Território e planejamento

Page 1

Territรณrio e Planejamento



40anos PUR/UFRJ

Pensamento Crítico, Interdisciplinaridade e Intervenção Pública 1971-2011

Território e Planejamento Jorge Natal Organizador

IPPUR

Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional-UFRJ


Copyright © Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – IPPUR/UFRJ, 2011 Editor Capa Projeto Gráfico /Diagramação Revisão

João Baptista Pinto Carolina Alves Francisco Macedo Marlon Magno

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

T317 Território e planejamento: 40 anos de PUR/UFRJ / Jorge Luiz Alves Natal, organizador. – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Letra Capital: IPPUR, 2011. 688p.: il.; 23 cm. (Acadêmica) Livro em comemoração aos 40 anos do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da UFRJ (1971-2011). Inclui bibliografia ISBN 978-85-7785-128-7 1. Sociologia urbana. 2. Planejamento regional – Brasil. 3. Planejamento urbano – Brasil. 4. Economia regional. 5. Territorialidade humana. 6. Mercado de Trabalho I. Natal, Jorge, 1952-. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano Regional. III. Título: Quarenta anos de PUR/UFRJ. IV. Série. 11-7698.

CDD: 307.76 CDU: 316.334.56

16.11.11

17.11.11

IPPUR/UFRJ Av. Pedro Calmon, 550, 5º andar – Cidade Universitária Cep 21941-901 – Rio de Janeiro, RJ Tels: 55-21-2598.1676/1919 Fax: 55-21-2598-1923 www.ippur.ufrj.br

Letra Capital Editora

Telefax: (21) 3553-2236 / 2215-3781 www.letracapital.com.br

031285


Sumário 9

Apresentação Jorge Natal e Hipólita Siqueira

25

Depoimento – 40 anos: PUR em movimento

33

Depoimento – 40 anos de ensino e pesquisa em planejamento urbano e regional: hora de recomeçar

Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

Carlos B. Vainer

Seção 1 NAÇÃO, capital e território

41 69

Cidade, nação e mercado: gênese e evolução urbana no Brasil Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

Mudanças recentes do capitalismo mundial e brasileiro: alguns desdobramentos espaciais Jorge Natal

89

Lugar, região, nação, mundo: explorações históricas do debate acerca das escalas da ação política Carlos B. Vainer

Seção 2 POPULAÇÃO, CAPITAL E TERRITÓRIO

123

Território e mobilidade: barreiras físicas como dispositivos de política migratória na atualidade Helion Póvoa Neto

149

Conhecendo o interior paulista: o papel do espaço na dinâmica do mercado de trabalho Alberto de Oliveira

175

Estratégias de desenvolvimento regional: da grande indústria ao arranjo produtivo local? Hermes Magalhães Tavares


Seção 3 TRABALHO, CAPITAL E TERRITÓRIO

195

Trabalho e moradia na periferia de uma grande metrópole: para uma política urbana economicamente orientada Luciana C. do Lago

217

O mercado de solo informal em favelas e a mobilidade residencial dos pobres nas grandes cidades brasileiras: notas para delimitar um objeto de estudo Pedro Abramo

237

Trabalho e espaço metropolitano: desafios teórico-metodológicos Hipólita Siqueira

259

Aceleração e fragmentação: o trabalho na grande cidade periférica Ana Clara Torres Ribeiro

Seção 4 POLÍTICA PÚBLICA, LUTA SOCIAL E TERRITÓRIO

279

Políticas públicas, arenas e atores sociais: o fórum nacional da reforma urbana e a agenda pelo direito à cidade Orlando Alves dos Santos Junior

303

Práticas cotidianas nas comunidades populares não articuladas ou mal articuladas às redes de água e esgoto nas metrópoles brasileiras: os casos do Rio de Janeiro e Salvador Mauro Kleiman

325

Desenvolvimentos no território a partir da colaboração público-privado: possibilidades Cláudia Ribeiro Pfeiffer

345

Políticas públicas de digitalização do território

369

Neoliberalismo e lutas sociais: perspectivas para as políticas públicas – retrocessos, recorrências e avanços

Tamara Tania Cohen Egler

Laura Tavares Soares


Seção 5 MEIO AMBIENTE, LUTA SOCIAL E TERRITÓRIO

391

Internalização de custos ambientais: da eficácia instrumental à legitimidade política Henri Acselrad

415

Capacidade de suporte do território: o nomadismo de um conceito Cecília Campello do Amaral Mello

SEÇÃO 6 CULTURA, HISTÓRIA E TERRITÓRIO

441

Quando Hannah Arendt vai à cidade e encontra com Rubem Fonseca ou Da cidade, da violência e da política Robert Moses Pechmann

467 499

Considerações acerca de um drama: a renovação urbana em Lille-Sud Soraya Silveira Simões Ana Maria Barbosa Campelo de Melo

Breve história do debate sobre a cidade colonial brasileira Fania Fridman

SEÇÃO 7 IDENTIDADE, TERRITÓRIO E PLANEJAMENTO

523

Representações do espaço e modelos de planejamento: a dicotomia local-global e as estratégias para as cidades Pedro de Novais Lima Junior

541

“Identidade” e “território” enquanto simulacros discursivos

565

O choque entre expertise técnica e experiência vivenciada: tentativas para sua superação num planejamento subversivo

Frederico Guilherme Bandeira de Araujo

Rainer Randolph


Seção 8 PROPRIEDADE, TERRITÓRIO E PLANEJAMENTO

591 607

Irregularidade urbanística: questionando algumas hipóteses Adauto Lucio Cardoso

Favelas e condomínios: convergência de opostos na cidade segregada Maria Julieta Nunes

629

A importância do Código Civil para a política de regularização fundiária Alex Ferreira Magalhães

655

Os novos planos diretores municipais brasileiros: uma avaliação preliminar Fabrício Leal de Oliveira

677

Sobre os Autores


Apresentação Jorge Natal Hipólita Siqueira

Escrever a apresentação de um livro, seja ele qual for, constitui exercício eivado de preocupações. Uma delas diz respeito à forma propriamente dita (da redação); mas essa preocupação, felizmente, é superável graças à certeza de que logo adiante entrará em cena um bom revisor – o que nos permite seguir adiante (escrevendo). O problema mesmo radica na busca pela devida apreciação do trabalho a ser apresentado. No caso desta apresentação, no entanto, e aqui, infelizmente, a preocupação é enorme, pois não se trata somente (sic) de escrever algo que seja adequado em termos de conteúdo sobre um dado trabalho – mas sim sobre 27. As agruras dos apresentadores, no entanto, não param por aí, uma vez que esses 27 trabalhos sugerem pelo menos possíveis oito seções temáticas,1 refletindo, assim, com este número de seções, a pluralidade de vieses analíticos, metodológicos, teóricos etc. do atual corpo docente da nossa Casa e, por conseguinte, o tamanho da tarefa a enfrentar! 1

Possíveis porque certamente (e sem muito esforço) poderíamos organizar/distribuir os referidos artigos de modos diversos, tantos são os ganchos que eles sugerem ou mesmo operam.

9


Apresentação

Ademais, não fora bastante, este livro foi pensado e organizado de modo a marcar a celebração dos 40 Anos do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da UFRJ (19712011). Ou seja, a nossa responsabilidade de apresentadores aumenta muitíssimo, especialmente em vista do fato desse Programa e do Instituto que veio a abrigá-lo (em 1987) expressarem uma história de sucesso no sentido da reafirmação cotidiana do seu compromisso com o pensamento crítico e as políticas verdadeiramente públicas, bem como no da busca incessante pela excelência acadêmica (amplamente reconhecida em seu campo de atuação)! Ainda quanto aos apresentadores e suas preocupações (e responsabilidades), cumpre também comentar que no caso deste livro eles precisam escrever uma apresentação que agrade não a um autor, mas aos assinalados 27 autores (25, mais aqueles que assinam esta apresentação), bem como fornecer aos leitores elementos que os estimulem a enfrentar suas mais de 600 páginas – notadamente os que têm no PUR/IPPUR/UFRJ referência para as suas reflexões e ações públicas. Esperamos ser felizes nesta (dupla) empreitada! Feitos os comentários preliminares, tendo em vista o assinalado no início desta apresentação, optamos por certa frugalidade de redação; a saber, apenas apontar as linhas mais gerais dos artigos em suas respectivas seções, sob pena de não apenas nos estendermos em demasia, como de sermos injustos com um ou outro colega/trabalho. * Vale então mencionar neste ponto as seções pelas quais distribuímos os 27 artigos: 1. Nação, Capital e Território; 2. População, Capital e Território; 3. Trabalho, Capital e Território; 4. Política Pública, Luta Social e Território; 5. Meio Ambiente, Luta Social e Território; 6. Cultura, História e Território; 7. Identidade, Território e Planejamento; 8. Propriedade, Território e Planejamento. Da primeira seção – Nação, Capital e Território – constam três artigos: pela ordem, o de Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro (“Cidade, nação e mercado: gênese e evolução da questão urbana no Brasil”); Jorge Natal (“Mudanças recentes do capitalismo

10


Jorge Natal | Hipólita Siqueira

mundial e brasileiro: alguns desdobramentos espaciais”); e Carlos B. Vainer (“Lugar, região, nação, mundo: explorações históricas do debate acerca das escalas da ação política”). O primeiro trabalho, o do professor Luiz Cesar, resgata a questão urbana brasileira tomando como ponto de partida o início do século XX, evidenciando seu caráter retardatário enquanto questão social (finalmente alcançada nos anos 1980 o que, vale o registro do autor, é bem diferente em termos de precedência temporal face ao que aconteceu na Europa e nos EUA), e o papel conservador das políticas públicas no que tange às cidades na atual contemporaneidade.2 Sobressai no texto a busca por articular as conjunturas intelectuais da formulação da questão social e a inscrição, nelas, das cidades, o que remete a análise à essencialidade da consideração do trinômio Saber/Representação/ Prática. O segundo trabalho, o do professor Jorge Natal, apoiando-se em dados aportes teóricos, sublinha os termos Financeirização da Riqueza, Revolução Informacional e Neoliberalismo, enquanto categorias e processos históricos, defendendo que o capitalismo mundial ingressou em uma nova etapa histórica, mais ou menos por volta dos últimos anos 1970, e que nela vem sendo redefinidos dois temas que são caros ao autor, a saber, o do desenvolvimento brasileiro e o das suas expressões espaciais. É nestes termos que ele também defende a necessidade de que tais temas sejam repensados com autonomia face às ideologias ora dominantes e às categorias e proposições emanadas do Centro. E, por fim, o do professor Carlos Vainer, que sublinha a centralidade da consideração das escalas em suas dimensões relativas ao Poder e à Ação Política. É nestes termos que ele, indo além do cuidadoso exercício acadêmico, mostra o quanto o discurso político está impregnado de referências às escalas. É assim que o professor Vainer chama a atenção para as recorrentes alusões a Blocos Regionais, Globalização, Patriotismo de Cidades, Poder Local etc., encontradiças em seminários, artigos etc., bem como nas falas políticas propriamente ditas – todas as referências trazendo consigo, é claro, uma proposta a valer na escala que lhe é própria e que, tornada hegemônica, também se mostra poder em 2

“Separa-se cidade e cidadania, pelo menos no sentido rousseauniano do contrato social. Será que caminhamos na direção de construir não mais a República, mas a cidade-pátria romana com a sua identidade patriotismo-civismo e a sua dualidade democracia-exclusão?”

11


Apresentação

ação. Nestes termos, resulta da análise que a consideração da questão escalar deve merecer a atenção de todos os cientistas sociais (em termos amplos) que se movem na senda do pensamento crítico. Sob ângulos diferentes e em perspectiva histórica sintonizada com os novos tempos do capitalismo mundial, esses três trabalhos apontam para o lugar problemático dos diversos lugares ou Territórios na sociedade do Capital atual, bem como para as possibilidades ora posicionadas para o país (Brasil) em termos da sua afirmação enquanto Nação ou, em termos genéricos, da construção de lugar e mundo estruturados socialmente pelo menos com algum grau de liberdade face à lógica da valorização e do lucro. Da segunda seção – População, Capital e Território – constam três artigos: pela ordem, o de Helion Póvoa (“Território e mobilidade: barreiras físicas como dispositivos de política migratória na atualidade”); Alberto de Oliveira (“Conhecendo o interior paulista: o papel do espaço na dinâmica do mercado de trabalho”); e Hermes Tavares (“Estratégias de desenvolvimento regional: da grande indústria ao arranjo produtivo local?”). O primeiro trabalho, o do professor Helion Póvoa, sublinha as barreiras físicas aos movimentos populacionais no tão proclamado quanto inexistente mundo sem fronteiras para uma das formas de existência ou de existência potencial do capital, que são as populações em geral e os trabalhadores em particular – cabe mencionar que o trabalho em questão se ocupa tanto dos migrantes econômicos (em busca de inserção no mercado de trabalho) quanto dos migrantes políticos (em busca de asilo). O autor centra sua análise na emergência de um novo sentido das políticas migratórias atuais radicalmente restritivas, marcadas pela criminalização das migrações, rejeição e violência, com destaque para o erguimento de barreiras físicas e encarceramento em campos de “triagem e confinamento”, contrastando com políticas anteriores de atração e inserção de migrantes nos países desenvolvidos. O segundo trabalho, o do professor Alberto de Oliveira, tem como intuito contribuir para o melhor entendimento dos múltiplos condicionantes das dinâmicas distintas do mercado de trabalho através da inclusão da dimensão espacial, em geral, ausente nas análises sobre o

12


Jorge Natal | Hipólita Siqueira

tema. Tendo como referência o estado de São Paulo, examina o debate metrópole versus interior, ressaltando o crescimento do emprego fora das áreas metropolitanas no país no período pós-2000. Partindo da análise de testes estatísticos, mostra que o problema do desemprego não se restringe à metrópole do estado de São Paulo, mas também alcança o interior paulista. A população, portanto, não deve “depositar tantas fichas” assim no eldorado interiorano em termos de emprego, já que os atributos espaciais de um e outro lugar são díspares – sem prejuízo de serem favoráveis ao primeiro, especialmente por conta dos já referidos novos tempos. O terceiro trabalho, o do professor Hermes Tavares, também dialoga com o temário (da seção) na medida em que defende, implicitamente, que a população não deve esperar muito dos chamados Arranjos Produtivos Locais e, por derivação, em termos da alteração da sua distribuição pelo território na atual sociedade capitalista, posto defender que em vista dessa realidade, bem como particularmente da brasileira, a forma de cadeia produtiva com a liderança da grande empresa ainda faz sentido, ao passo que o modelo mais microrrecortado (ou microespacial), atualmente tão em voga no centro capitalista, não se coaduna à perfeição com a nossa realidade, a brasileira, e, mais importante, dele não se deve esperar maiores e disseminadas gerações de postos de trabalho. Nos dois últimos casos, tendo em vista o primeiro trabalho da seção, pela consideração da dimensão migração política, verifica-se o quão complexo é o temário dos deslocamentos populacionais no território na sociedade capitalista contemporânea e suas imbricações com a organização da produção e sua distribuição no território. Esses três trabalhos, também sob perspectivas distintas – o primeiro centrado na problemática demográfica, ao passo que os outros dois referem-se mais à dimensão macroespacial do desenvolvimento capitalista –, acabam convergindo para o reconhecimento da importância dos movimentos da População ao nível do Território, tendo em vista as atuais lógicas do Capital. Da terceira seção – Trabalho, Capital e Território – constam quatro artigos: pela ordem, o de Luciana Lago (“Trabalho e moradia na periferia de uma grande metrópole: para uma política urbana economicamente orientada”); Pedro Abramo (“O mercado de solo informal em favelas e a mobilidade residencial

13


Apresentação

dos pobres nas grandes cidades brasileiras: notas para delimitar um objeto de estudo”); Hipólita Siqueira (“Trabalho e espaço metropolitano: desafios teórico-metodológicos”); e Ana Clara T. Ribeiro (“Aceleração e fragmentação: o trabalho na grande cidade periférica”). O trabalho inicial, da professora Luciana Lago, advoga a necessidade de repensarmos, face às transformações em curso no mundo do trabalho, as possibilidades abertas para além do paradigma republicano do bem-estar social ancorado no tripé emprego estável, segurança de renda e universalização do acesso aos bens de consumo coletivo, aduzindo elementos tais como a casa da periferia enquanto espaço de reprodução familiar e produtiva (via trabalhos manuais), não obstante as sabidas precariedades societárias (informalidade etc.). Ao problematizar a temática das desigualdades sociais metropolitanas, questionando visões dualistas do tipo centro-periferia e mercado formal-informal de trabalho, a autora aponta para distintas possibilidades de apreensão da complexidade do mundo popular nas metrópoles. Dessa forma, busca gerar subsídios para políticas públicas que ultrapassem os limites divisórios entre os “campos da produção econômica e o da reprodução social”, entendendo o acesso a bens e serviços públicos como recursos “passíveis de serem apropriados em práticas emancipatórias”. O segundo trabalho, o do professor Pedro Abramo, centrado no mercado de solo informal em favelas, examina a mobilidade residencial dos pobres nas grandes cidades brasileiras, em especial as lógicas de acesso à terra urbana nelas atuantes (do Estado, do mercado e, no caso latino-americano, da “necessidade absoluta de dispor de um lugar para instaurar-se na cidade”) que se de um lado refletem a estrutura perversa herdada pelo país, de outro lado também refletem a complexidade da relação mercado e Estado, pontuando aí que, para acessar a terra, capitais diversos podem e são acionados, tais como o econômico, mas também o político, o simbólico etc. Segundo o autor, avançar na “inteligibilidade” da configuração intraurbana das grandes cidades brasileiras passa por duplo desafio: conceitual e empírico (exame do funcionamento das lógicas acima apontadas). A definição e o conhecimento do mercado informal do solo urbano abrem frentes inovadoras e promissoras,

14


Jorge Natal | Hipólita Siqueira

exploradas de modo acurado pelo autor. O terceiro trabalho, o da professora Hipólita Siqueira, rediscute o significado e as implicações das transformações do capitalismo contemporâneo em seus rebatimentos ou expressões no que tange ao mundo do trabalho nos espaços metropolitanos. No entanto, ela chama a atenção do leitor para que tenha pelo menos um cuidado: o da atenção crítica com as categorias e recomendações relativas aos processos em curso no centro mundial face às transformações também em curso na periferia capitalista. Ou seja: ela pontua o tão antigo quanto sempre presente problema da nossa aculturação e que é, para além da questão ideológica, simultaneamente de método. Nesses termos é que a autora convida seus leitores a enfrentar questões como as das novas dinâmicas urbanas, dos mercados metropolitanos de trabalho, das reestruturações produtivas, da competitividade nas metrópoles contemporâneas etc. Nesse sentido, ressalta as várias mediações teóricas e históricas necessárias para uma análise da articulação entre espaço metropolitano e mercado de trabalho na periferia do capitalismo. O último trabalho, o da professora Ana Clara T. Ribeiro, tendo em conta a atual onda modernizadora capitalista, reilumina as correntes transformações na estrutura urbana, ambientando sua análise na grande cidade periférica. Três fenômenos relacionados lhe são centrais: o de Aceleração, Ativação e Fragmentação; assim como os conceitos Revolução Passiva, Sociabilidade, Territorialidade, Ação Social e Racionalidade Alternativa. É de posse desse conjunto de elementos que ela examina as atuais intervenções urbanas (públicas e privadas), reiterando, na grande cidade periférica, que aparece como o último refúgio da pobreza (dado, em nossos termos, a terra ter sido tornada escassa para as maiorias populacionais, e mais ainda com as sucessivas modernizações tecnológicas do campo no Brasil) e focando aí o chamado mundo do trabalho e a própria reprodução social nela em curso. Esses quatro trabalhos, como registrado em seus títulos, de modos distintos, contribuem para a compreensão de dimensões atinentes ao chamado Trabalho, no limite, todas elas problemáticas, em variados recortes do Território na sociedade hodierna do Capital, seja ele recortado como cidade periférica, espaço metropolitano, periferia da grande metrópole ou favelas nas grandes cidades brasileiras.

15


Apresentação

Da quarta seção – Política Pública, Luta Social e Território – constam cinco trabalhos: pela ordem, o de Orlando Alves dos Santos Jr. (“Políticas públicas, arenas e atores sociais: o fórum nacional da reforma urbana e o direito à cidade”); Mauro Kleiman (“Práticas cotidianas nas comunidades populares não articuladas ou mal articuladas às redes de água e esgoto nas metrópoles brasileiras: os casos do Rio de Janeiro e Salvador”); o de Cláudia Pfeiffer (“Desenvolvimento no território a partir da colaboração público-privado: possibilidades”); de Tamara Egler (“Políticas públicas de digitalização do território”); e o de Laura Tavares (“Neoliberalismo e lutas sociais: perspectivas para as políticas públicas – retrocessos, recorrências e avanços”). O primeiro trabalho, o do professor Orlando Alves dos Santos Jr., analisa a participação do Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU), enquanto ator social, com acúmulo de reflexões e de lutas pelo direito à cidade, no desenho e implementação de políticas urbanas nacionais no primeiro governo Lula (2003-2006). Para a avaliação proposta, o autor tem como referência a adoção, pelo referido governo, de programas e políticas públicas consoantes com a agenda da reforma urbana do fórum. Vale anotar, em adição, que o balanço efetuado pelo autor é positivo, expressando o êxito de uma “estratégia coletiva planejada pelo conjunto das organizações que compõem essa coalizão social, que combina diferentes escalas de ação, articulando intervenções societárias [...] e institucionais [...]”. Porém, o professor Orlando Jr. ressalta a inflexão conservadora do Ministério das Cidades e as incertezas no que diz respeito ao enfrentamento das desigualdades sociais nas cidades brasileiras. Nesse sentido, o FNRU continuaria sendo um “espaço de esperança”. O segundo trabalho, o do professor Mauro Kleiman, com base em pesquisas desenvolvidas nos “Alagados” (Salvador/BA) e em favelas e loteamentos periféricos do Rio de Janeiro, reconstitui distintas práticas cotidianas de comunidades populares em resposta à situação de ausência ou de precariedade do acesso às redes de água e esgoto. O autor mostra ainda que, de maneira semelhante à autoconstrução da moradia, as camadas mais pobres também autoconstroem sua infraestrutura de serviços básicos de saneamento e abastecimento de água (clandestinamente, através dos chamados “gatos”, “espetos” etc.).

16


Jorge Natal | Hipólita Siqueira

A partir do exame de tais práticas, ele procede a uma reflexão sobre os modos de sociabilidade desenvolvidos nesses espaços, questionando programas oficiais de implantação de serviços básicos que, em geral, desconsideram tais sociabilidades. O professor Mauro Kleiman mostra, em complemento, as diferenciações que são produzidas, destacando o surgimento de “ilhas de serviço” nos espaços em tela, contribuindo para a ampliação das desigualdades intrapobres, o que torna ainda mais complexa as relações sociais presentes. O terceiro trabalho, o da professora Cláudia Pfeiffer, defende que há possibilidades do estabelecimento de colaborações positivas de desenvolvimento (em termos do que ela denomina desenvolvimento humano, comunitário e social, bem como em termos da formação de comunidades cívicas) entre governo, empresas privadas, organizações sem fins lucrativos e comunidades de universos socialmente diversos, a partir de dados territórios. Sua análise está fundamentada em experiências concretas por ela examinadas (e, em algum grau, vividas) em comunidades em desvantagem social, mais especificamente na Cidade de Deus, Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, e em Vila Aliança, sub-bairro de Bangu. A autora chama a atenção para que a formulação de políticas públicas tenha maior sensibilidade à colaboração a partir do território e suas implicações no que tange às diferentes possibilidades de desenvolvimento local. O quarto trabalho, o da professora Tamara C. Egler, traz à baila a rica experiência implantada no pequeno município de Piraí/RJ, rubricada enquanto política pública de digitalização do território e de ampliação do acesso às novas tecnologias em prol do desenvolvimento local ou do território da referida unidade político-administrativa (em tempos de globalização, conforme a autora). Identificando atores e reconhecendo processos, o texto persegue o desvendamento dos interesses endógenos e exógenos associados ao exercício da política e, em especial, claro, da adoção da mencionada política pública, seus significados, rebatimentos e expressões. A autora considera positivos os efeitos no sentido de certa melhoria nas condições de vida da população local, porém o mesmo não se pode dizer da interação intergovernamental e entre governo e atores locais, posto obstaculizar a promoção de uma “verdadeira política de universalização da acessibilidade à comunicação digital”. Por fim, o quinto trabalho, o da professora Laura Tavares, tendo em conta

17


Apresentação

o binômio Neoliberalismo e Lutas Sociais, busca situar as políticas sociais em seus retrocessos e recorrências, além das possibilidades de avanços progressistas, para além da Focalização, tão em voga nos anos 1990, de sorte a retomar o sentido da Universalização das mesmas. Com base em estudo comparativo, a autora demonstra os efeitos das reformas neoliberais implementadas nos países latino-americanos, onde a própria construção de um Estado de Bem-Estar Social foi “incompleta ou precária”, e examina as tentativas – nem sempre bemsucedidas – de superação das “fórmulas” neoliberais. Defende uma reforma democrática e não-liberal do Estado para que políticas sociais universais sejam efetivamente levadas adiante. A autora também destaca a fundamental relevância para essa discussão do resgate das escalas nacional e regional de intervenção, superando a “supremacia do local”. Os cinco trabalhos constantes dessa seção, como os demais que integram este livro, por caminhos analíticos próprios, contribuem para o entendimento de dadas temáticas e/ou para o estado das artes atinentes a elas; no caso, aqui, como indicado, eles dialogam diretamente com as Políticas Públicas em suas dimensões e/ou expressões verificadas ao nível do Território, tendo como fio condutor as chamadas Lutas Sociais. Da quinta seção – Meio Ambiente, Luta Social e Território – constam dois artigos: o de Henri Acselrad (“Internalização de custos ambientais: da eficiência instrumental à legitimidade política”) e o artigo de Cecília Campello (“Capacidade de suporte do território: o nomadismo de um conceito”). O primeiro trabalho, o do professor Henri Acselrad, examina o discurso predominante acerca da política ambiental que, nas suas palavras, “insiste na pertinência e superioridade dos chamados instrumentos de mercado no combate à degradação do meio ambiente”. Para tal, esse discurso, em busca de legitimação, apoiado no mainstream econômico (Teoria Neoclássica), sublinha as chamadas Falhas de Mercado, dadas as chamadas Externalidades, e, passo seguinte, advoga a denominada Internalização dos Custos Ambientais. Enfim, a fuga à ótima alocação dos recursos e os problemas (sic) daí derivados (dentre outros, os ambientais) exigiu taxas e impostos corretivos para efeito da

18


Jorge Natal | Hipólita Siqueira

regulação do meio ambiente, assim como avaliações monetárias dos impactos ambientais e reformas verdes dos sistemas fiscais. Defende o autor que essa matriz de raciocínio é tão presente nos manuais de organismos multilaterais, governos e até mesmo de movimentos ambientalistas quanto perniciosa. O segundo trabalho, o da professora Cecília Campello, na mesma linha, questiona o discurso também tão recorrente quanto equivocado, nos termos em que ele é colocado, da chamada capacidade de suporte do território. A autora chama a atenção para o nomadismo do conceito, seus simbolismos e, claro, as implicações concretas ao nível das políticas ditas ambientais. Uma das expressões mais marcantes deste debate, acerca da capacidade de suporte do território, problemática, por suposto, diz respeito à definição de uma relação técnico-material entre indivíduos e natureza alheia à dimensão política e cultural, fundadora da relação população/ território. De uma perspectiva mais geral, fica mais que evidenciado o quanto os discursos, os simbolismos, a ideologia etc. conferem sentidos bem concretos à história, ou seja, às nossas próprias existências. O caso das políticas ambientais hegemônicas está aí para não nos desmentir. Os artigos que constam dessa seção lançam luzes sobre outra mazela, mundial, mas também muito presente no Brasil, que é a da degradação do Meio Ambiente em diversos pontos do nosso Território, bem como das muitas Lutas Sociais em curso, sublinhando-se aqui o quanto essas lutas se expressam em discursos em busca de legitimação. Da sexta seção – Cultura, História e Território – constam três artigos: o de Robert Pechmann (“Quando Hannah Arendt vai à cidade e encontra com Rubem Fonseca ou Da Cidade, da violência e da política”); Soraya Silveira Simões e Ana Maria Barbosa Campello de Melo (“Considerações acerca de um drama: a renovação urbana em Lille-Sud”); e Fania Fridman (“Breve história do debate sobre a cidade colonial brasileira”). O primeiro trabalho, o do professor Robert Pechmann, criativamente supõe um encontro impossível em termos cronológicos, mas também pouco provável caso inexistisse a restrição temporal anotada, e na cidade. De outra maneira: seria mesmo absurdo esse encontro reflexivo

19


Apresentação

entre a filósofa e politicóloga Arendt, ocupada em explicar a violência (absurda) de uma grande ruptura histórica, como foi o advento do nazismo, e o contista e romancista Fonseca, voltado para a ambiência da cidade enquanto lugar do estabelecimento “de vínculos que impregnam até o mais reles dos mortais, o sistema de relações dos quais a cidade é o suporte e o fluxo de desejos que a inundam e a contaminam”? A cidade seria, talvez ainda mais na atual contemporaneidade, um lugar síntese para discutir quer a violência, quer a política – ou seria a negação desta pela primeira o que nos remeteria para Arendt? Ou seria para Fonseca? Ou seria mesmo para ambos e, nestes termos, este encontro de ideias e sonhos na cidade contemporânea seria mais que provável, mas uma necessidade social? O segundo artigo, o da professora Soraya Simões (em parceria com Ana Maria Barbosa Campello de Mello), conquanto referido-se ao bairro de Lille-Sud, em Lille, França, tendo em vista um estudo de caso, o do “Grand Projet Urbain” (GPU) em curso no bairro assinalado daquele país, examina o problema daí derivado do ponto de vista dos afetados, aduzindo então a determinados termos, tais como renovação urbana, comunidade de aflição, a rua enquanto casa, que revelam, é trivial dizer, a dramaticidade da situação (dos que sofrem a renovação urbana). O resgate de uma experiência como essa e de tantas outras em curso no mundo, como da própria experiência do município do Rio de Janeiro no presente momento (por conta dos megaeventos esportivos), se de um lado permite explicar as especificidades ou mesmo singularidades do processo em tela, também permite a compreensão mais geral em curso na sociedade do capital, tendo em vista “apenas” as muitas renovações presentes na atual contemporaneidade. Fechando a seção, temos o artigo da professora Fania Fridman, que, em perspectiva interdisciplinar, tomando a cidade colonial brasileira, apoiada em autores do século XX que sobre ela refletem, embora possa parecer distante dos precedentes, ao fim e ao cabo discute a mesma questão: quais são os vetores que definem a organização espacial do país naquele tempo histórico (?). Resgatando o referido debate, ela destaca três aspectos recorrentes na literatura examinada, a saber: traçado, agentes modeladores e função da cidade portuguesa no Brasil. Também sobressai desse debate a inevitável comparação entre os assentamentos da América Portuguesa e os da América Espanhola, bem como as influências políticas, técnicas e culturais locais. Assim, sem prejuízo das

20


Jorge Natal | Hipólita Siqueira

determinações das cidades então nascentes naquele tempo histórico, fica evidente que elas, as pregressas, assim como as contemporâneas, são sempre multifacetadas e socialmente construídas, sempre produtos de acúmulos históricos e portadoras de possíveis sonhos, conflitos etc. Os artigos reunidos nesta seção, além de suas evidentes historicidades, conquanto referidos em tempos diversos e até mesmo tempos comparados, enfim, da remissão à História, vão ao encontro de valores, mais que individuais, societários, em certo sentido (amplo) da Cultura; estando, ademais, todos eles referidos a Territórios, concretos. Da sétima seção – Identidade, Território e Planejamento – constam três artigos: pela ordem, o de Pedro Novais (“Representações do espaço e modelos de planejamento: a dicotomia local-global e as estratégias para as cidades”); Frederico Araujo (“‘Identidade’ e ‘território’ enquanto simulacros discursivos); e de Rainer Randolph (“O choque entre expertise técnica e experiência vivenciada: tentativas para sua superação num planejamento subversivo”). O primeiro trabalho, o do professor Pedro Novais, tendo em vista a representação predominante do chamado mundo globalizado, isto é, a dicotomia local-global, elabora sua reflexão crítica, os sentidos e o encantamento dos adoradores do deus mercado com os proclamados planos estratégicos (de cidades). Nesses termos é que o autor, a partir de uma discussão sobre a noção de representação e seus efeitos sobre a construção da realidade, aponta que o recorte escalar local-global sugere uma dada representação do espaço, avançando, assim, para a formulação de modelos de planejamento, entre os quais o festejado plano estratégico. Ressalta também a necessidade de libertar-se de uma visão hegemônica (local-global) e de ter como “estratégia a construção de novas representações que possibilitem um mundo diferente do que este que nos é apresentado”. O segundo trabalho, o do professor Frederico Araujo, também opera tal discussão – mas de maneira distinta. Para ele as dificuldades antes mostradas, e não apenas pelo artigo imediatamente precedente, podem ser observadas pela crise de identidade contemporânea que, por sua vez, teria expressão em três dimensões (campos de significação): a do Indivíduo, das Classes e da Nação. Com essa crise, também estariam indo “ladeira abaixo”

21


Apresentação

elementos cruciais da modernidade, tais como os indivíduos com consciência criativa ao vigente, a imaginação utópica e o desdobramento dessas faculdades em ação. O autor elabora uma reflexão crítica de base epistemológica sobre a temática das identidades e dos territórios, entendidos enquanto simulacros discursivos, bem como das relações entre esses dois âmbitos classificatórios no mundo atual. E o terceiro trabalho, o do professor Rainer Randolph, de maneira diversa, assinala que nestes tempos difíceis – para dizer o mínimo – estariam ressurgindo, até generalizadamente, mais que defesas do retorno do planejamento, mas também a defesa do planejamento mais efetivamente público e democrático, quando não verdadeiramente insurgente, arguindo de maneira incisiva o estabelecimento de novas relações entre Estado e Sociedade. Seria então um diálogo com o artigo precedente, como se novas identidades estivessem surgindo, novos sentidos de pertencimentos territoriais e, por conseguinte, novas formas de planejamento, ao lado das mais conservadoras (plano estratégico) e também das visceralmente mudancistas. Com base em uma revisão crítica da proposta “comunicativa” ou “colaborativa” de planejamento, busca sua radicalização via discussão do planejamento “subversivo” que, segundo o autor, deve ser compreendido como “uma das maneiras de realizar, na prática, a expansão do domínio tanto das experiências sociais já disponíveis [...] quanto das experiências sociais possíveis [...]”. Os três trabalhos que integram essa seção problematizam a “re-emergência” do Planejamento na atual contemporaneidade, mostrando que as Identidades definidoras da modernidade, ao estarem em crise, problematizam a devida consideração (se vale o termo, progressista) do Território. Da oitava seção – Propriedade, Território e Planejamento – constam quatro artigos: pela ordem, o de Adauto L. Cardoso (“Irregularidade urbanística: questionando algumas hipóteses); Maria Julieta Nunes (“Favelas e condomínios: convergência de opostos na cidade segregada”); Alex F. Magalhães (“A importância do Código Civil para a política de regularização fundiária”); e Fabricio Leal de Oliveira (“Os novos planos diretores municipais brasileiros: uma avaliação preliminar”).

22


Jorge Natal | Hipólita Siqueira

O primeiro artigo, o do professor Adauto Cardoso, examina a “irregularidade jurídica crônica” do processo de urbanização brasileira, cuja interpretação tem se pautado em modelos recorrentemente eivados da convicção de que “a legislação fundiária e urbanística, bem como os procedimentos administrativos de licenciamento tenderiam a ser elitistas, não condizendo com padrões razoáveis para os assentamentos populares”. Para levar adiante sua análise, o autor a contrapõe às matrizes concernentes aos países centrais, com o objetivo de mostrar os obstáculos da sua plena e acrítica transposição para o caso brasileiro. Merece destaque o argumento de que, mais do que um “problema”, a irregularidade foi uma “solução tolerada” diante de uma “situação estrutural de não universalidade dos direitos básicos e consequente disputa hobbesiana pelo acesso aos parcos investimentos públicos nas cidades”. O segundo artigo, o da professora Maria Julieta Nunes, lança luzes sobre a cidade segregada, nos seus termos, tendo como móvel analítico as favelas e os condomínios, tão opostos no que se refere ao mercado imobiliário e à conformação físico-urbanística, mas tão parecidos no fechamento dos seus espaços; e, não fora bastante, tão estruturadores de uma mesma e única cidade. Invertendo o sentido mais frequente dos estudos sobre essa temática, a autora explora a “inusitada aproximação entre esses opostos”. Tal exploração é feita, de um lado, pelas “relações de localização e situação” e, de outro lado, “pelos modos de lidar” com esses espaços opostos na realidade da cidade brasileira, como destaca a autora: “[...] o que no condomínio é proteção e abrigo, na favela é confinamento e segregação.” O terceiro trabalho, o do professor Alex Magalhães, analisa algumas inovações no Código Civil brasileiro de 2002, bem como seus limites e possibilidades no que se refere à constituição de instrumentos adequados à regularização fundiária de favelas e assentamentos semelhantes em nossas cidades, tendo como foco a formalização da propriedade (titulação). Tais inovações, examinadas criticamente, lançam luzes sobre a “contribuição que a legislação civil pode trazer no tocante ao enfrentamento da questão social da moradia irregular no Brasil contemporâneo”. Dessa forma, o autor chama a atenção para a relevância dessa questão, segundo ele ainda ausente nos debates sobre reforma urbana e regularização fundiária, de modo a evitar certas “armadilhas”, tais como “Estatuto da Cidade para a esquerda; Código Civil para a direita”. Por fim, o

23


Apresentação

trabalho do professor Fabricio Leal de Oliveira examina a enxurrada de planos diretores municipais no período pós-aprovação do Estatuto da Cidade em 2001. O autor aponta que uma das principais conclusões a que chegou é que, lamentavelmente, eles pouco ou mesmo nada avançaram no que diz respeito à promoção do acesso à terra urbanizada, ainda que avanços tenham sido observados em relação à gestão mais democrática das cidades. Vê-se, portanto, que há muito a ser feito no sentido do Planejamento do Território do país, posto ainda sobreviver nos dias de hoje uma das maiores chagas nacionais, a da Propriedade da Terra concentrada nas mãos de muito poucos, com todas as sequelas e mazelas adrede conhecidas. Os artigos que definem essa seção avançam na discussão do Planejamento em dados Territórios, notadamente nas áreas em que existem os chamados assentamentos precários, o que coloca em tela de juízo a questão da Propriedade. * Enfim, chegamos ao final. Quanto ao equilíbrio da apresentação dos artigos, lamento, acho que não conseguimos alcançá-lo, tantos e diversos eram eles e tão pouco o tempo disponível (para escrever esta apresentação). Esperamos ser absolvidos! Comentário de outra natureza: fica evidente neste livro que a nossa diversidade é a nossa riqueza. Mas vale anotar que ela é ainda maior do que a registrada, uma vez que aqui constam apenas um e somente um artigo da produção do atual corpo docente do IPPUR/UFRJ. Mas se oito foram as seções pelas quais distribuímos os 27 trabalhos, não é menos verdade que eles poderiam ser alocados em número maior, bem como também é veraz que eles podem sê-lo em número menor (vide as cinco linhas de pesquisa do programa registradas na CAPES), afirmando-se assim a unidade (na diversidade) da Casa. Boa leitura a todos. Rio de Janeiro, 31 de outubro de 2011.

24


Depoimento 40 anos: PUR em movimento Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

Ingressei em 1979 no então PUR – Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional – quando ele atravessava um momento de profunda crise institucional, decorrente da dispensa da quase totalidade dos seus professores como medida autoritária da reitoria da época para solucionar um conflito político iniciado em 1976. O programa havia sido retirado do âmbito da Coordenação de Programas de Pós-Graduação em Engenharia (COPPE), onde nasceu como área de concentração do mestrado em Engenharia da Produção. Encontrava-se sob a tutela de uma comissão de professores externos a sua história anterior, cuja missão era extingui-lo após a conclusão do curso por alunos ainda matriculados em duas turmas. A imediata extinção do PUR havia sido impedida por aqueles alunos ao interporem uma ação na Justiça, que obrigava a universidade a manter condições para que pudessem concluir as disciplinas e defender suas dissertações. Era necessário, portanto, recompor o corpo docente mínimo e, para tanto, a reitoria autorizou a contratação de professores na condição de visitantes por dois anos. 25


Depoimento – 40 anos: PUR em movimento

O PUR, naquele momento, resumia-se a três professores, sendo um em tempo parcial. Esse pequeno coletivo de professores e aguerridos alunos inicia, naqueles idos de 1979, uma trajetória de resistência que pouco a pouco se transforma em defesa da sobrevivência do PUR como experiência universitária acadêmica e politicamente relevante para um país que se urbanizou de forma tão acelerada. Tal trajetória foi dinamizada e impulsionada com as contratações posteriores dos colegas Rosélia Piquet, Carlos B. Vainer, Martin Smolka, Ana Clara Ribeiro e Rainer Randolph. Fomos todos contratados como professores visitantes por dois anos para, em princípio, realizar a missão resultante da conquista dos alunos. Os detalhes dessa luta de resistência, reconstrução e transformação ainda merecem registro não apenas como memória, mas, sobretudo, como a história de vitorioso processo de institucional building, até certo ponto inusitado e surpreendente. No entanto, ainda não será desta vez que essa história será contada adequadamente. Não há como relatar de maneira apropriada, nos limites deste modesto testemunho, como esses fatores estiveram presentes ao longo do período no qual o quase extinto PUR se transformou no IPPUR. Não há como reconstruir, sem entrar em detalhes, como a trajetória deste coletivo é também a construção das biografias acadêmicas e profissionais dos indivíduos que nela foram agentes e atores. É impossível, ao mesmo tempo, narrar devidamente como o desenrolar desta história e a direção que assumiu expressam as particularidades da configuração social constituída pelo agrupamento contingencial de pessoas que vinham de outras e distintas histórias. O que há de surpreendente e inusitado é como este coletivo, formado sob a influência de muitas circunstâncias, pôde em pouco tempo amalgamar concepções e intenções em um projeto coletivo que não apenas resistiu à extinção do PUR, como também conseguiu reconstruí-lo em novas bases em um longo processo marcado pela combinação de fatores do acaso e da necessidade, da determinação e da escolha, da razão e da paixão. É inevitável, porém, mencionar a imbricação deste processo de institucional building com as mudanças da conjuntura histórica brasileira do final dos anos 1970. Não há dúvidas, com efeito, que a sobrevivência e a transformação do frágil PUR resultaram de um processo social mais amplo de resistência e de reconstrução do pensamento

26


Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

crítico ao autoritarismo e ao capitalismo conservador e concentrador implantado no país. Aquele apaixonado e heterogêneo grupo entra na história do PUR no mesmo momento em que as classes populares entram em cena como novos atores sociais portadores dos ideais de democracia e justiça social. Ganhamos a capacidade de estabelecer uma luta de movimento no interior da universidade no momento em que o Povo em Movimento1 luta contra a carestia, contra a ditadura e reivindica melhores condições de vida no campo e na cidade. A nossa luta pelo direito de existência legal na UFRJ se desenrola no clima social e político aquecido pelos movimentos dos moradores das periferias em prol do direito à cidade. Defender a permanência do PUR ganha sentido e passa desde cedo a ser percebido como expressão da demanda da sociedade por conhecimentos, informações e competências que ajudassem a formular uma nova plataforma para o país. Este clima não apenas enfraqueceu o autoritarismo universitário, como criou a base de unidade deste grupo para resistir à proposta de extinção e para construir um projeto em sintonia com as demandas da sociedade. Sem que ninguém tenha assim formulado, cria-se neste grupo uma espécie de programa comum em sintonia com as demandas da sociedade, que passa a orientar a reconstituição de estrutura de disciplinas e os primeiros passos na direção da formulação de linhas de pesquisa. Os fundamentos deste programa permanecem até hoje como cultura coletiva institucionalizada, não obstante as transformações ocorridas ao longo do seu corpo docente e as mudanças internas e externas ocorridas ao longo destes 40 anos. Alguns permanecem ainda como desafios a serem enfrentados nos próximos anos. Nos referidos limites do presente texto, mencionarei apenas dois destes fundamentos por sua importância na atualidade acadêmica e institucional do IPPUR e por suas estreitas conexões. O primeiro é a incontornável necessidade da prática acadêmica interdisciplinar para conceber, nos planos teórico e prático, as complexas, multidimensionais e multicausais relações entre território, sociedade, economia e Estado. Essa concepção está na origem do surgimento do vasto campo dos estudos urbanos e regionais que 1

Título de famoso livro São Paulo, o povo em movimento, patrocinado pela Arquidiocese Católica de São Paulo, reunindo textos de vários intelectuais e organizado por Paul Singer e Vinícius Caldeira Brand. Publicado em 1980 pela Editora Vozes.

27


Depoimento – 40 anos: PUR em movimento

assumimos como opção adequada, mas enfrentando as dificuldades decorrentes das pressões originadas pela permanência da estrutura disciplinar da organização universitária, das politicas de ciência e tecnologia, além da concepção setorial das políticas públicas. Temos respondido às dificuldades mantendo uma estrutura disciplinar formativa, pela busca da composição ampla do corpo de professores e por práticas holísticas de pesquisas. Vivemos hoje, porém, uma nova situação, que nos exige pensar em outras estratégias. Por um lado, no campo dos estudos urbanos e regionais, observamos fortes e preocupantes tendências de fragmentação do ensino e da pesquisa com a formação de programas de pós-graduação focados em temas muito específicos. Essas tendências têm como correspondência a fragmentação em áreas e subáreas da organização política científica e tecnológica na esfera do CNPq e da CAPES. O esquema abaixo ilustra tal fragmentação.

Tal ocorrência nos parece preocupante se considerarmos que não apenas somos um país urbano pelo fato tão amplamente divulgado de as cidades concentrarem mais de 80% da população do país, mas em razão de termos um sistema urbano complexo, com a

28


Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

expressiva presença das metrópoles. Ele é composto por 37 grandes aglomerados urbanos, em que residem aproximadamente 45% da população (76 milhões de pessoas) e se concentram 61% da renda nacional. Entre os 37 grandes aglomerados urbanos, temos 15 metrópoles, isto é, aglomerados que apresentam características próprias das novas funções de coordenação, comando e direção das grandes cidades na economia em rede – a concentração populacional, capacidade de centralidade, grau de inserção na economia de serviços produtivos e poder de direção medido pela localização das sedes das 500 maiores empresas do país, pelo volume total das operações bancárias/financeiras e pela massa de rendimento mensal. Os 15 espaços considerados metropolitanos têm enorme importância na concentração das forças produtivas nacionais. Eles centralizam 62% da capacidade tecnológica do país, medida pelo número de patentes, artigos científicos, população com mais de 12 anos de estudos e valor bruto da transformação industrial (VTI) das empresas que inovam em produtos e processos. Essas 15 metrópoles reúnem, também, 55% do valor de transformação industrial das empresas exportadoras. Temos, portanto, um sistema urbano que pode ser considerado importante, ativo para um projeto de desenvolvimento nacional, frente às novas tendências de transformação do capitalismo. Mas, ao mesmo tempo, nessas aglomerações, estão concentrados também os grandes desafios a serem enfrentados, na forma de passivos resultantes de um modelo de urbanização organizado essencialmente pela combinação entre as forças de mercado e um Estado historicamente permissivo com todas as formas de apropriação privatistas das cidades, gerando uma urbanização caótica. Em consequência, o intenso e acelerado processo de urbanização transferiu do campo cerca de 39 milhões de pessoas entre 1950 e 1970 e gerou grandes cidades improvisadas, inacabadas e despreparadas material, social e institucionalmente para o crescimento econômico baseado na dinâmica da inovação, na economia do conhecimento e na mobilização dos recursos relacionais mencionados anteriormente. O segundo fundamento é o papel que devemos exercer na construção de uma teoria urbana que reconstrua a necessária unidade do campo e que dê conta dos imperativos nele presentes – imperativo da nossa presença ativa no debate internacional, objetivo tornado impo-

29


Depoimento – 40 anos: PUR em movimento

sição das políticas de ciência e tecnologia brasileiras. Como dar conta desse imperativo sem nos submetermos à razão imperialista, como bem formularam Bourdieu e Wacquant? O enfrentamento desse imperativo não pode ser concebido apenas como tarefa intelectual, pois essa razão imperialista tem a sua força alicerçada, por um lado, no controle dos mecanismos legítimos de difusão científica (revistas, editoras, entidades científicas ditas internacionais etc.) e, por outro, na capacidade de impor conceitos e teorias nos campos em que são formulados os desenhos das políticas públicas. O segundo imperativo decorre da necessidade de formularmos o que Robert Merton chamou de “teoria de alcance médio”, ou seja, formulações teóricas que se constroem entre as hipóteses de trabalho prescritas para dar conta de questões imediatas de pesquisas e a busca de formulações teóricas totalizantes capazes de ancorar compreensões mais globais. Em nosso campo acadêmico esse esforço não é nada trivial, pois, de um lado, nele está presente uma miríade de objetos de pesquisas formulados de maneira fragmentada, isolada e presenteísta, enquanto que, de outro lado, o esforço da conversão dos resultados de pesquisa em compreensões totalizantes das relações entre território, sociedade, economia e Estado impõe a compreensão de fenômenos marcados pela presença dos efeitos de grandes estruturas e longos processos. O terceiro imperativo, por sua vez, relaciona-se com as características particulares do planejamento urbano e regional como um campo de produção de saberes cuja multiplicidade das fontes possíveis de legitimidade cria o perigo da heteronomia das bases de avaliação e, como consequência, bloqueios a uma prática fértil de interlocução e acumulação de saberes. É intrínseca ao nosso campo, com efeito, a produção de saberes que se legitimam por sua dimensão teórico-metodológica e simultaneamente saberes justificados por suas implicações práticas e mesmo experimentais, não podendo (nem devendo) existir qualquer soberania de uma destas dimensões. Tal multiplicidade de modos de produzir, integrar, avaliar e julgar os saberes gerados em nosso campo está presente em forma de múltiplas tensões em salas de aula, nas bancas de teses e dissertações, na organização dos debates nas entidades acadêmicas do campo, na avaliação de pedidos de financiamento dirigidos ao CNPq, CAPES etc. Devemos tratar essa multiplicidade como simultaneamente desafio e virtude – virtude por

30


Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

criar uma dinâmica aberta e rica a múltiplos olhares, sensibilidades, formas de pensar, maneira de expressão e difusão, de renovação e mesmo de revolução dos saberes instituídos. O desafio é superar os perigos da naturalização e ossificação da fragmentação do campo. Nesse contexto, a importância acadêmica e política do IPPUR deve ser concebida reconhecendo o passado, mas pensando o futuro. Isso exige fortalecer o IPPUR como centro internacional de excelência no ensino e na pesquisa, visando à produção científica de novos conceitos e conhecimentos que busquem desvelar as contradições urbanas e regionais e os processos econômicos, políticos e sociais no contexto da globalização neoliberal. É o IPPUR em movimento.

31



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.