dormiu mergulhado em profunda paz; sob as estrelas, pequeninos diamantes luminosos que pintavam o céu onde a lua começava timidamente a impor seu suave domínio. No alvorecer acorda assustado como quem perde a hora. Com passos firmes e rápidos busca o ponto de ônibus na estrada, onde já se encontra uma multidão de rostos mal dormidos. No ônibus, já está suado, espremido entre os outros que, como ele, realizam o milagre de comprimir dezenas de pessoas dentro de um coletivo feito para receber um terço da lotação que recebe. 91


Cotoveladas, empurra-empurra, com licença, desculpe. A cada novo ponto de parada mais gente entra e ninguém sai. Um calor infernal. Cheiro de suor e perfume barato e o balançar do ônibus nas curvas lançando todos para os lados e para a frente nas freadas bruscas. Chega ao trabalho. Bate o ponto e recebe o olhar de desdém do encarregado antipático. Ferramentas às mãos, lança-se ao trabalho e as horas passam. Chave de grifa, parafusos, roscas, maçarico, cola, adesivos até a hora do almoço. Devora o prato de comida à sua frente. Arroz, feijão, abobrinha, ovo estrelado. Barriga cheia, foge sorrateiramente até a esquina e, como de costume, toma sua dose de cachaça, um copo cheio até a boca. Volta a seu canto. Esconde o rosto sob o boné e dorme como um porco golpeado pelos vapores do álcool que lhe ofuscam a consciência como um pano negro. Sonha com a capa que um mágico manuseia com destreza. Sob ela desaparecem todas suas dívidas, as que tem e as que deveria ter. Com elas também se vão a doença incurável do filho torto, que não fala e baba, as varizes de sua mulher, os dentes inflamados da filha que lhe deixam o rosto inchado como bola, e desaparecem também suas próprias doloridas hemorróidas que, na seqüência do sonho, ressurgem como dragões que lhe queimam o rabo. Acorda com o barulho da sirene que assinala o reinício da jornada. Sente um gosto amargo na boca. Observa o horizonte: tudo tranqüilo. O mar está calmo ao redor da ilha em que vive só. Cabe-lhe ali apenas ligar e desligar o farol na hora exata e manter os equipamentos. Caminha até a escrivaninha, sintoniza o rádio e transmite para o continente as informações de praxe. Sai do escritório levando consigo a revista velha e, na cadeira de vime, se aboleta. Pela centésima vez tentará concluir o jogo de palavras cruzadas. Sente mais uma vez aquela antiga sensação: a poeira da rotina caindo sobre seu corpo sempre no mesmo ritmo. Diante de seus olhos imagina uma linha de trem infinitamente retilínea, 92


com seus dormentes que ele sempre conta sem nunca chegar ao fim. O que não se termina hoje, continua-se amanhã. Embalado pelo murmúrio das ondas, adormece, até que o estridente barulho do despertador avisa que é hora de ligar os holofotes, tarefa que executa prontamente com sua usual competência. A luz do farol rasga a escuridão e, em seu movimento, varre os mares expondo os pontiagudos arrecifes traiçoeiros que aguardam incautos navegantes. Acordando, rapidamente toma os remos com mãos firmes e se afasta aliviado das perigosas armadilhas. A noite é longa e a pescaria promete. Examina sob a luz do lampião todos seus apetrechos, anzóis, carretéis, iscas, redes etc. Nos anos anteriores se destacara como um dos melhores pescadores da colônia, tornando-se respeitável em razão daquela noite fatídica que todos gostariam de esquecer. A noite era escura. Todos na praia homenageavam Yemanjá. Era a virada de ano. Hora de festa e alegria. Ele, no entanto, inexplicavelmente sentia a angústia lhe oprimindo o peito. Abandonando a multidão, toma seu barco e rema desesperadamente como se já soubesse do naufrágio que ocorria naquele instante próximo à costa. Muitos se afogaram, mas, graças a ele, outros tantos foram socorridos a tempo. Sentiu que chegara sua hora. Era impossível sobreviver. Seus pulmões já estavam cheios de água e seus olhos esbugalhados de desespero. No entanto, suas mãos continuavam a segurar com firmeza uma lasca de madeira que afundava com ele nas profundezas do mar escuro. Por fim desistiu de lutar e abriu os dedos entregando-se à morte. Seu corpo despencou célere como uma flecha cortando o ar até que, num baque surdo, estatelouse na rocha dura do fundo do despenhadeiro.

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não colou MEU PAI me batizou com o nome de Terebentino e isso foi uma puta sacanagem. Tentei me colocar um apelido: Terê, mas não colou. Tentei Bentino, mas também não deu. Todos me chamavam soletrando: Te-re-ben-ti-no. Quando ouvia as duas sílabas finais já estava furioso com papai. Mais tarde soube do romance do vizinho com mamãe e que meu nome era fruto de vingança. Depois casei-me e tive um filho que papai chamava provisoriamente de Augusto. Até que um dia, com enorme alegria, lhe mostrei a certidão de nascimento do menino e lá estava escrito: Peristofônio Calistrato Orifício Silva Melo. Papai e todos o conhecem hoje por Pepê e ele gosta do apelido que lhe deram. De vez em quando, diverte as pessoas declinando por inteiro seu verdadeiro nome e comenta: “Este meu pai é um tremendo gozador”.

nem mesmo Deus NAS CORDAS do violão viu-se preso pelos dedos. Em meio às pessoas tudo fez, mas nada conseguiu. Tenta daqui, tenda dali. As cravelhas emperraram e as cordas não se partiram nem sob a força do alicate. Quebrar o violão tentaram, mas o desgraçado resistiu até mesmo às marretadas. Foram-se ele, o violão e os curiosos aos bombeiros, que nada, o problema persistia. Tentaram de toda forma, porém os seus dedos, lá entre as cordas emboladas, já estavam ficando roxos. Direto pro hospital. Amputá-los seria infelizmente a solução. Ele fugiu... com seus dedos e o violão... Num vilarejo perdido, aos domingos no circo, há um violão que toca dedos. Os sons, quem os emite é o homem. Cada dedo é uma nota e cada mão é um tom. Fora um péssimo artista. Desafinado, sem ritmo, desprovido de qualquer musicalidade, mas mesmo assim insistira. Sua incrível falta de vocação nem mesmo Deus suportara. 94


gaiola VOAR ALTO, bem alto, acima das nuvens claras. Estender as asas e planar era meu divertimento. Depois descia em parafuso mortal e, numa freada brusca, aterrisava no chão e voltava à minha forma: um camelo de olhar de paçoca amarrotada. Com meus óculos redondos fico atrás do balcão o dia inteiro. Depois recolho-me a meu galho transvestido de coruja e, na minha sabedoria, observo os passantes. Sou porteiro de cinema. Um bico que faço à noite. De dia sou arquivista... há trinta anos. No domingo vou à praça de manhã. Sou minhoca de jardim. À tarde, depois da cerveja, me transformo em mamute e na rede, me ponho a dormir. Levo uma vida pacata, a vida da tartaruga, mas, em certas horas, penso nela e sou um lírio do campo, sou uma rosa, um jasmim.

a pipa O DIA segue pacato em sua rotina. Encostado no balcão da birosca, o menino olha o passarinho preso na gaiola. Ele pula de um poleiro a outro. Pára, come, canta e repete e repete sua rotina naquele espaço mínimo. O menino toma uma decisão. Abre a gaiola, toma o pássaro nas mãos e o liberta. O pássaro aturdido voa uns poucos metros e pousa num galho de um arbusto próximo. Ali permanece, estático, assustado e mudo. O garoto tenta em vão espantá-lo para que fuja, mas ele insiste em permanecer onde se encontra. O dono do passarinho, contrariado, sai de trás do balcão, vai até o arbusto levando consigo a gaiola e recaptura o pássaro que feliz retorna à sua vidinha. Domingo tranqüilo. O dia continua pacato. No céu azul uma pipa revoluteia de um lado a outro, livre como um passarinho...

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quem sabe? NA HORA do trabalho duro, com seu fígado opilado (o dela sempre está assim) foi interrompida pelo avô que, sentado à escrivaninha, lançava palavras soltas no papel. “Dê-me três palavras desconectadas e eu escreverei um conto a partir delas”, pediu. A neta fingiu não ouvi-lo, mas tanta foi a insistência que, para livrar-se do velho, que mal suportava, respondeu-lhe: “qualquer merda está bom”. “Mas eu pedi três e nesta frase são quatro as palavras e estão conectadas”, disse o velho. “Puta que pariu”, desabafou. “Está bom”, falou ele, “vou trabalhar com estas três“. Sentado no peitoril da varanda, olhava a rua envolto no silêncio da solidão, vendo os carros que subiam lentamente a ladeira. A casa estava vazia; ele, sem dinheiro e triste. Morava naquela república com mais oito universitários. Era sábado quase noite e todos tinham tomado seu rumo. Alguns viajaram, outros visitavam amigos ou namoradas, mas ele estava só, sem nada pra fazer. Não tinha rádio, nem televisão e nem mesmo um jornal para espantar a solidão e a saudade da família distante. Resolveu sair sem rumo pelas ruas. Foi parar num prostíbulo a duas quadras de casa. Numa casinhola de luz vermelha, buscou uma mesa isolada onde o garçom não o percebesse e sentou-se. As prostitutas são atentas quando caçam clientes. Aquela agiu rápido. Sentou-se a seu lado. “Moça, me desculpe, mas vai perder seu tempo. Eu não tenho um tostão e vim aqui apenas porque não tinha aonde ir e nem com quem falar. É perda de tempo ficar comigo”. A mulher fingiu não ouvi-lo, continuou sentada e pediu ao garçom uma cerveja. Quem paga a bebida das prostitutas é o cliente. Ele se apavorou. “Fica tranqüilo, meu filho, esta quem paga sou eu”, disse ela. Naquela noite de sábado ela havia resolvido dar-se um tempo. O rapaz de olhar tristonho lhe despertara um sentimento maternal. Por isto estava ao seu lado. Como almas perdidas, se faziam amigos falando de suas vi96


das, de suas dores e saudades. Já fora decente. Viera do interior e acabara caindo naquela vida por desânimo e fome. Não era muito competente, nem muito bonita e não sabia mentir, o que neste comércio é defeito mortal. Ali conversando com ele podia ser ela mesma. Ele não tinha dinheiro, não estava a fim de sexo e o garçom não os importunaria já que estavam consumindo... Sonhava em ter um filho e amá-lo de verdade. Com os homens, nada queria, já sofrera o suficiente nos enredos das suas mentiras e em sua fome de sexo. Queria paz... Passaram a se encontrar, ela a puta e ele o universitário pobre, naquela mesa sempre às segundas-feiras, quando não há movimento e eles podiam trocar confidências tranqüilos. Eram apenas dois solitários de vidas diversas que se tocavam na solidão. Os compromissos sempre são muitos para todos, mesmo para uma puta e para um universitário que pouco estuda e não trabalha. Perderam o contato. Foram-se os encontros... Mas um dia a gente sempre volta e procura o passado, e ele voltou ao bar. Procurou por Marina. Buscou entre as putas aquela de olhos amendoados e tristes. Buscou seus cabelos longos, seu corpo bem torneado, mas não a achou. Marina não trabalhava mais ali. Desistiu de procurá-la... Soube depois entre outras putas da história de Marina. Engravidara e feliz partira de volta à sua cidade. Seu filho vivera apenas um dia. Sequer fora batizado com o nome de um rapaz que durante um bom tempo a encontrava nas noites de segunda-feira. Deviam ter um “cacho”, certamente o rapaz era o seu cafetão e pai do filho morto. Tanto é que ela dera seu nome ao filho e nome é uma coisa séria, não se escolhe assim ao acaso... A neta, depois de muito tempo, leu esta história do avô. Coisa rara. Ficou curiosa e o procurou: “Vovô, este rapaz era você? Era seu o filho que ela perdeu?” O avô sorriu e com a caneta pôs-se a desenhar pontos de interrogação na folha branca e grandes estrelas pontudas. Levantou-se, beijou a testa da neta e foi-se com sua bengala rumo ao leito...

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boi teimoso CISMOU o boi em passar pelo buraco da agulha. Havia ricos no céu e, se os camelos podem, ele também poderia. Passou como fiapo de hambúrguer, como carne moída. Morreu, mas passou. Boi teimoso, boi raçudo. Boi alinhado, boi retificado. Hoje está no inferno com os pobres e os ricos prepotentes.

diabinho loiro É HOJE uma respeitável senhora, mãe dedicada de três filhos. Simpática, calma, sensível e educada. Beira lá seus cinqüenta, mas ainda tem jeito de menina. Era um pintinho loiro. Que demônio. Desbocada, falava todos os palavrões. Sebastião, um negro destes fortes, desferiu o golpe e quando o machado já cortava o ar, olhou para baixo. Onde deveria estar a lenha estava o pescoço da menina. Numa fração de segundo, no desespero, desviou a lâmina que se cravou rente a ela, no chão. Na porta da cozinha, de pernas bambas, o negro parecia branco. “Dona Judite, por favor, um copo d’água ”. O diabinho loiro já sumira rindo da cara do homem... A mesa comprida, embora simples, tinha a dignidade de banquete. Em torno dela, cerca de quinze pessoas almoçavam quando surgiu a menina, chorando, banhada em sangue dos pés à cabeça. Gritos, desmaios, desespero. Nada demais. Numa fazenda se mata boi e suas peças ficam penduradas num gancho. Ela apenas derrubara sobre sua cabeça uma delas. Quem assistiu sua entrada na sala não se esquece. Se chorava de verdade ou fingia, não se sabe. Numa jarra de prata na mesma mesa, a água da fonte foi servida. Depois que muitos a beberam alguém percebeu, dentro 98


dos copos, uns peixinhos, uns poucos que sobraram entre os muitos que beberam. Num canto alguém sorria... No bolso de seu vestido, Dona Judite sempre trazia um lenço para secar o suor. Foi o que fez naquela hora. Ou melhor, o que supunha fazer. Trouxe do bolso ao rosto uma coisa pegajosa: um sapo. Quase o esfrega na face. Imagine o seu susto. Reagiu com bom humor à brincadeira. Sabia quem lhe aprontara aquela... O Diabinho loiro é minha irmã. Preciso me sentar com ela e conhecer mil e umas das suas histórias, fora outras que não conto, pois que nelas a vítima fui eu.

ás águas do riacho seguem rumo ao mar PARA FUGIR dos pensamentos, decidiu olhar os nós dos próprios dedos. Eram como bocas enrugadas dos velhinhos e olhavam para ele. Mas ao vê-los, voltou aos mesmos pensamentos. Parou, coçou a cabeça: o que fazer? Pássaros não se prendem nas gaiolas, devem voar soltos. O tempo não retém a ampulheta. A areia pode ir e voltar por seu orifício, mas ela não é o tempo. As flores tem que florir e as águas dos regatos seguem seu caminho. Assim é a natureza. É natural que o tempo passe nos roubando a saúde e a beleza e que nos traga ao corpo as doenças Não é inteligente, porque impossível, estancar o tempo e tentar reflorir flores mortas ou tentar refluir as águas já passadas. A eterna juventude é nos sentirmos sementes que vigiam sementes ou flores por florir . É apreciar o murmúrio de esperanças das novas águas que descem pelos leitos que um dia foram os nossos. Que cantem os pássaros fora das gaiolas porque é deles a vida e a nossa é vê-los livres como fomos. Ainda há como sermos felizes. Basta olharmos os nós de nossos dedos e aceitá-los como são, sabendo que em breve serão ainda mais enrugados do que hoje.

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um ovo qualquer, mas um ovo NA CALADA da noite, o ladrão invadiu o galinheiro levando consigo aquela galinha que só botava os tais ovos de ouro. Já em sua casa, de tudo fez o ladrão, mas nada de ovos de ouro. Não se mata a galinha dos ovos de ouro, pensou, cheio de sabedoria. A paciência haveria de lhe mostrar a melhor maneira de alcançar a fortuna. O tempo foi passando e a galinha envelheceu. Já vetusta, enfim deu o sinal de que era chegada a hora de satisfazê-lo. Acocorocou-se num canto e num supremo esforço comprimiuse até não se agüentar. Botou seu ovo. Um ovo comum e choco. Para o ladrão isto não fez a menor diferença; sua obsessão agora era apenas ver um ovo, fosse ele qual fosse. Um ovo qualquer, mas um ovo.

o tigre e a serpente O TIGRE parte em disparada atrás do menino. Rápido ele foge e se embrenha numa toca apertada entre as pedras. Respira aliviado. Do lado de fora, o furioso tigre permanece inconformado e alerta. O garoto ouve um ruído e se volta. Uma serpente, às suas costas, está de bote armado. Seus olhos cintilam, observando a presa fácil à frente. O menino pula rápido em direção à saída. A serpente corta o ar. O tigre enfia as garras afiadas entre as pedras já alcançando os braços do menino quando ele desmaia. Fim do dia. O garoto arrasta para a aldeia uma serpente estraçalhada e um tigre envenenado. Lembra-se apenas do momento em que tudo escureceu, quando sentia as garras do tigre em seus braços e as escamas da cobra em suas mãos.

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apenas um crânio avantajado VEJO sempre uma gaveta branca no muro do cemitério. Lá está o crânio avantajado de meu pai. Lembro-me dele quando eu era criança. Lembro-me de seus últimos anos. Lembro-me de tanta coisa agradável. Eu o amava. Foi um homem invejável por sua integridade, pela dignidade que não tenho, pelo orgulho que eu não tenho. Queria-o vivo agora para lhe expor minha situação e ouvi-lo. Mas hoje é apenas um crânio grande na gaveta do cemitério.

astros e a dor NO LEITO se encolhe. Lá fora, na imensidão do infinito os astros giram em suas órbitas. São bilhões e bilhões de enormes estrelas que mal consegue imaginar. No leito, se encolhe insegura. Num cantinho da parede vê um inseto bem pequenininho, quase transparente. Seus olhinhos fitam o bichinho. Passeiam em restrita órbita. Em seu peito, a insegurança é maior do que todos os astros do universo que a rodeia.

decisão EM certo dia, em certa hora, tive um certo pensamento. Tomei minha decisão. Hora de esquecer as outras possibilidades. Passam os dias e as novas horas e já não me lembro do porquê da decisão. Sigo este tal pensamento surgido na certa hora. Espero que eu esteja certo. Já não me recordo da cadeia lógica que me levou até ele, porque surgiu, porque cresceu. E agora? Como vou me explicar pra mim mesmo?

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solução ELES me esperam lá, mas permaneço aqui. Aqui, de importante nada faço e lá farei muito menos. No entanto me aguardam como se eu fosse a solução. Se eu for, levo um problema. Levo eu mesmo, uma penca de problemas, cheio de mal estar.

um mesmo ponto VINHA ele caminhando, assim como meio bêbado. Estava lúcido e alegre e era bonito o dia. Soprava uma brisa agradável enquanto as pessoas conversavam. Trazia um sorriso nos lábios, aquele sorriso pleno, cheio, iluminado. Puxou uma cadeira e sentou-se a espera dele mesmo. Não demorou muito até que se viu chegar. Ele, o outro, ele que era o mesmo, vinha tranqüilo e sério, andando com passos firmes. Sentou-se ao seu lado. Olhou cada um, para si mesmo no outro. Examinaram-se. Há tanto tempo não se viam. Falaram de si, de suas vidas, sobre o que faziam ou pretendiam fazer. Pediram ao garçom duas refeições diversas. Cada um comia a sua. À medida que se ouviam, foram se interpenetrando, tornando-se um só. Quase que isto acontece, mas algo, alguma diferença, alguma verdade os manteve separados, duas pessoas distintas, embora fossem uma só. Após o almoço permaneceram juntos por um tempo. Era agradável. Duas metades da mesma esfera. Cada um o começo do outro e cada outro o fim do primeiro. Mas o tempo não pára, a vida chama, a vida pede atenção. Separaram-se assim, meio que secamente. Foram-se divididos. No rosto de cada um, uma mesma tristeza, o mesmo olhar vazio. No peito de ambos, um carregava o outro. Seguiram como duas paralelas. Ainda com esperança. Afinal as paralelas se encontram lá no final do infinito. Fundem-se em uma só reta e se transformam num ponto, não em um ponto final, pois que este ponto não existe. 102


serei um dia MEU MUNDO é restrito. Vivo enrodilhado em pensamentos. Não estou disponível para sentir, embora sentir seja um verbo amplo. É ver, cheirar, tocar, viver, sonhar, fazer. Sou cisco, um nada irrelevante. Importante é a vida. Eu deveria ser uma rolha que desce o rio ao sabor das águas, meio sem rumo, disponível, perdido ao acaso. Seria mais gente, acertaria mais, sofreria menos e não escreveria tanta bobagem. Ainda serei uma rolha.

meu vizinho MEU VIZINHO é peludo. Tem barba espessa e tanto cabelo na cabeça que até parece capacete. São negros os seus braços de tão peludos que são. É baixinho, taciturno e anda sempre acelerado. Sua mulher tem pele branca e olheiras. Parece sempre cansada. Dizem que ele é vampiro, que seus dentes crescem quando beija no pescoço sua mulher. É quando lhe bebe o sangue. Dizem que é vampiro de uma só mulher que agüenta firme e parece até que gosta de tamanha provação. Ela é muito recatada, tem olhos esgazeados e um sorriso que escorre da boca, de um lado só.

com licença ESTOU indo contrariado, amuado, de mau humor. Irritadiço, tudo me agonia, me deixa nervoso, neurastênico. Sou um chato, um pentelho. Nestas horas vejo todos os detalhes, todos os movimentos, toda a lentidão e todos os ruídos. Com licença, vá mais rápido, sai da frente. São estas minhas palavras, pensadas de boca fechada. Mas, nos meus lábios, meu sorriso é compassivo, tolerante e educado...

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confissão de fé ACREDITO em vida futura, em reencarnação, em carma e purgação. Acredito que barriga cheia traz felicidade ou ao menos facilita. Acredito no dinheiro. Acredito em quem está nos trilhos e que faz algo decente. Acredito nos parvos e idiotas. Nos que queimam horas, fazendo menos do que fariam se não fizessem nada. Acredito que a vida é jogo, que tudo são jogos, que tudo é para o prazer, para encher o bolso, a barriga ou para passar o tempo. Acredito que somos crianças jogando jogos perigosos de adultos infantis. Acredito que somos potencialmente assassinos, cruéis e egoístas. Acredito no poder do álcool na cabeça. Acredito em quem bebe pra esquecer e não esquece. Acredito na preguiça, no caminho fácil, na mentira e no ardil. Acredito que o homem é frágil, que é tolo. Acredito que o homem merece ser amado. Acredito no amor, na humanidade. Acredito que para controlar toda esta baderna, só mesmo Deus. Espero que Ele acredite em mim, a despeito de eu não acreditar em nada e em ninguém.

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descuido EM CERTO lugar, em certa hora, encontrava-se um certo homem que tudo fazia errado. Corretamente pensando, decidiu dar um basta na confusão. Neste balanço de vida, pensou certo, agiu errado e em sua cabeça deu-se um nó. Ficou paralisado qual um boneco ou uma máquina que engasga. Ia agir, mas não agia. Ameaçava um movimento, mas recuava à posição anterior, igual máquina que tenta funcionar e recomeça novamente o mesmo movimento, sempre e sempre. Parado no meio da rua espantava os transeuntes que dele se aproximavam. Formou-se uma multidão de curiosos, alguém chamou uma ambulância. Na maca, ele rígido com seus tremeliques ritmados, foi levado ao hospital. Ao hospital psiquiátrico, obviamente. Objeto de estudo, caso raríssimo não catalogado nos anais da medicina, fez-se famoso e foi levado de um lado ao outro, de hospital a hospital, cada qual mais especializado que o anterior. Tomou remédios e mais remédios e novos remédios. Submeteram-no a todos os exames mas nada, ninguém entendia aquele estranho fenômeno, aquele raro paciente. A maior autoridade em neurologia, psiquiatria e psicologia chegou a exaustão de tanto tentar entendê-lo, mas deu-se por vencido. O médico, então derrotado, desabafando, relatou o fato a um mecânico de oficina. O homem, se mostrou interessado e pediu-lhe que o levasse ao estranho paciente. O médico assim procedeu. Diante do tal homem o mecânico o olhou, olhou, parou, pensou e com um sorriso de quem tem a solução, disse ao médico: – Deixa comigo, este caso é muito simples. Resolvo em um segundo. O médico preocupado, no entanto, permitiu ao mecânico se aproximar do paciente. Postou-se ele ao seu lado e, repentinamente, aplicou-lhe um tapa na orelha. O homem estremeceu, rodopiou e caiu. Quando acordou estava curado.

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barbas e pintos e o nada TODO bode tem barbas e filhote de pinto é pintinho e eu de vazio tenho o nada. A locomotiva e a vespa são iguais. O seu discurso é meu silêncio, não os ouço. Não quero ouvir, não vou ouvi-los. Fale à vontade, fale alto. Talvez um ruído eu perceba. A minha melhor imagem é a de um sapo ressequido, esmagado na estrada. Mas todo bode tem barbas e aqueles chifres retorcidos, simétricos, iguais. Não sou um bode, nem sou um pinto e de vazio tenho o nada. Tenho o nada e coisa nenhuma. Estou me tornando educado. Estou me tornando. Estou entornado feito água. Estou apenas.

mais um PROCUREI em meio às pedras uma que não fosse pedra. Mas todas em que tocava eram exatamente como a pedra anterior. Tentei fazer o mesmo com as rosas, com os lírios e com as mulheres, buscando sempre aquilo que não existe. Restou-me apenas uma solidão enorme e um amontoado de coisas comuns. Às vezes eu me sinto diferente, assim como tudo que sempre procurei. Mas Deus, nós homens somos tantos! E eu, em meio a eles, apenas sou mais um.

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frustração O SACO vazio de vazio, não pára em pé. O quilo que pesa um quilo, pesa mais que quilo e meio. Pesa dez. Buraco é assim mesmo, é feito do não ser feito. É aborto de filho esperado. É que nem aquele saco, que de vazio não tem sustentação. É isto mesmo. É o não feito, pelo feito. É a volta de quem se foi num caminhão de ilusões. Ilusão, frustração, rimam não por acaso. Rimam bem. São parecidas. A frustração tem a cara de sem graça, de bobo. Mesmo com disfarce, não consegue disfarçar. Mas se assim vem, assim vai e vamos seguindo em frente...

louco não sou – BOM DIA, disse-lhe o vizinho. – Bom dia? A qual deles se refere? Ao de ontem? Ao de hoje? Ao de amanhã? – Por favor, ouviu do ascensorista, ao entrar no elevador. – Entrar ou não entrar não é favor, é decisão minha na qual você não deve interferir. – Obrigada, agradeceu-lhe a velhinha, ao receber dele uma ajuda. – Se estava sendo obrigada, não aceitasse, ora bolas! – Esteja à vontade, disse-lhe a secretária do consultório do psiquiatra. – E claro que estou. Vim por minhas próprias pernas, não vê? – Até a próxima, despediu-se o médico. – É óbvio que nos veremos na próxima consulta marcada, ou teremos outras antes dela? – Descendo! – alertou-lhe o ascensorista do mesmo elevador. – Descendo não, meu amigo! O elevador está parado, não vê? 107


Ao telefone lhe perguntaram: – Com quem deseja? – Com quem deseja o quê? Com bela mulher, sexo. Do milionário, dinheiro. Do Presidente... – Seu poder. Está bom ou já chega? – Alô! – Sei lá se há ou não há lô. Mal sei o que é isto! – Bem... – Bem como? Sou seu amor ou sou patrimônio? Ou está avaliando meu estado de espírito? – Senhor... – Senhor? Parabéns pitonisa. Descobriu a minha idade sem me ver. Num circo ganharia um bom dinheiro. – Idiota! – Ir? Ir como? No máximo peça-me para desligar o telefone e, além do mais, meu nome não é ota! – Vai pra a puta que pariu! Veado! – Vou mesmo. Enfim você acertou. Mamãe é mesmo puta e estou indo ao seu encontro e eu sou veado mesmo. – Louco... – Não louco! Não sou louco! Não precisa exagerar.

minhas mãos TOMEI na mão a semente e esperei que germinasse. Reguei-a e me revesti de paciência. Deixei o tempo passar. Dei-lhe atenção, silêncio, carinho. Horas e horas e dias. As raízes penetraram-me a carne e meu sangue transformouse em sua seiva. De pequeno arbusto fez-se árvore e nesta árvore se aninham passarinhos. Se outra mão eu tivesse, outra estenderia. Mas e a outra disponível, onde está? Esta eu perdi ressequida. Desceu aos infernos e fez aflorar os demônios que passeiam soltos por aí...

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solidão CADA solidão é uma ilha. É um vasto mundo povoado sem ninguém. Cada solidão é uma riqueza de lembranças. É um arquipélago sem ilhas. Cada solidão é um universo que não se partilha. Sofre sua própria dor de ser sozinha. Cada solidão é uma falta de carinho, falta de afeto, falta de ninho. Cada solidão é dor que dilacera, angústia que desespera. Cada solidão são nossas lágrimas, que de secas já nem são lágrimas. Um peso que ninguém vê.

eternamente OLHEI O ESPAÇO e vi uma estrela solitária entre nuvens paralisadas. Ela olhava pra mim. Eu matutando, pensando me distraía e quando a olhava, ela olhava pra mim. Passamos a noite flertando, eu olhando para ela e ela olhando pra mim. As nuvens quando notei já não eram mais as mesmas. Mas a estrela permaneceu até quando dormi... Eu já não olhava pra ela, mas ela velava por mim.

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folhas FOLHAS mortas espalhadas pelo chão. Uma colcha de retalhos que se move? Escamas de uma cobra que se vai? Nada disto. São apenas folhas espalhadas pelo chão que o homem, com a vassoura, já começou a varrer.

folhas ao vento Meus olhos? Pesados como chumbo. Mantê-los abertos? Difícil. Minha barriga pesava como barriga de grávida. Meus pensamentos? Boiavam como cobras preguiçosas deslizando no charco. Assim cheguei ao guichê. Durante uns dez minutos preenchi formulários que me pediam tudo, da cor da minha cueca a quantos pastéis comera nos botequins em toda minha vida. O sujeitinho que me atendia era meticuloso.Um tipinho desses detalhistas. Estava eu ali naquela maratona de caneta na mão e ele meticulosamente empilhando papéis em sua mesa me aguardando. “Pronto senhor”, disse-lhe eu passando-lhe os formulários preenchidos. O sujeitinho examinou linha a linha os papéis. Dirigiu-se depois a um arquivo cheio de gavetinhas. Ajeitou os óculos e abriu uma delas de lá tirando uma ficha ensebada. Voltou a mim. “Aqui estão as instruções, basta segui-las. Passe bem e até logo”. Saí. Busquei um banco da praça e pus-me a examinar as instruções e o mapa que veio com elas. Entrar naquele vilarejo fora fácil mas para dele sair só mesmo passando por este ritual das fichinhas, caso contrário nada feito. Dali, poucos escapavam e eu estaria entre eles. Por mais cansado e desanimado que estivesse, teria forças para cumprir o que me determinavam na ficha. Segui o tal mapa e encontrei o recanto descrito nele. Uma 110


casa solitária no meio do campo com um riachinho a seu lado e aí me espantei: do alto pendia um fio preso não sei aonde. Vinha do céu e terminava numa haste como se fora um anzol. Segurei-me na haste e repentinamente fui puxado para cima. Ali terminavam as instruções. Agora começava o desafio. Segurando firmemente a haste fui levado ao ar como se leva um peixe numa vara de pescar. Estacionaram-me acima de uma boca escura da terra, uma cratera pronta pra me engolir. Já sem suportar meu peso imaginava, deve ser apenas isto. Vão me deixar aqui por algum tempo. Se resistir estarei liberado e partirei, mas qual nada. Pelo fio escorregou até mim um segundo cartão que dizia: ”Em sessenta minutos descerá por este fio uma descarga elétrica. Serão mais de mil volts, os suficientes para te deixar torradinho. Se soltar da haste lá em baixo a lava fervente te aguarda e te torra da mesma forma”. Entendi então porque era difícil sair dali. O que fazer? Resistir pendurado e morrer eletrocutado? Escapar da descarga e despencar num vulcão? Lembrei-me das pessoas num incêndio no alto de um prédio. Se pulam morrem, se não pulam são queimadas. Acabam sempre pulando... Num incêndio, pensei, as opções são apenas estas mas, vamos pensar, e aqui? O que fazer? Não foi preciso pensar muito. Se espero, de uma ou de outra forma eu morro. Vou subir pelo fio e comecei a subir. Com muito esforço fui subindo lentamente. Minhas mãos sangravam. O fio me rasgava as carnes. Subia de toda forma. Enrolava o fio no braço, enlaçava-lo na perna, mas subia.Titânico era o esforço que me levou ao delírio e no deliro eu sonhava e sonhado ia seguindo e seguindo ia subindo. Cheguei ao final do fio. No final não tinha nada. Apenas uma folha de papel e uma caneta. Estou na ponta do fio sentado do jeito que dá. Os sessenta minutos já passaram e a descarga já desceu como relâmpago. Daqui escrevi estas coisas. Não tenho mais o que fazer e não sei o que esperar. Nada me ocorre de melhor a não ser isto. Escrever e lançar ao vento o que escrevi...

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