Uyran o herói

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UYRAN UHEROE


Copyright © Claudia Ribeiro, 2010 Todos os direitos de reprodução estão reservados para a Autora. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida por xerox, microfilme nem por qualquer outro processo foto mecânico sem a autorização da Editora.

Editor João Baptista Pinto Diagramação Francisco Macedo Ilustrações e Capa Melissa Ferraz ilustredonzela@gmail.com CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

R23u Ribeiro, Claudia, 1945Uyran. O heroi / Claudia Ribeiro. - Rio de Janeiro: Letra Capital, 2010. 192p. : il. ISBN 978-85-7785-058-7 1. Romance brasileiro. I. Título. 09-5999.

CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3

19.11.09 26.11.09

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Claudia Ribeiro

UYRAN UHEROE



Uyran: começando pelo nome

Há casos em que o titulo de um texto, mais do que uma indicação, uma referência, traz uma síntese da obra e, mais ainda, um roteiro para sua leitura. UYRAN é um desses casos. O Iran, personagem base do livro, recebe esta grafia “indianizada” apenas no título. Mas a relação titulo/texto vai se estabelecendo a cada página, a cada símbolo, a cada frase. O Iran é dito um índio; e neste índio estão presentes todas as transformações por que passou e todas as identidades que recebeu este personagem símbolo. bandeira, ícone, herói romântico decepcionado nacional. A palavra Uyran fica presente em nossa cabeça durante toda a leitura, lembrando outras palavras, traços e significados indígenas reais ou idealizados. (Quem sabe se José de Alencar hoje não escreveria Uguarany?) Mas não é só isso. Vejo a grafia Uyran como uma representação mais exata da pronúncia que o conjunto gráfico “o Iran” assume em nosso dia-a-dia. E esta seria mais uma orientação de leitura para o livro: ver o cotidiano como ele é, e não com uma grafia que não mais reproduz o som que representa. O depoimento de Solange Deslanges, a narradora, numa linguagem muito simples, precisa e cotidiana, dá ao texto uma autenticidade e um calor muito grandes, o que estaria presente nesta ideia que, para mim, o titulo carrega.


Enfim, a associação do som do cotidiano com uma esfera simbólica muito ampla me parece ser o grande achado da autora, representado, com extrema capacidade de síntese, desde o titulo do romance. E foi impressionante como estas três faces do titulo me acompanharam durante toda a leitura: Uyran-simbolo, Uyran-som cotidiano, e O Iran-personagem. A estranheza provocada por esta associação faz com que estas três unidades estejam sempre simultaneamente presentes à medida que o texto avança. A frase de Uyran é simples, direta e precisa. Nada é obscuro. Cada palavra está no lugar certo e para ela não há substituta mais adequada. Como se cada uma tivesse apenas um significado. Mas o romance não possui esta univocidade. É amplo, grande, farto, emocionante e bonito. Muito bonito. *** Agora. misturando alhos com bugalhos, o texto me lembra o canto de João Gilberto: em ambos, a precisão da simplicidade resulta de uma obsessiva busca da perfeição. As contorsões faciais do excelente cantor nos fazem pensar em quanto trabalho é necessário para expressar tanta simplicidade. Cristina de Castro Rio, 5.12.94


Livro I



Minhas alucinações são verdade Antonia Krapp

que vendeu sua coleção de S. Freud em couro e ouro p/comprar seda pura p/suas núpcias



ARIMBA



ARIMBA. (De provável origem indígena.) S.m. Boião de barro vidrado onde se guardam doces em calda.



Vou lhes dar a verdade, mas para lidar com ela Ê preciso abordå-la em muitas etapas. Datilografando portanto, agora, o que era antes um manuscrito enfeitiçado, algo deve mudar nessa verdade.



Uyran

Como pode alguém chegar no futuro sem nenhum tipo de inquieta­ção? Para responder a essa pergunta é preciso ir devagar, porque o futuro é um lugar onde ninguém vai estar nem quando terminar de ler esse livro, nem nunca. Portanto não adianta correr. Antes de perceber que amei de verdade só aos 43 anos, inúmeras vezes me apaixonei também de verdade e considerei essas paixões também amor. Um dia aconteceu isso: Iran apareceu! Na porta de casa; olhando pra mim e pra dentro como quem olha para o alto. Olhar grande-brilhante, cabelo negro-sedoso-ondulado. Pele vermelha. Lábios finos, corados. 14 anos... 17


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Primeira Inserção do Passado “Pra onde vai a gasolina?” As chuvas de 1988 arrasaram metade do Rio de Janeiro. Em meados de junho, vou ao Correio debaixo de um guarda-chuva gotejante e encontro a mãe da Carolina, colega de sala de minha filha Cléo. Ela diz: “Minha casa encheu até a metade, mas já pintei tudo de novo.” E eu: “Minha sala está com as paredes mofadas. Que tal o pintor?” – Cobrou 15 mil. – Muito barato. Me dá o telefone dele. – Liga pra minha casa que ele está lá hoje ainda. Seu João Ezequiel chegou três dias depois e soltou aquela voz de trovão no meio da “minha sala”. Achei que ele era enorme, apesar de ser de porte médio. Pensei: posso confiar. É um homem forte. Tratamos tudo, comprei as tintas pelo telefone e no dia seguinte Seu João começou. Trabalhava legal, mas bebia e eu não percebi. No fim de uma semana a parte de cima da casa já estava quase pronta, quando de repente Seu Ezequiel esbarra numa mesa de vidro onde estavam os livros retirados das estantes e tudo se parte em mil pedaços cortantes, pesados e difíceis de transportar. É preciso muito cuidado e habilidade para remover os cacos, eu ajudo e Seu João fica meio pasmo de não me ver esbravejar com ele. Nesse momento sinto o cheiro do álcool. Ele está bêbado, mas disfarça bem. Tudo resolvido, passamos para o andar de baixo e vamos examinar as causas da infiltração no teto da sala. Seu João diz então que vai ser preciso retirar, matar mesmo, uma figueira imensa que crescera na frente da casa, pois em pouco tempo as raízes vão comprometer toda a parede da fachada e no dia seguinte ele traz o filho Iran para ajudá-lo. De noite, Ezequiel, que saíra de tardinha “pra ir ali tomar um negócio”, não apareceu, e Iran dormiu em nossa casa, preocupado com o sumiço do pai. Iran é bonito e fala muito. Conta tudo de si, de sua família. Quando ele sobe na árvore para ir reti18


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rando os galhos mais altos, tudo pára, em casa e na rua, para olhá-lo. Porte médio, como o pai, olhos e cabelos muito negros ondulados e brilhantes, pele vermelha quente, tra­ balhava devagarinho com muita delicadeza e elegância. Com o toque do pé estala­va os galhos que desabavam lá de cima suavemente feito filme em câmera lenta. Mistério. Magia. Saber. Minhas filhas dolescentes, as colegas e eu mesma o admirávamos de queixo caído. Ele sorria. Um dia todos saíram e eu fiquei só com Iran vendo televisão. Naquele dia ele tinha consertado a lâmpada da porta da frente, apagada há 15 anos, e instalado um lampião de vidro verde transparente muito lindo. Olhei pros braços dele e não pude evitar. Minha mãos correram pras mãos dele e demos um beijo na boca. Eu tinha 43 anos e ele, 15, e ficamos ali, numa fresta de luar. Eu sofro e tudo continua. No dia seguinte vamos pro sótão consertar o telhado e fazer uma limpeza. Iran retira mais de 30 sacos de entulho abandonado por outros operários. Trabalho junto com ele. Ele ri; me provoca, eu rio também, temos o amor que é possível. Eu sofro e avanço. Iran também. Uma tarde avisam pelo telefone que o pai dele se acidentara e estava no Hospital Miguel Couto com uma fratura no fêmur. Seu João não pode ser operado porque o estado alcoólico põe em perigo a vida dele. Uma pericardite. Hospitalizado, atado à cama por causa dos delírios do álcool, ele faz uma escara de 20 cm de diâmetro. Vou ao hospital vê-lo nos dias de visita e conheço assim toda a família. Julião é o medico ortopedista que atende a enfermaria onde está Seu João. Mais uma vez lanço mão da sedução para conseguir o que quero: salvar o pai de Iran. “Arrasto” Dr. Julião para minha casa e faço ele me prometer que vai salvar aquele homem. Até que, 72 dias depois, o pintor volta pra casa numa ambulância, apesar da crise no setor de saúde que quase paralisa o atendimento em toda a rede hospitalar do Rio. Em dezembro, brigo com Iran por causa de 19


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uma furadeira que ele quebra por teimosia usando-a sobre a pedra e nunca mais vejo nenhum deles. Em agosto de 89 o abacateiro do quintal dos fundos esta prestes a desabar sobre o telhado do vizinho e mando chamar Iran para podar a árvore, depois de tentar, sem conseguir, encontrar outro para fazer o serviço. Pouco antes do Natal levo Iran para tratar dos dentes numa clínica que cobra mais barato e ele arranja um serviço aqui perto de casa, mas torna a sumir. Dia 4 de janeiro, a mãe de Iran chega de tarde em minha casa. Faço um café e vamos conversar comendo queijo de Minas. Ela veio ficar na casa da filha mais velha no Rio Comprido com os dois filhos menores, porque está havendo uma guerra de quadrilhas onde eles moram e ela tem medo de ser atacada pelos bandidos. Está procurando os filhos maiores para avisar que não voltem antes de terem notícias de que passou “o tiroteio”. O irmão da namorada de Iran está na cadeia há quatro meses. Maconha. Dona Ivani me conta que Iran trabalhou muito, fez um banheiro, levou água pra caixa com uma mangueira, subindo o morro, instalou uma bomba, depois de cavar um poço para terem água dentro de casa e pintou tudo de novo; lamenta estar passando por esse susto e ainda porque dei­xou víveres lá e teme ser roubada. Iran e o irmão estão aqui embaixo na cidade trabalhando, mas ninguém sabe onde eles estão. Nem eles, nem o Pai, o Índio, o bêbado, o caçador de bandido. A mãe de Iran me conta então toda a vida dela em Lagoa Formosa, cidade de praia a duas horas de Natal, no Rio Grande do Norte. Fala do pai pescador que saltava longe na areia branca, da mãe doceira e rendeira, do primeiro marido de boa família que ela abandonou pra vir pro Rio ganhar dinheiro, porque ele traía ela. Fala de sua luta e de sua formosura quando era moça e de como conheceu Seu João, muito próspero e bem vestido. 20


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Teve cinco filhos dele, mas atualmente passa por muitas dificuldades. Afirma que ele bebe muito, mas respeita a família. Não se envolve com outras mulheres e sempre leva comida pra casa. No final da conversa, sentimos o quanto de amor tem em tudo que falamos. Ela ri e me abraça. Nos despedimos e eu lhe dou um guarda-chuva e uma capinha branca que Iran tinha deixado aí pra trás, no quarto de trás; as coisas que ele leva e traz. Caía uma chuvinha fina, quando ela foi embora e fiquei olhan­do a silhueta delicada sumir na esquina. Nessa época, quando Iran apareceu de novo, era agosto. A janela do quarto da Cléo deixava entrar muita chuva e o assoalho e as paredes estavam manchados. Projetei junto com Iran um pequeno telhadinho para evitar que a chuva continuasse estragando tudo. Quando Iran já estava pintando a janela, de repente apareceu um bando de uns oito ou dez macaquinhos cinzentos, gritando e saltando do abacateiro para o telhado. Fize­ram a maior zueira em torno dele e eu achei mesmo que os bichos tinham vindo ali saudá-lo. Um ancestro?! No mesmo dia, mais tarde, novamente: outro bando de mais de vinte ou trinta passarinhos coloridíssimos, azul, verde, vermelho claro e preto ficou ali rodando em volta da gente, piando alto, fazendo algazarra e passan­do rente às nossas cabeças, a ponto de sentirmos o vento das asas no rosto. Rimos com aquilo e depois ficamos uns minutos em silencio total. Aí o dia con­tinuou. Mas Iran está sumido. Ele some sempre, embrenhando-se nas selvas da cidade, pintando paredes, desobstruindo e consertando encanamentos e estrutu­ras, instalando lâmpadas e chuveiros, recuperando partes arruinadas, desenguiçando telefones, ventiladores, bicicletas, rádios, liquidificadores, máqui­nas de lavar, derrubando ou levantando muros, fazendo ou refazendo assoalhos e telhados; mas por mais que quem quer que seja possa felicitá-lo com a parte melhor, por mais que eu queira dividir com ele a música da minha casa ou a cota de vinho branco geladinho para as refeições dos dias mais quentes, ou chá das cinco no inverno, ainda 21


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que eu possa ler-lhe a sorte com as pedras do I Ching, ele some, como o índio some na mata, foge para a floresta, porque como o índio, ele se sente e se sabe o único responsável por sua vida e a dos seus. Foge, para ir buscar o sustento do clã, que visivelmente ele ama, sem saber que ama. Vai e volta vitorioso, com sua potência inteira, porque é infantil, pleno na sua dor de macho, sua animalesca humanidade, sua “santa” ignorância que o torna cada vez mais capaz. Ele quer saber, porque ele não sabe. Só busca o que precisa. E é esse o sábio: o filho de um índio bêbado, que um dia me perguntou: “Dona Solange, como é que aquela gasolina que se põe dentro dos carros desaparece toda?, todinha assim?” Nunca mais vou poder sentir medo. Da última vez que Iran se separou de mim, aprendi isso pra sempre. Nunca mais vou sentir medo. Terei cuidado. Só aprendi isso quando perdi meu último primeiro amor. Iran. Agora terei só desen­voltura e cuidado. Poucas vezes como hoje voltei a sentir tão forte os perfumes da existência, assegurando minha permanência pelas ruas da cidade onde nasci e das outras cidades onde estive. Agora, quando sinto o cheiro das pequenas fogueiras que os jardineiros do bairro acendem de tardezinha no inverno, meu corpo estala, como uma noz ou um cáctus. Dentro da noz, aquele mínimo cérebro oleoso; dentro do cáctus, uma água verde, viscosa. Meu corpo viajante se instala então, parte por parte, entre as árvores e parte para o desconhecido. Sem medo. Sem nenhum tipo de inquietação. Não vou vê-lo mais, nunca mais vou ver Iran. Se as­sim for, e assim será, não sentirei mais tristeza alguma. Vou escrever esse livro. Sem desarmonia. Isso não causa nada em meus pensamentos. Isso flui. Será preciso talvez, de tempos em tempos, fazermos certos acertos, cortes, interferências, ultrapassamentos, urgências, coisas da fala que aqui estarão desavisadamente, 22


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mas em principio é preciso dizer apenas que o amor só começará quando houver terminado o tempo de amar, quando a chama interminável for se extinguindo. Por isso a história mesmo será sempre diferente dos acontecimentos dentro das pessoas e do amor que as envolve. O amor só é igual a ele mesmo só depois, no futuro, onde jamais estaremos, plenos, sem inquietação alguma, como estou ago­ ra, no futuro esperando Iran. Se ele aparecer, virá como ele mesmo ou diferente, terá os mesmos dentes bonitos, bem formados, mas precisando de tratamento como os milhões de brasileiros, mas terá sempre aquele sorriso privilegiado, sua sinceridade impecável. Não sabemos. Enquanto isso, penso na imortalidade des­sa alegria. Iran, um índio, filho de índio e de mãe meio índia, meio árabe, ambos, pai e mãe, nascidos em Lagoa Formosa, no Rio Grande do Norte, perto de Natal, a cidade mais azul e branca que já vi: uma espécie de Grécia na geografia da minha memória imaginada.

Segunda Incursão ao Passado. Iran derrubou a árvore que ia destruir a casa e eu só falo a verdade. Isso faz três anos. Meus passos pelo quintal de ouriverde luz reproduzem com efeito o ódio, a vergonha, o desejo de vingança, o medo, vindos sabe Deus daonde (?). É uma lembrança que deve desaparecer. Iran, preciso detê-lo, retê-lo em torno de sua própria liberdade que é a minha que ofereço. Pareço triste, torta, morta, mas percebo nas ondas de silêncio o frescor, talvez o mesmo que bate nas asas do condor dos Andes em pleno vôo, ou no broto da planta da alfazema, em algum plantio distante. Os pedaços da árvore que Iran derrubou, porque ia destruir a casa, estão agora espalhados por aí, pintados por mim, como fragmentos de uma cultura indígena 23


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moderna, reminiscência das raízes. Obras de arte? São ao menos testemunha, preservação sem química, ou de uma química que perdeu seu efeito antinatural nas minhas e nas mãos de Iran. A tinta vitaliza a madeira e tudo vira a própria cor. O espírito sem rosto da mata. Apenas cor. Seu João, o pai de Iran, vol­tou para o Hospital. Agora em Teresópolis. Úlcera agora. Vou escrever pouco, mas vou escrever. Vou fazer amor, muito amor aos poucos, mas mais, cada vez mais e mais amor. As árvores são as famílias e é preciso crescer junto com a ale­gria. O ódio, o medo, a vergonha, o desejo de vingança, eu os sinto ainda como deve sentir cada indivíduo da Nação Indígena, diante do quadro social que os católicos impuseram à América. Os “católicos” que a nomearam “AMERICA” e a mataram. Como um selvagem diante de seu mundo arruinado pela “civilização”, como um craó diante de um cristão, não tenho confiança nas pessoas da “minha vida”, tenho que lutar com elas, enfrentá-las com minhas palavras. Os pais de minhas filhas: desentendemo-nos. Falta-lhes, me parece, beleza, leveza, poesia, firmeza. Eles não me conhecem. Tenho confiança nas minhas palavras, nas mi­nhas filhas, e no Iran, “que eu criei”. Tenho confiança no meu amor. Esses dias, Iran construiu o telhadinho sobre a janela do quarto da Cléo, equilibrando-se durante dois dias nos degraus de uma escada de obra estendida na horizontal, sobre um telhado de “vidro”. Um aquariano alado, um semi-pássaro, mantendo-se em qua­se nada. Quem viu isso foi só o jardineiro da vizinha, a vizinha e eu. Ah! Deus também viu Iran trabalhando. Iran também me viu trabalhando. Iran e o Buda, aquele que 24


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falou nas coisas do Zen sobre o trabalho invisível. Mas a nós dois, entrincheirados na desordem das obras na casa, ardendo de amor e fazendo tudo no meio daquele perfume de transformações e sexo, a nós dois, só nós dois vimos. Até que tudo se perdeu... e... viver a perda e quase sempre inadmissível, ainda que o que se esteja perdendo seja a dor, a mentira ou até mesmo a perplexidade. Estou de novo agora no futuro, esperando Iran. Vejo com certo embara­ço as particularidades do meu caráter feminino-arrogante irem se dissolvendo sutilmente, numa espécie de preguiça, mas mesmo isso vai sendo apagado pelos meus gestos cotidianos. Abrir e fechar o registro da água, fazer o café, ou um chá, a comida, as compras, lavar a louça, a roupa, arrumar o quarto que finalmente tem poucos móveis agora e um chão por onde posso andar. Ando melhor no meu quarto. Estou mais livre dentro de casa do que nas ruas, onde fiquei adulta, como todo mundo, um pouco feliz, um tanto contrariada; fui me tornando um tipo “clássico desengonçado”, com meus sapatos escuros de salto baixo para não au­mentar, ainda mais, uma estatura já muito acima da média, roupas de preço accessível e cores fortes, além de um esforço inútil para ser elegante, e a calma, só a calma, profunda, beneficiadora. A calma, tão procurada! E as palavras. Todas elas, as possíveis na boca, na fala e as outras suadas, surdas, impronunciáveis, suavemente desejantes na superfície da pele, ou mergulhadas no abismo da carne, minhas palavras encarnadas, vermelhas, como armas ameaçadas. Iran era um rei. Mas não me lembro mais.

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3ª Incursão ao Passado. Um mundo estático cheio de reminiscências movimenta-se na minha frente, como se eu não estivesse ali e, apesar do cheiro de goiabas que vem da cozinha, nada é de fato real, porque não há testemunhas. Sinto uma tristeza imensa, mas sem a menor importância, Umas tristezas são importantes, outras não. Essa tristeza vem acompanhada de um toque do telefone que não era ninguém. Desligou quando eu disse: “Sim?” E, com apenas isto, desisto de pensar e de sofrer; de pensar no que me causa sofrimento: os amores perdidos. Desligo o fogo. Provo o doce. Reprovo minha solidão, mas não há como me desfazer dela, nem mesmo se eu me tornasse capaz de fazer e receber visitas. Sou anônima, como o tempo ou os momentos da vida, como as gotas que caem de uma grande árvore, depois da tempestade, gotas sem rumo, com um destino certo e imprevisíveis. Gotas feito notas musicais no espelho de minha alma que passeia com Iran nesse deserto suposto por mim que é o mundo dele. Sempre penso em falar sobre isso quando estiver bem velha, ou então depois que meu Pai e minha Mãe houverem morrido, para não escandalizá-los, não fazê-los sofrer, com seu zelo por mim, pela minha “moral” e a de minhas filhas. Mas é amor! É de amor que preciso dar meu testemunho, do amor que tenho por tantas coisas e que me dou conta, apenas por causa de Iran, por causa dos dentes que ele está perdendo, aos 17 anos, porque desde os 10 trabalha para viver, mas nunca pode tratar dos dentes e tampouco sabia que era preciso cuidar para que não apodrecessem com o açúcar que espanta a fome. Iran o menino Rei, o anjo, o santo, o “ignorante”, o Brasil do ano 2000, a Nação Indígena indigente e o meu coração fica rouco de tanta dor, mudo, pesado, transparente, mas vivo, mais vivo que as plantas, os mosquitos, ou 26


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as lembranças do nosso amor tão livre, tão louco e simples e tão ameaçado pelo “bom senso”, ou pela razão adulta, ou ainda pelo próprio gozo, a nós imposto por nós mesmos, como um sabre do mundo masculino que tudo aponta e arruína. Vida, vida nova, vida menina e sinto medo da vida, como se um fantasma inexperiente me puxasse pela mão, em direção a um abismo redondo e macio. Minha vida, minha vida, o que foi? O que tem sido da minha vida? As filhas crescidas, o amor perdido, o tempo resvalando pelas costas do mundo e sempre tudo ao desabrigo. Tudo no frio. Sem fome. Seu João morreu no Dia do Pintor, 18 de agosto, em 1991 e nunca mais Iran e eu conseguimos fazer amor. Depois de três ou quatro dias debaixo de uma pressão terrível por falta de dinheiro e do cinismo da casa do pai de Olívia, aquelas mulheres fingidas de lá e da insistência do primo dele, o viadinho, explodi de raiva e ciúme, isso sem falar na aporrinhação da vizinha que pedia sem parar que Iran fosse ate lá consertar a máquina de lavar. Tudo perdido. O trabalho, o amor, o dinheiro. A vida. Vida perdida. Dor. Iran se foi pra nunca mais. Senti alívio, mas... Uma noite fiquei ven­do, meio no sono, Iran voando do alto de um prédio, com uma capa vermelha de diabo, ou de super-herói. Será que vou saber esquecer? São as perdas que me fazem escrever. Escrevo porque não posso falar. Porque não há quem possa me ouvir. Escrevo porque não sei falar. Escrevo porque? Não quero morrer, não quero deixar de amar. Não quero mais sofrer. Perdão não, não é o caso, mas desculpas, tenho vontade de pedir a Iran, pela minha violência, pela violência do meu amor. Conversamos por telefone. Iran está irredutível. Quer ser santo. Quer que eu seja santa. Amor. Isso é amor. Ele diz e repete. Tenho a minha namorada. (Mentira!). Ele tem é vergonha de minhas filhas. 27


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Acredita que deve ou quer ser agraciado por elas, ou então por alguém da idade dele, mas sou eu que o amo. Como amava meu pai e não sabia. Muito tempo ainda vou ter que esperar. Muito tempo. Parece que Iran quer ser filho ainda, como eu ainda. Está enfurecido, magoado, porque eu o tratei com o objeto do meu gozo e não como o desejo. Iran é o meu desejo. Um menino doce. Sou agora uma mulher ácida, amarga, seca e tenho que cuidar para não ficar dura e feia. Tenho que lutar contra a morte. Como nunca, como sem­pre. E para não parecer ridícula, porque não sou. Eu amo. Só isso. Tenho esse direito, esse dom. Dom maior, maiúsculo, másculo, meu coração. Um músculo. Ah! O coração. A tarde começa passear pelo ar. Fico de pé no meio da sala, ouvindo Cazuza. Faz parte do meu show. A tarde sempre me reconforta, quando fico mais que triste. As tardes me confirmam meu pacto com a morte. Sonhei também que vinham me avisar que Iran morrera numa briga, só não conseguiram me contar como foi. Não sei lembrar. Não sei ver de novo o rosto de Iran olhando para baixo, para as coisas que as mãos dele tocavam; os pincéis, as tintas, as ferramentas, as lixas, as entranhas dos aparelhos que ele consertava, tudo com muito cuidado. Iran tocava os objetos como se fossem vivos; às vezes usava as costas das mãos com a suavidade de quem afasta uma cortina muito leve e tudo se acendia, se restabele­cia como por encanto e tudo se iluminava dentro de mim. Eu tinha medo e Iran dizia que precisava ir embora para casa, pro Norte, pro exército, pra guerra, pro pai, pra morte, pra Deus, pra mãe, para os cunhados, pro primo viado, pro outro patrão, pra irmã, pro irmão, para os irmãos menores, pra tudo. Iran precisava ir embora pra sempre. Só eu não sabia disso. Ele sabia e foi. 28


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Durante os seis primei­ros meses fiquei sabendo que ele continuava trabalhando aqui mesmo na nossa rua, numa casa lá em cima da ladeira. Um dia no meio da chuva apareceu a irmã. Almoçou, pediu roupas fora de uso, falou no telefone com o sogro e foi embora. O irmão, que também estava sempre junto com ele, veio pedir uma capa de chuva, mas eu disse não, não dou na mão de ninguém o que dei ao Iran. Ele, se quiser, que venha buscar. Não veio. Algumas semanas depois a lâmpada da cozinha pifou. Chamei Iran pelo telefone, ele disse que viria, não veio. Passei então de um dia para o outro, sem tristeza. Subi no banquinho, e na banca da pia, fiquei na ponta dos pés sobre o mármore e consertei a lâmpada. Nunca mais pensei nisso, mas a vontade de ver impresso um livro grande, feito o Ulisses, com esse nome Iran, foi tomando corpo. Falava disso com os outros e também porque desde sempre eu soube que Iran não era só ele, era o Brasil do século 21, era o futuro de uma nacionalidade, que deve poder existir como existem “os turcos”, os gregos, os negros, os sérvios, os bêbados, os bárbaros, as grávidas, os pássaros, os loucos, os outros, tudo! Os Yanomamis estão morrendo de malária. Ouvi no radio. Isabela, uma menina de sete anos, é operada às pressas de madrugada, de apendicite; minha mãe, amanhã, (com calma), de prolapso, minha irmã, com sangue na urina. Não menstruo na data prevista. Quarenta e sete anos este mês. A Somália morre de fome. O tufão arrasa Miami. São Francisco treme e desmorona. Los Angeles explode; Nicarágua debaixo d’agua. O mar. Um vulcão.

Outra Incursão ao Passado Três dias... (?) Os sons produzem uma espécie de vertigem dentro da imobilidade. lsso é, entre outras coisas, pensamento, beleza e liberdade. Mas é preciso manter segredo. Não se pode de modo 29


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algum dizer o que produz essa sensação de voar em pleno chão. Uma cegueira iluminada que torna o corpo inteiro uma espécie de despojo. Luzes escuras, volúpia e sossego. Gozo, paixão. Decoro. Nem fome, nem saciedade, um frio morno, um calor fresco. Amor. É assim sentir amor. Conheço um homem belo e forte como uma árvore. Cheio de pudor. Cheiroso feito a terra. Duro. Liso. Limpo. Livre. Fincado no chão. Solto no ar. Leve e firme feito o vento. Inteiro. Um homem tão cansado que nunca tem preguica. Suas dúvidas são silêncios apenas, pensamento ou palavras supreendentes, poucas e claras. É menino ainda, mas já está um pouco velho. É índio e árabe. Iran, melhor Iran. Por conta da existencia dele, vivo, trabalho, aprendo, espero, gover­no meu coração como se fosse uma pérola derretida, no meio de inúmeras outras peças, impossíveis de identificar. Descanso de um cansaço que não tenho e isso causa uma espécie de alívio, de aflição tranquila e duradoura, não estou morren­do porque presto atenção, mas tudo está tão quieto que seria capaz de jurar que o mundo se acabou. A distância e a proximidade das pessoas que eu amo, dia após dia, vai perdendo a importância, mas sei que vou poder sempre reconhecer o desejo, o desejo e a emoção, coisa que um número cada vez maior de pessoas parece que não consegue. Compreender suas emoções, senti-las. “Mondo Cane”. Mas... da alegria não se fala. Alegria fina e serena. Silêncio. Alegria verdadeira, profunda, silenciosa, como os dedos de um homem dentro do sexo de sua mu­lher, limite ultrapassado, corda rompida, linha arrebentada dos significados... Quase trinta anos de diferença entre Iran e eu e a vida pula, pulsa, se expande interminavelmente. De quem será o menino que a namorada de Iran 30


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está esperan­do? Diz ele que dele não é. Mudar de ideia, mudar de vida, mudar de lugar. Mu­dar, nascer. Como se fosse preciso vir ao mundo pela primeira vez. Saber que não é preciso sequer gerar, fecundar, parir, para que alguma coisa absolutamente nova possa nascer. Cresce o meu amor a cada dia. Cada gesto, expressão, movimento ou “ideia” que Iran manifeste toca meu coração como um vento sobre o beiral recoberto pela hera. A haste do vegetal tem firmeza, consistência, o vento tam­bém. O corpo salta então, ultrapassa o limite do próprio corpo e me vejo de novo de volta ao deserto de mim mesma, como se agora eu possuísse o mapa da mina. Ele é belo e veloz como um pássaro feroz, se é que um pássaro pode ser feroz. Morto o Pai, sepultada a dor de não ter mais pai, isso agora se torna visível e grave diante dele e tenho receio de que num processo incontrolável dos nossos inconscientes, meu e dele, venhamos ambos a me colocar no lugar este: o do pai morto, mais que isso, no lugar do falo ausente. É preciso portanto ressus­citar esse poder, é preciso portanto, sim, ensinar de novo Iran a não ter medo e tornar a aprender com ele. Transportar um corpo ao longo da vida é na verdade um ato imaterial. O que somos senão uma vontade momentânea de comer um bife mesmo frio? Depois de um tempo, ficamos no mundo com a sensação de que apenas apertar um botãozinho não vai ser suficiente para colocar em movimento esse veículo monumental – a Existência. Mover, ainda que apenas o desejo, parece impossível e até mesmo arriscado, como se, a partir da partida, tudo se tornasse incontrolável, ate mesmo, e principalmente, a Verdade – sobretudo essa: a de que a verdade é incontrolável. 31


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Às portas da percepção e da loucura, aqui estamos en­tão, eis-nos aqui, diante da verdade, assim; isso assim... é amor. Isso é amor. Chorei, como era de se esperar, quando senti, mais uma vez, minha vida se desmanchar diante da força do corpo de Iran, levemente encostado no mármore do tanque verde, lavando o branco das tintas com vagar e delicadeza. Contornei meu sentimento, minha emoção com cuidado e toquei-lhe a cintura pressionando os dedos bem de leve como se ja estivesse com o sexo dele em minhas mãos, depois soltei-o e disse: “Voce precisa resolver isso, senão nós vamos morrer. Vamos ficar doentes. Eu não posso mais com esse sofrimento. A gente se quer. Muito. É muito forte, mais forte do que nós. Eu prefiro morrer a ter que suportar essa vontade sem poder te amar”. Chorei, vim pra sala, falei mais um pouco e Iran disse: “Então está bem. Não vai chegar ninguém ai?” – Não. O pequeno quarto de serviço parecia iluminado por uma lâmpada marron, tiramos a roupa pela metade; o medo estava ali ainda, mas o desejo era mais forte. Definitivo como a noite, amordaçado como um réu, o amor de Iran me atingiu, entrou pelo corpo dele todo e saiu até chegar em mim. Não suamos, apesar do calor, falei de novo que era forte demais. Não ouvi o que ele pensou; um tempo depois, senti meu coração a salvo, mais uma vez. À tarde Iran disse que não viria mais e foi embora devagar dizendo que parecia que eu não sabia como eram os garotos, que tinha um perto da casa dele “assim assado” e eu, querendo mudar o rumo daquela conversa, disse que ele merecia uns tapas por querer me oferecer alguém para substituí-lo. “Posso levar até dez.”, ele disse. Perguntei: “Você está querendo apanhar?”... Mas não sou eu que hei de bater em você. Eu te amo. Iran foi embora. Viria na sexta-feira. 32


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Não veio. Segunda, o primo viadinho controlador telefonou. “Iran queimou os olhos com a solda.” Édipo Rei, pensei. E mandei o recado pelo primo de que não havia mais nada a fazer aqui. Depois do Natal, Iran veio buscar as ferramentas. Agora vou esperar. Contou que passara o Natal aqui perto, comera rabanadas e não sei o que mais. Eu disse a ele: “Apareça, quando estiver numa boa.” – Eu? numa boa? – É claro! É só você querer. Em algum momento em que eu argumentava que o amor dele era o principal para mim, Iran disse: “A senhora vai voltar a ser o que era.” Assim como quem diz: eu também vou voltar ao que sou, à pobreza de sempre.” Detesto o timbre de voz do Cazuza. Me dá nojo. Me dá medo. Iran tem uma voz de trovão. Os cariocas fazem cocô nas praças, uma praga se alastra: Os camelôs. A escória tentando sobreviver como comerciante. Uma Cafarnaum muito mais podre que a urbe medieval onde se incendiavam bruxas e a peste matava. A cidade fede a merda fresca. Os meninos tomam banho nos “lagos” das praças, onde também se joga lixo. Se há um chafariz, alguém deve pensar: “Maldito chuveiro que joga a água pra cima!” O chafariz da Praça Paris. Todos comem péde-moleque, paçoca de amendoim, balas vagabundas e doces baratos cheios de corante, nos ônibus superlotados que levam uma eternidade para chegar onde se quer ir. Os meninos morrem dormindo nos degraus, entre a Lanchonete e o Banco do Desenvolvimento Econômico. Há tempos não tomo um sorvete. Custa caro(!) A kombi passa vendendo pamonha. O cearense vende cuscuz de tapioca e coco. Fico sonhando em ter um cozinheiro chinês, ou japonês, ou tibetano, ou vietnamita, ou balinês, ou javanês, ou coreano, ou um 33


Claudia Ribeiro

índio brabo, a quem eu ensinaria a fazer comida caseira mineira, ou portuguesa, como a comida da casa de minha mãe. Sem pimenta, sem vinagre, sem veneno, sem corantes, sem picantes. Tem gente que gosta de milho verde com molho inglês! Prefiro trufas! Creme de menta, pão com mel, torradas com manteiga sem sal, creme de cacau com licor de laranja, sardinhas no azeite com louro e sal, mas sinto fome também, porque estou cansada demais dessas trivialidades da vida de quem é mãe. No corpo de Iran no entanto, eu amei o Brasil, o mundo, a vida, a diferença, o absoluto, amei cada um e tudo, amei Botticelli, Zorba o grego, e a onça preta que Iran disse que vinha de noite quando eles moravam no Rio de Ouro, perto da mata, e de manhã viam-se as pegadas dela na poeira em volta da casa. Sem saber, “sem querer”, eu me vestia do veludo negro do roupão de banho, descia as escadas que estalavam sob meus pés descalços e entrava quente na cama de Iran. Iran “dormindo” me amava horas a fio, como um índio muito jovem, seguindo atentamente as pegadas de um Outro índio muito sábio, muito forte e calmo; doce, concentrado em mim, no meu corpo, bem mais claro que o dele, os dois morenos, mas ele vermelho, como certas madeiras cheirosas. O quimono negro de veludo e, dentro dele, a onça preta rosnava e o feria muito mais do que seria suportável. A onça morria e, às vezes, antes de morrerem os dois, Iran ouvia, ela chorava, mas dizia sempre: “eu te amo”. Era verdade. Nesse tempo, a casa tinha muitas coisas: cortinas, lagartixas, plantas, cerâmica, um sótão, grades nas janelas, um poço, lustres, abatjours, peças nem novas nem velhas, coisas da existência, coisas calmas, com alma. Um martelo, dois serrotes, chaves de fenda, pregos, parafusos, cola, verniz, uma furadeira. Mas uma coisa não 34


Uyran

tinha: remédios. Ninguém usava remédio, nem mertiolate, nem esparadrapo. Na nossa casa nunca tinha esparadrapo, nem bandaid. Tinha música e sol. De todos os tipos, na sala e nos quartos. E comida. Sempre tinha comida em casa. Abacate e tangerina, plantados, uma goiabeira e um pé de jaca. O limoeiro morreu logo, pouco depois dos primeiros anos. Já era muito antigo quando fomos morar nessa casa. O pé de mamão também não vingou, mas os bichos não desapareceram. Passarinhos, pernilongos, gatos, cachorros dos vizinhos, os macaquinhos que gritavam, a coruja que piava de noite no verão, pulgas nunca vi, os gambás, algumas vezes uns camundongos que logo tratávamos de eliminar, formigas, camaleões, sapos, pererecas e cobras às vezes, minhocas, aranhas, poucas moscas, marimbondos, mariposas, abelhas e vespas, lagartinhas cabeludas e besouros dourados. Além disso, os esquilos, um tucano uma vez, e um gaviãozinho de asa machucada, sabiás, bem-te-vis, sanhaços e a coruja de noite no verão que piava fazendo o som de um colar de contas grandes rolando sobre a pedra. Os sanhaços azuis, os pardais, as rolinhas, um passarinho preto e branco, beija-flor de todas as cores e ainda um punhado de passarinhos de quatro cores. Azul, verde, verme1ho e preto. Havia, assim como que esquecido, um facão enorme espetado num toco de árvore, umas facas espalhadas pelo tanque e no jardim, um ancinho, a machadinha e uma enxada, a tesoura de podar a hera, querosene, aguarrás, cola de madeira, água quente e sabonete. Camas limpas, uma rede branca e mais nada, além dessa vontade constante de querer desorganizar as coisas, mas que a vida não deixou. Por isso talvez desorganizei a sintaxe, o pensamento, minha trajetória dentro dos afetos, tirei a bússola dos sentimentos para poder voar, como se um balão me arrastasse para longe: mas sabendo que eu não abriria a mão que me prendia à corda. Um vôo sem queda, em direção ao alto mar, pra sempre; vendo as coisas se moverem ora como se eu nada pudesse, ora como se elas se movessem pela minha vontade. Sempre vi tudo lá 35


Claudia Ribeiro

de longe, lá de cima. Estava muito só. Fui me tornando alguém que não consegue deixar de dizer exatamente aquilo que as pessoas não querem ouvir. Fui ficando mais só, distante até mesmo de uma provável curiosidade. Quase em paz, se meu isolamento não me envergonhasse. Pode ser que Iran apareça. É por isso, para isso, que estamos aqui, lendo e escrevendo esse livro, para conhecer melhor o amor, para amar: sem jogo, sem teatro, sem política, sem histeria, sem promessas para reconhecer o amor como ele é, irreconhecível em si, mas reconhecível nos fatos e atos que engendra, com sua cota de exatidão, sua matemática e sua imponderabilidade, sua materialidade, o elemento mais letal no processo das transformações. A mola semântica. O passeio, o passe, a aparição, enquanto a escrita tenta inexoravelmente tornar oculto o significante. Escreve-se para tomar a verdade irreconhecível. Escreve-se para que a verdade do ser inapreensível surja, ou seja, escrever é construir o desejo. Escreve-se o desejo de desejo. Escreve-se aqui “A CONSTRUÇÃO DO DESEJO”. Um projeto de ARTE. Não sem antes identificá-la, esta construção, com tudo que mais se desfaz no grupo das grandes sensações dos seres humanos: o gozo no feminino. Flutuação dos nervos. Iran, fruto de um desejo, o desejo em flor, isso que ao mesmo tempo cria e destrói a alma. Desgoverna o espírito. Calma comprometedora. A boca, a palavra, o beijo. O menino anjo que um dia, sem que ninguém o chamasse, veio e tornou minha vida um poço de perfumes, uma ausência e uma anunciação, um copo cheio de sede, diante da sede, um seio, uma metade toda. Diante do Outro, eu mesma, ele, nos dois, um desejo inteiro.

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