A Concepção Física do Mundo Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Conselho Editorial da Editora Livraria da Física Amílcar Pinto Martins – Universidade Aberta de Portugal Arthur Belford Powell – Rutgers University, Newark, USA Carlos Aldemir Farias da Silva – Universidade Federal do Pará Emmánuel Lizcano Fernandes – UNED, Madri Iran Abreu Mendes – Universidade Federal do Pará José D’Assunção Barros – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Luis Radford – Universidade Laurentienne, Canadá Manoel de Campos Almeida – Pontifícia Universidade Católica do Paraná Maria Aparecida Viggiani Bicudo – Universidade Estadual Paulista - UNESP/Rio Claro Maria da Conceição Xavier de Almeida – Universidade Federal do Rio Grande do Norte Maria do Socorro de Sousa – Universidade Federal do Ceará Maria Luisa Oliveras – Universidade de Granada, Espanha Maria Marly de Oliveira – Universidade Federal Rural de Pernambuco Raquel Gonçalves-Maia – Universidade de Lisboa Teresa Vergani – Universidade Aberta de Portugal Ubiratan D’Ambrosio – Universidade Anhanguera, São Paulo
EDUARDO SIMÕES
A Concepção Física do Mundo Como os seres humanos criam o universo em que vivem
2021
Copyright © 2021 Editora Livraria da Física 1ª Edição Direção editorial: José Roberto Marinho Capa: Fabrício Ribeiro Projeto gráfico e diagramação: Fabrício Ribeiro
Edição revisada segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Dados Internacionais de Catalogação na publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Simões, Eduardo A concepção física do mundo : como os seres humanos criam o universo em que vivem / Eduardo Simões. – São Paulo: Livraria da Física, 2021. Bibliografia. ISBN 978-65-5563-035-0 1. Atomismo (Filosofia) - História 2. Ciência - História 3. Metafísica 4. Teoria atômica - História I. Título.
20-49776
CDD-501 Índices para catálogo sistemático: 1. Filosofia da ciência 501 Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427
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Para Alana e Dafne, minhas queridas filhas; Silvana, minha esposa; Maria das Graças, minha mãe.
“Quem fez a experiência de pensar em outro domínio sobrepuja sempre aquele que não pensa de modo algum ou muito pouco” Albert Einstein, Como vejo o mundo.
SUMÁRIO
Prefácio...................................................................................................................13 Apresentação..........................................................................................................25 CAPÍTULO I O ATOMISMO METAFÍSICO DA ANTIGUIDADE GREGA...................29 1.1 A (meta)física grega e a fabricação da realidade.................................................30 CAPÍTULO II O ATOMISMO EPICURISTA DE PIERRE GASSENDI CONTRA O SUBSTANCIALISMO ARISTOTÉLICO E A METAFÍSICA DE RENÉ DESCARTES.......................................................................................................47 2.1 Gassendi contra a autoridade da filosofia aristotélica-escolástica......................48 2.2 Gassendi contra a metafísica de Descartes........................................................53 2.3 O atomismo epicurista de Pierre Gassendi........................................................60 CAPÍTULO III O ATOMISMO HERÉTICO DE GALILEU GALILEI.................................71 3.1 Galileu herético?................................................................................................76 CAPÍTULO IV O ÁTOMO, O ÉTER E AS EXPLICAÇÕES METAFÍSICAS DA MECÂNICA NA IDADE MODERNA.............................................................87 4.1 O dualismo metafísico de Descartes e a resposta ao problema das qualidades secundárias..............................................................................................................88 4.2 A metafísica de Boyle como resposta aos problemas da ciência moderna..........93
CAPÍTULO V NEWTON METAFÍSICO................................................................................101 5.1 Os componentes metafísicos da física newtoniana..........................................102 CAPÍTULO VI ELETROMAGNETISMO: PARA ALÉM DAS LEIS DE NEWTON........113 6.1 O eletromagnetismo e sua história..................................................................114 CAPÍTULO VII HEINRICH HERTZ: MECÂNICA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA............125 7.1 A mecânica de Hertz: considerações preliminares...........................................127 7.2 A mecânica de Hertz.......................................................................................133 CAPÍTULO VIII ANTECEDENTES REALÍSTICOS DO ATOMISMO PRÉ-QUÂNTICO....147 8.1 Precedentes realistas nas teorias atômicas anteriores ao século XX no campo da Química................................................................................................................151 8.2 Primeiros passos na descoberta do comportamento dos átomos: a radiação ionizante................................................................................................................158 8.3 Planck, Einstein e a teoria dos Quanta de energia e de luz..............................161 8.4 O modelo atômico de Rutherford...................................................................164 8.5 O átomo de Niels Bohr e a explicação da estabilidade dos elétrons.................166 CAPÍTULO IX O ANTIRREALISMO NA AURORA DA MECÂNICA QUÂNTICA.......173 9.1 A dualidade onda-partícula.............................................................................176 9.2 A mecânica matricial e o princípio da incerteza de W. Heisenberg.................180 9.3 E. Schrödinger: função e colapso de ondas......................................................188 9.4 A Interpretação de complementaridade...........................................................195
CAPÍTULO X A QUEBRA DA MONOCRACIA DA INTERPRETAÇÃO DE COPENHAGUE................................................................................................209 10.1 O debate Einstein-Bohr sobre os fundamentos da mecânica quântica..........210 10.2 David Bohm: realismo e não-localidade na mecânica quântica.....................222 10.3 A desigualdade de John Bell..........................................................................226 10.4 O gato de Schrödinger..................................................................................229 10.5 Hugh Everett III e a interpretação dos estados relativos...............................233 CAPÍTULO XI O MISTICISMO QUÂNTICO COMO RADICALIZAÇÃO DE COMO OS SERES HUMANOS CRIAM O UNIVERSO EM QUE VIVEM..................247 11.1 O misticismo quântico...................................................................................248
PREFÁCIO
A
despeito das diferentes abordagens epistemológicas e da diversidade de respostas quanto à ontologia das entidades físicas mais básicas, os físicos filósofos, como Einstein, Heisenberg e Schrödinger, concordavam em relação às origens gregas da ciência moderna. Einstein e Infeld salientaram que a atitude científica fundamental, o núcleo epistemológico das ciências físicas, da filosofia natural dos antigos gregos à física moderna de seu tempo, consistia em buscar reduzir a pluralidade, multiplicidade e complexidade dos fenômenos naturais aparentes a causas únicas, simples e inteligíveis. Heisenberg pensava que a dedicação à física nuclear exigia o estudo da história do átomo, remontando à Grécia Antiga, e Schrödinger concebia que a teoria quântica começara há 24 séculos, com a primeira teoria discreta da matéria, entre os atomistas. A matéria seria descontínua e poderia ser finitamente subdividida até alcançarmos unidades básicas sem estrutura interna. Pode nos parecer um continuísmo exagerado afirmar que a física de partículas é o desdobramento contemporâneo de um “programa” de investigação tão antigo. Mas nos parece inegável que esse ramo atual da pesquisa básica busca, através dos mais avançados recursos experimentais, contribuir para o aumento de nossa compreensão acerca de grandes questões, que são filosóficas, tanto por sua história quanto por sua natureza. Se, conforme Heisenberg, quem desejar compreender os mais atuais desenvolvimentos físicos acerca dos constituintes últimos da matéria deverá estudar a rica história do conceito filosófico de átomo, então, com o lançamento desta obra do professor Eduardo Simões, o público brasileiro ganhará valioso material para tal empreendimento. Como já afirmamos, além de apontar as raízes gregas do átomo, Simões vai além, e demonstra a presença de inúmeras outras entidades inobserváveis postuladas em diversos períodos da História da Física. O presente livro não é uma “História do Atomismo” ou da matéria, nem uma discussão filosófica acerca do realismo de entidades ao longo do tempo. Ele engloba tais tópicos, mas me parece, sobretudo, uma discussão filosófica e histórica acerca do papel da criação racional de entidades metafísicas (com finalidades de completude
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lógica de sistemas de física teórica), na história da ciência. Em palavras mais simples, o presente livro parece ser uma reflexão sobre como os seres humanos criam o universo em que habitam. Não no sentido místico espetacular, mas no sentido epistemológico mais sutil. O tecido do espaço-tempo sobre o qual nossos corpos se movimentam foi confeccionado nos teares da razão. Não porque a observação consciente crie, em sentido estrito, a realidade física, mas porque tudo o que é palavra, número, signo, símbolo e significado é obra de criadores incansáveis. Preciso destacar que, das muitas coisas que gostei no texto, uma me chamou a atenção com tamanha vivacidade logo na apresentação. Trata-se dessa elevada beleza de propósito, com ares de poesia, que o autor escreve sua obra. A ideia de que a investigação das origens e dos desdobramentos do conceito de matéria, antes de representar um tecnicismo no bojo de uma cultura de especialistas, é um modo de nos fazer pensar sobre o nosso lugar no universo remeteu-me à resposta que Schrödinger oferece para a questão do valor da ciência. O que torna a ciência uma parte fulcral da cultura humana, o que faz dela um ideal de vida, uma forma de encarar o nosso papel no grande drama cósmico, diz Schrödinger, não é sua dimensão utilitária, mas seu espírito filosófico. A ciência participa da busca por responder uma questão metafísica fundamental: “Quem somos nós?”. Que essa seja uma das premissas do presente livro é algo significativo, que o reveste de um sentido pedagógico, e mesmo existencial, da mais alta importância, sobretudo nos tempos utilitaristas em que vivemos. Os leitores, absorvendo esse sentido, entrarão em contato não somente com questões de epistemologia e ontologia das ciências físicas, mas, o que nos parece ainda mais importante, com uma determinada concepção de ciência que nos é muito cara, e que foi nutrida por grandes pensadores, como Planck, Einstein e Schrödinger, por exemplo. Uma concepção não utilitária de ciência, na qual a metafísica exerce um papel fundamental na constituição de pressupostos, na elaboração dos fundamentos conceituais, na postulação de entidades físicas. Em tal concepção de ciência, há espaço não somente para a metafísica, mas também para outros ramos da tradição filosófica, como a estética e a axiologia. É assim que critérios lógicos e estéticos, como simplicidade, economia, concisão, elegância e beleza desempenham funções epistêmicas na física teórica, e que valores, ou princípios axiológicos, como busca da verdade, honestidade, autocrítica e natureza pública, podem nortear o mundo da pesquisa,
Prefácio
como os contornos de um horizonte utópico para o qual devemos sempre nos encaminhar, e para o qual devemos buscar voltar a cada novo desafio. Não temos aqui a intenção de fazer uma resenha do livro que o leitor tem em mãos. Isso retiraria dele o prazer de descobrir por si o ineditismo e a originalidade do texto. Contudo, das muitas características gerais da obra de Eduardo Simões, algumas das quais já elencamos, cabe enfatizar uma. O presente texto nos mostra como a concepção física do mundo, como o próprio termo “concepção” deve sugerir, é obra do engenho, da imaginação, para nos utilizar das palavras de Einstein, do “pensamento puro” que concebe o real, postulando, por necessidade lógica, a existência de entidades. As entidades assim assumidas, como os átomos, não são criações arbitrárias e triviais, mas peças sem as quais o quebra-cabeça do sistema, a consistência lógica da teoria, não se completaria. A necessidade lógica que movia a física dos primeiros filósofos é da mesma natureza daquela da moderna física teórica: para que o templo da teoria seja concluído sem lacunas, com consistência lógica, beleza, elegância e harmonia, é preciso ir além do que os sentidos podem nos informar. É preciso criar, conceber, imaginar, enfim, postular entidades inobserváveis, entidades teóricas puramente abstratas. Desde os gregos, os physikós trataram de elaborar suas imagens da natureza se valendo de tal recurso. Como Simões nos mostra, isso alterou todo o curso do pensamento ocidental subsequente. Parece que aqui, então, já dispomos de ao menos duas características gerais que, a despeito de todas as rupturas e peculiaridades de cada época que possam ser invocadas por historiadores descontinuístas, são traços do pensamento filosófico antigo que foram herdados pelos que vieram depois. Primeiro, a busca por unidade, ordem e harmonia, que se resume na tentativa de reduzir a diversidade de fenômenos múltiplos e complexos a causas naturais únicas e simples. Segundo, a atitude teorética, isto é, a criação de uma concepção física do mundo sob a forma de um sistema lógico dotado de conceitos fundamentais, dentre os quais, as entidades inobserváveis, como os átomos dos antigos e os quarks dos contemporâneos. Esses dois traços se completam, como que formando as “regras do jogo”. Por meio deles, alguns pressupostos são admitidos e postulados são assumidos. A natureza deve ser ordenada e dotada de unidade, mas não se espera que essa imagem do mundo seja passivamente descoberta nem tampouco sensivelmente
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observada. Cabe à razão concebê-la, de modo ativo. Contrariamente ao que uma compreensão etimológica da palavra poderia nos sugerir, os teóricos não simplesmente contemplam a natureza, não, ao menos, sem antes fazê-la vir a ser, como suas obras. As teorias, tal como grandes construções, não se limitam a refletir a realidade, como espelhos. Antes, o que nos exige outras metáforas, elas projetam a realidade sob uma tela branca, elas representam o real, tal como a criação dos pintores. Que a representação pictórica e a realidade se aproximem é o desejo, o ideal. Mas os teóricos não sabem fazer espelhos que simplesmente captem o real. Em sua busca pela unidade física do mundo, eles devem compor a imagem capaz de expressar a harmonia desejada. O texto de Simões nos faz perceber essa faceta do pensamento filosófico desde a antiguidade, ajudando-nos a entender o quanto ativa, inventiva e criativa é a atividade de um teórico da natureza. Quando pisamos no solo das ciências – e no nosso caso, especificamente da física –, basta ter olhos educados para saber reconhecer que há metafísica por toda parte. O livro de Eduardo Simões tem o mérito de nos mostrar que a física, que não se resume a contemplar o real, mas a construí-lo, se utiliza de pedras criadas e lapidadas pela razão pura: o átomo, o espaço absoluto, o éter, os campos, os quantas, e tantas outras. Muitas das construções assim edificadas nascem no terreno puramente formal da intelecção, e se dirigem às alturas das mais elevadas abstrações, sem jamais tocar a outra margem do rio, sem nunca estabelecer uma conexão com o mundo da experiência. Outras construções, contudo, assumem a forma de pontes, e não de torres, e estabelecem correspondências mais ou menos consistentes entre o mundo das ideias e o mundo dos fatos. Não duvidaria, no entanto, se alguém me dissesse que também há pontes que se constroem de lá para cá, ou simultaneamente de ambos os lados, e que em algum momento se encontram acima de águas revoltas. Esses criadores e construtores, que são os teóricos, mas também os experimentais, independentemente do quanto estejam cientes disso, cultivam crenças metafísicas, e seus trabalhos contribuem para a constante renovação da questão fundamental acerca da natureza da realidade. Qualquer entidade física postulada e assumida como real – sobretudo nos períodos em que as bases empíricas a favor de sua existência são escassas ou mesmo inexistentes – revela a presença de um programa metafísico realista, assim como qualquer entidade
Prefácio
hipotética postulada e assumida estritamente como um instrumento matemático, uma construção intelectual, uma ferramenta de cálculo, será agente de uma metafísica antirrealista de algum tipo. Até mesmo o positivismo em sua voraz fé antimetafísica, na medida em que pretende deliberar sobre o que podemos e não podemos falar acerca da natureza das coisas, acaba por reforçar a inevitabilidade da metafísica. O presente livro de Eduardo Simões tem mais um mérito, o de demonstrar, por meio de inúmeros exemplos históricos, que a inevitabilidade da metafísica deve ser tomada sem juízo de valor. Isto é, do fato de que há metafísica, não se segue que seja boa, frutífera e logicamente necessária. Para tomar termos – embora não seus sentidos – emprestados de Lakatos, poderíamos dizer que há programas metafísicos degenerativos e construtivos. Os construtivos, bem já os citamos em diversos exemplos, se revestem de necessidade lógica, como as pedras fundamentais que reivindicam, garantem ou asseguram a completude de um sistema: dos átomos de Demócrito, passando pelos campos de Maxwell ao quantum de Planck. Em que “lugar” poderia Newton construir o magnífico templo da física clássica, senão no espaço absoluto? Por onde as ondas gravitacionais se propagariam se Einstein não lhes tivesse concebido como palco a métrica do espaço-tempo? Os programas metafísicos degenerativos, por sua vez, poderiam ameaçar a própria consistência, a credibilidade e a prosperidade da ciência. Talvez boa parte do misticismo quântico, analisado aqui por Simões, baseada em doutrinas metafísicas exóticas, possua uma ação corrosiva para a pesquisa científica, contaminando seus bastidores com confusão, minando as bases da credibilidade pública da ciência e confundindo os leigos quanto aos reais problemas e debates científicos. Ainda assim, não seria sensato considerarmos tudo o que advém do misticismo quântico como desprovido de interesse. O misticismo não deve ser simploriamente combatido, com postura cientificista, mas entendido, compreendido, analisado tanto em sentido histórico e sociológico quanto epistemológico. É o que Simões realiza na última parte da obra. Sua problematização da filosofia da mecânica quântica nos presta um importante serviço, oferecendo-nos a oportunidade de refletirmos sobre as respostas científicas mais recentes para uma das questões metafísicas mais antigas: Qual é a natureza última da realidade? O tratamento que Eduardo Simões
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dá a diversos problemas de mecânica quântica (MQ) nos apresenta às tensões entre múltiplas formas de realismo e antirrealismo na física contemporânea, e levanta questões inquietantes, algumas gerais, como “Quais as bases metafísicas das muitas interpretações da MQ?” e outras mais específicas, como “Qual a natureza da função de onda?” e “O que provoca o seu colapso?” – se há algum colapso. Embora possamos defender abordagens diferentes no que diz respeito ao debate entre realismo e antirrealismo em filosofia da mecânica quântica, devo reconhecer que o presente livro me parece não somente instrutivo como provocativo, podendo nos proporcionar ótimos momentos de pesquisa, reflexão, diálogo e debate. Alguém poderia argumentar que, para aqueles que desejam compreender a filosofia da mecânica quântica, a que se dedica o autor nos capítulos finais do livro, a primeira parte, que empreende uma reflexão epistemológica sobre o problema da constituição básica e da natureza da matéria, começando pelos antigos gregos, como Leucipo, Demócrito e Epicuro, passando pelos latinos, como Lucrécio, até chegar aos filósofos naturais da Europa, como Galileu, Newton, Gassendi e Descartes, compreende uma discussão menos atual e interessante. Pensamos de modo diverso. Muitos dos físicos filósofos pioneiros da mecânica quântica recorreram aos gregos, enaltecendo sua vitalidade e atualidade. Quando Eduardo Simões faz o mesmo, ele cria o alicerce histórico e filosófico necessário para que possamos entender o estado da arte no que diz respeito às questões filosóficas que perpassam a mecânica quântica. Além disso, procurando me desvencilhar de qualquer forma de presentismo ou anacronismo, e reconhecendo as inúmeras peculiaridades dos estilos de pensamento de outras épocas e sociedades, confesso que estou entre aqueles que admiram a atualidade dos gregos. “Qual é a natureza do nosso universo e do que ele é feito?”. Essa questão imediatamente nos remete ao estilo de pensamento e ao tipo de investigação racional dos primeiros cosmólogos gregos, cujo objetivo intelectual era elaborar uma cosmovisão racional que unificasse e ordenasse a natureza, acomodando os eventos, ou “coisas naturais” (τὰ φυσικά), ao mesmo quadro teórico, fazendo todo o turbilhão multifacetado de fenômenos observáveis provir de uma única causa puramente intelectiva e, assim, inobservável. Se a filosofia nasce como física e cosmologia, estas, desde sua aurora, se fundam em princípios metafísicos.
Prefácio
Os physikós (φυσικός)1, aqueles pensadores originários que tomaram a physis por objeto, conhecidos posteriormente como filósofos pré-socráticos, inauguraram um estilo de pensamento e colocaram questões fundamentais, dentre as quais aquelas que perguntam pelos princípios que organizam a realidade e pela constituição fundamental de todas as coisas. Tais questões permanecem tão atuais que são as primeiras coisas que lemos ao acessarmos a página oficial do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares, que abriga o Grande Colisor de Hádrons, o LHC; What is the nature of our universe? What is the made of ?. O texto de apresentação continua afirmando que o que move os cientistas de todo o mundo na pesquisa básica em física de partículas é a busca por respostas para tais questões fundamentais. Questões que, como vimos, foram formuladas pelos gregos antigos. De certo modo, uma das características das questões fundamentais é sua perenidade. As respostas podem ser provisórias, sofrer revés, modificarem-se radicalmente, mas as perguntas permanecem atuais. A maneira como o CERN se apresenta ao mundo não deve ser encarada de modo trivial, tampouco como mera coincidência ou marketing científico. De fato, ao acelerar feixes com 1011 prótons a velocidades relativísticas, obtendo em média 30 colisões próton-próton a cada 25 nano-segundos em experimentos como o ATLAS, o que os físicos de partículas pretendem, valendo-se das mais altas energias que já fomos capazes de controlar em colisão de partículas, é mergulhar um pouco mais fundo na estrutura fundamental da matéria a fim de entender de que todas as coisas são feitas. Os physikós gregos desejavam o mesmo, mas valiam-se, àquela altura, do pensamento puro, de conjecturas audazes, e dos recursos parcos da experiência imediata. Demócrito poderia observar o movimento desordenado de partículas em suspensão, como grânulos de poeira expostos a um feixe de luz, algo imaginativamente próximo ao movimento browniano observado muitos séculos depois e, por analogia, poderia conjecturar que toda a matéria era composta por corpúsculos indestrutíveis e indivisíveis, para os quais cabia perfeitamente o nome de átomos. Parece-nos exagerada, no entanto, qualquer tentativa de supervalorizar o papel dos sentidos na elaboração do conceito de átomo por 1
No livro B (terceiro) da Metafísica, Aristóteles se refere aos φύσεως, como Empédocles, que buscavam reduzir a realidade à unidade inteligível. Na tradução de Edson Bini (2012) pela Edipro da passagem (1001a1 [10]) do Livro Três, o termo escolhido em língua portuguesa é físicos, ao passo que Reale (2002), pela Edições Loyola, optara anteriormente por naturalistas para traduzir o mesmo termo. Bini, em nota, utiliza filósofos da natureza como equivalente a físicos.
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Leucipo e Demócrito, como nos demonstra Eduardo Simões na presente obra. O pensamento puro, ao que tudo indica, exerceu o protagonismo nesse caso. Para Heisenberg, é justamente essa a grande diferença entre a física dos filósofos antigos e a filosofia dos físicos modernos: o experimento exerce, para os últimos, um papel desconhecido pelos primeiros. Einstein, por sua vez, concordava com os antigos quanto à potência do pensamento puro em desvelar os segredos da natureza. Se a relação entre razão e experiência é o que demarca a diferença entre os filósofos antigos e os físicos modernos, então a física teórica da aurora do século XX se encarregaria de nos mostrar, na concepção de Einstein, que estávamos mais próximos dos antigos do que poderíamos considerar costumeiramente. Mais de 2300 anos depois, os trabalhos de Einstein, de 1905, sobretudo dois artigos publicados na Annalen der Physik, a versão reduzida de sua “dissertação” de doutorado, Uma nova determinação das dimensões moleculares, e o artigo intitulado Sobre o movimento de pequenas partículas em suspensão dentro de líquidos em repouso, tal como exigido pela teoria cinético-molecular do calor não somente assumiram, como reforçaram, o realismo de entidades acerca da existência física objetiva dos átomos, tal como antes fizeram Maxwell e Boltzmann, tendo sido duramente combatidos por positivistas como Mach, que, ao conceber o átomo como uma entidade “meramente” teórica, encarava-o como um instrumento de cálculo, uma ferramenta de trabalho, destituído de realidade física. A existência física do átomo, segundo Mach, deveria ser expurgada da ciência como uma ideia metafísica. Einstein, por sua vez, que assim como Planck advogava que não é possível fazer ciência sem metafísica, permaneceu sendo fiel à concepção de que as partículas elementares, os blocos de construção de toda matéria, eram reais, e só mais tarde substituiu, em sua cosmovisão, a ideia de partícula pela de campo. A estrutura fundamental da matéria deveria ser buscada por uma teoria de campos. Esse abandono de uma perspectiva corpularista não foi uma exclusividade de Einstein. Heisenberg, assumindo ao máximo o programa pitagórico-platônico de matematização da física e geometrização da natureza, postulou que as partículas elementares de matéria eram produtos de princípios formais de simetrias, isto é, expressões físicas de relações matemáticas puras, ao passo que Schrödinger pontuou o quanto a mecânica quântica havia nos afastado da noção ordinária de matéria, introduzindo-nos em uma nova concepção
Prefácio
física do mundo, em que as partículas de matéria são “criações temporárias” em uma estrutura mais vasta formada por um “campo de ondas”. O século XX foi marcado por diversos episódios que protagonizaram debates acerca da natureza da matéria e da realidade física de entidades inobserváveis. Advogando que beleza e simetria devem ser propriedades fundamentais de teorias verdadeiras, Dirac previu a existência dos pósitrons, posteriormente observados. Décadas depois, Murray-Gelmann apresentou os quarks à física de partículas. As novas entidades, consideradas como ideias elegantes por Gell-Mann, não passavam, em seu pensamento, de entidades teóricas, ideais, embora não no sentido platônico strictu sensu. Foi preciso que as evidências se acumulassem a favor da existência física objetiva dos quarks para que o próprio Gell-Mann reconhecesse que a livre e engenhosa criação de sua razão pura, que postulara a existência daquelas entidades com o intuito formal de dar mais um passo na direção da completude lógica do modelo-padrão, correspondia a partículas reais. Na era dos colisores de partículas, diversas outras “ascensões ontológicas” foram testemunhadas. Higgs previu com antecedência de décadas o bóson, que só foi observado muito recentemente a custo dos mais sofisticados e potentes experimentos já realizados em faixas de energia altíssimas. O que era uma entidade hipotética passou a integrar o hall das entidades físicas reais. Mas historicamente os realistas não esperam pela confirmação experimental da existência de uma entidade. Eles assumem-na, geralmente motivados pelos pressupostos metafísicos de unidade e ordenamento do real, e pelos ideais filosóficos de completude e simplicidade lógica das teorias. Assim Demócrito assumiu a existência dos átomos, e séculos depois, também Galileu, Boltzmann, Einstein e tantos outros; Newton assumiu a existência do espaço e do tempo absolutos; Boyle, a do Éter; Faraday e Maxwell a do campo eletromagnético; e hoje, os teóricos das cordas postulam entidades incrivelmente menores do que nossas partículas elementares do modelo-padrão, enroladas em espaços multidimensionais que, na escala da natureza, são as menores estruturas do mundo. Defensores da gravitação quântica em loop, pensando a constante de Planck como a unidade mínima indivisível de espaço, identificam-na como o quanta do espaço-tempo, cosmólogos assumem a existência de matéria e energia escura a fim de solucionarem o problema da estrutura e da expansão do universo e adeptos do modelo-padrão de cosmologia,
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proponentes do Big Bang e de outros modelos cosmológicos singulares tratam como uma realidade o maior inobservável de todos: a singularidade. A singularidade, conforme críticos do modelo-padrão e defensores de universos eternos ou universos cíclicos não singulares, demarcaria o fim da ciência, por ser inobservável em si. Isto é, seu status de entidade inobservável não seria provisório. Sua “inobservabilidade” seria intrínseca, não decorrendo de qualquer limitação metodológica ou tecnológica. A singularidade é um conceito matemático que representa um ponto de raio nulo que concentraria todo espaço-tempo e toda massa-energia que hoje observamos no universo em larga escala. O Big Bang, longe do que o nome sugere, corresponderia aos eventos que se sucedem após a quebra da singularidade, com o subsequente início da inflação de todo o espaço-tempo e massa-energia resultantes, e não a nenhuma explosão – na singularidade não pode haver explosão, pois não há “onde”, “quando” e nem “o que” explodir. Basear a cosmologia na singularidade seria fundar a ciência sobre um inobservável extremo e inexorável? Em algo que é inobservável por sua própria natureza? O “Debate de Munich”, envolvendo nomes como George Ellis, Sean Carrol e Richard Dawid, tocou na raiz do problema. A base empírica e a confirmação experimental são critérios inegociáveis de cientificidade e verdade, como argumenta Ellis, ou teorias como as teorias de cordas e supercordas, que postulam entidades intrinsecamente inobserváveis, podem ser não somente científicas, como consideradas verdadeiras, a partir de critérios exclusivamente teóricos, epistemológicos, lógicos e estéticos, como a (suposta) capacidade da teoria em unificar a relatividade geral e a mecânica quântica, além de sua consistência lógica e beleza matemática? Se tivéssemos que enumerar todas as questões filosóficas que o livro de Eduardo Simões levanta, sem dúvida padeceríamos de tarefa com elevado grau de dificuldade. Não se trata de fazer um inventário, de escrever uma lista. O leitor terá em suas mãos dezenas de páginas cheias de análises detalhadas sobre a vida e a obra de muitos pensadores, abarcando vários períodos históricos, passando por muitas teses filosóficas e teorias científicas. Em certas passagens, a competência com que o autor aborda questões muito específicas nos faz pensar que o livro fora escrito por um físico, outras nos convencem de que é obra de historiador, também vemos no texto a mente e as mãos de um epistemólogo. É, portanto, obra plural, cheia de uma expertise multidisciplinar.
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Prefácio
Como não vamos pontuar uma a uma as questões epistemológicas, lógicas, científicas e históricas que o livro introduz, devemos, para finalizar e concluir esse prefácio, ao menos destacar os principais filamentos da tessitura que perpassa e sustenta a obra, recapitulando o que já dissemos anteriormente. Trata-se de um livro que aborda filosoficamente como as questões acerca dos constituintes básicos de todas as coisas e da estrutura fundamental da matéria foram tratadas em diversos momentos históricos, da antiguidade grega à física atual. No entanto, tal discussão se revela compreendida por outra, não somente mais ampla, como também mais profunda, que é a da natureza filosófica da ciência enquanto atividade de criação. A criação do conceito de átomo é a porta de entrada para esse universo mais vasto. Em última análise, tal como a compreendo, a obra de Eduardo Simões trata da relação entre logos e cosmos, não é sobre o átomo, o éter, campos ou funções de onda, mas sobre seres inteligentes que criam a realidade. Seres que inventam linguagens, sistemas simbólicos, conceitos e, a partir deles, escrevem o infindável livro da natureza. Vinícius Carvalho da Silva – UFMS
APRESENTAÇÃO
O
livro que ora se apresenta com o título A Concepção Física do Mundo nasceu do meu desejo em ver reunidos textos por mim utilizados, semestre a semestre, em minhas aulas de filosofia da ciência. Trata-se de uma coletânea de artigos e capítulo de livro por mim publicados – além de uma série de textos inéditos – e que tem como viés a análise histórica e filosófica do desenvolvimento do atomismo, do corpuscularismo, da filosofia mecânica e da física de partículas, além de abrigar discussões sobre entidades metafísicas na história da física, como é o caso do espaço absoluto, das massas ocultas e do éter. Não se trata, entretanto, de uma análise exaustiva de como a filosofia se debruça sobre tais temas desvendando-lhes o seu caráter metafísico. Trata-se, contudo, de um trabalho de esforço em tentar demonstrar aos meus alunos – e agora aos meus leitores – como é possível que, mesmo com a pressuposta intenção de objetividade, ainda assim, o campo da ciência deixa um amplo espaço para a filosofia, especialmente para a metafísica, quando da pretensão do tratamento da natureza última da realidade. É sabido que muitas das teorias científicas, visto da necessidade de universalidade e independência formal dos seus sistemas teóricos, criam realidades aquém do próprio funcionamento da natureza a fim de antecipar possíveis ocorrências naturais, mesmo a contragosto da própria realidade. Não se nega, com isso, o caráter objetivo da maioria delas, nem mesmo a honestidade intelectual daqueles que as desenvolvem; questiona-se, contudo, a necessidade do amplo emprego de subterfúgios ad hoc para a explicação da realidade, a ponto de se estabelecer uma confusão sobre fronteiras, isto é, sobre o que há de científico e o que há de filosófico nas pretensas teorias. E é sobre isso que o presente livro pretende tratar. Quando oferto uma disciplina como a de filosofia da ciência, minha preocupação primeira, uma vez que estou lidando com alunos de graduação, é a de não focar o trabalho em um ponto específico e nem me permitir um viés exclusivista sobre algum autor ou sobre alguma teoria. Procuro ampliar o máximo possível as perspectivas, possibilitando que o aluno, que se encontra em fase de
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preparação acadêmica, tenha uma visão mais panorâmica possível da área que necessita conhecer, visto que tais discussões são partes integrantes do seu currículo. Assim procedendo, procuro também não me deixar atraiçoar pelo risco do superficialismo e pelo perigo da análise precária do objeto de investigação. Em virtude disso, deparo-me com a exigência de eleger um viés, um objeto de discussão, que propicie o encadeamento dos diversos autores e análises sobre o conteúdo programático da disciplina. Dessa forma foi que elegi, de forma não exclusiva, o átomo para cumprir esse objetivo de encadeamento, visto que, sob a perspectiva do atomismo, é possível envolver uma grande gama de itens intimamente ligados aos mais interessantes problemas que a filosofia da ciência pode nos oferecer. É justamente a partir dessa perspectiva que nasce e se desenvolve o nosso A Concepção Física do Mundo. Estou ciente das limitações das discussões aqui propostas e, em virtude disso, gostaria de tomar o presente trabalho muito mais como um projeto a ser desenvolvido oportunamente do que como uma obra acabada. Pretendendo uma análise acerca da natureza da realidade, sob o viés do materialismo atomista e dos seus reflexos sobre a filosofia mecânica, apresento ao leitor uma visão panorâmica de como essas concepções se desenvolveram, percorrendo um caminho que envolve nomes como os de Leucipo, Demócrito, Epicuro, Lucrécio, Gassendi, Galileu, Descartes, Boyle, Newton, Maxwell, Hertz, perpassando pelo atomismo químico do século XIX até a física quântica no século XX. Trata-se de uma análise histórica e parcial acerca das ideias filosóficas subjacentes às teorias de todo esse período, com o fito de demonstrar a engenhosidade do gênio humano em criar a sua própria realidade. Em virtude disso, dois são os vieses principais que me orientam: a) o do antirrealismo filosófico subjacente a essas teorias, como é o caso dos pensamentos de Demócrito, Descartes, Boyle, Hertz, das interpretações ortodoxas da física quântica e do misticismo quântico no século XX; b) o do realismo das teorias de Epicuro, Gassendi, Galileu e do atomismo químico do século XIX e físico do início do século XX. Dessa forma, o leitor terá acesso ao desenvolvimento da teoria da matéria, intimamente ligada à filosofia mecânica (em que entidades metafísicas estão profundamente relacionadas à questão do movimento), onde encontrará conceitos distintos sobre o elemento último da matéria, que ora se apresenta com a roupagem de atomismo, outra ora como corpuscularismo, perpassando por noções de minima naturalia, minima sutilíssimos,
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Apresentação
minima quant, quantum etc. Todas essas noções pretendendo representar a tradução temporal de como determinada filosofia idealiza esse algo que possa servir de fundamento último e explicação da realidade material, por isso o subtítulo Como os seres humanos criam o universo em que vivem. Conforme adiantei, trata-se muito mais de um projeto, mas que, ainda assim, espero que seja de utilidade aos leitores e que continue servindo de deleite aos acadêmicos, sejam do curso de filosofia, de física, de química, de ciências ou de história da ciência. O importante é que permitamos que o tema da natureza última da realidade não se perca sob a justificativa de que o mundo é tal e se encontra e permanece de tal forma, visto que um dia assim nos foi legado seja por quem for. Sob o pretexto da busca pela inteligibilidade da matéria, deveria estar subentendida a necessidade de pensarmos sobre as nossas origens materiais, sobre o nosso lugar no cosmo e sobre a nossa efemeridade, portanto, sobre a nossa transitoriedade. Que o conhecimento teórico sobre os meandros da matéria seja um pretexto para o conhecimento acerca de nós mesmos! Por fim, gostaria de externar aqui alguns agradecimentos. Primeiramente, agradeço ao prof. Dr. Vinícius Carvalho da Silva (UFMS) pela leitura atenciosa do manuscrito e pelas diversas sugestões de aprimoramento ao texto, bem como pela redação do Prefácio do livro. Suas intervenções fizeram-me certificar que o caminho para a conclusão deste projeto ainda é muito longo! Agradeço também a Universidade Federal do Tocantins (UFT) por ter me concedido licença de um ano para pesquisa na modalidade de pós-doutorado, cujo resultado foi a produção dessa obra, e pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) por ter me acolhido tão bem no estágio pós-doutoral, sob a supervisão do prof. Dr. Mauro Lúcio Leitão Condé. Agradeço, ainda, a todos os que de alguma forma contribuíram para a realização desse livro, o que de forma nominal ficaria difícil de fazê-lo aqui dado ao grande contingente de pessoas que contribuíram para a efetivação do que ora apresento ao público. A todos vocês, o meu muito obrigado! Eduardo Simões – UFT
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Referências das publicações originais SIMÕES, Eduardo. O atomismo metafísico da antiguidade grega. Griot – Revista de Filosofia, v. 15, n. 1, p. 324-339, 2017. SIMÕES, Eduardo. O atomismo herético de Galileu Galilei. Griot – Revista de Filosofia, v. 11, n. 1, p. 22-35, 2015. SIMÕES, Eduardo. O Átomo, o Éter e as Explicações Metafísicas da Mecânica na Idade Moderna. Pesquisa & Extensão – FACIT, v. 5, n. 1, p. 9-16, 2015. SIMÕES, Eduardo. Newton Metafísico. Argumentos: Revista de Filosofia, ano 7, n. 13, p. 266-280, jan./jun. 2015. SIMÕES, Eduardo. Eletromagnetismo: para além das leis de Newton. Pesquisa & Extensão – FACIT, v. 4, n. 1, p. 7-14, 2014. SIMÕES, Eduardo. Heinrich Hertz: mecânica e filosofia da Ciência. In: SIMÕES, Eduardo. Hertz, Wittgenstein e a Representação do Mundo. Curitiba: CRV, 2012. p. 47-106.
CAPÍTULO I
O ATOMISMO METAFÍSICO DA ANTIGUIDADE GREGA
Introdução
H
á no interior das ciências naturais a pretensa resistência em considerar uma verdade que lhe parece peculiar, mas que, por sua necessidade de prova empírica, muitas vezes prefere ignorar: a de que teorias científicas, quase sempre travestidas de uma suposta objetividade, podem trazer no seu interior uma robusta metafísica resistente aos dados experimentais. Isso acontece, por exemplo, com a identificação contemporânea da realidade do átomo e de sua estrutura. Até que ponto a indicação de elementos atômicos (ou subatômicos) aponta para a realidade material? O que constitui, de fato, substância física ou entidade metafísica em tais elementos? Qual elemento serve ao cumprimento de uma necessidade lógica dedutiva de funcionamento do sistema e qual, de fato, existe? A inexistência do “elemento x” não colapsaria todo o sistema? A existência do “elemento y” não pressuporia a inteligibilidade do sistema? Questões próprias do materialismo, que têm sido fruto de discussões históricas a respeito da realidade do átomo, não foram necessariamente fruto da preocupação dos antigos. Mais do que uma preocupação com a necessidade de uma prova objetiva, material, estavam os gregos, desde Leucipo, preocupados com a função lógica desempenhada pelo átomo no interior de seus sistemas. Por isso, desencadearam uma série de explicações, cuja coerência lógica era a exigência de fundo, onde o átomo desempenhou o papel não de coadjuvante, mas de protagonista de argumentos nos quais se constituiu como fundamento. Diante do exposto, a intenção do presente capítulo, muito mais do que o da defesa de qualquer ponto de vista, ou mesmo de qualquer tese, visa elucidar algumas questões que serão de capital importância para o entendimento
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da realidade do átomo na Antiguidade grega. Trata-se, assim, de um capítulo propedêutico e elucidativo para quem ainda não se iniciou em ciência. Para os especialistas, resta um breve passeio pelos caminhos da filosofia do átomo, recapitulando temas supostamente dissecados, elucidados e resolvidos, mas cuja atualidade não se perdeu. A despeito dos que não têm profundidade no tratamento do desenvolvimento da história da ciência, ou dos que não conseguem vislumbrar que em seu interior houve (e há) lugar para o desenvolvimento da metafísica, as discussões que se seguem tornar-se-ão substanciais, visto que é da produção grega que partem os desenvolvimentos posteriores acerca do entendimento do atomismo e de seus desdobramentos.
1.1 A (meta)física grega e a fabricação da realidade Os períodos da filosofia antiga que aqui serão abordados referem-se, primeiramente, ao período naturalista (século VI a.C.), cuja principal preocupação é com o problema da physis (com a busca por um princípio substancial responsável pela ordenação de todas as coisas), e terá como culminância a filosofia helenística, com a análise do atomismo de Epicuro e Lucrécio. A preocupação principal nessa análise não será necessariamente com a ciência nascente e seus reflexos sobre uma sociedade radicada na cultura mítica. O foco será, portanto, na visão cosmo-ontológica dos gregos e seus reflexos para as primeiras propostas de criação de uma realidade. O protagonista dessa discussão, que entra em cena com toda sua força, apresentando-se de tempos em tempos com novas roupagens, mas nunca excluído do imaginário coletivo de nossos cientistas/filósofos, é o átomo. Este, desde os gregos, compõe uma realidade que, até em seu nível mais fundamental ou subatômico, segundo observou Heisenberg (1995, p. 27), é muito mais criada do que observada pelos físicos2. Poderíamos iniciar essa exposição diretamente com o atomismo de Leucipo e Demócrito, assim, já teríamos assegurado o entendimento de como a criação da realidade se deu entre os gregos. No entanto, entender a necessidade de postular as partículas elementares pressupõe entender quais discussões 2
Os átomos são introduzidos como realidade ontológica no interior das teorias da mecânica como explicação para os fenômenos da ação por contato. A posteriori, especialmente depois de Descartes e Newton, é o éter que toma seu lugar quando utilizado para explicação dos fenômenos eletromagnéticos.
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que as precederam, o que sugere uma breve retroação à filosofia naturalista do período pré-socrático. A física e a filosofia confundem suas origens na aurora do pensamento grego; não é sem razão que a doxografia antiga denominou os primeiros filósofos de oi physikói, ou “os físicos”, investigadores legítimos da physis, tendo sido eles os primeiros a empreenderem uma importante superação do pensamento mítico em favor do entendimento racional da ordem do universo. Foi na Jônia que surgiram as primeiras concepções científicas e filosóficas da cultura ocidental. Os primeiros filósofos teriam sido os pensadores de Mileto: Tales, Anaximandro e Anaxímenes. Também faz parte da escola jônica Heráclito de Éfeso. Procurando reduzir a multiplicidade à unidade exigida pela razão, os pensadores de Mileto propuseram sucessivas versões de uma física e de uma cosmologia constituídas em termos qualitativos: qualidades sensíveis (frio, quente, leve, pesado etc.) eram entendidas como realidades em si (“o frio”, “o quente”, “o leve”, “o pesado”) e o universo era concebido como um conjunto no qual se contrapunham os pares opostos. O mais antigo filósofo reconhecido como tal é Tales de Mileto. Não se tem informações precisas sobre seu nascimento e morte, o que se sabe é que ele estava no apogeu aproximadamente no ano de 585 a.C. – data em que teria previsto o eclipse do sol de 28 de maio. Atribui-se a Tales muitas contribuições para o conhecimento, a saber: que sustentou pela primeira vez a imortalidade da alma, que foi o primeiro a determinar o curso do sol de solstício a solstício, que definiu o tamanho do sol como a 720ª parte do círculo solar, que foi o primeiro a dar ao último dia do mês o nome de trigésimo e o primeiro a discutir problemas físicos (LAÊRTIOS, 2008, p. 18). Em geometria, foi o primeiro que demonstrou que o diâmetro divide o círculo em duas partes iguais, que os ângulos da base de um triângulo isósceles são iguais, que encontrou um método para medir a altura das pirâmides, medindo sua sombra no momento que ela é regularmente igual ao tamanho de seu corpo etc. Mas o mais importante para os nossos propósitos é o que Tales concebe como arché, como elemento constitutivo de todas as coisas (sentido atribuído a essa palavra entre os pré-socráticos). Segundo Aristóteles (1969), o princípio constitutivo de todas as coisas, sustentado por Tales, é a água. E o que justifica a escolha de tal princípio é o fato de que “a terra flutuava sobre a água”, “que todo alimento é úmido”, o
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“calor retira do úmido geração e vida”, a “semente de todas as coisas tem uma natureza úmida”, de tal forma que “a água é o princípio da natureza de todas as coisas úmidas” (ARISTÓTELES, Metafísica, 1969). Além do que, a água pode assumir as mais numerosas e variadas formas: pode surgir como gelo e neve, transformar-se em vapor e formar nuvens, parece transformar-se em terra nos deltas dos rios. Enfim, ela é um elemento vital e é natural que, ao pensar em um elemento primordial, a água apareça em primeiro lugar. Portanto, Tales apresenta uma realidade ainda não criada, muito provavelmente, entendida a partir de suas observações meteorológicas. Mas o que pretendemos aqui é identificar onde a realidade começa a ser uma criação nossa, com todas as bases materiais passíveis de questionamento. A busca por um elemento primordial foi levada adiante por Anaximandro (611-546 a.C.), discípulo e concidadão de Tales. Para Anaximandro, tal elemento não poderia ser o princípio, mas derivaria desse princípio, chamado por ele de ápeiron, privado de peras (de limites ou determinações), que compreende uma infinidade de realidades e mesmo de mundos possíveis. O ilimitado é a causa universal de toda geração e corrupção e pode se transformar nas várias substâncias com as quais estamos familiarizados. Ele é o conflito eterno entre o ser o e vir-a-ser: o primeiro, imutável, vê sua forma se degradar no vir-a-ser, mas, ainda assim, permanece incorruptível3. É essa luta eterna entre os contrários a responsável pela criação do mundo: “o quente é oposto ao frio, o seco ao molhado etc. Esses opostos combatem entre si e qualquer predominância de um sobre o outro é vista como uma ‘injustiça’, razão pela qual os opostos devem oferecer reparação, um ao outro no tempo marcado” (HEISENBERG, 1995, p. 50). Nota-se que Anaximandro não apresenta nenhum dos quatro elementos como sendo o elemento constitutivo de todas as coisas (nem a água, nem o ar, nem a terra e nem o fogo), ao contrário, introduz em sua filosofia um elemento ad hoc responsável por toda geração e corrupção. Teríamos aí a primeira concepção ontológica de mundo? O que seria o ápeiron do milesiano? Qual a justificativa para a introdução de tal elemento em sua teoria? Qual a necessidade subjacente a tal construção? Sem que tenhamos uma resposta definitiva para tal necessidade, resta-nos conjecturar que a introdução do ilimitado como o princípio constitutivo de todas as coisas, deve-se a uma necessidade 3
“Disse também que as partes sofrem mudanças, porém o todo é imutável” (LAÊRTIOS, 2008, p. 47).
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implícita, a saber, a de dar um caráter de necessidade e coerência lógica ao seu pensamento. O ápeiron, dentre outras coisas, possibilita a universalidade do sistema de Anaximandro, na medida em que se torna eterno. Temos aí a primeira concepção de realidade mais criada do que observada. É a partir daí que essa prática se torna comum no pensamento ocidental. Quanto a Anaxímenes (metade do séc. VI a.C.), discípulo e continuador de Anaximandro, renunciou a ter por princípio o ilimitado e o ar toma o lugar de matéria ou substrato, que por rarefação e condensação engendra todos os seres: condensando-se e reunindo-se o ar dá origem à água e à terra, enquanto rarefazendo-se e dilatando-se dá origem ao éter e ao fogo e, retomando sua própria natureza, volta a ser ar. Como foi afirmado, os filósofos de Mileto propuseram uma física e uma cosmologia constituídas em termos qualitativos. Foi Pitágoras (582-500 a.C.), no entanto, quem promoveu uma virada no modo de pensar pré-socrático quando propôs a matematização da experiência humana, reduzindo a análise da qualidade à quantidade e traduzindo os fenômenos naturais em termos matemáticos. Conta-se que a escola pitagórica funcionava como uma espécie de seita; os pitagóricos levavam uma vida monástica na qual, após uma iniciação de duração variável, completava-se primeiro um noviciado de três anos (para os acusmáticos ou fiéis), seguido de cinco anos de silêncio (para os matemáticos ou sábios). Diz-se4, também, que Pitágoras teria sido o inventor da palavra filosofia quando interrogado pelo tirano de Fliús sobre “quem era ele, respondeu: ‘um Filósofo’. Comparava a vida aos Grandes Jogos, aos quais alguns compareciam para lutar, outros para fazer negócios, e outros ainda – os melhores – como espectadores; com efeito, alguns crescem escravos da fama, outros ambiciosos de ganho, e os filósofos ávidos da verdade” (LAÊRTIOS, 2008, p. 230). O que nos é relevante, contudo, é como Pitágoras concebe a realidade e o que ele entende ser o princípio de todas as coisas.
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As expressões “conta-se”, “diz-se”, devem-se ao fato da incerteza quanto à vida de Pitágoras que não deixou nenhum documento escrito. Seus ensinamentos, conforme Diógenes Laércio, eram transmitidos oralmente e guardados em segredo por seus primeiros discípulos que, também, nada escreveram. Daí a dificuldade de distinguir o que era realmente de Pitágoras das ideias de seus discípulos tardios.
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Para Pitágoras, a realidade é formada pelo número e pelo universo governado pela harmonia. O número é a essência de todas as coisas e todas as coisas são números. A matemática, especialmente a geometria, foi a sua paixão. Quanto à geometria, além de aperfeiçoá-la, dedicou-se ao estudo do seu aspecto aritmético: descobriu o cânone monocórdio e que o quadrado da hipotenusa num triângulo retângulo é igual à soma dos quadrados de seus catetos. O filósofo admitia que a mais bela das figuras sólidas era a esfera e das planas, o círculo. Mais ainda, os pitagóricos associavam os quatro elementos da natureza aos sólidos regulares: a terra ao cubo, o fogo à pirâmide, o ar ao octaedro e a água ao icosaedro e, com isso, reduziam todas as coisas do cosmo ao número ou à inteligibilidade do pensamento. Quanto ao princípio de todas as coisas tal como Pitágoras concebia, Diógenes Laércio (2008) diz que Alexandre (historiador da primeira metade do século I a.C.) teria afirmado em suas Sucessões dos Filósofos que nas Memórias Pitagóricas havia prescrito que “a mônada é o princípio de todas as coisas”. Produzida pela mônada, a díade indefinida existe como seu substrato material, cuja causa é a própria mônada. São a mônada e a díade indefinida que engendram os números, dos números nascem os pontos, dos pontos nascem a linhas e das linhas nascem as figuras planas, as quais produzem figuras tridimensionais. “Destas nascem os corpos perceptíveis pelos sentidos, cujos elementos são quatro: o fogo, a água, a terra e o ar. Esses elementos transmudam-se para produzir um cosmo animado, inteligente, esférico, tendo em seu centro a terra” (LAÊRTIOS, 2008, p. 234). O texto não diz como se efetua essa geração. Isso denuncia que a concepção pitagórica de realidade é, também, a de uma realidade criada, onde o ideal de natureza é muito mais fundamentado na imaterialidade e inteligibilidade matemática do que na observação empírica. Certo é que o pitagorismo exerceu profunda influência na filosofia grega posterior, quer pela reação polêmica que provocou (em Xenófanes, Heráclito, Parmênides, Zenão de Eléia), quer pelos pontos positivos que passaram para os pensadores posteriores. Mas, interessa-nos muito mais as polêmicas! Delas podemos extrair exemplos imediatos de como a realidade, a partir de então, perde de vez o caráter de realidade ipso facto. E Parmênides é o principal responsável. Representante da Escola Eleata, fundada no começo do século VI a.C. por Xenófanes, Parmênides (530-460 a.C.), Melisso e Zenão de Eleia formavam o corpo dos três filósofos mais ilustres dessa escola. Em busca de um
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princípio de inteligibilidade, os eleatas situavam esse princípio no Deus Uno de Xenófanes, no Uno e no Ser de Parmênides e Melisso, ou ainda, no Unomúltiplo de Zenão. Sempre colocando a identidade do ser com o que o intelecto apreende. Enquanto os pitagóricos pensavam na imaterialidade e inteligibilidade como fundamento do cosmo, Parmênides elaborou algo completamente novo na filosofia: com ele a cosmologia (preocupação dos jônicos e dos pitagóricos) transformou-se em ontologia. É justamente aqui que os nossos interesses se firmam. A atitude polêmica de Parmênides contra os pitagóricos gira em torno, primeiramente, do dualismo defendido pelos pitagóricos: o da mônada e da díade. O princípio de todas as coisas é a mônada (um princípio único ou o Uno); da mônada vem a díade indefinida (a matéria ou “o dois” que é uma emanação do princípio Uno); contudo, em terceiro lugar, vem o número, cujos elementos são o par e o ímpar (sendo o primeiro ilimitado e o segundo limitado); e o Uno deriva desses dois elementos, pois ele é ao mesmo tempo par e ímpar. Por fim, o número deriva do Uno e o céu em sua totalidade é número (ARISTÓTELES, Metafísica, 1969, A, 5.986 a 15). Como consequência do dualismo pitagórico, nota-se que o Uno não é mais o primeiro, e a ordem então seria: I) os Princípios: limitado e ilimitado, II) os Elementos: ímpar e par, III) O Uno, a mistura e IV) O Número. Parmênides rejeita esse dualismo e os desdobramentos dele advindos: o ser e o não-ser, o cheio e o vazio, o móvel e o imóvel. E em vez de perguntar qual é a origem do cosmo e de responder “é o número”, ou “os contrários”, ou “a água”, ou “o ar”, prefere concentrar-se na natureza própria do saber, que demonstra ser indissociável do ser. É assim que a ontologia se sobrepõe à cosmologia. Em segundo lugar, Parmênides polemiza contra os pitagóricos visto que não concebe a existência do vazio; e isso por razões lógicas: o não-ser – o vazio – não pode existir. Quando se assume que toda mudança requer espaço vazio, assume-se a existência de tal espaço, e para não ter que se submeter a tal aceitação, Parmênides radicaliza em rejeitar a ideia de mudança por considerá-la uma ilusão5.
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Veremos que tal concepção é uma antecipação do que defenderão Aristóteles e René Descartes.
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Nos fragmentos de seu texto que chegou até nós, intitulado Da Natureza, a partir de um suposto diálogo com a deusa, fica-nos explícita a radical oposição entre o ser (que é pensado) e o não-ser: “É necessário que o ser, o dizer e o pensar sejam; pois podem ser, enquanto o nada não é” (PARMÊNIDES, 2002, p. 15). E o ser é ingênito, indestrutível, compacto, inabalável, sem fim e sem princípio, homogêneo, uno, contínuo, indivisível, imóvel etc. Já quanto ao não-ser, nada se pode falar a respeito dele, nem pensar sobre ele, “pois não é dizível, nem pensável, visto que não é” (PARMÊNIDES, 2002, p. 16). Quanto à via da verdade, da investigação, essa pressupõe dois caminhos: “um que é, que não é para não ser”, e “o outro que não é, que tem de não ser” (PARMÊNIDES, 2002, p. 14). O paradoxo de Parmênides encerra-se no seguinte fato: A relação entre o primeiro e o segundo caminho é evidente: o que um afirma o outro nega. Que sucede, porém, se a cada um deles aplicamos a indicação do outro (negando o primeiro e afirmando o segundo)? A resposta não pode ser mais simples: caímos no segundo e voltamos ao primeiro (a negação nega a afirmação e a dupla negação é a esta equivalente) (SANTOS, 2002, p. 66).
Desse paradoxo podem-se extrair consequências lógicas interessantes quando se admite que através do pensamento só se pode afirmar ou negar: quando a afirmação é igual à afirmação e a negação é igual à negação (A = A), tem-se o princípio da identidade; quando a afirmação é diferente da negação (A ≠ ~A), tem-se o princípio da contradição; e quando entre a afirmação e a negação não há um terceiro termo (A ˅ ~A), tem-se o princípio do terceiro excluído. Essas são as consequências do paradoxo de Parmênides. O que os jônicos e os pitagóricos pretendiam com suas filosofias era encontrar na natureza um princípio que fosse concorde com a razão e, em consequência disso, acreditavam que o mundo da experiência real participava da natureza do pensamento, de modo que a razão poderia ser o princípio de investigação. Parmênides radicaliza essa ideia ao admitir que o ser e o pensar são a mesma coisa, isso é, a estrutura do ser e do pensamento é uma e a mesma – “[...] pois o mesmo é pensar e ser” (PARMÊNIDES, 2002, p. 15). Uma vez que a estrutura fundamental do ser é a mesma estrutura do pensamento, isso
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significa que investigando a estrutura fundamental do segundo, investigaremos a estrutura do primeiro. Certo é que Parmênides legou à filosofia posterior o como proceder à reconstrução do mundo fenomênico respeitando um princípio supremo, a saber, afirmando o ser e negando o não-ser. Mas, com isso, ele também cria um problema para a filosofia ulterior: como conciliar o ser parmenidiano com o que a experiência nos apresenta? Como reconhecer qualquer coisa no mundo que se identifica com tal ser? Ou mesmo, como proceder à reconstrução fenomênica do mundo afirmando o ser e negando o não-ser? Quem aceitará a empreitada da resolução desse problema serão Leucipo e Demócrito que, mesmo admitindo (como Parmênides) a não inteligibilidade da gênese e corrupção, tentam conciliar essa “realidade” com os fatos da experiência cotidiana. Sobre a vida de Leucipo (séc. V a. C.) não se sabe quase nada. Aristóteles o considera como o criador do atomismo que foi a posteriori desenvolvido por Demócrito. Assim, é no atomismo de Demócrito (460-370 a.C.) que se firmam as discussões subsequentes. A primeira proposta a ser apresentada é a sustentação de que as teses do atomismo servem de resposta à ontologia de Parmênides e, ao mesmo tempo, superam-na no sentido de apresentar um elemento novo que, ao menos, pode ser pensado em termos de realidade apreendida. No entanto, sem querer apressar respostas que supostamente serão encontradas através da análise, afirma-se, também, que esse mesmo atomismo é muito próximo tanto do pensamento pitagórico quanto do pensamento dos eleatas. Na medida em que se afastam, aproximam-se também. Átomo é uma palavra grega que significa indivisível. Para os atomistas os princípios que permitem explicar a realidade são os átomos e o vazio. Isso nos permite, desde já, conjecturar que esses dois elementos sejam uma transposição da questão do ser e do não-ser de Parmênides para o campo da filosofia atomista. Segundo Dumont (2004), a tradição diz que três são as origens possíveis do atomismo grego: em primeiro lugar, a inspiração seria de Mileto, especificamente, de Anaximandro e de seus alunos: “o infinito, ou o ilimitado, é substituído pela infinitude em número de átomos. Estes são corpos capazes, quando reunidos, de engendrar corpos materiais” (DUMONT, 2004, p. 130). Em segundo lugar, os átomos, tal como concebidos, aproximam-se dos números dos pitagóricos em inteligibilidade (são apreendidos pela inteligência) e, assim
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como os números, servem-se como elementos cujos sensíveis são por eles construídos. E, por fim, a influência eleata aparece mais forte por três fatores: a) os átomos estão para o ser como o vazio está para o não-ser – um não-ser necessário aos átomos, pois, na verdade, trata-se do seu espaço de locomoção (ao vazio é atribuído um certo ser); b) os átomos são seres inteligíveis que somente o intelecto pode conceber; e c) a oposição democritiana entre intelecção e opinião restitui o dualismo do poema de Parmênides: os átomos representam as ideias, enquanto as qualidades sensíveis não existem senão para os sentidos e opinião. Mas de que maneira se pode entender a teoria de Demócrito? Como resposta a essa questão, a primeira coisa que deve ser observada no sistema democritiano é que os elementos átomos e vazio preenchem a necessidade básica de justificar todos os fenômenos. Assim, a locomoção dos átomos, sua configuração e desarranjo explicam, por uma causalidade puramente mecânica, o conjunto de toda existência. Em seu sistema não se encontra nenhuma espécie de teleologia; nada na natureza remete a um fim. Diferentemente de Aristóteles, ele não trata da causa final, tudo é delegado ao puro acaso (os átomos agrupam-se e reagrupam-se ocasionalmente para formar todos os elementos). Tudo acontece por força do acaso, ele é o redemoinho causador da origem de todas as coisas. Diógenes Laércio (2008) atribui a Demócrito a ideia de que os mundos são infinitos, sujeitos à geração e ao perecimento, isso porque tais mundos são formados por átomos que se locomovem no vazio para lhes formar. Tais átomos, contudo, são divisíveis do ponto de vista matemático, mas indivisíveis do ponto de vista físico, e não apresentam propriedades físicas como cor, odor ou sabor. Nada é gerado pelo não-ser e nada perece no não-ser. Os átomos são infinitos em tamanho e número; movem-se como um vórtice e geram assim todas as coisas compostas: fogo, água, ar e terra. Essas, por sua vez, são elementos que também são uniões de determinados átomos, que por sua solidez são impassíveis e imutáveis. Até mesmo o sol e a lua se compõem de tais massas atômicas lisas e esféricas. Igualmente a alma, que é idêntica à mente (LAÊRTIOS, 2008, p. 263). Com relação à mente, à inteligência ou ao conhecimento, Demócrito formula a oposição inteligência vs. sensível e toma por única verdade a compreensão dos inteligíveis: apenas os átomos e o vazio podem ser objetos de um saber seguro. Tudo o que é sensível depende da opinião; as qualidades sensíveis dos corpos não são reais, mas imaginárias. Demócrito é citado por Galeno (2000, p. 282) como tendo dito que “por convenção há cor, por convenção há
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o doce, por convenção há o amargo, mas na realidade há somente os átomos e o vazio”. A única realidade é constituída pela realidade inteligível dos átomos, pelas ideias; por outro lado, a realidade dos corpos sensíveis e suas qualidades são recusadas pelo abderiano. A mecânica atomística de Demócrito funciona da seguinte maneira: primeiramente, os átomos são qualitativamente idênticos (o que diferencia é o arranjo – figura, ordem e posição – e não o átomo em si): “Pois as diferenças do ser resumem-se ao ritmo, à associação, e à modalidade. O que eles chamam de ritmo é a figura, associação é a ordem e a modalidade é a posição. Assim, A é diferente de N pela figura, AN de NA pela ordem e Ι de H pela posição” (DUMONT, 2004, p. 132)6. Essas diferenças tornam-se mais claras no seguinte comentário: “O sabor amargo é produzido por átomos pequenos, lisos e redondos, cuja atual circunferência é sinuosa, e por isso é viscosa e pegajosa. O sabor ácido é causado por átomos grandes, não-redondos e, às vezes, até angulosos” (ARISTÓTELES, Metafísica, 1969, A 4.985 b 4). Portanto, os átomos possuem as mais variadas formas, o que justifica a diferenciação de cada um dos seres e elementos da natureza. Por exemplo, os elementos água, fogo, terra e ar são definidos pelo tamanho dos átomos; por outro lado, odor e sabor são explicados pela forma atômica. Os cheiros e sabores agradáveis, como o doce, estão associados aos átomos arredondados e lisos, diferentemente dos sabores amargos. Quanto às cores, estas são definidas pelo arranjo dos átomos de um corpo: quando os arranjos dos átomos se alteram na superfície de um corpo, consequentemente, há uma mudança de cor. E o que atesta a mudança da propriedade de um elemento, por exemplo, sua cor? Essa percepção não está no próprio objeto, ela é subjetiva. No entanto, existe um sustentáculo causal para ela, o que torna inteligível sua alteração. As coisas emitem uma espécie de espectros ou imagens sutis, composta de átomos mais finos, que penetram nos órgãos dos sentidos. Desse modo, a mente recebe uma cópia ou réplica da coisa e é nisso que consiste o conhecimento. Demócrito faz referência aos objetos da experiência sensível ao mesmo tempo em que respeita o princípio racional de identidade. 6
“A letra I (iôta maiúsculo, escrito com duas longas barras, inferior e superior) é idêntica à letra H (êta maiúsculo) que não é senão um iôta deitado. A geração dos corpos é um efeito da escritura ou da associação tipográfica. Notemos ainda que o uso das letras deitadas corresponde à notação musical. Assim, à harmonia pitagórica substitui uma escritura musical, a ser colocada em paralelo com o ritmo” (DUMONT, 2004, p. 132).
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Como se viu, a constituição do mundo segundo o atomismo abderiano só é concebida a partir da causalidade mecânica fruto do acaso. Ficam, portanto, algumas questões a serem respondidas e cujas respostas não encontramos no próprio sistema atomístico de Demócrito: de onde provém o movimento inicial do átomo? Ele se encontra no próprio átomo ou há uma causa primordial que o justifica? Como se explica o seu processo de aglutinação e dispersão? Quais elementos nos levam a sustentar que na estrutura externa dos átomos, por suas diferenciações, encerram os elementos da natureza? Como se vê, tais respostas não são encontradas no próprio atomismo antigo, o que sugere mais uma construção intelectual de um sistema não sustentado na observação. Mais uma vez, estamos diante de um processo de fabricação da realidade comum desde as bases da construção do conhecimento ocidental. Tal prática perdurará e a própria concepção de átomos se apresentará sob várias facetas até a atual física quântica, a maioria delas produto de nosso imaginário criativo que, não encontrando respostas empíricas, assenta-se na metafísica. E parece ser esse o elemento definidor da filosofia: fazer filosofia é tentar dizer algo de metafísico, já dizia o filósofo L. Wittgenstein. Só que, como se verá, tal procedimento não é exclusivo da filosofia; a própria ciência, em muitas ocasiões, sobrepõe a teoria à realidade e espera que a segunda confirme as verdades da primeira. Quando isso não acontece, temos mais um sistema metafísico, agora, não no interior da filosofia, mas da própria ciência. Como se verá, a história do atomismo subsiste aos séculos e nossa concepção atual de mundo é fruto do desenvolvimento dessa história. Na esteira do atomismo de Demócrito, encontramos o neoatomismo de Epicuro (341270 a.C.) e o de Lucrécio (96-55 a.C.). Famoso por ter uma doutrina sempre confundida com o incentivo pela busca do gozo imoderado dos prazeres mundanos, como se sua doutrina não se distinguisse de um hedonismo puro e simples7, Epicuro representa um marco na mudança da concepção atômica que o precedia. De sua obra conservou-se três cartas que costumam ser apontadas como a súmula do pensamento epicurista: a primeira, dirigida A Heródoto, trata da física; a segunda, dirigida A 7
Essa interpretação da vida e doutrina de Epicuro contém muito mais um caráter anedótico do que real, pois, segundo Diógenes Laércio (Vidas, p. 286-288), no “Jardim de Epicuro” vicejava uma autêntica comunidade, onde o mestre e discípulos viviam de maneira quase ascética, consumindo apenas hortaliças que eles próprios cultivavam, às quais acrescentavam apenas pão e água, ou ainda queijo em ocasiões especiais.
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Pítocles, trata da meteorologia e da astronomia; a terceira, dirigida A Meneceu, trata das concepções sobre a vida humana. É mais especificamente na carta A Heródoto que se encontra o cerne do atomismo físico epicurista. A física, também tida como a ciência do nascimento e da morte, abrange toda teoria da natureza. Para Epicuro, da mesma forma que para Demócrito, não existe nada além das coisas físicas ou corpóreas e de sua ausência (do átomo e do vazio). Mas engana-se quem porventura espera que seja Demócrito sua principal inspiração; na verdade, sua admiração é muito maior por Anaxágoras e os seus átomos assemelham-se mais às homeomerias anaxagorianas do que ao sistema democritiano, ao qual ele se opõe. A principal modificação que Epicuro introduz no mecanicismo atômico de Demócrito é que, se para o abderiano os átomos seriam simplesmente ideias, para Epicuro estes são corpos que possuem peso e outras qualidades materiais – e não existiria outro critério para o conhecimento que não a sensação. No entanto, Epicuro não parece se atentar para alguns problemas advindos dessa forma de pensar: como é que um filósofo, que fixa tudo a partir dos sentidos, pode conceber “realidades” invisíveis como o átomo e o vazio? Outra coisa, como provar a existência do vazio que, por definição, não é sensível? Outra modificação é introduzida por Epicuro no pensamento de Demócrito. Se o segundo explicava o movimento sem apontar nenhuma justificativa teleológica (tudo acontece ao acaso), Epicuro explica o movimento pelo peso dos átomos, que é responsável pela sua queda8. Mas, por esse tipo de movimento, os átomos cairiam paralelamente e jamais se chocariam para produzir a diversidade das coisas. Daí é que Epicuro introduz a ideia de um novo tipo de movimento, a declinação (clinâmen). Por meio dela os átomos se desviariam de sua trajetória retilínea para colidir com outros e produzir a diversidade do real. Contudo, mais um questionamento pode ser levantado sobre esse tipo de mecanicismo: e o que explica essa declinação? Existiria um fator externo atuando sobre ela? Para Epicuro, não. A declinação não se explica porque é manifestação da liberdade do átomo. Dessa forma, Epicuro cria uma espécie de teoria materialista da liberdade, onde, no lugar da necessidade, introduz-se uma indeterminação natural. 8
Diferentemente de Demócrito que indicava como atributos dos átomos o tamanho e a forma, Epicuro acreditava que o peso, também, é inerente ao átomo.
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Epicuro se opôs com grande aversão às concepções fundamentais dos platônicos e dos aristotélicos, tornando-se o primeiro materialista consciente do próprio materialismo, como clara e explícita negação do suprassensível, do incorpóreo e do imaterial, e, consequentemente, da imortalidade e imaterialidade da alma” (ROCHA, 2007, p. 35).
Por questões morais e não somente físicas, a introdução do clinâmen na teoria de Epicuro tinha um segundo propósito, a saber, abolir as imposições da necessidade, do destino e dos deuses e introduzir o homem na história como sendo o senhor de si, sem constrangimento e livre para ser feliz. A própria ataraxia (prazer em repouso) apregoada por Epicuro é expressão máxima dessa liberdade ou libertação (dos deuses, do destino, do medo da morte etc.) e se resume em suas quatro máximas: “não há que temer aos deuses”; “morte significa ausência de sensações”; “é fácil procurar o bem”; e “é fácil suportar o mal”. Com sua teoria, consegue suprir dois ideais que guiariam a história da humanidade: o de dar inteligibilidade à natureza formando um sistema de ideias coerente, lógico e necessário (da mesma forma que os seus antecessores o fizeram) e o de pensar em um ideal democrático da liberdade humana. Aqui a criação da realidade conjuga-se com a própria realidade. Mas, retornando à questão do atomismo epicurista e do seu funcionamento que, excetuando o que foi supramencionado, parece-se muito ao de Demócrito (na questão do átomo e do vazio, do princípio de conservação, o caráter dos átomos, do infinito e do imutável e das propriedades do átomo), uma coisa chama a atenção e merece uma alínea: sua concepção de mundos possíveis. Retomando Diógenes Laércio (2008), temos a seguinte afirmação: Além disso, existe um número infinito de mundos, tanto semelhantes ao nosso como diferentes dele, pois os átomos, cujo número é infinito como acabamos de demonstrar, são levados em seu curso a uma distância cada vez maior. E os átomos dos quais poderia formar-se um mundo, ou dos quais poderia criar-se um mundo, não foram todos consumidos na formação de um mundo só, nem de um número limitado de mundos, nem de quantos mundos sejam semelhantes a este ou diferentes deste. Nada impede que se admita um número infinito de mundos (LAÊRTIOS, 2008, p. 293).
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O que se vê aqui, desde a Antiguidade, é a defesa da possibilidade da existência de uma infinidade de mundos possíveis – ideia comumente atribuída a G. Leibniz. E isso é possibilitado pela postulação do átomo enquanto componente constitutivo e básico de todas as coisas. O que em filosofia é chamado de um mundo possível é uma entidade hipotética que nos permite falar, ou conjecturar, sobre os vários aspectos em que o universo poderia ter sido diferente. Paralelo a cada aspecto ou combinação de aspectos no mundo real, existe um outro aspecto que num mundo possível poderia ter sido diferente. “Mas os mundos também são em número infinito, uns semelhantes a este aqui, outros diferentes. Pois os átomos sendo em número infinito, como acabou de ser demonstrado, são levados às maiores distâncias” (EPICURO, Carta a Heródoto, §45 apud DUMONT, 2004, p. 520). Segundo G. Bailey (1926), a filosofia de Epicuro foi tão vulgarizada no mundo romano que o poeta Tito Lucrécio Caro experimentou uma necessidade urgente de oferecer ao público culto uma exposição sistemática da doutrina do Jardim, compondo, à maneira dos pré-socráticos, um poema intitulado De rerum natura (Sobre a natureza das coisas). No entanto, apesar de tal poema representar uma ponte entre o atomismo antigo e o seu ressurgimento na Idade Moderna, não apresentou nenhuma novidade diante do pensamento de Epicuro. As questões como a do peso e da declinação, do vínculo entre declinação e liberdade, das sensações, da alma e da morte, permanecem quase que intocadas. Mesmo assim, De rerum natura, primeiro texto filosófico em latim, é considerado como um dos maiores poemas filosóficos de todos os tempos, mas que se limita a expor em versos o pensamento de Epicuro, ressaltando sua crítica à religião como causa dos temores do homem. O que se pode chamar de inovação no referido texto em relação ao pensamento de Epicuro é que nele Lucrécio reinventa o atomismo promovendo uma comparação entre os átomos e as letras do alfabeto: “da mesma forma como alguns átomos são lisos e outros curvos, também algumas letras são abertas e outras fechadas. Da mesma maneira que a combinação de algumas letras produz as palavras ‘branco’ ou ‘perfume’, a combinação de alguns átomos produz uma cor branca ou um perfume” (ROCHA, 2007, p. 38). No entanto, sabe-se bem que, da mesma forma que uma combinação de algumas letras pode não formar palavra alguma, a combinação de alguns átomos pode não produzir objeto algum, ser apenas um amontoado disforme de átomos.
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Certo é que as ideias de Lucrécio ultrapassaram da Antiguidade à Idade Média e teriam sido “redescobertas”, em 1417, por Poggio Braccioli. Enfatiza-se o termo redescobertas visto que o seu pensamento fora conhecido por outros autores em outras ocasiões. Pelo menos é o que afirma Alistair Crombie (2007, p. 38): Certamente as ideias de Lucrécio não eram desconhecidas antes desta data: elas aparecem, por exemplo, nos escritos de Hrabanus Maurus, Willian de Conches e Nicolas de Autrecourt. Porém, o poema de Lucrécio parece ter sido conhecido apenas em partes, em citações nos livros dos gramáticos. Ele foi impresso mais tarde no final do século XV e depois disto muitas vezes.
Como foi dito, tal pensamento é muito mais importante pela divulgação e propagação do atomismo, que teria começado por Leucipo e Demócrito e desaguado no atomismo de Epicuro, do que por suas contribuições originais. Como se verá, mesmo diante de todos os problemas concernentes à produção do conhecimento na Idade Média, o atomismo renasceu com Gassendi e teria sido a causa da condenação de Galileu, que fora considerado herético por sua adesão a doutrinas atomistas.
Considerações finais Encerra-se, portanto, a reflexão acerca da criação da realidade na Antiguidade. O objetivo do presente capítulo foi o de buscar a origem e os fundamentos da concepção de mundo enquanto criação humana, os fundamentos de uma ontologia que insiste em criar a realidade. O que parece subjazer à intenção dos gregos foi conceber sistemas de explicação da realidade cuja objetividade fosse elucidada, além de buscarem pela universalidade e pela identidade formal dos seus sistemas filosóficos. Em outras palavras, pretendiam elucidar a objetividade por meio da homogeneidade da realidade com o pensamento, afastando o sujeito conhecedor da pura descrição fenomênica do mundo. Certo é que foram tais ideias que deixaram o legado para o que na contemporaneidade haveria de ser entendido como átomo, tal como sobre sua funcionalidade. O retorno às bases antigas nos dá uma noção de que, mesmo
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sem a percepção das aplicações práticas recentes, a funcionalidade do átomo sempre foi reconhecida como explicação racional do real. É importante o conhecimento de tal história e o reconhecimento de que, se houve alguma originalidade na inspiração criativa da ideia do átomo, essa originalidade foi, de fato, grega. Por fim, salienta-se que, nesse capítulo, a escolha do átomo como viés de exposição da metafísica grega foi-nos intencional – sabe-se que as fronteiras da metafísica grega se estendem por caminhos muito mais vastos. Até o desenvolvimento da física contemporânea, o que era conhecido como átomo (primeira partícula indivisível, na etimologia grega) não era mais que um subterfúgio metafísico para explicar (ou justificar) fenômenos até então inexplicáveis, diluídos na tradição mitológica precedente. O átomo enquanto realidade física só pode ser considerado enquanto tal a partir dos trabalhos em química iniciados por Robert Boyle, transcorridos nos trabalhos sobre eletromagnetismo por Faraday e efetivados em física atômica por Ernest Rutherford e Niels Bohr, aos quais devemos a sua descrição moderna. Antes disso, o átomo nada mais era do que uma conjectura, utilizada principalmente associada aos princípios mecânicos da matéria.
Referências ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução de Leonel Vallandro. Porto Alegre: Globo, 1969. CROMBIE, A. Medieval and Early Modern Science. In: MCDONNELL, J. J. The Concept of an Atom from Democritus to John Dalton. Nova Iorque: The Edwin Mellen Press, 1992. DUMONT, Jean-Paul. Elementos de história da filosofia antiga. Tradução de Georgete M. Rodrigues. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2004. GALENO. Sobre a Medicina Empírica, 1259, B apud Os Pré-Socráticos. Tradução de Anna L. A. A. Prado. São Paulo: Nova Cultural, 2000 (Coleção Os Pensadores). HEISENBERG, Werner. Física e Filosofia. Tradução de Jorge Leal Ferreira. 3. ed. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1995. LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. Tradução de Mário da Gama Kury. 2. ed. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2008.
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PARMÊNIDES. Da Natureza. Tradução de José Trindade Santos. São Paulo: Loyola, 2002. ROCHA, Gustavo Rodrigues. História do atomismo: como chegamos a conceber o mundo como o concebemos. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2007. SANTOS, José Trindade. Interpretação do Poema de Parmênides. In: PARMÊNIDES. Da Natureza. Tradução de José Trindade Santos. São Paulo: Loyola, 2002.
CAPÍTULO II
O ATOMISMO EPICURISTA DE PIERRE GASSENDI CONTRA O SUBSTANCIALISMO ARISTOTÉLICO E A METAFÍSICA DE RENÉ DESCARTES
Introdução
T
ito Lucrécio Caro foi a última voz do atomismo na Antiguidade. Foi justamente ele quem deu ênfase ao pensamento de Epicuro de Samos na Roma Antiga por meio de seu poema De rerum natura. Depois dele, inaugurou-se o período medieval que silenciou o atomismo por mais de milênio. Numa época marcada pela atuação da religião revelada, onde Deus é o criador de todas as coisas e quem comanda os destinos do homem e da natureza, a aceitação do atomismo epicurista que, dentre outras coisas, fixa-se na ideia da abolição das imposições da necessidade, do destino e dos deuses para introduzir o homem na história como senhor de si, sem constrangimento e livre para ser feliz, jamais poderia ser aceita. O atomismo epicurista, enquanto filosofia materialista, não admitia nenhum argumento de ordem teleológica que propusesse que os fenômenos possuem causas dependentes de qualquer que seja a divindade. Para tal doutrina, apesar dos fenômenos possuírem movimentos aleatórios, incluindo o clinâmen, ainda assim, tais movimentos não podem ser ditos independentes de leis naturais inalteráveis. Dessa forma, é justificável que não haja na Idade Média espaço para esse tipo de discussão e que filosofias teleológicas como as de Aristóteles, ou mesmo as idealísticas de Platão9, encaixem-se perfeitamente bem às pretensões de expansão e domínio 9
Acerca do pensamento de Platão, a despeito das disposições em contrário, como é o caso da interpretação de Leibniz (1768, p. 186), alguns comentadores retiram-no do rol dos idealistas e rotulam-no como defensor do “realismo das ideias” (seja qual for o significado que isso pretenda ter). Tomando parte de uma controvérsia que não tem fim, para nós, por tratar de ideias e não
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religioso que vigoraram nessa época. A última coisa que um cristão virtuoso pode almejar é ser confundido com um ateu, ímpio e materialista. Foi o renascimento cultural do século XV que propiciou a retomada do atomismo antigo e a consequente reinserção do pensamento de Epicuro em tempos de “revolução científica”10. As ideias de Lucrécio foram redescobertas quando um dos seus manuscritos foi encontrado por Poggio Braccioli, em 1417, o que permitiu a reprodução e a ampliação do acesso à obra. E com a recuperação da obra de Diógenes Laércio, a sociedade europeia tomou ciência das três cartas de Epicuro que expunham a sua filosofia. Com a repercussão dessas obras, o atomismo é retomado: algumas vezes com a feição materialista original e outras vezes misturado com elementos de outras escolas, como é o caso do neoplatonismo, que substituía o caráter mecanicista de ação local original por elementos animistas que atribuíam ao objeto o autocontrole e intencionalidade própria. Sintomático do que se afirma é o pensamento de Giordano Bruno (1548-1600), que concebeu o universo formado por átomos em movimento, infinito, entretanto, dotado de alma universal da qual cada átomo participa. Tal concepção configura um princípio não material que dirige o movimento, um princípio animista, e funde o atomismo antigo com elementos do neoplatonismo misturados com uma boa dose de esoterismo. No entanto, é justamente a retomada desse tipo de filosofia que coloca em xeque elementos essenciais da filosofia aristotélica, amplamente aceita nos meios acadêmicos europeus entre os séculos XV e XVI, e Pierre Gassendi (15921655) constitui aquele que definitivamente reintroduziu o atomismo na Idade Moderna, revivendo o epicurismo como substituto do aristotelismo e reconciliando o atomismo mecanicista com a crença cristã num Deus infinito.
2.1 Gassendi contra a autoridade da filosofia aristotélica-escolástica Filósofo, astrônomo e matemático seiscentista, Gassendi viveu imerso na realidade da revolução científica supramencionada e gozou do privilégio de ter sido contemporâneo dos maiores nomes da ciência da época. Afinal, foi nesse período que viveram Evangelist Torricelli (1608-1647), Galileu Galilei do real, enquanto imediatamente dado, seu pensamento se configura como um idealismo (vide justificativa na nota 40).
10 Período que vai de 1543, ano da publicação do De revolutionibus de Copérnico até 1687, ano da publicação de Philosophiae naturalis principia mathematica de Newton
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(1564-1642), Johannes Kepler (1571-1630), Tycho Brahe (1546-1601), Francis Bacon (1561-1626), René Descartes (1596-1650), Robert Boyle (1627-1691) e Isaac Newton (1642-1727), por exemplo. Como se disse, seu projeto era o de resgatar o atomismo epicurista, postulando a existência dos átomos em número finito, ainda que inumerável, criados por Deus. Tratava-se de um projeto de cunho empirista, pois Gassendi acreditava que todo o conhecimento advinha da experiência sensível. É em virtude de tal convicção que a filosofia de Aristóteles – bem como a de Descartes – torna-se seu principal alvo, pretendendo ele resgatar a autoridade da experiência sensível que havia perdido o seu status epistêmico em virtude da existência de um modelo de filosofia que é baseado sobre definições a priori e que julga captar as essências ou causas materiais dos fenômenos, como é o caso da filosofia aristotélica. É na obra Exercitationes paradoxicae adversus Aristoteleos (Exercícios paradoxais contra os aristotélicos) que Gassendi polemiza contra os aristotélicos que dominavam as discussões acadêmicas de sua época. Segundo o prefácio da obra, a proposta era a publicação de sete livros das Exercitationes, que refutariam diversas disciplinas da filosofia aristotélica, especialmente a física, a metafísica, a ética e a lógica. Entretanto, conforme Maia Neto (1997, p. 31), “a reação do establishment filosófico ao primeiro livro das Exercitationes foi tão negativa que Gassendi sustou a publicação dos demais”. O começo do segundo livro dessa obra teve publicação póstuma datada de 1658 e trata da lógica aristotélica. Os livros com os demais assuntos provavelmente nunca foram publicados (MAIA NETO, 1997). É pelo prefácio do Livro I, por meio de um resumo dado por Gassendi, que se tem uma noção do que seriam os sete livros e de que maneira eles se colocariam contra o aristotelismo. Dessa forma, caso a obra fosse produzida conforme a pretensão original, a linha de combate de Gassendi seguir-se-ia no seguinte sentido: no Livro I – efetivamente publicado –, Gassendi critica a forma de filosofar dos aristotélicos, acusando-os de uso de método errôneo por afastarem-se da natureza e reduzirem sua prática à mera verbosidade; no Livro II, a proposta seria colocar-se contra a lógica aristotélica para expor a sua inutilidade e criticar suas noções de universais, categorias e proposições; o Livro III seria dedicado à física, criticando os elementos primários, a noção de movimento natural e as formas acidentais, isso para readmitir a noção de espaço dos antigos e reintroduzir o vazio no universo, além de redefinir a noção de tempo aristotélica; o Livro IV tencionaria apresentar discordâncias
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às considerações aristotélicas sobre a astronomia, nomeadamente, a respeito da causa dos movimentos dos corpos celestes, da luz e da geração e corrupção, além de refutar os aristotélicos no que diz respeito aos elementos: ao número deles, às suas qualidades, às transmutações recíprocas, aos compostos e às substâncias mistas; o projeto do Livro V seria o de refutar a noção de substâncias mistas dos aristotélicos; o planejamento do Livro VI proporia colocar-se contra a Metafísica de Aristóteles, atacando principalmente os princípios e as propriedades do ser; por fim, a pretensão do Livro VII seria tratar da filosofia moral, apresentando a doutrina do prazer de Epicuro, a fim de mostrar que ele se trata do bem maior e prêmio para as virtudes humanas. Tratava-se de um projeto ambicioso, mas que, infelizmente, não foi executado conforme a pretensão original. Contudo, críticas de Gassendi a Aristóteles apresentam-se em outras de suas obras, o que nos dá uma exata noção de sua visão depreciativa do aristotelismo escolástico. Apesar de a proposta do Livro VII ser a de tratar da ética epicurista, vemos que o projeto das Exercitationes ainda não era o de apresentar a filosofia atomista de Epicuro como opção à filosofia de Aristóteles. Tal obra objetivava uma oposição radical à filosofia aristotélica em virtude de um comportamento cético assumido por Gassendi – nesse caso, uma espécie de “ceticismo mitigado” –, adotado para criticar Aristóteles, que, em outras obras, é substituído por “uma teoria que ficaria entre o completo ceticismo e o dogmatismo” (POPKIN, 2003, p. 94). O que se encontra por trás do comportamento cético de Gassendi é a sua fascinação pela acatalepsia (suspensão do assentimento) que, segundo ele, era “exaltada pelos Acadêmicos e Pirrônicos”. Desde então eu comecei a investigar os ensinamentos de outros grupos para testar se eles poderiam ter algo mais sensato para propor. De todos os lados encontrei dificuldades de toda categoria, mas uma coisa devo confessar francamente: de todas as opiniões, nenhuma me agradou tanto quanto a akatalêpsia (ακταλήψια) exaltada pelos Acadêmicos e Pirrônicos. Isso porque, depois que me foi possibilitado ver o tamanho do abismo que separa o gênio da natureza da capacidade humana, o que mais poderia pensar senão que as causas mais secretas dos efeitos naturais fogem para além da penetração da vista humana? (GASSENDI, Exercitationes, Opera omnia III, 1964, 99).
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E por que a suspensão de assentimento se tornou uma prática de Gassendi? Nesse caso, o resumo do Livro I, intitulado “Contra os ensinamentos dos aristotélicos”, antecipa-nos sua motivação. Para ele, a filosofia de Aristóteles não goza de nenhum status privilegiado diante das demais filosofias. Assim, defende a liberdade filosófica e acusa os aristotélicos de a terem acabado. O aristotelismo não é merecedor da preferência que goza, tendo em vista as suas omissões, passagens supérfluas, erros e contradições nos textos que são atribuídos a Aristóteles. Interessante notar que, mesmo tendo dirigido críticas diretamente Aristóteles, a crítica principal de Gassendi é dirigida aos aristotélicos. Ele acaba, portanto, por levantar a hipótese de que a obra de Aristóteles pode ter sido adulterada, ou então, ter chegado de forma incompleta aos leitores do seu tempo, podendo, assim, ter motivado questões irrelevantes à revelia das preocupações próprias de Aristóteles. Certo é que, para Gassendi, a concepção de magister dixit, quando se trata do pensamento de Aristóteles, não se sustentava, visto que se trata de um sacrilégio pensar que tudo o que Aristóteles disse é inegável. Segundo Gassendi, desde muito jovem, quando teve contato com a filosofia aristotélica, ao analisá-la mais a fundo, viu que ela era uma disciplina vã e inútil. E as razões que justificam a sua visão depreciativa quanto ao pensamento aristotélico fundam-se em duas vertentes: I) na sua postura de “suspensão do assentimento” ou acatalepsia, isto é, antes de se acreditar piamente nas verdades inerentes a uma dita doutrina, é coerente a abertura para a avaliação das doutrinas rivais: “os ouvintes11 eram admoestados para que não fizessem pronunciamentos temerários, dado que viam que nenhuma proposição ou opinião era tão aceita, e tão atraente, contra a qual não fosse possível uma oposta e igualmente provável, ou até mesmo muito mais provável” (GASSENDI, Exercitationes, Opera omnia III, 1964, 100); II) na sua crença empirista que não admite, aos moldes dos aristotélicos, o dito conhecimento das “essências” ou das “causas metafísicas” dos fenômenos, visto que “[...] toda notícia que temos na mente alvorece dos sentidos” (GASSENDI, Exercitationes, Opera omnia III, 1964, 81b). Vê-se que o pretenso ceticismo mitigado de Gassendi não objetivava colocar-se contra o conhecimento – justamente por isso ele é mitigado – e sim 11 Seus alunos.
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contra o conhecimento a priori pretendido pelos aristotélicos. Dessa forma, a suspensão do assentimento significa evitar que a verdade conviva com o erro, funcionando muito mais como uma estratégia do que como uma convicção. O que se faz necessário é evidenciar que o aristotelismo errou, inclusive, em questões de fé. Ele se tornou um prejuízo para a fé cristã porque pretendeu introduzir a filosofia em questões reveladas que ultrapassam o terreno da razão. Em virtude disso, Gassendi propõe um convite à observação e à experiência, coisa sobre a qual o aristotelismo é estéreo, segundo ele. E, se sobre a experiência pesa-lhe a acusação de caráter duvidoso, basta guiá-la por instrumentos metodológicos, tais como a Canônica de Epicuro, que preconiza que os sentidos são os primeiros critérios irredutíveis ou o canon da verdade. Se os sentidos podem incorrer em erro, é só submeter-lhes às correções para fazer com que a filosofia se transforme em algo útil para o ser humano. Sintomático do que Gassendi chama de conhecimento estéreo e não observacional é a lógica de Aristóteles. Segundo ele, a lógica aristotélica não revela a existência de nada. Diz respeito apenas a um conhecimento que não é necessário totalmente e nem absolutamente, portanto, que não é útil. As noções de universais, categorias e proposições da lógica aristotélica, tratam-se somente de um expediente formal, conforme admitem os próprios aristotélicos, que é dispensável para a aquisição do conhecimento. A aquisição de conhecimento de uma coisa não implica que se conheça lógica para que proceda, pois através da percepção uma criança ou um fazendeiro (ignorantes no que diz respeito à lógica) podem explicar bem algo que conhecem bem e isso por conta da percepção que têm das coisas que conhecem. Um lógico experiente poderia definir uma coisa melhor do que um lógico sem treino no que diz respeito à sua arte, mas o que se conhece da coisa, conhecimento esse obtido por via da observação, não pode ser aumentado e aprimorado com o emprego desse instrumento. Um navegador sabe mais sobre o navio do que um homem que ficou aplicando regras da lógica aristotélica em vários aspectos de assuntos náuticos, por exemplo (ROVARIS, 2012, p. 49-50).
É em virtude disso que a opção que Gassendi faz é pelo empirismo e pela razão natural em detrimento do formalismo lógico aristotélico que, como afirma Aristóteles, trata-se de um instrumento (Órganon) da ciência, utilizado
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para o correto pensar. É justamente essa noção de correto pensar que encaminha a concepção de ciência dos aristotélicos para um conhecimento essencial das coisas, contra o qual Gassendi lutou. Para ele, é impossível “um conhecimento certo e evidente, que afirma de uma maneira infalível e certa que uma coisa seja por natureza, nela mesma e em virtude de causas profundas, necessárias e infalíveis, constituída de tal maneira” (GASSENDI, Exercitationes, Opera omnia III, 1964, 192b). E o que justifica isso é justamente nossa contingência e fragilidade, que nos impedem de ter acesso às essências ou causas metafísicas das coisas. “Logo, sobre o real que poder-se-á dizer, senão que em tais circunstâncias se produzem tais aparências e outras em outras circunstâncias outras aparências, mas sobre o que seriam as coisas elas mesmas há dúvida” (GASSENDI, Exercitationes, Opera omnia III, 1964, 201b). Assim, faz-se necessário pensar em uma nova ciência que descreva a variedade das aparências e que não almeje o conhecimento da natureza das coisas independente de tais aparências, pois “as condições de uma ciência existem, mas de uma ciência experimental e, se posso dizer, fundada sobre as aparências” (GASSENDI, Exercitationes, Opera omnia III, 1964, 201). “Uma ciência de essências independente do que aparece ao homem, isto é, uma ciência sub specie aeternitas, é possível somente ‘à natureza angélica e mesmo divina, e não convém à simples humanidade’” (MAIA NETO, 1997, p. 33).
2.2 Gassendi contra a metafísica de Descartes O gênero de saber de uma filosofia aperta et sensibilis – clara, pública e comprovável empiricamente – mantém-se na luta de Gassendi contra outros opositores. Contra o saber mágico e cabalístico de Robert Fludd (1574-1637), Gassendi propôs a sua Epistolica exercitatio in qua praecipua principia philosophiae Roberti Fluddi reteguntur (1630); contra a concepção platônico-escolástica de Herbert de Cherbury (1583-1648), apresentou a sua obra Ad librum D. Edoardi Herberti de veritate epistula (1634); e contra a metafísica de René Descartes (1596-1650), Gassendi dedicou duas obras: as Objectiones quintae, essa em objeção à obra Metafísica de Descartes (1641) e, como expansão dessas Objectiones, a pedido de S. Sorbier, publicou a Disquisitio Metaphysica seu Dubitationes et Instantiae Adversus R. Cartesi Metaphysicam, et Responsa (Investigações Metafísicas ou Dúvidas e Instâncias contra a Metafísica de Descartes
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e suas Respostas – 1644) em réplica às Respostas de Descartes. Estas objeções foram encomendadas pelo editor das Meditações e amigo comum de Descartes e Gassendi, Marin Mersenne. Na obra Disquisitio, Gassendi mostra o seu desapontamento com as promessas feitas por Descartes no Prefácio das Meditações que, segundo ele, não foram cumpridas (GASSENDI, Disquisitio, Opera omnia, III, 225b). Ali Descartes promete demonstrar três coisas: a existência de Deus, a imortalidade da alma e a distinção real entre mente e corpo. Para Gassendi, os argumentos usados para as demonstrações cartesianas são falhos. Dessa forma, discorre sobre os erros envoltos nas três demonstrações, mas concentra-se na última, já que para ele as duas primeiras são triviais e verdadeiras, além de não serem controversas. As Meditationes de prima philosophia, in qua Dei existentia et animæ immortalitas demonstratur (Meditações sobre a filosofia primeira em que são demonstradas a existência de Deus e a imortalidade da alma) de Descartes, trata-se de uma obra dividida em seis meditações, cujas objeções de Gassendi a elas se direcionaram. Ele apresenta objeções às seis meditações, contudo, as Objectiones quintae são as mais longas e detalhadas de todas. O grande problema no “diálogo” entre Gassendi e Descartes está na forma como as objeções se apresentaram, que não foram simpáticas e enfureceram Descartes. Por outro lado, a reação de Descartes também não foi nada amistosa, o que gerou uma indisposição entre esses dois grandes pensadores. Gassendi zomba da descrição que o meditador faz de si mesmo como, “em sentido estrito, apenas uma coisa que pensa” (AT VII.27 / CSM II.18)12 e, como resultado, ao longo das Objeções, ele se dirige a Descartes como “O Mente”13 (AT VII.265 / CSM II.185 / Gassendi 1658: III.298a). Por sua vez, Descartes – que pensa que a mente de Gassendi está “tão imersa nos sentidos que [ela se esquiva] de todos os pensamentos metafísicos” (AT VII.348 / CSM II.241) – dirige-se a Gassendi como “A Matéria” (AT 12 AT = Oeuvres de Descartes, edited by Charles Adam and Paul Tannery, 11 vols. Paris: J. Vrin, 1964–71. CSM = The Philosophical Writings of Descartes, translated by John Cottingham, Robert Stoothoff, and Dugald Murdoch, 2 vols. Cambridge: Cambridge University Press, 1984–5. 13 Essa referência depreciativa de Gassendi a Descartes é feita por toda obra quando o primeiro trata o segundo com o uso de termos como “a alma” ou “o espírito”.
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VII.352 / CSM II.244). Ele reclama que Gassendi “parece não entender completamente o que o uso do argumento racional envolve” (AT VII.354 / CSM II.245) e o descreve como “empregando truques retóricos ao invés de raciocínio” (AT VII. 350 / CSM II.243). Presumivelmente, Descartes sabia que Gassendi ficaria ofendido: ele pediu a Mersenne que publicasse as Objeções imediatamente, explicando que elas “contêm tão poucos bons argumentos que duvido que ele queira permitir que sejam impressos, uma vez que tenha visto minha resposta” (Carta de 23 de junho de 1641: AT III.384 / CSMK 184) (LOLORDO, 2019, p. 599).
É claro que Gassendi ficaria ofendido e a tréplica às provocações de Descartes é dada justamente na Disquisitio Metaphysica. Nessa obra, Gassendi explica como Descartes entendeu mal ou falhou em responder adequadamente a vários pontos, expondo a sua decepção em ver que um matemático habilidoso como Descartes “desfilou esses argumentos espúrios como demonstrações” (GASSENDI, Disquisitio, Opera omnia, III, 275b). Mas qual era de fato a questão mal resolvida entre esses dois autores? O que justificava os ataques de Gassendi contra Descartes? Aqui, mais uma vez, a estratégia cética da suspensão do assentimento, atrelada à defesa do saber de ordem empírica, faz Gassendi colocar-se contra a Metafísica de Descartes. Descartes representa para Gassendi a reconstrução da filosofia da substância e das essências, um gênero de saber apriorístico e dedutivo que é privado de um verdadeiro contato com a experiência, a exemplo dos aristotélicos. É importante, entretanto, salientar que Gassendi não nega a importância de alguns gêneros de conhecimento que são essenciais na filosofia de Descartes, por exemplo, o da existência de Deus, o da imortalidade da alma ou o da veracidade da experiência do cogito. Com relação à Objectiones quintae, que acaba por tocar todos os pontos das Meditações, Gassendi descreve essa obra como a lógica de Descartes e afirma que o princípio fundamental de sua lógica é o que agora chamamos de regra da verdade, isto é, o princípio de que tudo o que percebo clara e distintamente é verdadeiro. Ele argumenta que, devido a essa confiança na percepção clara e distinta, Descartes está preso na “prisão do [seu] intelecto”, incapaz de fazer contato com “o teatro da natureza” (GASSENDI, Disquisitio, Opera omnia, III, 382a). Argumenta, portanto, que percepção clara e distinta é inútil como um critério de verdade – em parte porque falha ao
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fazer uso de cenários céticos na Meditação Primeira (sentidos, sonho, gênio maligno) para ajudar a isolar as percepções claras e distintas. Ao considerar o critério cartesiano da verdade, de que tudo o que é claramente e distintamente percebido é verdade, Gassendi pontuou primeiro que muitas grandes mentes, que, aparentemente, viram algumas coisas de forma clara e distinta, concluíram que nunca poderíamos ter certeza de que algo era verdadeiro. Em segundo lugar, nossa experiência pessoal deve nos dar escrúpulos, visto que muitas coisas que outrora acreditávamos perceber clara e distintamente e aceitávamos como certas, mais tarde as rejeitamos. A única coisa que parece clara, distinta e verdadeira é que, o que aparece para alguém, aparece. Mesmo na matemática, algumas proposições que foram tomadas como claras e distintas acabaram se revelando falsas. As intermináveis controvérsias que ocorrem no mundo sugerem, em terceiro lugar, que “cada pessoa pensa que percebe clara e distintamente aquela proposição que ela defende”. Não é o caso que essas pessoas estão apenas fingindo que realmente acreditam nas proposições que defendem, mas estão tão certas de que estão dispostas a morrer por causa de suas opiniões. Portanto, o que isso parece indicar é que clareza e distinção são critérios inadequados para determinar o que é verdadeiro, a menos que haja outro critério para distinguir o que é realmente claro e distinto daquilo que parece ser. (Isso, é claro, geraria a necessidade de um número infinito de critérios para distinguir o que parece ser realmente claro e distinto do que é realmente claro e distinto, e assim por diante) (POPKIN, 1960, p. 203-204).
Então, o que é pensar clara e distintamente? Existem percepções que são aparentemente claras e distintas? É possível que eu possa estar errado ao acreditar que estou percebendo algo de forma clara e distinta? E se existe uma diferença entre uma genuína percepção clara e distinta e uma que me parece clara e distinta, qual é o critério metodológico que devo utilizar para decidir qual percepção é realmente clara e distinta? Como crítica às conclusões de Descartes a respeito da clareza e distinção quando se trata da percepção, Gassendi afirma: O que você deveria estar trabalhando não é tanto em confirmar esta regra, que torna tão fácil tomar o falso pelo verdadeiro, mas sim propor um método para nos guiar e nos ensinar quando estamos errados e quando
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não estamos nos casos em que pensamos que percebemos algo de forma clara e distinta (GASSENDI, Disquisitio, Opera omnia, III, 315a).
A posição de Gassendi é a de que, no caso das percepções, ideias claras e distintas não podem ser verdadeiras para diferentes pessoas, isso porque pessoas honestas e que pensaram cuidadosamente a respeito dessas percepções dirão ter percebido diferentes coisas incompatíveis clara e distintamente (GASSENDI, Disquisitio, Opera omnia, III, 315a). A única maneira dos relatos dessas percepções claras e distintas serem falsas é se quem relata estiver simplesmente mentindo. Entretanto, em alguns casos, podemos descartar a possibilidade das pessoas estarem mentindo, visto que há “homens que vão ao encontro da morte por causa de alguma opinião” e isso “parece ser um argumento perspicaz de que eles percebem isso de forma clara e distinta” (GASSENDI, Disquisitio, Opera omnia, III, 317a). A resposta de Descartes é a de que percepção clara e distinta não precisa de nenhum critério e que os exemplos de percepções apresentados por Gassendi não são genuinamente claros e distintos. Quando Gassendi pede por um método que possa ser usado “para nos guiar e nos ensinar quando estamos errados e quando não estamos”, isto é, que possa nos dizer se estamos percebendo algo claro e distinto, a resposta de Descartes é: “Afirmo que cuidadosamente forneci tal método no lugar apropriado, onde primeiro eliminei todas as opiniões preconcebidas e depois listei todas as minhas ideias principais, distinguindo as que eram claras das que eram obscuras ou confusas” (AT VII. 361-362). Mas Gassendi não estava satisfeito com os critérios de Descartes e retorna à Meditação Primeira, onde Descartes utiliza-se dos três argumentos céticos, para demonstrar o abuso que ali é feito do ceticismo para comprovar a ideia de clareza e distinção. Nesse caso, a censura de Gassendi a Descartes se dá devido ao fato de o segundo tomar como falso o que é apenas duvidoso e por tomar proveito do argumento do sonho e do gênio maligno (Deus enganador). [...] Gassendi diz ser a dúvida cartesiana exagerada (não há necessidade de se invocar um Deus enganador para livrar dos preconceitos através da dúvida), artificiosa (baseada em suposições absurdas como a de um Deus enganador e, portanto, dependendo de um ato da vontade e não de
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argumentos persuasivos) e desviada da “via tradicional” (MAIA NETO, 1997, p. 34).
Em virtude disso, para Gassendi, as hipóteses céticas globais da Meditação Primeira produzem, na melhor das hipóteses, uma dúvida “meramente verbal” (GASSENDI, Disquisitio, Opera omnia, III, 280b). Gassendi acha que Descartes não conseguiu entender como funciona o ceticismo. Ele supõe, por causa de sua própria ênfase na necessidade de modelos antigos, que Descartes está tentando fazer algo semelhante ao que os antigos céticos fizeram. Mas ele também tem razões teóricas para pensar que a Meditação Primeira deve produzir suspensão universal de julgamento para que o método de Descartes tenha uma chance. Pois, argumenta, a menos que suspendamos todos os julgamentos, não podemos ter certeza de que estamos livres da influência perniciosa de opiniões previamente adquiridas (LOLORDO, 2019, p. 602).
Mas não podemos rejeitar todas as ideias previamente adquiridas. Os céticos antigos, por exemplo, colocavam em dúvida “as naturezas e as causas ditas internas e primeiras, assim como as propriedades das coisas mesmas, não os fenômenos, as coisas que aparecem aos nossos sentidos, como são o calor do fogo, a doçura do mel e as demais aparências” (GASSENDI, Disquisitio, Opera omnia, III, 286b). Contudo, “você age de maneira completamente diferente, pois não admite as aparências que se apresentam aos sentidos, considerando-as como incertas e falsas” (GASSENDI, Disquisitio, Opera omnia, III, 286b). Se, per impossibile, tivesse rejeitado todas as crenças e ideias adquiridas por meio dos sentidos, não teria mais nenhum estoque de conceitos para trabalhar e, na melhor das hipóteses, poderia dizer simplesmente: “Eu, eu, eu ...” (GASSENDI, Disquisitio, Opera omnia, III, 320a). Eis que esse foi justamente o resultado do edifício metafísico de Descartes: “Eu penso, logo, eu existo”. Certo é que o método cartesiano, que visa superar toda dúvida com a fundação de uma ciência provida de certeza metafísica, propicia a introdução de um sujeito não corporal, essencialmente pensante, que substitui a sensibilidade como base do conhecimento. Com base no conhecimento sensível, segundo Descartes, seríamos incapazes de determinar quais de nossas ideias são inatas, portanto, seríamos incapazes de identificar quaisquer naturezas verdadeiras e
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imutáveis e, como resultado, os argumentos que provam a existência de Deus falhariam, assim como o argumento para a distinção real entre mente e corpo. O uso que Descartes faz do ceticismo antigo para a eliminação da base sensível do conhecimento não pode ser advogado como a forma de pensar dos céticos da Antiguidade, pois “as aparências incorrigíveis que os céticos acatam, por exemplo, não são cogitações de um sujeito não-extenso, mas afecções que não podem prescindir do corpo” (MAIA NETO, 1997, p. 36). Conduzida de um ponto de vista nominalista, materialista e sensualista, a crítica de Gassendi a Descartes – bem como a Aristóteles – só pode ser entendida sob o viés do empirismo, da mesma forma que o ceticismo antigo, pois limites que são impostos ao conhecimento advêm da natureza falível do corpo. É justamente em virtude disso que Gassendi nega da filosofia de Descartes, por exemplo, que se possa passar da experiência do cogito à substância da res cogitans, isso porque o homem não conhece nem as essências e nem as substâncias das coisas. Em consequência, ele nega também a verdade das “demonstrações” cartesianas acerca da existência de Deus. “Antes de mais nada, a ideia não é de algum modo inata, e sim uma ideia que se constitui historicamente, de modo que a prova cartesiana que pressupõe tal ideia como inata não é válida” (REALE; ANTISERI, 2007, p. 159). Claro, Gassendi não nega que temos uma ideia de Deus. O que ele nega é que tenhamos a ideia particular de Deus que Descartes requer: uma ideia positiva de um ser absolutamente infinito. Podemos pensar em um ser perfeito ou infinito aumentando gradualmente nossas ideias das perfeições que observamos nos seres humanos ao nosso redor, mas tal ideia não pode realmente capturar o infinito e, portanto, não pode representar Deus “como ele é” (AT VII. 287 / CSM II.200 / Gassendi 1658: III.323b) (LOLORDO, 2019, p. 604).
Assim, não se sustenta a prova que se pauta na série de causas eficientes, isso porque com a série de causas não se pode sair do âmbito físico. Por fim, Gassendi não aceita o argumento ontológico de Descartes, que afirma que “a existência é logicamente necessária à natureza de um Existente (i.e. Ser) necessário” (GEISLER, 1998, p. 654). Para ele, a própria noção de existência não é uma perfeição, ela é muito mais aquilo “sine qua non há
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perfeições”, isso porque a essência não precede à existência. “Quando você percebe acidentes, você concebe que há algo que é o sujeito dos acidentes” (GASSENDI, Disquisitio, Opera omnia, III, 290b). O conhecimento das essências, ao contrário, “requer um certo exame interno completo”, então “a essência não se torna conhecida exceto trazendo à luz todas as profundidades internas” (GASSENDI, Disquisitio, Opera omnia, III, 311b-312a). É próprio de uma alma incapaz de moderar seus desejos e ignorante de sua condição querer conhecer a natureza essencial das coisas independentemente de como aparecem para homens dotados de órgãos precários de percepção (GASSENDI, Disquisitio, Opera omnia, III, 312b). O ceticismo antigo deveria ser uma bússola a guiar o conhecimento humano ao mostrar que os limites que demarcam o conhecer têm origem no fenômeno sensível.
2.3 O atomismo epicurista de Pierre Gassendi Como se sabe, as críticas de Gassendi à pseudociência e verbosidade de Aristóteles, bem como à metafísica de Descartes, sugerem como contrapartida a substituição dessas filosofias pela filosofia atomista de Epicuro, posto que, para ele, tal teoria era considerada a melhor das explicações para a matéria e o único princípio eficaz de organização da natureza. O projeto atomista de Gassendi encontra-se na sua Syntagma philosophicum (Sistema de Filosofia)14. Em termos gerais, o atomismo antigo caracteriza-se por acreditar na indivisibilidade e imutabilidade das unidades elementares da matéria, afirmando a permanência dos átomos no tempo – a única coisa que mudava era a sua configuração, seu caráter de organizar e reorganizar acidentalmente. Além disso, concebia a existência do vazio, onde se moviam os átomos. Cultivava, ainda, uma visão reducionista da natureza por entender as propriedades dos objetos materiais em termos de movimento e organização dos átomos. E, por fim, comungava de uma visão mecanicista, uma vez que oferecia “uma imagem geral de como o mundo físico deve ser explicado, quais são os seus constituintes últimos, e quais processos que nele ocorrem no nível mais fundamental” (GAUKROGER, 2006, p. 254). É conhecida a oposição de Aristóteles a esse tipo de mecanicismo atomista: 14 Que não pode ser confundida com a Philosophiae Epicuri syntagma, que é um manual que trata das três partes da filosofia de Epicuro, a saber, a lógica, a física e a ética.
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Para Aristóteles, o atomismo é capaz de explicar as mudanças acidentais que ocorrem nas substâncias, nas quais estas não alteram sua natureza, mas não é capaz de explicar as mudanças intrínsecas propriamente ditas, ou seja, nas quais as coisas perdem ou alteram a sua própria natureza. Além disso, para o filósofo, o atomismo não dá conta da inumerável variedade das coisas naturais. Mais uma vez ele poderia até esclarecer a variedade acidental, mas não o fato de que a natureza apresenta uma ordem fixa, uma ordem que permanece constante apesar da existência transitória dos fenômenos (ZATERKA, 2004, p. 73-74).
É justamente o aspecto de transitoriedade das configurações dos átomos que indica um estado de mudança permanente, aquilo que constitui o maior incômodo de Aristóteles com a teoria atomista. Para uma filosofia que se baseia em definições a priori que, presumidamente, captam as “essências” ou as “causas materiais”, conciliar as características cambiantes do mecanicismo atomista com a necessidade de uma “ordem fixa”, “permanente” da natureza é praticamente impossível. “Para Aristóteles, o aspecto permanente não pode ser atribuído a uma coisa material finita, mas somente a um princípio; de fato, para as coisas existirem, elas têm que ser constituídas de matéria e forma” (ZATERKA, 2004, p. 74). E respaldado pela sua concepção de “matéria e forma”, Aristóteles tenta superar a filosofia atomista antiga. A teoria das quatro causas formulada por Aristóteles, abordada tanto na sua obra Metafísica como em sua Física, pretende dar conta do estudo das causas de quaisquer fenômenos. Tais causas são de quatro tipos: materiais (relativas à matéria de que algo é feito); formais (relativas à forma de algo, ao que algo é); eficientes (relativas a quem produziu); e as finais (relativas à finalidade, ao telos, à intenção). Quanto às causas formal e material, estas se distinguem pelo fato de que: a) a primeira determina o que o ser é em si e por si; b) a segunda é um termo relativo à primeira, isso porque a matéria em si é indeterminada. O que determina a matéria é a forma que é capaz de lhe dar um caráter de organização. Dessa forma, temos a imbricação entre matéria e forma, que compõem as substâncias individuais. E o que justifica a mudança das coisas? Em Da geração e corrupção, Aristóteles explica as mudanças por meio do artifício do que ele chama de “mera mudança”, “mudança total” e “fenômeno intermediário de composição”, contudo, ele não admite que uma composição
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seja uma mera mistura de componentes inalteráveis de tipo epicurista. “Uma composição é o vir-a-ser de um dos reagentes que sofreu alteração. Assim, o que vem à existência é uma nova forma específica de ser [...]. A soma total das suas propriedades não é simplesmente a soma total das propriedades dos elementos constituintes [...] (ZATERKA, 2004, p. 78). E o que justifica a geração e corrupção – ou o intensio e remissio, ou o fortalecimento e enfraquecimento – é explicado à luz da teleologia aristotélica: cada coisa esforça-se para ir em direção à sua finalidade. “As coisas mudam porque uma forma é substituída por outra e nas mudanças mais radicais surge uma nova forma substancial, ou seja, o que muda é sua própria natureza” (ZATERKA, 2004, p. 85). Entretanto, conforme Van Melsen (1952, p. 129 apud ZATERKA, 2004, p. 85), “isso não significa que Aristóteles não pensou em partículas minúsculas. Embora ele não tenha proposto uma teoria corpuscular, encontramos alguns comentários que poderiam ser o ponto inicial para tal teoria”. E um dos comentários que apontam para um corpuscularismo em Aristóteles encontra-se na sua Física: A carne, os ossos e outras coisas semelhantes são parte do animal, como os frutos são partes das plantas. É evidente, então, que a carne ou o osso ou alguma outra coisa não pode ser de qualquer tamanho, nem com relação ao maior nem ao menor [...]. Se da carne fosse extraída água e de novo surgisse mais carne por separação na água residual, ainda que a parte fosse cada vez menor não chegaria jamais a ser tão pequena que não teria nenhuma magnitude. Por conseguinte, se o processo de separação chegasse ao fim, toda coisa não estaria em toda coisa (pois não haveria carne na água residual). Mas se não parasse e a extração da carne pudesse continuar indefinidamente, haveria então um número infinito de partículas iguais finitas em uma magnitude finita, mas isso é impossível (ARISTÓTELES, Física, I, 4, 187 b 18-34).
Esse corpuscularismo aristotélico, que nega a divisibilidade infinita da matéria, fora desenvolvido pelos comentadores medievais de Aristóteles sob o cognome de teoria dos minima naturalia. Tal teoria advoga que, para além de um certo limite, as formas substanciais não são preservadas. Vê-se, com isso, que tal teoria está completamente justaposta à noção aristotélica de forma, o
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que é incompatível com o atomismo epicurista. É justamente a substituição dessa filosofia antiga que Gassendi pretende com a sua “nova filosofia”15. Gassendi parte do princípio de que é preciso erradicar da filosofia da natureza toda tentativa de misturar matéria – que é conhecida exclusivamente pelos sentidos – com princípios de organização não material, aos moldes do substancialismo dos aristotélicos que compõem a realidade como mistura de matéria e forma. A verborragia e o obscurantismo da filosofia aristotélica, segundo Gassendi, admitem que o conhecimento das verdades universais da natureza advenha da combinação da experiência observacional, da intuição intelectual e da demonstração lógica. Tudo isso era necessário para conhecer os princípios e as causas da organização do mundo, a essência das coisas. Para Gassendi, o conhecimento da natureza e a consequente explicação da diversidade das coisas está nos átomos. “Os corpos macroscópicos se modificam quando as configurações dos átomos que os compõem se alteram por causa de interações mecânicas com outros corpos” (MAIA NETO, 1997, p. 37). Um conceito como o de substância, por exemplo, mescla um componente material com um imaterial e não favorece a obtenção de verdades acerca do mundo porque não consegue efetivar a ligação entre a matéria e a forma. Para Gassendi o melhor sistema explanatório [para a natureza] era o atomismo, que poderia explicar as qualidades sensíveis que encontramos na experiência e poderia prover um modelo para os dados conhecidos sobre o mundo observado. O atomismo de Gassendi, derivado de um estudo dos textos clássicos de Epicuro, não era avançado como uma teoria metafísica sobre a verdadeira natureza das coisas. O mundo atômico é inferido de sinais indicativos experimentais que é confirmado ao verificar as predições sobre os efeitos atômicos no mundo observacional. Gassendi limitou suas descrições das características dos átomos para qualidades sensoriais encontradas na experiência (POPKIN, 1967, p. 217).
Segundo a justificativa de Gassendi, a escolha por Epicuro se dá devido ao fato de que seu atomismo elucida melhor o mundo, uma vez que faz com que 15 Segundo Koyré (2011, p. 337), Gassendi nada inventou e nada descobriu e, a despeito da sua nova filosofia, afirma: “É que sua física, sendo e pretendendo-se antiaristotélica, permanece tão qualitativa quanto a de Aristóteles, e quase nunca ultrapassa o nível da experiência bruta para elevar-se ao nível da experimentação”.
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os dados sensoriais, que explicam o mundo, fiquem inteligíveis aos homens: tudo é composto de átomos e a junção destes, a fim de compor as coisas da natureza, dá-se a partir da sua locomoção no espaço vazio. A adoção do atomismo epicurista por Gassendi, entretanto, não se dá em sua completude, visto que nos chega modificado. Da ontologia epicurista, por exemplo, Gassendi retira o clinâmen, conservando o que lhe é de mais essencial: os átomos e o vazio, princípios básicos que compõem o mundo natural. O espaço, para Gassendi, é o mesmo que o vácuo (um receptáculo incorpóreo, tridimensional e infinito) que quando ocupado por um corpo é chamado de lugar e quando desocupado é chamado de vazio. A distinção entre corpo e vazio, para os atomistas, é a mesma da dicotomia entre tangível e intangível, o corpo sendo a extensão tangível e o vazio a extensão intangível (ROCHA, 2007, p. 71).
No caso do átomo, este é dotado de tamanho, forma e peso e constitui a menor parte da matéria. O vazio, por outro lado, tem por função propiciar o movimento do átomo. Essa concepção atomista de entendimento do funcionamento da realidade da natureza pretende também ser oposição ao pensamento de Descartes. Descartes não compartilhava da concepção de átomos e vazio como explicação da natureza. Para ele no mundo natural só se admite extensão e movimento, com isso, não há lugar para a existência de átomos indivisíveis e nem para o vazio. Sua postura é de um corpuscularista e não de um atomista. Quanto às pequenas partes dos corpos, Descartes afirma em Os Meteoros: Mas, a fim de que aceiteis todas essas suposições com menos dificuldade, sabei que eu não concebo as pequenas partes dos corpos terrestres como átomos ou partículas indivisíveis, mas que, julgando-as todas de uma mesma matéria, creio que cada uma poderia ser subdividida de uma infinidade de maneiras e que elas diferem entre si como as pedras de várias figuras diferentes que tivessem sido cortadas de um mesmo rochedo (DESCARTES, AT, 6, p. 238-239).
Dessa forma, Descartes admite a matéria composta por corpúsculos, indefinidamente divisíveis, de diversos tamanhos, com figuras, disposições e
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movimentos distintos, coisa com a qual Gassendi não coadunava: “um átomo é de uma natureza sólida e plena e não possui nenhuma mistura de vazio, então não há possibilidade de que uma fissura se acarrete para que ele possa ser quebrado em pedaços” (GASSENDI, Syntagma philosophicum, Opera omnia I, 258b). Descartes, por outro lado, admite que esses corpúsculos nunca estão bem arranjados e unidos a ponto de não existirem espaços entre eles. Contudo, eles não estão vazios, pois estão preenchidos de uma matéria sutil (o éter) em constante movimento. A posição de Descartes quanto ao vazio, por outro lado, é a seguinte: Quanto ao vazio, no sentido em que os filósofos tomam essa palavra, isto é, como um espaço onde não há nenhuma substância, é evidente que tal espaço não existe no universo, porque a extensão do espaço ou do lugar interior não é diferente da do corpo. E dado que só podemos deduzir que um corpo é uma substância porque é extenso em comprimento, largura e altura, como concebemos que não é possível que o nada tenha extensão, então devemos concluir a mesma coisa acerca do espaço que se supõe vazio, isto é: dado que ele tem extensão, então é necessariamente substância (DESCARTES, 2006, p. 66).
É justamente contra essa identificação da matéria física com a extensão geométrica16 que Gassendi insurge propondo a existência dos átomos e do vazio. Em uma carta a André Rivet, segundo Rochot (1944), Gassendi teria escrito: Não é necessário mencionar os pontos particulares, pois desde os primeiros princípios – que o mundo material é infinito ou, como diz ele sutilmente, indefinido; que o mundo material é, em si mesmo, absolutamente cheio e não se distingue da extensão; que o mundo material pode ser triturado em pequenos fragmentos suscetíveis de mudar localmente de posição de diversas maneiras sem interposição de vácuo; e outros do mesmo gênero –, quem não vê quanto tudo isso acarreta de dificuldades e de contradições? Não que o autor não consiga ou, pelo menos, não tente 16 “Procedendo assim, saberemos que a natureza da matéria ou do corpo em geral não consiste em ser uma coisa dura, pesada ou colorida, ou que afeta os sentidos de qualquer outra maneira, mas que é apenas uma substância extensa em comprimento, largura e altura”. (DESCARTES, 2006, p. 60)
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conseguir iludir e refugiar-se em suas sutilezas. Mas, se os ignorantes e os espíritos vazios se deixam prender às palavras, seguramente as pessoas apegadas à verdade não têm hesitações e, deixando de lado as vãs palavras, só atentam, em suas pesquisas, para as coisas como elas são (ROCHOT, 1944, p. 172).
Na verdade, Gassendi, ao questionar a ontologia dos princípios de Descartes, está negando uma tradição que retroage a Aristóteles e que o fez também negar o vácuo. Para Aristóteles qualquer coisa ou é substância ou é acidente. Tudo o que não é substância ou acidente é não-entidade, não-coisa ou nada. A ontologia aristotélica que divide o ser em substância e acidentes, para Gassendi, seria um erro, pois tanto o lugar quanto o tempo não têm substância e acidentes – trata-se de coisas transcendentes, pois o primeiro se estende mais do que o mundo e o segundo dura mais do que ele – e, ainda assim, são algo, isto é, justamente o lugar e o tempo de todas as substâncias e de todos os acidentes. É justamente por tomar tal ontologia como certa que Descartes comete o erro de negar o vazio: Se o espaço vazio não é nem substância nem acidente, não pode ser outra coisa senão o nada, e se o nada não pode, evidentemente, possuir atributos, não pode ser objeto de medidas. O volume e a distância não podem medir o nada. As dimensões têm que ser dimensões de alguma coisa, isto é, de substância e não do nada (KOYRÉ, 2011, p. 340).
Contudo, para Gassendi, a geometrização do espaço proposta por Descartes não é garantia da geometrização da matéria, pois não é possível identificar a matéria com a extensão geométrica. O princípio que rege a matéria, segundo Gassendi, decorre do fato de que as coisas se distinguem em virtude de suas formas, formas estas que não existem por si mesmas, mas que mantêm uma dependência intrínseca com a matéria. É a matéria que garante a massa, a grandeza e a quantidade das coisas. E, como nada pode ser criado do nada e nada ser reduzido ao nada, então, é a causa material que permite explicar a diversidade do mundo e da natureza e não uma estrutura metafísica baseada na distinção entre substância e acidente (ROCHA, 2007). O mecanicismo de Gassendi, portanto, lança mão do atomismo de Epicuro para explicar os fenômenos naturais a partir das noções de matéria e
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de movimento. Todas as propriedades observáveis dos objetos são o resultado das combinações e das ações dos átomos e toda ação ocorre pelo contato de um corpo com o outro. Dessa forma, o atomismo de Gassendi, além de permitir o entendimento empírico dos fenômenos da natureza sem recorrer a uma teoria da forma e das essências, aos moldes de Aristóteles, ainda dispensa a noção de ação à distância, já que o movimento é explicado pela ação por contato. É a admissão da noção de vazio que justifica a possibilidade do movimento dos corpos pela movimentação dos átomos. Isso é uma das vantagens da teoria atomista, que dispensa uma série de elementos metafísicos ad hoc que possam servir à explicação dos fenômenos, dos quais lançaram mão Aristóteles e Descartes. [...] esta teoria da matéria tem a vantagem de que não faz um mau trabalho ao explicar como a composição e a resolução nas partículas elementares primárias ocorrem, e por esta razão uma coisa é sólida, ou corpórea, como se torna menor ou maior, rarefeita ou densa, macia ou dura, afiada ou cega, e assim por diante [...]. Essas questões e outras similares não são claramente resolvidas em outras teorias onde a matéria é considerada tanto infinitamente divisível ou pura potencialidade (GASSENDI, Syntagma philosophicum, Opera omnia, I, 280a).
Dessa forma, a ontologia atomista de Gassendi cumpre com dois objetivos que nos parecem claros: I) selecionar uma filosofia materialista que pudesse atacar o substancialismo e a metafísica do campo científico; II) eliminar desse materialismo as partes contrárias à religião e demonstrar que as verdades científicas não precisavam entrar em choque com a fé religiosa. Assim, afirma Gassendi que “[...] não há nada que nos impeça de defender a opinião que decide que a matéria do mundo e de todas as coisas contidas nele é formada de átomos, contanto que repudiemos qualquer falsidade que esteja misturada a ela” (GASSENDI, Syntagma philosophicum, Opera omnia, I, 280a). Em virtude de tal perspectiva, tal como Descartes, Gassendi sustenta o papel fundamental de Deus na criação da matéria e das leis que governam o mundo. Influenciado pela crença religiosa, o atomismo de Gassendi acaba por dispensar características essenciais do atomismo de Epicuro, a saber: a) a noção de que os átomos são incriados e incorruptíveis, pois, para Gassendi, eles foram criados e podem
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ser aniquilados por Deus; b) o entendimento de que o movimento é eterno, pois assevera que Deus é a força que gera o movimento; c) a crença de que a ordem do mundo é criada por encontros casuais dos átomos, pois defende que o universo é governado pela providência divina; e) a crença de que a alma, sendo feita de átomos, é mortal, pois acreditava que, além das almas vegetativa e sensível, há também a alma intelectiva que é incorpórea e imortal. Enfim, o pretenso materialismo de Gassendi, que se pautava por atacar as filosofias das substâncias e das essências, demonstrou-se parte de um lugar-comum que, tendo mudado o rótulo, não mudou os objetivos dos seus predecessores. Talvez seja por isso que Koyré (2011) não consegue ver na teoria de Gassendi nada do que pode ser chamado de original, concluindo a respeito: “[...] meu julgamento é severo. Infelizmente, é o julgamento da história” (KOYRÉ, 2011, p. 342).
Considerações Finais Conforme se viu, a filosofia de Gassendi acaba por representar um passo decisivo na retomada do atomismo, que propiciou o seu desenvolvimento posterior. Depois de séculos de adormecimento, o atomismo acaba por ser resgatado e se torna um componente importante na explicação empírica da realidade. Eximindo-se da ontologia mecanicista que lançava mão de explicações e conceitos abstratos, que reportavam às essências ou às causas metafísicas dos fenômenos, o atomismo epicurista de Gassendi propôs uma explicação baseada nos próprios fenômenos naturais. Contudo, conforme demonstrado, apesar dos méritos da ontologia materialista de Gassendi na explicação científica, ainda assim, ele não conseguiu se esquivar dos vícios do passado ao se deixar levar pela influência religiosa, que o fez ceder às pressões do seu tempo, fazendo com que a sua filosofia se tornasse um misto de materialismo e dogmatismo. Mesmo assim, a postura cética de Gassendi, no que diz respeito às questões epistêmicas, deixa-nos um legado que perdurará, pois nos orienta que, na busca do conhecimento da natureza, faz-se necessária a suspensão do assentimento, visto que isso propicia a liberdade do pensar e não nos compromete com os modismos de uma época. Se Gassendi deixou-se atraiçoar pelas suas convicções religiosas e, com isso, errou, não nos compete aqui um juízo de valor, pois, no contexto da redação desse capítulo, diferentemente de Koyré,
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fomos profundamente afetados pela acatalepsia dos céticos antigos e, com isso, preferimos manter a suspensão momentânea do assentimento.
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ROCHA, G. R. História do atomismo: como chegamos a conceber o mundo como o concebemos. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2007. ROCHOT, B. Les travaux de Gassendi sur Épicure et sur l’atomisme, 1619-1658. Paris: J. Vrin, 1944. ROVARIS, T. R. A noção de alma na teoria do conhecimento de Pierre Gassendi. 2012. Tese (Doutorado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012. Disponível em: http://repositorio.unicamp. br/jspui/handle/REPOSIP/280330. Acesso em: 15 ago. 2020. VAN MELSEN, A. G. M. From atomos to atom. Pittsburg: Duquesne University Press, 1952. ZATERKA, L. A filosofia experimental na Inglaterra do séc. XVII: Francis Bacon e Robert Boyle. São Paulo: Associação Editorial Humanitas: Fapesp, 2004. (Estudos Seiscentistas)
CAPÍTULO III
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Introdução
A
filosofia grega que entra em declínio no Período Helenístico com as invasões bárbaras agoniza de vez no Período Greco-Romano com a ascensão da filosofia cristã. Em Plotino, encontramos o último suspiro da tentativa do pensar independente. Com isso, inaugura-se na Idade Média o famigerado movimento patrístico que transcorre do século II ao século VIII depois de Cristo. Trata-se de um período em que a Igreja Católica, precisando se firmar enquanto instituição político-religiosa em um ambiente pagão pós-invasões germânicas, vai buscar na filosofia grega argumentos racionais em vista da defesa das verdades cristãs. É nesse cenário que surgem os chamados padres da Igreja: intelectuais convertidos que empregaram toda força na defesa racional da fé. Com Justino, Clemente de Alexandria, Orígenes, Gregório de Nazianzo, Gregório de Nissa, Basílio Magno, Agostinho, entre outros, vê-se alvorecer um grande contingente de Apologias: alegado jurídico cujas argumentações visavam obter dos imperadores o reconhecimento do direito legal que os cristãos teriam para existir em um império oficialmente pagão. É nesse período que se vê a perversão sistemática da filosofia grega em vista dos interesses cristãos. Os pensamentos pressupostamente “religiosos” de Pitágoras, Platão, Zenão de Cítio e Pirro de Élida foram cristianizados, desaparecendo de vez a aplicação da razão nos diversos campos (como haviam feito os gregos) para lhe empregar somente em um campo. Agora não mais existem os “amantes da sabedoria” (filósofos), na acepção típica dos gregos, e sim, pesquisadores e comentadores das obras produzidas pelos antigos mestres. Inicia-se um período de calmaria
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do pensamento criativo em prol de um trabalho de reordenamento, de interpretação (exegese) das obras dos predecessores gregos. Os ditos “problemas filosóficos” que, ora em diante, ocupam os padres da Igreja são os da existência e cognoscibilidade de Deus, da criação do mundo e da natureza, da origem do mal, do corpo e da alma, da verdade do cristianismo etc., e tudo foi feito para que os argumentos racionais gregos viessem endossar as certezas cristãs. Um típico exemplo do que acontecia encontra-se em Gregório de Nissa (335-394). Utilizando-se da divisão dicotômica de Platão e Aristóteles dos mundos intelectivo e sensível, ele define o homem como sendo de natureza espiritual e material, reforçando seu argumento com os elementos muito utilizados na cosmologia pré-socrática (fogo, ar, água e terra). “O homem pertence, através do seu corpo (água e terra), ao mundo da natureza, e por este pertencer, Deus já está presente nele. Mas o homem pertence também ao mundo do espírito (ar e fogo), havendo, portanto, nele, um ‘Nous’”17 (apud SPINELLI, 1990, p. 76). Certo é que não somente os pensamentos de Platão e Aristóteles, ou dos pré-socráticos, são utilizados pelos pensadores da Igreja nascente. Os padres se apropriam, também, de elementos da ontologia grega, da teodiceia, da dialética, da ética, da metafísica – tudo em prol da “sistematização” de uma nova filosofia que agora passa a ser serva da teologia. Mas, felizmente, ao lado do que os comentadores exegetas “produziram”, ainda sobreviveram os pensamentos dos doutos “cientistas” que abriram margem para outros tipos de estudos que afloraram no decorrer da Idade Média. É o caso da geometria, aritmética e astronomia, fundamentadas nas obras de Euclides, Aristarco, Arquimedes e Ptolomeu. Outro movimento intelectual erigido na Idade Média foi a Escolástica, assim nomeada em designação aos chamados “escolásticos”, professores das escolas da época. O movimento escolástico inicia-se no século VIII, quando Carlos Magno (742-814) resolve organizar o ensino por seu império e fundar escolas ligadas às instituições católicas. Analfabeto até a idade adulta, tendo sua preocupação sempre voltada para a arte da guerra, mesmo assim, promoveu o desenvolvimento cultural do Império Franco abrindo escolas e mosteiros, estimulando a tradução de obras antigas, patrocinando o trabalho dos artistas 17 O termo “Nous” é utilizado correntemente no mundo grego significando “mente”, “intelecto”, “razão”.
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e investindo na cultura. Esse seu trabalho de estímulo à atividade cultural recebeu o nome de Renascença Carolíngia. O modelo escolástico que, no início, foi organizado pelo copista e erudito inglês chamado Alcuíno (735-804), a mando de Carlos Magno, que desejava organizar a “Escola Palatina” (fundada em 782), funcionava da seguinte maneira: privilegiava-se primeiramente o estudo da linguagem com o Trivium, que enfatizava a gramática, a retórica e a dialética; depois partia para o exame das coisas com o Quadrivium, que enfatizava o estudo da geometria, da aritmética, da astronomia e da música. Quanto ao método de ensino, este se desenvolvia em dois momentos fundamentais: a lectio, significando leitura de um texto, com interpretação dada pelo professor que analisava as palavras, destacava e comparava ideias de outros autores, e a quaestio, isto é, perguntas do didascalus aos alunos e destes ao mestre. Tratava-se de um método rigoroso, um método universitário, que ficou conhecido como “método parisiense” (modus parisiensis). Das sete Artes Liberais promovidas pela renascença carolíngia, aquela que teve mais destaque e importância, renome e utilização foi a dialética, na forma da disputatio. Essa se desenvolveu no ambiente acadêmico e sua vulgarização foi motivo de preocupação para as autoridades eclesiais. Desde sua ascensão, com a queda do Império Romano em 476, fato que marca a transição da Antiguidade para a Idade Média, a Igreja Católica usa de subterfúgios para a manutenção do seu poder. Um desses é a própria transmissão da crença em uma verdade revelada que induz os menos avisados ao cultivo de uma santa ignorância, desobrigados de qualquer exercício racional, em nome da fé. Para outro exemplo, temos a instituição do Concílio que, diante de algo que pudesse contrariar as verdades da fé, submetia esse algo à discussão e à possível regulamentação ou revogação – tudo isso para manter a todos dentro dos limites da ortodoxia e disciplinação. Tanto era que, durante alguns séculos, os estudos só interessavam a monges e clérigos, os únicos que sabiam ler e escrever. Mesmo assim, os meios acadêmicos estavam profundamente envolvidos nas disputas dialéticas, úteis para aguçar a inteligência e a perspicácia de raciocínio. A dialética foi uma das disciplinas mais bem-sucedidas na escolaridade medieval, fruto do estudo da lógica que veio com a tradução das obras de Aristóteles (Categorias, Da Interpretação, Tópicos, Analíticos Anteriores e Posteriores etc.), lidas e difundidas nos meios acadêmicos.
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Só que o sucesso da dialética, pela sua vulgarização, acabou por ultrapassar o ambiente acadêmico, tornando-se um instrumento subversivo que precisava ser atacado, uma vez que, pelos desmandos de “certos dialéticos”, via-se que a lógica estava sendo sobreposta à fé. Um caso típico foi o de Pedro Abelardo (1079-1142), religioso perseguido muito mais por suas convicções heterodoxas (defendidas dialeticamente) do que por sua vida pessoal (por seu amor a Heloísa). Em decorrência dos movimentos dialéticos e dos atos de subversividade, em 1232, a Inquisição foi instituída pelo papa Gregório IX e sua ação estendeu-se por vários reinos cristãos – Itália, França, Alemanha, Portugal e, especialmente, Espanha – com o objetivo de ver disciplinadas as opiniões e convicções pessoais dos subordinados. E foi por causa dela, como meio para se esquivar das garras dos inquisidores, que se criou a chamada “teoria da dupla verdade”. Quando os autores do século XIII tinham que prestar conta à autoridade eclesiástica sobre suas discutíveis opiniões do ponto de vista teológico, desculpavam-se dizendo que sustentaram tais opiniões em função de meros exercícios de disputa dialética (gratia exercitii, probabiliter o disputationis causa), mas sem garantir que fossem verdadeiras. Tal tipo de justificativa, todavia, surgia como consequência inevitável de ter sido a dialética, ou a disputatio, implantada como método de ensino nas universidades (SPINELLI, 1990, p. 104).
Para os “doutores eclesiásticos”, inimigos da dialética, a máxima de Abelardo de que duvidando chegamos à investigação e investigando percebemos a verdade (Dubitando ad inquisitionem venimus; inquiriendo veritaten percipimus), não era concebível, visto que tal procedimento poderia de algum modo contrariar a “revelação”. A Inquisição, que com o passar do tempo reduz suas atividades, é reativada a posteriori, em meados do século XVI, diante do avanço do protestantismo. Exatamente nessa época os caminhos do Renascimento firmam-se na construção de uma nova imagem de homem e de universo. Com o reflorescimento do comércio, o desenvolvimento da burguesia e a Reforma Protestante, a Igreja, que se via enfraquecida, insistia em manter as
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bases do passado e refrear o progresso humano. No entanto, o que se viu foi a substituição paulatina do teocentrismo pelo antropocentrismo, da verdade revelada por aquela estabelecida pela razão, do idealismo religioso pelo materialismo racional. A natureza passa a ser observada, experimentada, pesquisada e não mais contemplada como obra da criação. Mesmo com a força brutal do Tribunal da Inquisição, os pioneiros da ciência moderna não se deixaram abater e levaram seus projetos às últimas consequências – foram os casos de Giordano Bruno (1548-1600), Nicolau Copérnico (1473-1543) e Galileu Galilei (1564-1642), que enfrentaram de perto a fúria da Igreja que insistia em legislar, além de matéria de religião, em matéria de astronomia, matemática e filosofia natural, discussões que fugiam de seu campo estrito de atuação e competência. Mesmo diante da pressão imposta pela Igreja durante toda Idade Média, as ideias atomísticas de Demócrito, Epicuro e Lucrécio sobreviveram e de tempos em tempos manifestavam-se com toda sua força. Tais ideias estavam presentes em Cícero (107-43 a. C.), no De natura deorun, onde ele identifica os átomos com caracteres de ouro ou de bronze, multiformes, que pela pressão do peso podiam se inserir nos corpos dos objetos; em Galeno (129-199), no De elementis, onde a cor e o sabor eram opiniões e os “átomos e o vazio, verdades”; em Giordano Bruno, no De mínimo, onde, como em Lucrécio, para ler o universo bastava combinar um número bastante reduzido de caracteres ou de letras para formar inumeráveis espécies; em Telesio (1509-1588), no De rerum natura iuxita propria principia, onde a causa do calor seria a emissão de partículas de fogo e de outros elementos, tanto do céu como da terra. Essas são apenas algumas das muitas manifestações do atomismo na Idade Média e todas elas tinham um fundo lucreciano que fora muito difundido por toda essa Idade. O De rerum natura de Lucrécio, que era muito citado na universidade e muitíssimo lido fora dela, “fora condenado pela Igreja no V Concílio de Latrão e depois condenado novamente, porque continuava sendo muito difundido e lido, pelo Sínodo Florentino de 1518” (REDONDI, 1991, p. 107). Mas o que é que tinha de tão perigoso no atomismo de Lucrécio? O caso Galileu nos dará uma resposta.
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3.1 Galileu herético? Se se conhece a história de Galileu, sabe-se muito bem sobre sua condenação: ele fora condenado em 1632 porque com seu Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo (Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo) desobedeceu à ordem expressamente imputada pelo inquisidor, cardeal Bellarmino, que em 1616 teria lhe proibido de desenvolver e/ou propagar qualquer ideia de cunho copernicista, isto é, qualquer ideia que visasse retirar a terra do centro do universo (lugar escolhido por Deus para a obra de sua criação). Por sua desobediência, Galileu foi condenado à prisão domiciliar perpétua por alta traição e obrigado a abjurar-se publicamente. Pelo menos é isso que muitos historiadores da ciência nos apresentam em seus livros-textos. Pietro Redondi, em seu Galileu Herético (1991), nos apresenta outra versão da condenação de Galileu, a partir de um documento até então secreto, que ele mesmo teria descoberto no Vaticano: a de que a condenação de Galileu se deu por sua adesão às doutrinas atomistas de Demócrito, Epicuro e Lucrécio. Resumidamente, o que teria ocorrido fora o seguinte: a filosofia oficialmente aceita no período escolástico, principalmente depois de Tomás de Aquino, era a de Aristóteles. Lia-se e comentava em todas as universidades e ordens religiosas os Primeiros e Segundos Analíticos, o De anima, a Física, o De generatione et corruptione, os Meteorológicos, mas tudo era interpretado sob a luz da fé católica. O neófito Aristóteles, que respondia todas as controvérsias e endossava todas as teorias, tinha resposta para tudo: magister dixit! (O mestre disse!), esse era o lema. Mas os interesses filosóficos de Galileu eram outros que não a filosofia de Aristóteles. Interessava-se pelo atomismo físico que representava uma perspectiva renovadora diante do que era oficialmente oferecido: a concepção aristotélica de mundo. Importava-se, portanto, com o De rerum natura de Lucrécio e com o Pneumatica de Héron de Alexandria (REDONDI, 1991, p. 21). Em seu Discorso sulle cose che stanno in sull’acqua (Discurso em torno às coisas que estão sobre a água ou que nela se movem –1612), Galileu havia submetido a validade das ideias de Demócrito sobre o calor composto de átomos de fogo ao teste da hidrostática: O resultado, com alguma crítica e reserva, fora encorajante: o atomismo era uma hipótese de pesquisa legítima e fecunda para apresentar as qualidades da física como ações cinéticas e mecânicas de corpúsculos materiais.
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Tratava-se de transformar aquela hipótese num programa teórico suficientemente geral que se tornasse uma máquina de guerra eficaz em física contra a concepção aristotélica do mundo (REDONDI, 1991, p. 21).
E foi justamente isso que Galileu fez. Ele, que particularmente jamais apresentou uma teoria sistemática sobre a natureza da luz, havia apresentado em 1611 uma experiência de ótica física que impressionou os aristotélicos: foi a experiência da pedra luminescente de Bolonha (sulfato de Bário). Essa pedra, depois de ter sido exposta à luz do dia, poderia brilhar na obscuridade; e aquela luz brilhando na escuridão poderia ser dissociada da ideia de calor ou de uma fonte luminosa, o que acabara por abalar a verdade aristotélica da luz como uma qualidade de um meio transparente iluminado. “Em vez de uma qualidade, era um corpo ‘quantum’ e se propagava, portanto, mediante uma emissão de corpúsculos invisíveis” (REDONDI, 1991, p. 16). Em sua Física, Aristóteles professa o que é chamado de realismo metafísico. Todos os fenômenos físicos são entendidos em termos de qualidades sensíveis: todas as qualidades (cor, sabor, cheiro, calor, dureza etc.) são inerentes a uma substância e nenhuma qualidade pode existir sem ela. Tais qualidades, mesmo sendo apresentadas de infinitas maneiras aos sentidos, mantêm entre si algumas formas fundamentais (são quentes ou frias, secas ou úmidas). A física, em termos bastante gerais, é o estudo do movimento das coisas materiais que compõem o mundo. Os dados dos sentidos podem ser conhecidos e são os mais dignos de fé. Os elementos fundamentais da física aristotélica são os mesmos de Empédocles: água, ar, terra e fogo; cada um, por sua própria natureza, tende a ocupar o seu “lugar natural” (o que explica porque o fogo e o ar sobem; ou porque a água e a terra descem). Esses elementos podem se converter uns nos outros dada a troca de qualidades que lhes são comuns, por exemplo, um corpo frio em movimento rápido aquece-se porque, movendo-se, recebe do ar quente e úmido a qualidade de ser quente. Há uma constante passagem de um elemento a outro, num movimento circular que imita, a seu modo, o movimento circular das esferas celestes. O que se vê são as inúmeras diferenças que nos são apresentadas pela realidade, por exemplo, de cor, de odor, de fluidez, de dureza e assim por diante; e todas elas eram explicadas, obscuramente, por essas sucessíveis mudanças de qualidade.
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Mas Galileu não estava em conformidade com afirmações desse tipo. Em seu livro, Saggiatore (O Ensaiador), publicado em 1623 com a aprovação do Santo Ofício, defendia uma teoria muito diversa da teoria física aristotélica. Com relação ao calor, por exemplo, ao invés de concebê-lo fruto do movimento, associa-o à emissão de partes muito sutis de substância. O calor é produzido quando a fricção entre dois corpos é tão forte que desprende algumas partículas de matéria. Essas “partes sutis”, ou partículas, eram designadas por Galileu pelos termos “partículas ígneas”, “minima ígneos”, “minima sutilíssimos”, “minima quant”; somente com relação à luz ele usava expressamente a palavra átomo – o que não inviabiliza, em hipótese alguma, sua postura atomista. O calor enquanto dado do sentido (bem como a cor, o odor, o sabor) não era para Galileu mais do que intuição subjetiva promovida pelos órgãos dos sentidos e sua tácita constituição devia-se a causas atômicas. Com isso, “o Saggiatore propunha definitivamente substituir a física aristotélica traduzindo suas proposições predicativas que diziam respeito a experiências de qualidades para uma nova linguagem: ‘o fogo é quente’ para ‘o fogo transmite uma sensação de calor’” (REDONDI, 1991, p. 66). Daí que, no novo vocabulário galileano, as qualidades aristotélicas de branco, doce, quente etc. ganham status apenas de nomes – tais palavras são nomes e nada mais do que isso (vale lembrar que Galileu é representante do nominalismo escolástico advindo dos tempos medievais). Tais qualidades são simplesmente estímulos sensíveis erroneamente atribuídos, por Aristóteles, ao mundo objetivo. Galileu não havia percebido em qual arena entrara e acabou, mesmo sem intenção, por tocar em um tema melindroso sobre o qual há séculos a Igreja havia firmado uma ortodoxia: o tema da Eucaristia. É aqui que entra em cena a figura do padre Orazio Grassi (1583-1654), da Companhia de Jesus, que promove uma perseguição a Galileu que perdurará até sua condenação definitiva em 1632. O Saggiatore teve uma aceitação imediata do mundo intelectual de sua época, contou com a aprovação das mais altas autoridades eclesiásticas, além da aprovação do papa. Mas a história retroage há alguns anos antes, em 1618, quando da passagem de três cometas. Naquela época, o padre Orazio Grassi, aproveitando um estudo precedente de Tycho Brahe, que em 1577 havia conjecturado sobre o movimento desses corpos, decide aperfeiçoar sua teoria e explicar aquele fenômeno que
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tinha surpreendido o público da época. Sem mais detalhes sobre as teorias em jogo, sabe-se (vide REDONDI, 1991, p. 38-40) que os sistemas, tanto de Brahe como de Grassi (esse expresso em De tribus cometis anni MDCXVIII disputatio astronomica habita in Collegio romano – 1619), atingiam frontalmente a teoria de Copérnico sobre o movimento da terra. Teoria essa que tinha a adesão de Galileu a ponto de ele receber, em 1616, uma advertência do cardeal Bellarmino para o abandono da teoria heliocêntrica. Mas o que fazer para paralisar as tentativas de Grassi de sobrepujar o heliocentrismo de Copérnico? O que fazer para que Copérnico não fosse desacreditado? Parece que a única opção era atacar de frente a astronomia dos adversários. E com qual teoria? Qualquer uma que demonstrasse o movimento circular dos cometas em torno do sol. Para isso, “havia uma muito sedutora, atribuída a Demócrito e Anaxágoras, que explicava os cometas como aglomerados estelares” (REDONDI, 1991, p. 39), que não foi escolhida por Galileu. Ele preferiu, em um Discorso delle comete (Discurso sobre os cometas), através de um interposto (seu aluno Mario Guiducci), negar a existência física dos cometas atribuindo-lhes somente a condição de aparências luminosas, meteoros óticos subjetivos, simulacros, puros reflexos sobre vapores, sem nenhum aspecto térmico em virtude do movimento. Teoria esdrúxula, é claro, para qualquer teoria moderna sobre cometas, mas que não era qualquer “opinião” lançada ao vento, ao sabor de conjecturas irresponsáveis. Por trás de sua teoria havia uma robusta matemática, aliada à física, com um tempero dialético digno dos maiores literatos. O efeito pretendido por Galileu foi alcançado: havia ridicularizado seu adversário e, por extensão, toda ordem dos jesuítas, composta pelos mais famosos teólogos, filósofos e cientistas da época – sem contar que era ela quem tinha maior influência sobre o Santo Ofício e, consequentemente, sobre o tribunal da Inquisição. Desse momento em diante, não faltaram tentativas, por parte de Grassi e dos jesuítas, de colocar os escritos de Galileu no Índex romano. A hostilidade de Galileu à filosofia de Aristóteles, oficialmente aceita pela Igreja e difundida pelos jesuítas, era conhecida, mas dessa vez ele tinha ido longe demais. E o começo da contraofensiva jesuítica dá-se com uma obra do padre Grassi, assinada com o pseudônimo de Lotario Sarsi (provavelmente para não comprometer o Colégio Romano com controvérsias desse tipo, visto que, uma vez sendo aceito pelo próprio papa, questioná-la seria questionar o seu pontificado)
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e intitulada Libra astronômica ac philosophica (1619). O interessante é que por trás de toda uma argumentação sobre a natureza dos cometas, onde o autor invoca dos pitagóricos a Tycho Brahe para o seu auxílio argumentativo, vê-se escondida uma polêmica que extrapola o campo científico e deságua no campo religioso. “O misterioso Sarsi traz uma invencível propensão a introduzir na polêmica científica suposições hipócritas e insinuações sobre opiniões religiosas do adversário” (REDONDI, 1991, p. 51). “Galileu é um herético” e sua heresia dá-se no ponto em que o seu escrito atinge frontalmente o mistério do Santíssimo Sacramento (a Eucaristia): esse era o resumo da acusação. Acusação que era grave e que gerou uma série de controvérsias a respeito da teoria que ali se encontrava. Tais controvérsias obrigam Galileu a mais tarde reescrever o Discorso, alterando e aperfeiçoando sua posição, através da obra intitulada Saggiatore. Como foi dito, esse seu escrito teve aceitação imediata, foi autorizado pelas autoridades eclesiais do Santo Ofício, recebeu o imprimatur, e, para endossar de fato seu conteúdo, foi “abençoado” pelo papa Urbano VIII (amigo de Galileu) que, na época, estava disposto a conviver com as novidades advindas da filosofia natural. Sem entrar nos detalhes técnicos acerca das questões astronômicas ali tratadas, a antiga ideia de as qualidades aristotélicas serem apenas nomes permanece intocada nessa nova obra: cor, odor, sabor etc. são expressões de estados subjetivos e nada mais, isto é, são apenas nomes, ilegitimamente atribuídos ao mundo objetivo. Galileu dá um exemplo: as cócegas produzidas por uma pena quando atritada com o nariz ou nos pés são apenas sensações, na pena propriamente dita não é encontrada nenhuma propriedade como essa. O mesmo vale para o calor: “o calor é produzido pela dissolução de um corpo em partes finíssimas. No caso de sua percepção sensível não se trata de uma modificação de propriedade ou de estado, mas da penetração da carne com maior ou menor intensidade” (REDONDI, 1991, p. 67). Mas o que isso tem a ver com heresia? Onde entra a Eucaristia nessa história? Procede a acusação de Grassi? Por trás dos termos cor, odor, sabor havia séculos de debate Eucarístico. A palavra transubstanciação sancionada pelo Concílio de Latrão em 1215 e afirmada como dogma era, por séculos, oficiosamente difundida e vivenciada pelos católicos. Com o Concílio de Trento (1545-1563), no movimento de Contrarreforma, vê-se definitivamente estabelecida como doutrina certa. Mas que querela estava por trás dessa palavra? Trata-se de um dogma que torna
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flagrante a antinomia entre o testemunho dos sentidos e a fé doutrinal. Uma filosofia da matéria segundo a qual há nos corpos uma realidade fundamental que os constitui e uma realidade aparente aos sentidos: substância e qualidades (ou espécies, propriedades). Como conceber que depois da “fórmula” pronunciada pelo sacerdote, aquelas substâncias, pão e vinho, venham se transformar em corpo e sangue de Cristo? As espécies eucarísticas, ou as qualidades eucarísticas (cor, sabor, odor – qualidades secundárias), são realidades objetivas ou impressões subjetivas? Tudo o que no rito denomina-se transubstanciação parece trair os nossos sentidos, restando somente a fé para salvaguardar. Mais uma vez, está colocado o embate entre a fé e a razão. No entanto, para a doutrina católica, a realidade eucarística não é essa: existe ali, de fato, uma mudança de substância, não é só uma questão de fé. E o argumento utilizado para tal defesa, evidentemente, é o do aristotélico Tomás de Aquino: São Tomás tinha a audácia intelectual de afirmar aquilo que os seus predecessores [...] haviam apenas timidamente exposto: os fenômenos eucarísticos são fenômenos sensíveis separados da substância, acidentes sem sujeito. Portanto, a quantidade (extensão) da hóstia consagrada não é mantida nem pela matéria do pão nem pelo ar ambiente. Ela permanece milagrosamente, sem substância. Assim também todos os outros acidentes aderentes à extensão: os famigerados “cor, odor, sabor”. Estes persistem e agem “como se” dependessem de uma substância, mas na realidade persistem e agem sem substância (REDONDI, 1991, p. 238).
Acidentes (cor, odor, sabor) sem sujeito, matéria sem extensão, acidentes sem substância etc. trata-se de uma saída um tanto quanto obscura, mas racionalmente projetada, que havia abrigado o mistério eucarístico longe das controvérsias dos “hereges”. Mas o que Galileu havia a dizer sobre essa questão que o incriminaria e o tornaria suspeito de heresia? Na verdade, o Saggiatore não trata diretamente de nenhuma dessas questões. O orgulho ferido de Grassi foi quem assim o interpretou com o objetivo último de incriminá-lo – um revanchismo contra o golpe que sofrera no passado. Sua pretensão foi a de acusar o Saggiatore de afirmar “expressamente” a teoria subjetiva das qualidades sensíveis também para os acidentes eucarísticos e professar o atomismo
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substancial “homeomérico” de Anaxágoras. Daí que a acusação era a de que a “doutrina de Galileu não é compatível com a existência dos acidentes eucarísticos estabelecidos pelo cânone 2 da XVIII Sessão do Concílio de Trento” (REDONDI, 1991, p. 183). A grande questão era: se para a doutrina a matéria é transubstanciada após o rito da consagração, não subsistirá nenhuma matéria do pão e do vinho depois, e os acidentes (cor, sabor, odor), por extensão, também não subsistirão. Mas, se interpretarmos em termos atômicos, assim como pensa o Saggiatore, que, reitera-se, não está preocupado com a questão do dogma eucarístico, estas “partículas mínimas” de substância, responsáveis pelos acidentes eucarísticos, permanecerão mesmo após a consagração. E o que se entende por acidentes (ou qualidades) são apenas sensações de estados subjetivos. Objetivamente, o que se tem são apenas partículas (ou átomos) de pão na hóstia, mesmo depois de consagrada – assim, não há uma verdadeira transubstanciação. “[...] A permanência de partículas de substância explicando os acidentes sensíveis implica a permanência do pão e do vinho mesmo após a consagração. Então não haveria nenhum milagre [...]” (REDONDI, 1991, p. 185). E as aparências externas – cor, sabor e odor – seriam apenas nomes. Tais acusações foram suficientes para que Galileu fosse taxado de herético. No entanto, nenhum processo formal foi levantado contra ele (somente uma representação anônima, provavelmente do padre Orazio Grassi, foi apresentada), isso porque questionar uma obra amplamente aprovada e endossada pelo papa seria afrontar a própria autoridade de Urbano VIII, que era amigo do cientista florentino. Com o passar do tempo, mais especificamente em 1632, o papa enfrenta uma grande crise política motivada pela Companhia de Jesus e encabeçada pelo cardeal Borgia, protetor da Espanha (REDONDI, 1991, p. 256). Há uma ameaça explícita de deposição. Na pauta das reivindicações dos jesuítas estava, dentre outras coisas, a acusação de que o “santo padre” era conivente com as heresias dos inimigos da religião: os inovadores, os antiaristotélicos. E, como se disse, a reivindicação era a da ação com braço forte contra as heresias em troca de sua permanência no comando da Igreja – ameaçada pela intervenção espanhola. É nesse mesmo ano (1632) que surge o Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo, de Galileu. A obra, como o Saggiatore, cumpre com todas as exigências protocolares para a publicação, isso pressupõe um longo caminho até o prelo. Sobre seu
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conteúdo, é sabido que se trata de uma obra de astronomia, antiaristotélica, que, ao invés de apresentar uma hierarquia entre mundo celeste e mundo terrestre (Da geração e corrupção), defende uma homogeneidade entre esses dois mundos, “ambos formados de uma natureza comum, natureza toda e em todas as partes cognoscível como uma idêntica observação racional dos fenômenos ou ‘acidentes’” (REDONDI, 1991, p. 262). Criticava também a teoria aristotélica da vida sobre a terra que, por geração e corrupção, era produzida por elementos contrários: depois da destruição a matéria é transformada em outro corpo totalmente diverso dela: do frio advém o calor, do úmido o seco etc. Ao invés dessa teoria, Galileu preferiu uma posição atomista (indireta, é claro), que era a de se pensar não na destruição e corrupção, mas em movimentos locais de partes da matéria – “Galileu negava a escolástica e se atinha ao atomismo de Demócrito” (REDONDI, 1991, p. 264). Mas o objetivo principal da referida obra era a defesa, também implícita, do sistema heliocêntrico de Copérnico; e a melhor forma de se fazer isso era atacando a astronomia de Aristóteles, com a defesa do atomismo de Demócrito. Contudo, tal teoria recai, de novo, no velho problema dos acidentes eucarísticos: assim como a matéria se corrompe em movimentos locais, os acidentes eucarísticos se corrompem, se alteram e mudam de natureza. Isso estava tudo muito implícito no Diálogo, visto que, em nenhuma vez sequer, Galileu entra em questões de ordem religiosa. Mesmo assim, isso foi a gota d’água que faltava para uma nova acusação contra Galileu que, dessa vez, dadas as pressões políticas contra Urbano VIII, não mais podia contar com a proteção do seu amigo. O livro caiu nas garras dos jesuítas e na pessoa do cientista ligado ao Colégio Romano, o padre Cristopher Scheiner, Galileu teve o seu primeiro opositor, que procurou nas páginas que tratavam do problema da incorruptibilidade dos céus a teoria materialista da “transmutação substancial”. Sem maiores detalhes, antes que as acusações chegassem ao Santo Ofício (o que seria muito pior), o papa formou uma comissão particular, cuja presidência era de sua responsabilidade, para analisar a nova obra de Galileu, cujos resultados, depois de algumas sessões de reunião, foram os seguintes: Galileu foi acusado de desobediência às determinações de 1616 do cardeal Bellarmino, o que recaía em alta traição. Por isso, devia abjurar-se publicamente e, ainda, recolher-se em prisão domiciliar perpétua (condenação anunciada em 22 de junho de 1633) –, o que ficou barato em vista da possibilidade de enfrentar diretamente o
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Santo Ofício, naquela época, composto em sua maioria por jesuítas. Mas resta salientar que a condenação foi por heresia inquisitorial, ou seja, disciplinar, não teológica ou doutrinal, o que em outras palavras significa dizer traição. Com a decisão, o papa afasta todos os envolvidos no caso Galileu de Roma – os prós e os contras: dos amigos do florentino aos caluniadores jesuítas, incluindo o padre Grassi, e coloca o Diálogo no Índex. Mas o que tem a ver o padre Grassi, aparentemente tão distante da atual controvérsia com o Diálogo? Aqui o termo “aparentemente” cai muito bem. O padre Grassi, denunciante protagonista no caso Galileu, sempre esteve nos bastidores, travestido de outras identidades, escamoteando-se como um camaleão. Seu rancor teria triunfado diante do atomismo inovador que colocara o mistério da Eucaristia sob suspeita e, consequentemente, dado aos protestantes motivos para desmerecer as determinações de Trento. Sua morte em 1654 teria impedido, no entanto, que ele tivesse sido definitivamente coroado quando, em 1685, Luís XIV revoga o Edito de Nantes e anuncia a “conversão geral” dos protestantes franceses. Esse feito dá à Igreja um novo vigor, cancelando a crise gerada pela Reforma. O resultado foi o silêncio dos inovadores com a “interdição” das teorias atomistas – tudo iniciado por Grassi. Na esteira de Galileu, viram-se também silenciados Pascal, Port-Royal, Malebranche, Gassendi, Descartes. Mas o atomismo não estava morto.
Considerações finais Pretendíamos aqui apresentar uma nova versão da condenação de Galileu. Como foi alertado desde o início desse capítulo, trata-se de uma versão de Pietro Redondi que, em seu livro Galileu Herético (1991), afirma ter tido acesso aos autos da condenação de Galileu, com a autorização do Vaticano, e descobriu que a verdade oficial não condizia com o que realmente está registrado nos arquivos. Certo é que sua obra promove um impacto na comunidade científica, bem como um incômodo nas autoridades eclesiásticas. Tanto é que em 1998, ao lançar a Encíclica Fides et Ratio, João Paulo II pede perdão pelo erro da Igreja e, ainda, afirma: “Galileu, fiel e sincero, mostrou-se mais perspicaz do que seus adversários teólogos”. A importância da revisão da história está no fato de que é aprendendo com os erros que avançaremos rumo aos acertos,
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pois “um povo que não conhece sua história está condenado a repeti-la”, dizia o historiador Eduardo Bueno. O caso Galileu é um exemplo típico de que, para o avanço do conhecimento e da ciência, é necessário fazer com que o homem esteja de pleno gozo da liberdade de pensamento e expressão.
Referências REDONDI, P. Galileu Herético. Tradução de Julia Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. SPINELLI, Miguel. Filosofia e Ciência. São Paulo: EDICON, 1990.
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CAPÍTULO IV
O ÁTOMO, O ÉTER E AS EXPLICAÇÕES METAFÍSICAS DA MECÂNICA NA IDADE MODERNA
Introdução
A
Idade Moderna foi profícua no entendimento físico do funcionamento do universo. Newton, por exemplo, deixou um legado que ultrapassou os séculos fixando sua influência em domínios, como: teoria das ondas luminosas, teoria cinética do calor, compreensão da eletricidade e do magnetismo e descobertas de Faraday e Maxwell em eletrodinâmica e óptica. Sua física norteou a ciência por mais de duzentos anos – até a primeira metade do século XX –, quando Einstein demonstrou que a física precisava crescer para além da estrutura newtoniana. No entanto, em sua produção teórica e experimental, é inegável o tributo de precursores como Descartes e Boyle. Desses, Newton extrai elementos metafísicos que o inspiram e o orientam como, por exemplo, a noção do elemento que comporia o espaço absoluto. O presente capítulo tem, portanto, a intenção de apresentar o pensamento desses autores no que concerne à origem e aos fundamentos da metafísica mecânica na modernidade. Para tal, escolhemos dois elementos-chave na história da construção da realidade moderna: o átomo e o éter. Ambos suprem a necessidade de construção de teorias que vislumbram a criação de sistemas universais, cuja inteligibilidade não é questionada por ser fundamentada em bases dedutivamente sólidas. Aqui, as filosofias mecânicas propostas por Descartes e Boyle, ainda que possam representar algum avanço ante o pensamento de Galileu, não conseguem se divorciar da influência exercida pela metafísica em séculos de história do atomismo.
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4.1 O dualismo metafísico de Descartes e a resposta ao problema das qualidades secundárias Galileu havia firmado o ideal da ciência moderna quando disse que a filosofia estava escrita no grande livro da natureza, escrito em linguagem matemática, cujos caracteres eram triângulos, circunferências e outras figuras geométricas. Ideal esse que foi muito bem assimilado por Descartes. Herdeiro da concepção de que o universo material poderia ser matematizado, Descartes propôs em sua geometria analítica que existia uma correspondência biunívoca entre o reino dos números (a aritmética e a álgebra) e o reino da geometria (o espaço). Em ciência, sua maior contribuição aparece em seu Discurso sobre o Método que, alicerçado na dúvida metódica e no raciocínio lógico, propõe sua metodologia: não aceitar acriticamente os dados do sentido, isto é, levantar suspeita sobre o que eles nos dizem e sobre os seus resultados, refletidos em nosso raciocínio. A única verdade totalmente livre da dúvida era a de que “os meus pensamentos existem” e tal existência se confunde com a minha própria. Com isso, chega à sua famosa sentença: cogito ergo sum, ou melhor, “penso, logo existo”. Com seu método da dúvida, Descartes abalou profundamente o edifício do conhecimento estabelecido e celebrizou-se muito mais pelas questões que levantou do que pelas respostas encontradas. De seu cogito pode-se extrair uma importante consequência: a de que o pensamento (consciência) é mais certo do que a existência (matéria corporal). É a partir do “penso” que se conclui pelo “existo”, portanto, o pensamento precede à existência. Com isso, Descartes fixa um aspecto famoso de sua metafísica, o dualismo das entidades fundamentais e mutuamente independentes, a res extensa e a res cogitans, isto é, “coisa extensa” e “coisa pensante”. A coisa extensa pertence ao mundo dos corpos, cuja essência é a extensão: cada corpo é parte do espaço, uma grandeza espacial limitada, diferente dos demais corpos apenas por diferentes modos de extensão e cognoscível apenas pela matemática pura (num mundo geométrico). Já a coisa pensante, constituinte do mundo interior, tem o pensamento como sua essência e cujo modo é composto por processos subsidiários, como a percepção, a vontade, o sentimento, a imaginação etc.; reino que não é dotado de extensão, que é independente do outro, onde tudo o que existe nele é a substância pensante. Essa dicotomia cartesiana cria para Descartes um problema
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que também é dual: em qual reino devemos colocar as qualidades primárias e em qual devemos colocar as secundárias? Quanto à forma, extensão, peso etc. (qualidades primárias), já está resolvido que pertencem à res extensa; e a cor, o odor, o sabor etc. (qualidades secundárias) pertencem a qual reino? A resposta é do próprio Descartes: “na verdade, elas não podem ser representativas de nada que exista fora de nossas mentes” (DESCARTES, 1978, Princípios, 70, 17). “Elas são, por certo, causadas pelos vários efeitos que os movimentos das partes pequenas e imperceptíveis dos corpos produzem em nossos órgãos” (DESCARTES, 1824, p. 235). E aqui Descartes parece ter entrado no mesmo campo minado de Galileu, primeiramente, por admitir tais qualidades (aquelas que estavam envolvidas na querela da Eucaristia) como algo que não exista fora de nossa mente (só faltou dizer que estas são apenas nomes) e por reduzi-las ao efeito proporcionado por uma realidade corpuscular. Aqui temos o Descartes corpuscularista, conforme vimos no Capítulo II. Segundo Redondi (1991, p. 78), Descartes teria sido aquele que “aprendeu admirar Galileu desde os tempos de colégio” e que é certo que “em 1638 Descartes conhecia perfeitamente as teorias atomísticas de Galileu” (REDONDI, 1991, p. 313). No entanto, mesmo na certeza de que teria sido ele, juntamente com Gassendi, que teria introduzido o atomismo/corpuscularismo na ciência moderna (SCHRÖDINGER, 1996. p. 78), não é fácil identificar imediatamente o percentual de influência que ele teria herdado do pensamento de Galileu, “dada à bem conhecida reticência cartesiana em indicar as próprias fontes, em reconhecer os próprios débitos intelectuais e em recordar explicitamente os livros lidos, ainda que por uma simples menção breve e rápida (REDONDI, 1991, p. 314). Certo é que em 1630 ele estava trabalhando em um projeto audacioso onde estudava os fenômenos dos cometas (assim como o Saggiatore de Galileu, mas de um outro ponto de vista) e da luz, com o qual pretendia elaborar uma física toda inteira. Dessa época, tem-se uma carta onde ele escreve de Amsterdam para o padre Mersenne (DESCARTES, 1630, p. 177-182) falando desse seu projeto. Dentre outras coisas, afirma: Quero ali inserir um discurso em que tentarei explicar a natureza das cores e da luz, no qual me detenho há seis meses, e do qual ainda não está feita nem a metade. Mas ele será também mais longo do que penso e conterá quase uma Física toda inteira; de modo que pretendo que ele
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servirá para desincumbir-me da promessa que vos fiz, de ter terminado meu Mundo em três anos, porque será quase um resumo dele. [...] Creio que vos enviarei esse discurso sobre a luz, assim que estiver pronto, e antes de enviar-vos o resto da Dioptrique: porque querendo aí explicar as cores a minha moda, e em consequência estando obrigado a explicar como a brancura do pão permanece no Santo Sacramento, ficarei mais à vontade se ele for examinado por meus amigos, antes que visto por todo mundo (grifos nossos).
Como se vê, Descartes acaba por entrar na mesma discussão que Galileu e tantos outros entraram e, por tal, sofreram represálias e sérias perseguições por parte da Igreja. Não seria concebível que um pensador de sua envergadura trilhasse o mesmo caminho que os seus predecessores e insistisse no mesmo “erro” do passado, mas essa foi a sua escolha. Com relação às qualidades secundárias, Descartes orienta sua análise das sensações para os fundamentos da física, acabando por criticar as qualidades escolásticas e assumindo o corpuscularismo de Galileu. O “meu Mundo” sobre qual Descartes havia incumbido de escrever em três anos era, na verdade, o Monde ou Traité de La Luminère. Nesse trabalho, o que ele propunha era tratar dos problemas cognitivos gerais das sensações e da física, terminando-o ao analisar os fenômenos dos cometas (justamente o caminho inverso de Galileu). E o ponto crucial de sua argumentação é o entendimento de que as qualidades secundárias são reconhecidas como qualidades subjetivas; não existe objetividade nos fenômenos sensíveis. Descartes parecia, porém, recordar muito bem o que Galileu escrevera no Saggiatore, tão bem que o Monde, para criticar a teoria escolástica das qualidades sensíveis, usava o exemplo muito sugestivo – utilizado também no Saggiatore – da pena que produz uma sensação de cócegas nas partes sensíveis do corpo sem possuir nenhuma virtude titilante: “uma criança que dorme”, lê-se no Monde, “sobre cujos lábios se passe suavemente uma pena sentirá cócegas: pensais talvez que a ideia de cócegas por ela concebida seja semelhante a qualquer coisa que exista na pena?”. “Aquela titilação”, podia-se continuar a ler no Saggiatore, “está toda em nós e não na pena” (REDONDI, 1991, p. 315).
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Não estamos diante do mesmo problema enfrentado por Galileu no Saggiatore? Certo é que, como no Saggiatore, em Monde, temos a eliminação da qualidade e dos acidentes da filosofia escolástica, que são substituídas pelos movimentos locais de partes de matéria: partes mínimas de terra, de ar e de fogo. Cor, odor, calor etc. não podem ser representativos de nada que exista fora de nossas mentes; possuímos conhecimento dessas qualidades quando as consideramos simplesmente como sensações ou pensamentos. Quando elas são consideradas como certas coisas que subsistem além de nossas mentes, somos totalmente incapazes de formar qualquer conceito a seu respeito. Com efeito, quando alguém nos diz que vê a cor de um corpo ou que sente dor em uma perna, isto é exatamente o mesmo que dizer que ele viu ou sentiu algo cuja natureza ignora totalmente, ou que não sabia o que viu ou sentiu (DESCARTES, Princípios 68 e seg.). Podemos imaginar facilmente como o movimento de um corpo pode ser causado pelo de outro e diferenciado pelo tamanho, configuração e situação de suas partes, mas somos totalmente incapazes de conceber como essas mesmas coisas (tamanho, configuração e movimento) podem produzir algo cuja natureza é inteiramente diferente da delas próprias, como, por exemplo, as formas substanciais e qualidades reais que muitos filósofos supõem existir nos corpos (DESCARTES, Princípios 198, 199). Mas como sabemos, pela natureza de nossa alma, que os diversos movimentos do corpo são suficientes para produzir nele todas as sensações que experimenta e como aprendemos pela experiência que muitas de suas sensações são, na verdade, causadas por tais movimentos, enquanto não descobrimos que qualquer coisa além desses movimentos passa dos órgãos dos sentidos ao cérebro, temos razão para concluir que não apreendemos, de modo algum, aquilo que nos objetos exteriores denominamos luz, cor, odor, paladar, som, calor ou frio, e as demais qualidades tácteis, ou aquilo que denominamos suas formas substanciais, a não ser como as várias disposições desses objetos que têm o poder de impressionar nossos nervos de diferentes modos (DESCARTES, Princípio 2).
Vê-se explicitamente o dualismo metafísico manifesto no pensamento de Descartes: por um lado, o mundo é uma máquina estendida no espaço e, por
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outro, consiste em espíritos pensantes. Tudo o que foge à esfera da extensão, fisicamente matematizável, pertence à esfera do pensamento – e esse é o caso das qualidades secundárias. Onde estaria então o envolvimento da filosofia de Descartes com problemas religiosos então em voga? Em 1633 o livro Monde estava concluído, no entanto, seu lançamento foi suspenso por Descartes dado o que havia acontecido com Galileu. Mas, quais eram os problemas que ele apresentava? Justamente os mesmos apresentados por Galileu: uma teoria corpuscular que feria frontalmente os dogmas da Igreja com relação à Eucaristia. Em linhas gerais, o problema era esse: Monde mantinha as críticas de Princípios de Filosofia de que as qualidades secundárias (cor, odor, sabor etc.) eram dados subjetivos e identificava matéria com extensão. E quais eram as objeções à sua teoria? Eram as de que a concepção corpuscular e a identificação entre substância e extensão ou quantidade significavam, como todos sabiam, negar a objetividade das espécies eucarísticas e tornar contraditória a transubstanciação. Se, como queria Descartes, a matéria é extensiva, então, como na hóstia consagrada permanece a extensão original, permanecerá também a substância original18. Como se vê, traduzir a segunda parte do dogma, aquela sobre as espécies sensíveis, em termos cartesianos significava falsificar a primeira parte, a da transubstanciação (REDONDI, 1991, p. 316).
De qualquer maneira, dados os precedentes de Descartes que, em 1649, teria sido denunciado por heresia eucarística em virtude da física corpuscular dos Princípios, em 1662, teve sua obra condenada pela Congregação do Índex: por sua recusa dos acidentes reais sem sujeito e por ter promovido a associação da substância com a extensão. Em virtude disso, o Monde só foi publicado postumamente em 1664. Se Galileu aboliu de sua ciência as substâncias e a causas escolásticas em favor da noção de que os corpos são compostos de átomos irredutíveis, dotados exclusivamente de qualidades matemáticas, que se movem no espaço e no tempo, infinitos e homogêneos, e em cujos termos o processo real do 18 A pergunta de Descartes teria sido: “Quando uma substância corpórea é transformada em outra, e todos os acidentes da primeira permanecem, o que é que mudou?” (Nota nossa).
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movimento pode ser formulado matematicamente, Descartes é quem radicaliza essa noção. Seu pensamento, orientado por uma experiência mística e fortalecido pela sua invenção da geometria analítica, transcende fronteiras. Quando vê que nem todas as qualidades podem ser redutíveis a um sistema geométrico, Descartes propõe uma metafísica que dava conta de explicar as qualidades que não pertencem ao mundo da natureza. Era só bani-las do domínio do espaço e classificá-las como modos do pensamento – substância totalmente diferente da extensão e que existe independente dela. E assim nasce o conceito de res cogitans, que dá conta de responder à questão fundamental da existência das qualidades secundárias. As qualidades do movimento com as quais Galileu se ocupava também foram explicadas pela metafísica mecânica de Descartes. O movimento que se dá por impacto sucessivo fornecia explicação para todas as experiências que contradiziam a existência de um vácuo na natureza, mas, no entanto, dependia da suposição de um meio etéreo onipresente que se formava por uma série de vórtices de diversos tamanhos que proporcionava a explicação, por exemplo, da gravidade de modo inteiramente mecânico. E foi essa vaga caracterização de éter, que ocultava a real explicação do movimento, que inspirou Robert Boyle, um dos precursores da química moderna, a construir um sistema metafísico explicativo dos principais problemas que ocupavam os modernos e que inspirou diretamente Isaac Newton.
4.2 A metafísica de Boyle como resposta aos problemas da ciência moderna Robert Boyle (1627-1691), físico e químico irlandês, escreveu O Químico Cético (1661), onde defendeu o ideal de que as substâncias devem ser estudadas por meio de experiências práticas e que só são corretas as teorias comprovadas por experiências. Mesmo assim, foi ele responsável por uma importante construção metafísica explicativa da realidade na modernidade. Sua teoria não traça os limites de sua atuação como químico ou como filósofo: aceita a visão mecânica cartesiana de mundo, valoriza as explicações qualitativas e teleológicas, insiste na realidade das qualidades secundárias (até então, combatidas por seus predecessores), mantém uma visão pessimista sobre o conhecimento humano e constrói sua estranha filosofia do éter. Tudo isso tendo em vista que
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jamais perdera sua visão religiosa, onde Deus e o mundo mecânico mantêm uma relação de intimidade. O ponto a ser destacado sobre o trabalho de Boyle, e que serve diretamente aos nossos interesses, é que ele remonta ao corpuscularismo, que foi introduzido na ciência moderna pela obra de Descartes. “Ora, não é casual que Boyle evite enfaticamente utilizar a palavra atomismo nas suas obras e tenha optado por corpuscularismo. A última coisa que nosso cristão virtuoso almejaria é ser confundido com um ateu, ímpio e materialista” (ZATERKA, 2004, p. 72). No entanto, sua concepção de filosofia corpuscular ou de filosofia mecânica pretende ser apresentada subtraída as conotações metafísicas dos que o precederam. Supus poder prestar pelo menos um serviço não-desprezível aos filósofos corpusculares ilustrando algumas de suas noções com experimentos sensoriais e manifestando que as coisas por mim tratadas podem ser pelo menos plausivelmente explicadas sem recurso a formas inexplicáveis, qualidades reais, os quatro elementos peripatéticos, ou ainda os três princípios químicos (BOYLE, 1672, p. 356).
Sua proposta era a análise química das coisas que nos rodeiam, análise essa que fosse para além dos métodos místicos e mágicos da alquimia (que considerava o sal, o enxofre e o mercúrio como os três princípios químicos constituintes últimos da matéria), dos quatro elementos peripatéticos (água, fogo, terra e ar) e das concepções de átomo como entidade metafísica subjacente a toda realidade. Tratava-se de uma química fundamentada na análise racional dos fatos sensoriais e confirmada pela experiência. Mesmo cheio de boas intenções, talvez pelas suas convicções religiosas, Boyle deixou-se atraiçoar quanto à sua fundamentação na experiência. Propôs a defesa de uma visão mecânica de mundo (mesmo que as fronteiras da mecânica até o presente momento ainda não estivessem totalmente delimitadas), onde a matemática (a metafísica matemática aos moldes de Galileu e Descartes) serviria à interpretação atomística do mundo (BURTT, 1983). Sua concepção era a de que os princípios matemáticos eram “o alfabeto com que Deus escreveu o mundo”: “Encaro os princípios metafísicos e matemáticos [...] como verdades de tipo transcendental, que não pertencem propriamente seja
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à filosofia, seja à teologia, mas que constituem bases universais e instrumentos de todo o conhecimento que nós, mortais, podemos adquirir” (BOYLE, 1672, VI, p. 711). A visão mecânica da natureza envolve, portanto, uma concepção mecânica de suas operações: quase todos os tipos de qualidades podem ser produzidos mecanicamente e, em última análise, os agentes corpóreos podem ser redutíveis a corpúsculos, dotados apenas de qualidades primárias. Das qualidades primárias, Boyle destaca especialmente o movimento e tenta explicar toda variedade e mudança através dele. É a partir da matéria, posta em movimento, que todos os fenômenos podem ser explicados (sejam eles os infinitamente grandes ou infinitamente pequenos). O movimento, que parece um princípio tão simples, especialmente nos corpos simples, pode, mesmo neles, ser muito diversificado; pois ele pode ser mais ou menos rápido em graus infinitamente variados; pode ser simples ou composto, uniforme ou variado, e a maior rapidez pode ocorrer no início ou no fim. O corpo pode mover-se em linha reta, ou circular, ou segundo alguma outra linha curva; [...] o corpo pode também ter movimento ondulante, [...] ou apresentar rotação ao redor de suas partes centrais, etc. (BOYLE, 1672, III, p. 299).
A explicação que Boyle dá do mundo a partir do movimento visa, na verdade, demonstrar que, pelas suas permutações e combinações, um número pequeno de diferenças primárias de movimento, figura e volume pode dar origem, a partir de várias combinações possíveis, a uma grande diversidade de fenômenos. E esses movimentos, assim como pensavam Galileu e Descartes, deveriam ser explicados em termos matemáticos exatos. Mas se até agora Boyle parece apresentar uma concepção coerente de realidade, explicada em termos matemáticos, qual é a sua contribuição para uma metafísica explicativa da realidade? Era justamente nesse ponto que pretendíamos chegar. Ao propor a explicação dos fenômenos a partir das qualidades primárias do movimento, do volume e da forma, Boyle não conseguiu fugir das famigeradas qualidades secundárias e, para elas, não alcança explicações que se esquivem das dos peripatéticos: “não se deve desprezar as explicações em que efeitos particulares são deduzidos a partir das mais óbvias e familiares qualidades ou estados dos corpos, tais como o calor, o frio, o peso, a fluidez, a dureza, a
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fermentação, etc.” (BOYLE, 1672, I, p. 308). E o que ele faz, além de confirmar a realidade das qualidades secundárias, é reafirmar uma posição com a qual se mantém fiel à antiga noção de causa final – todas as qualidades apontam para algo que transcendentalmente as antecede: existe “a admirável cooperação das diversas partes do universo para a produção de efeitos particulares; e é difícil dar explicações satisfatórias para todos eles sem reconhecer um ser inteligente que crie ou disponha das coisas” (BOYLE, 1672, II, p. 76). A adesão de Boyle a conceitos que pareciam terem sido superados pelos seus predecessores deve-se única e exclusivamente à sua necessidade de resgatar o homem do materialismo do século XVII. O mundo real era o domínio dos pensamentos de Galileu e Descartes; esse mundo era matemática e mecanicamente inteligível e todo esforço racional devia-se à explicação do seu funcionamento. A razão tornou-se, então, o fundamento último de sua explicação. No entanto, essa visão que dominou a época, esqueceu-se do homem e o colocou como uma espécie de apêndice, puro espectador da natureza. “Contrapondo-se a essa tendência aparentemente irresistível de expulsar o homem da natureza e de diminuir sua importância, Boyle empenhou-se positivamente em reafirmar o lugar factual do homem no cosmos e sua dignidade singular como filho de Deus” (BURTT, 1983, p. 142). E é por isso que as qualidades primárias não são mais reais que as secundárias: elas estão no homem e, “uma vez que o homem, com seus sentidos, é parte do universo, todas as qualidades são igualmente reais”. Como ele próprio afirma, “não vejo a necessidade de que a inteligibilidade com relação ao entendimento humano seja necessária para a verdade ou a existência de uma coisa, assim como a visibilidade com relação ao olho humano não é necessária para a existência de um átomo, ou de um corpúsculo de ar, ou dos eflúvios de um imã, etc.” (BOYLE, 1672, IV, p. 450). E, justamente pensando nessa noção de não necessidade da inteligibilidade das coisas para que elas de fato existam, é que Boyle propõe uma das mais estranhas (no entanto, muito comum em sua época) concepções metafísicas da história da química moderna: a filosofia do éter. Como se disse, na época de Boyle era muito comum a crença na existência de um meio etéreo – seja para justificar a comunicação do movimento por impacto sucessivo ou através das distâncias (Descartes), ou para explicar os fenômenos do magnetismo. Ele próprio, num primeiro momento, encarou-o
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como algo duvidoso, mas a posteriori admitiu que pudesse sim existir uma substância etérea “muito tênue e difusa”. Considerei que a parte interestelar do universo, consistente de ar e de éter, ou de fluidos análogos a um deles, é diáfana; e que o éter é como se fosse um vasto oceano no qual os globos luminosos, que, aqui e ali, nadam como peixes, por seus próprios movimentos, ou que, como corpos em redemoinhos, são transportados pelo ambiente, encontram-se grandemente dispersos, de modo que a proporção das estrelas fixas e dos corpos planetários com relação à parte diáfana é extremamente pequena e mal pode ser considerada (BOYLE, 1672, IV, p. 451).
Essa “substância”, em Descartes, era concebida como um fluido homogêneo e fleumático que preenchia todo o espaço (com uma série de vórtices de diversos tamanhos) não ocupado por outros corpos e que não possuíam características que não pudessem ser deduzidas da extensão. Em Boyle o éter mostraria sua serventia na medida em que pudesse encontrar nele dois tipos de matéria: uma que explicasse a comunicação por movimento e a outra que justificasse os fenômenos do magnetismo. E ele vai encontrar justamente na teoria corpuscular a orientação de que precisava para comungar essas duas dificuldades da ciência moderna em uma filosofia do éter19. Afirma: Pode, portanto, não ser desarrazoado confessar-vos que entretive leves suspeitas de que, além dos tipos mais numerosos e uniformes de partículas diminutas de que alguns dos novos filósofos pensam que é composto o éter sobre o qual venho discorrendo, é possível a existência de outros tipos de corpúsculos, capazes de consideráveis operações quando encontram corpos congruentes sobre os quais podem atuar; mas, embora seja possível, e talvez provável, que os efeitos que estamos considerando possam ser explicados plausivelmente pelo éter, tal como ele é realmente entendido, tenho certas suspeitas de que tais efeitos possam não ser devidos exclusivamente às causas que lhes são imputadas, mas sim que possivelmente existam, como eu começava a dizer, tipos peculiares de corpúsculos, que até aqui não tem nome próprio, que podem revelar faculdade e maneiras de 19 Reforça-se, portanto, nossa tese de que boa parte das teorias da ciência precisa recorrer à metafísica no intuito de justificar o injustificável – e esse foi, também, o caso de Boyle.
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atuar peculiares ao encontrar-se com corpos cuja estrutura os leve a admitir a eficácia desses agentes desconhecidos ou a concorrer para ela. Esta minha suspeita parecerá menos improvável se considerardes que, embora no éter dos antigos não existisse nada que se pudesse notar além de uma substância difusa e muita tênue, hoje estamos dispostos a admitir que existe permanentemente no ar uma multidão de eflúvios que se movem em um curso determinado entre o pólo norte e o pólo sul (BOYLE, 1672, III, p. 316, grifos nossos).
Como se vê, a introdução do éter na teoria boyliana segue o mesmo princípio de seus antecessores, salvo acréscimos sutis no que concerne ao encontro com os corpos congruentes sobre os quais podem atuar, isto é, trata-se de uma teoria corpuscular, onde o éter é composto dos tipos mais numerosos e uniformes de partículas diminutas. Certo é que, mesmo sem um aparato na experiência, a concepção do éter serviu para preencher duas funções distintas sobre as quais os modernos debatiam: a explicação da propagação do movimento através de distâncias e a explicação de fenômenos tais como a coesão, o magnetismo etc. que, até então, não podiam ser reduzidos à matemática exata. E essa “distinção entre dois tipos de matéria etérea, feita com o objetivo de que o éter pudesse fornecer uma explicação adequada para estes dois tipos de fenômenos, será novamente examinada com Newton” (BURTT, 1983, p. 149). Enquanto trata do éter como uma necessidade de um princípio explicativo de algo que até então era inexplicável, Boyle debate com o mesmo problema de seus predecessores, que é o de responder: o que é o éter? De que é composto? Com qual matéria do universo ele se identifica? Para tais perguntas, dada a impossibilidade concreta de resposta, ele se vê, também, obrigado a recorrer à “realidade” corpuscular como válvula de escape para resolução dos problemas teóricos, ainda que não houvesse qualquer prova empírica irrefutável da existência física dos corpúsculos/átomos. E, mais uma vez, é a metafísica que, na obra de Boyle, sobrepõe-se a uma explicação que se pretendia química dos fenômenos. É Newton quem assumirá o compromisso da explicação da realidade onde todas as hipóteses seriam eliminadas, restando somente a experiência para confirmar os dados da natureza. Quanto ao sucesso de seu projeto, a história já nos certificou.
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Considerações finais Apresentamos os pensamentos de Descartes e Boyle sobre os elementos metafísicos que compuseram suas teorias. Conforme se viu, os corpúsculos e o éter preenchiam a necessidade de explicação de fenômenos que, se não injustificados, encontravam-se ainda inconclusos. As qualidades secundárias já haviam sido motivo de disputa e de condenações na Idade Média e início da Idade Moderna. Não se admitia qualquer teoria, mesmo sob justificativa de cunho metafísico, que viesse ferir os dogmas da Igreja Católica sobre os mistérios eucarísticos. Querer propor qualquer teoria de cunho atomista ou corpuscularista que negasse os mistérios da transubstanciação, por entender que a matéria continuava a mesma depois da pronunciação da fórmula litúrgica, era negar a interferência do divino na materialidade criada. Descartes, então, tal como Galileu, mesmo percebendo o campo minado no qual estava pisando, manteve a sua vocação científica propondo bases corpuscularistas para a constituição do universo. Sua postura redundou, como é sabido, no adiamento da publicação do seu Monde, que só veio a ser levado a público postumamente. Ele intentou também a explicação do funcionamento da gravidade de modo inteiramente mecânico. O movimento que se dava por impacto sucessivo fornecia explicação para todas as experiências que contradiziam a existência de um vácuo na natureza e dependia da suposição de um meio etéreo onipresente que se formava por uma série de vórtices de diversos tamanhos. É justamente a concepção de um meio etéreo e, consequentemente, a admissão de que existe o elemento éter que servirão de inspiração para teoria de Boyle. Vimos que a proposta do cientista irlandês era justamente utilizar do éter como elemento que pudesse justificar os fenômenos do magnetismo, isto é, da atração à distância de corpos que possuem tal capacidade. Posto entre as estrelas, o éter era visto como um grande oceano no qual os “globos luminosos” flutuavam e se sustentavam. Ele servia, assim, como uma justificativa metafísica mecânica para a comunicação do movimento e para os fenômenos do magnetismo. Mesmo que se esperasse do gênio experimental de Newton a superação do éter para a explicação da ação à distância – o que não aconteceu –, foram Michelson e Morley, em 1887, que mediante experimentos demonstraram que a velocidade da luz era a mesma em qualquer direção e em qualquer
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momento. Portanto, ao se acreditar que tal velocidade fosse diminuída quando do movimento de “subida” pelo éter, viu-se que nada disso acontecia, pois a luz não muda sua velocidade independentemente de estar “subindo ou descendo a corrente” ao viajar através de um éter inexistente. E foi assim que se viu a derrocada do éter na história da ciência como um dos mais interessantes elementos de explicação da ação mecânica do universo, mas que não ultrapassava a condição imaterial e metafísica de existência.
Referências BOYLE, Robert. The Works of the Honorable Robert Boyle. Londres: Ed. Thomas Birch, 1672. 6 v. BURTT, E. A. As Bases Metafísicas da Ciência Moderna. Tradução de José Viegas Filho, Orlando Araújo Henriques. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1983. DESCARTES, R. Carta ao padre Mersenne, 25 nov. 1630, AT, I, p. 177-182. DESCARTES, R. Opere, VI, p. 348, linhas 31-32 apud REDONDI, 1991. DESCARTES, R. Princípios da Filosofia. Lisboa, 1978. Parte I. REDONDI, P. Galileu Herético. Tradução de Julia Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. SCHRÖDINGER, E. A Natureza e os Gregos. Tradução de Jorge Almeida e Pinho. Lisboa: Edições 70, 1996.
CAPÍTULO V
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Introdução
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onhecido como uma das mentes mais brilhantes da história da humanidade, Isaac Newton (1643-1727) foi imortalizado por sua obra mais significativa, o Philosophiae naturalis principia mathematica (Princípios Matemáticos da Filosofia Natural), de 1687. Nela ele consegue promover a unificação dos corpos planetários e terrestres por meio de um conjunto de equações capazes de prever exatamente – com base no volume de um corpo qualquer, na velocidade e na direção do movimento – como esse corpo se movimentaria sob o impulso de uma força conhecida. Com isso, postulou que se fosse dado a conhecer as posições e forças de todas as coisas no universo em um determinado instante, e se predissesse o curso integral dos acontecimentos desde os maiores corpos do universo aos mais leves átomos, nada seria incerto, e o futuro, à semelhança do passado, estaria presente diante dos olhos. Mas foi a elaboração da lei da gravidade o grande feito de Newton20. Sua ideia foi a de que existe uma força invisível que exerce controle sobre a matéria sem haver um contato físico direto. A palavra gravidade foi cunhada a partir da palavra latina gravitas, que significa “peso”. Com ela Newton explicou com tanta precisão os movimentos das luas de Júpiter, de Saturno e da Terra, bem como os movimentos de todos os planetas ao redor do sol, que nos duzentos anos seguintes poucas melhorias significativas foram feitas em relação à sua obra. Essa força invisível está em ação entre as massas e é proporcional ao valor delas e inversamente proporcional ao quadrado da distância entre elas. 20 Dado o desenvolvimento da Teoria da Relatividade Geral no século XX, a gravitação universal newtoniana se torna uma aproximação, um caso limite da relatividade para baixas velocidades e campos gravitacionais “clássicos”, em que a curvatura do espaço-tempo é relativamente “suave”.
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Isso significa que se duas massas são separadas, a força da gravidade entre elas diminui de tal forma que, quando a distância chega a 10 vezes, a força é 100 vezes (quadrado de dez) menor do que a atração inicial. No caso do Sol, que está 400 vezes mais distante da Terra do que a Lua, o fator inversamente proporcional redutor da força gravitacional fica em cerca de 4002 (16.000) – mas essa enorme redução é compensada pela massa imensamente maior do Sol em comparação à da Lua (a proporção de massa Sol-Lua é 30.000.000:1). Assim, a Terra orbita o Sol. Toda essa explicação faz parte do terceiro livro21 do Principia, que termina por explicar os movimentos precisos da Lua e ensinar que as marés oceânicas se devem à atração gravitacional da Lua e do Sol sobre as águas. Além disso, calcula a atração do Sol sobre os cometas. Mas é sabido que as correspondências entre Newton e Boyle eram frequentes e que seu pensamento, especialmente no que concerne à aceitação de um meio etéreo universal, teria sido influenciado por esse último22. Faz-se necessário, portanto, entender o pensamento de Boyle (previamente exposto) no cenário da ciência moderna, levantar suas principais contribuições para o desenvolvimento da física clássica para, somente mais tarde, averiguar quem é o “Newton metafísico” – proposta principal desse capítulo.
5.1 Os componentes metafísicos da física newtoniana Uma das principais preocupações do pensamento de Newton foi com a busca de uma resposta à pergunta sobre como se altera o estado de movimento de uma massa puntiforme (que tem forma ou aparência de ponto) num tempo infinitamente curto sob a influência de uma força externa. Para essa questão, ele chegou à resposta analisando a trajetória de uma partícula ideal. Aplicou as suas leis do movimento a um pequeno intervalo de tempo e, com isso, previu a posição da partícula e a velocidade ao final desse intervalo. E essa experiência, 21 O Principia que granjeou imediatamente uma fama para Newton, na verdade, é um livro muito complexo e difícil de compreender (cinquenta anos se passaram até que o esquema newtoniano fosse plenamente aceito e ensinado nas escolas e universidades). Ele se divide em três livros, embora tenha sido publicado em um único volume em 1687: o primeiro livro trata da mecânica e explica a razão por que os corpos se movem de determinada maneira no espaço vazio; o segundo livro trata do movimento dos corpos em meios que oferecem resistência, como o ar ou a água; e o terceiro livro é o que trata da estrutura e funcionamento do sistema solar e da gravidade.
22 “Seu próprio pensamento sobre o assunto parece ter sido estimulado intimamente por Boyle, com quem tinha estreita comunicação a respeito de tais questões, como prova sua carta, datada de 1678, ao famoso químico” (BURTT, 1983, p. 149).
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que foi repetida sucessivas vezes aplicando o mesmo cálculo, permitiu-lhe estimar a trajetória total. E isso só foi possível com a aplicação de um atalho matemático que ele inventou (paralelamente a Gottfried Leibniz – 1646-1716) chamado cálculo diferencial. Com o cálculo ele conseguiu abreviar o processo passo a passo, o que lhe possibilitou analisar o que acontece à velocidade de uma partícula em movimento à medida que a diferença temporal se torna infinitesimal. Nisso resultou as suas três conhecidas leis do movimento: a) a primeira afirma que “todo corpo persevera em seu estado de repouso ou de movimento retilíneo uniforme, a menos que seja compelido a mudar seu estado por forças aplicadas”. Em outras palavras, um corpo continuará em repouso a menos que uma força atue sobre ele, e um corpo em movimento retilíneo uniforme continuará a mover-se na mesma velocidade em linha reta a menos que uma força atue sobre ele. Isso quer dizer que uma bola completamente lisa em uma superfície plana perfeita somente se moverá se uma força atuar sobre ela. Se uma força a faz começar a rolar e se ela não encontra nenhum atrito com a superfície ou algum obstáculo em seu caminho, ela continuará rolando na mesma direção para sempre. Esse princípio pode também ser chamado princípio da inércia, sendo esta a propriedade da matéria que a faz resistir a qualquer mudança em seu movimento; b) a segunda lei enuncia que “uma alteração no movimento é proporcional à força motora e ocorre ao longo da linha reta na qual tal força é aplicada”. O que quer dizer que a aceleração (taxa de variação do movimento23) é diretamente proporcional à força. Por exemplo, quanto maior a força gerada pelo motor de um automóvel, mais o carro se acelerará. O dobro da força duplicará a aceleração; c) no caso da terceira lei, essa afirma que “para qualquer ação existe sempre uma reação oposta e idêntica; em outras palavras, as ações de dois corpos um sobre o outro são sempre idênticas e sempre opostas em termos de direção”. Por exemplo, a ação de uma bala disparada por um revólver resulta na reação do coice da arma. Ou então, quando estamos sentados em uma cadeira, esta exerce uma força para cima de nós para 23 A “quantidade de movimento”, ou “movimento”, é dada pelo produto da massa de um corpo por sua velocidade: “F=ma”.
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compensar o nosso peso, que pressiona para baixo. Dizia Newton que isso acontece também no céu: enquanto a Terra exerce um arranjo gravitacional sobre a Lua, mantendo-a em órbita, a Lua faz o mesmo em relação à Terra, criando as marés nos oceanos. O ponto fraco da teoria gravitacional de Newton concentra-se, no entanto, na exigência promovida por esta da existência de um tempo e espaço absolutos. E é justamente esse o rito de passagem de sua física para a metafísica. É sabido de todos a obsessão de Newton pela conclusão experimental de suas teorias. Tanto é que somente vinte anos depois de ter chegado a todas as conclusões do Principia e encorajado pelo matemático Edmond Halley (16561742), que arcou com os custos da publicação, que tais conclusões chegaram a público. Sua justificativa era a de que para as suas descobertas seriam necessárias mais experimentações e provas. Determinados cálculos não lhe pareciam precisos, pois eram baseados no valor aceito (mais incorreto) do diâmetro da Terra e ele não admitia hipóteses. “Se ainda houver alguma dúvida [sobre minhas conclusões], é melhor colocar o caso em circunstâncias mais aprofundadas do experimento do que aquiescer à possibilidade de qualquer explicação hipotética” (NEWTON, Opera, 1779 apud BURTT, 1983, p. 173). Isso porque qualquer coisa não deduzida de fenômenos deve ser chamada de hipótese; e hipóteses, sejam metafísicas ou físicas, referentes a qualidades ocultas ou mecânicas, não têm lugar na filosofia experimental. Nesta filosofia, proposições particulares são inferidas dos fenômenos, e tornadas gerais, em seguida, por indução. Assim foi que a impenetrabilidade, a mobilidade, e a força impulsiva dos corpos, e as leis de movimento e de gravitação foram descobertas (NEWTON, Principles, III, 1803, p. 314).
Mesmo com tantas reservas com relação às hipóteses, suas concepções sobre espaço e tempo, especialmente sobre espaço e tempo absolutos, deixam margens para questionamentos, principalmente, sobre o valor não hipotético deles. E é justamente esse o ponto de convergência de sua teoria com as concepções metafísicas da ciência moderna. Apesar dos avanços de seus predecessores, foi com Newton que a natureza passou a ser pensada essencialmente como o domínio das massas que se movem de acordo com leis matemáticas no espaço e no tempo sob a influência
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de forças definidas e confiáveis. A definição de massa é dada por ele já no primeiro parágrafo do Principia e é feita em termos de densidade e volume. E a descoberta sobre ela é que possui diferentes pesos a distâncias diferentes do centro da Terra e que é composta em última análise de partículas absolutamente rígidas, indestrutíveis, impenetráveis etc. E todas as mudanças na natureza devem ser vistas como separações, associações e movimentos desses átomos permanentes que são predominantemente matemáticos. Aprendemos, pela experiência, que a maior parte dos corpos é dura; e como a dureza do todo deriva da dureza das partes, nós justamente inferimos, portanto, a dureza das partículas não divididas não somente dos corpos que percebemos, mas também de todos os outros. Não é da razão, mas, sim, da sensação que concluímos que todos os corpos são impenetráveis (...). E daí concluímos serem as menores partículas de todos os corpos também dotadas de extensão, duras, impenetráveis, capazes de serem movimentadas e dotadas de suas próprias vis inertiae (NEWTON, Principles, 1803, II, p. 161).
Vemos aqui que Newton também recorre à realidade do átomo24, até então desconhecido empiricamente, para explicar a composição última da matéria. Assim, é admissível o uso que é feito do atomismo, visto que é “óbvio” que por trás de todo real deve haver um componente último do mesmo real; que aquilo que caracteriza o todo deve caracterizar também a parte. Portanto, aqui, ainda é possível conceber os argumentos newtonianos como genuinamente físicos e manter o devido respeito a sua personalidade experimental. Mas as coisas se complicam na medida em que ele passa da definição de massa à definição de tempo e espaço absolutos – é nesse ponto que ele abandona seu empirismo, não conseguindo se esquivar da metafísica. Ele mesmo admite que ao oferecer caracterizações de espaço, tempo e movimento, “devemos abstrair-nos dos nossos sentidos e considerar as coisas por si próprias, distintas do que são apenas medidas perceptíveis delas” (NEWTON, Principles, 1803, I, p. 9).
24 “Pequenas partículas dos corpos de certos poderes, virtudes ou forças por meio dos quais agem a distância não apenas sobre os raios de luz, refletindo-os, refratando-os e inflectindo-os, mas também umas sobre as outras, produzindo grande parte dos fenômenos da natureza” (NEWTON, Opticks, 1721, p. 350).
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As definições newtonianas que se seguem, de tempo e espaço absolutos, são extraídas de Burtt (1983, p. 193-194): I – O tempo absoluto, verdadeiro e matemático, por si, e pela sua própria natureza, flui uniformemente, sem observar qualquer coisa externa, e é chamado, também, de duração: o tempo relativo, aparente e comum, é uma medida perceptível e externa (seja precisa ou variável) de duração por meio do movimento, que é comumente utilizada em vez do tempo verdadeiro, como uma hora, um dia, um mês, um ano. II – O espaço absoluto, por sua própria natureza, indiferente a qualquer coisa externa, permanece sempre similar e imóvel. O espaço relativo é uma dimensão móvel ou medida dos espaços absolutos; o que nossos sentidos determinam por sua posição relativa aos corpos, e que é vulgarmente tido como espaço imóvel; esta é a dimensão de um espaço subterrâneo, aéreo ou celeste, determinada por sua posição com relação à Terra. O espaço absoluto e o relativo são iguais em figura e magnitude; mas não permanecem sempre numericamente iguais. Porque, se a Terra se move, por exemplo, um espaço do nosso ar que, com relação à Terra, sempre permanece o mesmo, será em determinado momento parte do espaço absoluto no qual passa o ar; em outro momento, corresponderá a outra parte do mesmo, e assim, absolutamente compreendido, será perpetuamente mutável.
A confusão acaba de ser instaurada: o que é o tempo absoluto? E o relativo? E quanto ao espaço absoluto? E o relativo? Qual é a necessidade subjacente a essas divisões? O que as justifica? Todas essas respostas são dadas pelo próprio Newton, encaixam perfeitamente bem em seu sistema, mas parece-nos a contragosto da própria realidade empírica. “O tempo absoluto, verdadeiro e matemático, por si, e pela sua própria natureza, flui uniformemente [...]”. “O espaço absoluto, por sua própria natureza, indiferente a qualquer coisa externa, permanece sempre similar e imóvel [...]”. Vejamos um exemplo de sua justificativa: um passageiro de um barco se move em relação ao barco, o barco se move em relação à Terra, a Terra se move em relação ao Sol – e tudo o que é físico se move em relação a um referencial espaço-temporal que se encontra em “repouso”, absoluto. Quanto ao espaço e tempo absolutos, “estes são infinitos, homogêneos, entidade contínuas,
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inteiramente independentes de qualquer objeto perceptível ou movimento pelo qual tentamos medi-lo, e o tempo flui uniformemente da eternidade para a eternidade, e o espaço todo, ao mesmo tempo, em imobilidade infinita” (BURTT, 1983, p. 195). A questão que ora nos fica é: e qual é a natureza desse referencial universal? Ainda sem respostas para as confusas elucubrações de Newton, vem-nos imediatamente a questão de saber se a exigência de tempo e espaço absolutos convive com a concepção de um movimento absoluto ou mesmo um repouso absoluto? E o que seriam eles? A resposta é positiva. Quando um corpo se transfere de uma parte do espaço absoluto para outra parte, temos um movimento absoluto e quando há uma continuidade de um corpo na mesma parte do espaço absoluto temos o repouso absoluto. A existência de um movimento absoluto implica a existência de um ambiente infinito no qual podem mover-se, e a mensurabilidade exata daquele movimento sugere que esse ambiente é um sistema geométrico perfeito e um tempo matemático puro – em outras palavras, movimento absoluto sugere duração absoluta e espaço absoluto (BURTT, 1983, p. 202).
O que vemos aqui é que Newton, forçosamente, quer transformar tempo e espaço em entidades reais e absolutas que existem independentemente da mente humana, onde o movimento funciona na mais perfeita harmonia. Essa certeza proporcionou uma fundação sólida sobre a qual a ciência construiu o que veio chamar de “física clássica” e que funcionou perfeitamente bem até o advento da relatividade no século XX. Só que sua teoria se aplica bem ao movimento dos grandes sistemas; permite que uma inteligência humana, se lhe fosse dado conhecer as posições e forças das coisas no universo em um determinado instante, prediga o curso integral dos acontecimentos, desde os maiores corpos do universo aos mais leves átomos – desde que seus movimentos sejam harmônicos. Alguns religiosos de plantão, como era o caso Leibniz, que foi um crítico ferrenho de Newton, apontaram para aquilo que chamaram de influência anticristã dos Principia: as posições fundamentais foram as de que espaço e tempo infinitos e absolutos eram admitidos como entidades independentes, vastas, nas quais as massas moviam-se mecanicamente, e isso significaria dar a Deus
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férias de suas funções primordiais. Onde caberia a ação divina se tudo funcionasse como uma espécie de relógio, harmonicamente acertado? Deus parecia ter sido varrido da existência e nada havia para tomar o seu lugar, exceto esses seres matemáticos ilimitados. Isso ecoou mais intolerável para Newton do que a própria querela entre ele e Leibniz sobre o plágio que esse último teria feito de sua invenção: o cálculo infinitesimal25. Mas as acusações eram injustificadas. Esse relógio que era o universo, para Newton, não poderia funcionar para sempre sem a intervenção de Deus, pois, assim, sua necessidade seria supérflua. Certas irregularidades no sistema solar, não explicadas pelos movimentos dos planetas, poderiam sim tirar todo o sistema dos eixos, daí caberia a intervenção divina para colocar tudo novamente em ordem. Sua outra concepção sobre Deus é a de que Ele é o sensorium uniforme e ilimitado, onde todos os corpos se movem. Ele é o próprio espaço absoluto. É admitido por todos que o Supremo Deus existe, necessariamente; e pela mesma necessidade Ele existe sempre e em toda parte. Donde Ele também é todo similar, todo olho, todo ouvido, todo cérebro, todo braço, todo poder de percepção, para compreender e para agir; mas de maneira não-humana, não-corpórea; de maneira absolutamente desconhecida por nós (NEWTON, Principles, 1803, II, p. 311).
Essas duas concepções citadas (de Deus como coordenador do funcionamento da máquina e de Deus como sensorium), mais uma vez, foram motivo de escárnio por parte de Leibniz: primeiramente, “ria-se da suposição de que Deus seria uma espécie de encarregado de manutenção em nível astronômico”, segundo, quanto à ideia de que o espaço era uma espécie de sensorium de Deus, o questionamento de Leibniz era: “Será que Deus precisaria de órgãos sensoriais a fim de perceber?” (HELLMAN, 1999, p. 85-86). Certo é que Deus permanece intacto em seu sistema e que as concepções newtonianas, muito além de físicas, estão carregadas de uma robusta metafísica que as sustentam e as mantém.
25 Sobre a intriga entre Newton e Leibniz a respeito da anterioridade na invenção do cálculo, uma boa referência é: HELLMAN, Hal. Grandes Debates da Ciência: Dez das maiores contendas de todos os tempos. Tradução de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Editora Unesp, 1999.
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James Gleick, um biógrafo de Newton, diz que “Deus inspirou a crença de Newton em um espaço absoluto e um tempo absoluto”, mesmo assim, ele deve ter tido algumas dúvidas sobre a veracidade de um tempo e espaço absolutos, pois também observou em Principia: “Talvez não exista um movimento uniforme que possa servir para mensurar com precisão o tempo. Talvez nenhum corpo esteja efetivamente em repouso de modo a servir de referência para a posição e o movimento de outros” (NEWTON, Principles, 1803, II, p. 315). Para o jovem estudante de física, Einstein, uma especulação similar funcionaria como forte estímulo para a criação da Teoria da Relatividade. A presença de premissas teológicas na física newtoniana sobre espaço e tempo é reforçada na medida em que aparece outro aspecto fortemente conservador em sua metafísica: Newton concebe que exista um meio etéreo suscetível a vibrações. Na época de Boyle, o meio etéreo era utilizado para justificar o movimento propagado à distância e explicava fenômenos extramecânicos como o magnetismo e a coesão. Em Descartes, o meio etéreo aparece como fluido denso, compacto e que equilibrava os planetas em suas órbitas pelo seu movimento de vórtices. Já em Newton, cujo pensamento a esse respeito havia sido estimulado por Boyle, sua concepção sobre o meio etéreo, que a princípio soava como uma hipótese, passou a ser um elemento fundamental de sua metafísica (lembre-se de como ele atacava qualquer hipótese): “Se tivesse de presumir uma hipótese, seria esta, se proposta de forma mais geral, de modo a não determinar o que é a luz; além de ser ela algo capaz de estimular vibrações no éter; pois assim ela tornar-se-á geral e abrangerá outras hipóteses, de modo a deixar pouco espaço para invenção de novas hipóteses”26. E, com essa hipótese, Newton passa a explicar vários tipos de fenômenos como a gravidade, a eletricidade, a coesão, a sensação animal e o movimento, a refração, a reflexão e as cores da luz etc. Assim, a atração gravitacional da Terra pode ser causada pela contínua condensação de um outro espírito etéreo similar, que não o corpo fleumático principal do éter, mas algo muito tênue e difundido sutilmente 26 Carta a Oldenburg, secretário da Sociedade Real, em 1675. Esta carta encontra-se no reunido de cartas de Brewster (em I, p. 390), Memoirs of the Life, Writings and Discoveres of Isaac Newton, Edinburgo, 1855 – citado por BURTT, 1983, p. 211.
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através dele, de natureza talvez oleosa, pegajosa, tenaz e elástica, e desempenhando uma relação com o éter muito semelhante à que o espírito aéreo vital requer para a conservação da chama e que os movimentos vitais fazem ao ar (BREWSTER, 185I, p. 393-394 apud BURTT, 1983, p. 213-214).
E no último parágrafo de Principia, onde Newton já havia superado a divisão entre o corpo fleumático principal do éter e os diversos espíritos etéreos difundidos através dele, escreve: Agora acrescentaremos algo concernente a um certo espírito muito tênue, que permeia e permanece escondido em todos os corpos densos, por cuja força e ação as partículas dos corpos atraem-se mutuamente à distâncias próximas e se integram, se contíguas; e os corpos elétricos operam, a maiores distâncias, tanto repelindo como atraindo os corpúsculos vizinhos; e a luz é emitida, refletida, refratada, desviada e aquece os corpos; e toda sensação é estimulada, e os membros dos corpos animais se movem ao comando da vontade, pelas vibrações desse espírito, propagado mutuamente ao longo dos filamentos sólidos dos nervos, dos órgãos externos de sensação ao cérebro, e do cérebro aos músculos. Mas essas são coisas que não podem ser explicadas em poucas palavras nem estamos providos de experimentos suficientes, necessários para uma determinação e uma demonstração acurada das leis pelas quais esse espírito elétrico e elástico opera (NEWTON, Principles, 1803, II, p. 314).
Como se vê, Newton não possuía quaisquer certezas acerca dessa entidade “fantasmagórica” e, daí, podemos levantar alguns problemas a partir de suas palavras: o primeiro diz respeito às suposições que envolvem a explicação da gravidade. A todo o momento encontramos expressões como “assim talvez o Sol...” ou “quem quiser também pode supor...”, e outras mais; e isso implica a falta de respostas conclusivas do próprio Newton para esse fenômeno. Assim, fica mais fácil e universalizante deduzir a presença de um “espírito etéreo” em “um corpo fleumático”, pois isso propicia uma independência formal ao seu sistema. O segundo problema diz respeito às dificuldades conceituais que geram sua teoria: o que seria esse corpo fleumático pelo qual espírito etéreo se move? E o que é o próprio espírito etéreo? Como foi visto na citação
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supramencionada, Newton não “provia de experimentos suficientes” que apresentassem respostas conclusivas para essas questões. Ele é mais um dentre aqueles que, não tendo aparatos técnicos e tecnológicos para explicar experimentalmente tais fenômenos, foi obrigado a recorrer à metafísica na explicação da realidade física. Só nos resta, por fim, tentar explicar a composição desse meio etéreo tal como Newton o concebe e essa explicação não poderia ser outra, para a nossa “surpresa”, que não atomista: E se todos supusessem que o éter (como o nosso ar) pode conter partículas que tendem a afastar umas das outras (pois não sei o que é esse éter), e que suas partículas são extremamente menores que as do ar, ou mesmo que as da luz: a extrema pequenez de suas partículas pode contribuir para a grandeza da força pela qual aquelas partículas podem afastar-se umas das outras, e, desse modo, tornar aquele meio extremamente mais rarefeito e elástico que o ar, e, por consequência, extremamente menos capaz de resistir aos movimentos de projéteis e extremamente mais capaz de fazer pressão sobre os corpos volumosos, na sua tendência à expansão (NEWTON, Opticks, 1721, p. 323).
Vemos que o éter de Newton tem a mesma natureza do ar, mas é muito mais rarefeito. Suas partículas são muito pequenas e estão presentes em maior quantidade de acordo com sua distância dos poros interiores dos corpos sólidos. São elásticas por possuírem poderes mutuamente repulsivos e tendem constantemente a afastar-se umas das outras e essa tendência é a causa dos fenômenos de gravidade, isso porque todo o mundo físico pode consistir de partículas que se atraem em proporção ao seu tamanho, passando à atração através de um ponto zero para a repulsão até chegar às menores partículas que compõem o que se denomina éter. Essas são as consequências do casamento entre física e metafísica no sistema newtoniano.
Considerações finais O impacto das teorias newtonianas ainda se fez sentir no século XX em muitos campos da ciência. A teoria das ondas luminosas usa as leis do movimento de Newton e o mesmo se pode dizer da teoria cinética do calor.
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A teoria newtoniana foi importante também no desenvolvimento de nossa compreensão da eletricidade e do magnetismo e nas descobertas de Faraday e Maxwell em eletrodinâmica e óptica. Sua física norteou a ciência por mais de duzentos anos – até a primeira metade do século XX –, quando Einstein demonstrou que a física precisava crescer para além da estrutura newtoniana. O necessário crescimento da física a partir de Newton devia-se, também, pela necessidade de superação dos elementos metafísicos que foram incorporados no seu pensamento.
Referências BOYLE, R. The works of the honourable Robert Boyle. Londres: Thomas Birch, 1672. 6 v. BURTT, E. A. As bases metafísicas da ciência moderna. Tradução de José Viegas Filho, Orlando Araújo Henriques. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1983. HELLMAN, H. Grandes debates da ciência: dez das maiores contendas de todos os tempos. Trad. José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Editora Unesp, 1999. NEWTON, I. Isaaci Newtoni opera quae exstant omnia. Edição Samuel Horsley, 5 vls., L.L.D: Londres, 1779. NEWTON, I. Mathematical principles of natura philosophy. Tradução de Andrew Motte. 3 vls. Londres, 1803. NEWTON, I. Opticks: or, a treatise of the reflections, refractions, inflection, and colours of light. 3 ed. Londres, 1721.
CAPÍTULO VI
ELETROMAGNETISMO: PARA ALÉM DAS LEIS DE NEWTON
Introdução
O
sistema newtoniano por muito tempo foi considerado definitivo: um sistema de definições e axiomas que dá lugar a um conjunto de equações matemáticas que descrevem a estrutura eterna da natureza, independentemente de um dado espaço ou tempo. Newton fixou sua influência na mecânica tratando desde o movimento de pontos materiais, passando pela mecânica dos sólidos, pelos movimentos contínuos de um fluído até os movimentos vibratórios de um corpo elástico. Sua influência se estende também da dinâmica para a acústica e a hidrodinâmica, que se tornaram ramos da mecânica. Seu método levou ao desenvolvimento da astronomia quando permitiu determinações precisas dos movimentos dos planetas e de suas interações. E até a teoria do calor pôde ser reduzida à mecânica, com base na hipótese de que o calor consiste em um movimento estatístico complicado de partículas diminutas da matéria. Com a eletricidade e o magnetismo deu-se da mesma forma: quando essas forças foram descobertas, compararam-nas às forças gravitacionais e suas ações sobre o movimento dos corpos puderam também ser estudadas nas linhas da mecânica newtoniana. Entretanto, dificuldades surgiram nos estudos sobre o campo eletromagnético, isso porque, ao invés de se admitir, assim como fez Newton, a possibilidade de uma força agindo a grandes distâncias, a realidade deste campo apontava para a ação de um ponto vizinho a outro, caso o comportamento desses campos fosse descrito por equações diferenciais.
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6.1 O eletromagnetismo e sua história Como o próprio nome sugere, eletromagnetismo refere-se a uma força ou fenômeno que é uma combinação de eletricidade e magnetismo. Como foi dito, seguindo o exemplo de Newton e aplicando o método científico ao ramo da física denominado mecânica, pesquisadores do século XVIII e XIX, como Charles Coulomb (1736-1806), André-Marie Ampère (1775-1836), o físico italiano Alessandro Volta (1745-1827), o matemático alemão Karl F. Gauss (1777-1855), realizaram centenas de experimentos com eletricidade e magnetismo procurando entender esses fenômenos. Esses pensadores, conhecidos como mecanicistas, foram assim reconhecidos por acreditarem que as leis da mecânica poderiam explicar todos os fenômenos naturais. Mas resta-nos entender o pensamento daqueles que foram além das leis da mecânica e, portanto, além das leis de Newton, para explicar fenômenos eletromagnéticos: é o caso do físico e químico Michael Faraday (1791-1867) e do físico escocês James Clerk Maxwell (1831-1879). A começar pelos partidários da aplicação da mecânica de Newton ao estudo dos fenômenos elétricos e magnéticos, temos Charles Coulomb. Coulomb, como um bom mecanicista, além de defender que as forças da natureza poderiam ser explicadas por leis mecânicas, defendia também a necessidade de que os fenômenos fossem explicados por relações algébricas, pois achava ser a matemática o caminho para se compreender a natureza. Defendeu, portanto, que a expressão matemática para calcular a força elétrica entre corpos eletrizados tinha formato semelhante àquela proposta por Newton para a atração gravitacional. Para a força elétrica é possível utilizar-se da seguinte fórmula: F = k × Q × q / R2 (Q = carga elétrica de um dos corpos; q = carga elétrica do outro corpo; e R = distância entre os corpos). Observe, portanto, que essa equação é muito parecida com a expressão matemática que explica a atração gravitacional, criada por Newton: F = G × M × m / R2 (K e G nas duas equações eram consideradas como constantes universais).
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Com seu trabalho, Coulomb “eliminou” qualquer dúvida quanto à capacidade das leis mecânicas em explicar os mais variados tipos de fenômenos naturais, afinal, a constante presente em sua lei era universal, independentemente do lugar da realização da experiência. Mostrou, também, por meio de sua experiência com uma balança de torção27, que as forças elétricas e magnéticas eram de naturezas diferentes, não havendo ligação entre elas: o movimento de fluidos elétricos explicava os fenômenos elétricos e os fluidos magnéticos, os fenômenos magnéticos. Mas a conclusões de Coulomb pareciam equivocadas. Foi o que demonstrou Oersted. Hans Christian Oersted (1777-1851), por meio de suas experiências com a pilha de Volta, estudou com afinco a natureza da eletricidade. Mas foi sua experiência com a agulha imantada que lhe deu a certeza da concepção de natureza orgânica. Em suas experiências, ele observou o que acontecia nas imediações de um fio condutor atravessado por corrente elétrica. Para tanto, realizou várias experiências aproximando uma agulha imantada a um fio condutor retilíneo por onde passava uma corrente elétrica. A consequência foi que a agulha imantada sofria perturbação ao ser aproximada do fio condutor atravessado por corrente elétrica. O resultado de seus experimentos foi publicado em um artigo, em 1820, intitulado Experimentos sobre o efeito do conflito elétrico sobre a agulha magnética. Nesse artigo, Oersted demonstra teoricamente como a agulha imantada podia se movimentar na presença de uma corrente elétrica. Assim, fica definitivamente estabelecida na história da ciência a relação entre eletricidade e magnetismo: um efeito elétrico produzira um efeito magnético. Outra coisa, sua experiência acaba por contrariar os padrões newtonianos de força. Segundo Newton, as forças deveriam estar sempre ao longo da linha reta que une dois corpos – é o caso da gravidade. No entanto, a experiência de Oersted demonstra o contrário. Se se coloca a agulha da bússola em posições diferentes ao redor do fio, observa-se algo diferente: a agulha da bússola está tangente à linha que forma um círculo. Isso significa que a força magnética 27 Tratava-se de um instrumento com o qual Coulomb fazia medidas da força de atração e repulsão entre duas esferas eletricamente carregadas. A balança se caracteriza por ter uma haste suspensa por um fio com uma esfera em cada uma de suas extremidades. Ao tomar outra haste com uma esfera também eletrizada, aproxima-se as duas. Em virtude da força elétrica que se manifesta no processo, a haste que está suspensa por um fio gira, provocando uma torção no fio. Ao medir o ângulo de torção, Coulomb conseguia determinar a força entre as esferas.
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é circular e não retilínea. Nos padrões newtonianos, dada a realização desse experimento, a agulha da bússola deveria estar paralela a uma linha reta que sai radialmente do fio. O impacto do resultado foi tão forte que os grandes nomes da física duvidaram de sua veracidade; esse foi o caso de André-Marie Ampère (1775-1836). Ampère, que até o ano de 1820 (ano da publicação do artigo de Oersted) tinha uma participação incipiente na comunidade científica, não passando da publicação de alguns poucos artigos sobre Química e Matemática, ganha proeminência a partir da análise da experiência da agulha imantada. Anos antes, havia defendido que o magnetismo se devia a um fluido magnético diferente do elétrico e que, portanto, eram fenômenos independentes. Instigado pelos resultados, abandonou suas teses sobre os fluidos distintos e passou a interpretar o magnetismo como um efeito secundário, gerado por correntes elétricas. Nos ímãs ou materiais imantados, o magnetismo seria originado em pequenas correntes circulares nas moléculas constituintes. Observou através de seus experimentos que, ao se colocarem duas correntes circulares girando em mesmo sentido, elas se atraem e, em sentidos opostos, elas se repelem – analogamente à atração e repulsão de dois ímãs. Suas ideias, no entanto, eram fruto de uma concepção ainda newtoniana de que uma força, originada em um corpo, surgia instantaneamente em outro corpo, distante do primeiro. E é por isso que ele se mantinha fiel à concepção de interação apenas entre corpos de mesma natureza: sendo a eletricidade o fenômeno fundamental, o magnetismo seria apenas um efeito secundário. Foram justamente essas conclusões o ponto de partida das críticas de Faraday ao trabalho de Ampère. Mesmo se respeitando mutuamente, o diálogo entre Faraday e Ampère foi repleto de discussões. Faraday não concordava, por exemplo, com a ideia newtoniana de uma força de um corpo atuando à distância sobre o outro e tinha uma forma de mostrar que o magnetismo se estendia pelo espaço vizinho de fios e ímãs. Analisando o comportamento da força magnética ao redor de um fio condutor, ele construiu um dispositivo que lhe permitiu mostrar que um fio condutor atravessado por corrente elétrica poderia girar ao redor de um ímã fixo. Da mesma forma, um ímã móvel poderia movimentar-se ao redor de um fio condutor fixo por onde passava corrente elétrica. Esse
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experimento registrou pela primeira vez a conversão de eletricidade em movimento (BRAGA, 2004, p. 43).
Com isso, Faraday provou a possibilidade da obtenção da eletricidade por um efeito magnético e um efeito magnético por efeitos elétricos. Além disso, analisou como uma corrente elétrica poderia induzir uma nova corrente elétrica num circuito vizinho – obteve corrente elétrica numa bobina isolada, usando um circuito elétrico vizinho em vez de usar um ímã (corrente por indução). Apresentou uma explicação única para todos esses casos, que recebeu o nome de Lei da Indução de Faraday. Criticou, também, a inconsistência entre as forças elétricas entre corpos carregados e as forças entre correntes de Ampère. Contrário aos resultados do francês, demonstrou que corpos com cargas diferentes se atraem e com cargas iguais se repelem. Faraday rejeitou a tese newtoniana de que todos os fenômenos podiam ser compreendidos como resultado da atração ou repulsão à distância entre partículas ou entre fluidos. Propôs uma explicação na qual transmissões elétricas, magnéticas e eletromagnéticas ocorriam de forma contínua através de linhas de força. “Buscando uma explicação, ele estudou o movimento das cargas no condutor e a configuração das linhas de força. Notou que as cargas no condutor se movimentam perpendicularmente às linhas de campo, assim por dizer ‘cortando-as’” (CRUZ, 2005, p. 126). Com isso, abandonou seu antigo conceito de estado eletrotônico28em favor das linhas de força como a principal explicação dos fenômenos eletromagnéticos. No entanto, não somente os fenômenos eletromagnéticos frequentavam o imaginário criativo de Faraday. Sua obsessão era a de estabelecer uma relação entre força, matéria e luz, isto é, buscar uma teoria unificada para as forças da natureza, demonstrar experimentalmente a relação entre eletricidade, magnetismo e gravidade. O resultado de suas especulações chegou à conjectura de “que a força, ela mesma, seria matéria e que os corpos materiais, as moléculas, seriam um concentrado de forças, um nó de linhas de força. Em defesa dessa conjectura, ele argumentava que a gravidade é uma força e, ao mesmo tempo, uma propriedade da matéria” (CRUZ, 2005, p. 136). Mas o mais importante nas especulações de Faraday foi 28 “Ao denominar o estado de equilíbrio de eletrotônico, Faraday quis dizer que os sistemas elétricos dentro de um campo magnético ganham uma certa energia que fica armazenada da mesma forma que uma mola sob tensão fica comprimida e armazena energia” (CRUZ, 2005, p. 124-125)
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o insight substancial que teve: deduziu que as linhas de força seriam análogas a cordas espalhadas pelo espaço formando o campo e, da mesma forma que uma perturbação em uma corda esticada se propaga na forma de onda, uma variação do campo deveria se propagar no espaço como uma onda (CRUZ, 2005). Essa conjectura foi o ponto de partida dos trabalhos de Maxwell. Faraday proporcionou a Maxwell a possibilidade da elaboração de equações diferenciais para descrever o mais novo conceito da ciência: uma onda eletromagnética. E acompanhado desse novo passo rumo ao desenvolvimento da ciência, assistimos o retorno do antigo conceito metafísico ao campo das teorias científicas: o éter. James Clerk Maxwell (1831-1879) impressionou-se bastante com os resultados obtidos por Faraday. Resultados estes que, mesmo sendo obtidos por meios experimentais, por não terem sido escritos em linguagem matemática, eram vistos com reservas por muitos cientistas. Foi daí que em 1855, em um artigo intitulado Sobre as linhas de força de Faraday, começou a provar as ideias de Faraday, partindo da demonstração de que por trás do conceito de linhas de força havia um pensamento matemático – apesar de, como se disse, Faraday não ter se utilizado de fórmulas para descrever sua teoria. No prefácio de sua obra A Treatise on Electricity and Magnetism29, afirma: Na medida em que eu prosseguia meus estudos sobre Faraday, percebi que seus métodos de conceber os fenômenos eram também matemáticos, embora não fossem exibidos na forma matemática convencional. Descobri também que esses métodos podiam ser expressos na forma convencional de símbolos matemáticos e então ser comparados com os resultados dos denominados matemáticos. Por exemplo, Faraday, em sua concepção, vê linhas de força atravessando todo o espaço, enquanto os matemáticos veem centros de força atraídos à distância; Faraday vê um meio onde eles nada veem além da distância. Faraday enxerga a base dos fenômenos na ação real que ocorre no meio; eles estão satisfeitos por terem encontrado isso numa força de ação à distância impressa nos fluidos elétricos.
29 MAXWELL, James Clerk. A Treatise on Electricity and Magnetism. Nova York: Oxford University Press, 1998.
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Certo é que com essa matematização dos trabalhos de Faraday, Maxwell pretendia fixar de vez a sua oposição diante da concepção newtoniana de ação à distância e à extensão de sua física, que era elevada por partidários como F. E. Neumann (1798-1895) e Wilhelm Weber (1804-1891), que teriam obtido um artefato matemático que unificava a eletricidade estática, a atração entre correntes e a indução destas, tendo com isso “conseguido” estender a teoria newtoniana à eletricidade. Maxwell aceitava os resultados matemáticos obtidos por essa teoria, mas questionava a concepção de realidade por trás dela, isso porque, se tomarmos como exemplo a teoria de condução de calor, verificaremos que este tem como base a ação contígua, isto é, ele é transmitido por contato entre partículas vizinhas – ideia matematizável (como a teoria de Weber), mas completamente distinta de uma ação à distância. “Maxwell conclui que é possível ter-se equações matematicamente análogas, mas com base em uma concepção física diferente da noção à distância, isto é, uma teoria baseada na ação contígua, em um conceito de campo” (CRUZ, 2005, p. 185). E é justamente o conceito de campo de Faraday que ele irá retomar, com o propósito de lhe dar um suporte matemático. É exatamente aqui o lugar em que sua física está mais carregada de metafísica. Sem a construção de modelos materiais, como era costume de Maxwell produzir em outras situações e experimentações, seu pensamento orientou-se da seguinte maneira: o campo de Faraday seria como líquido; um fluido que tomava todo espaço e, como em um rio, as correntes (linhas de força) deveriam determinar a direção e o movimento dos corpos. Esse líquido imaginário seria o éter: substância absolutamente imóvel, sem peso, invisível, de viscosidade zero, com uma resistência maior que a do aço e que não é detectado por instrumento algum. Essa substância que preenchia os interstícios entre a matéria seria o ambiente transmissor das ondas eletromagnéticas. As vastas regiões interplanetárias e interestelares não serão mais consideradas como regiões desoladas, as quais o Criador não achou apropriado preencher como os símbolos da múltipla ordem de seu Reino. Deveremos encontrá-las já preenchidas com este meio maravilhoso, tão pleno, que nenhum poder humano poderá removê-lo da menor porção do espaço, ou produzir a mais leve falha em sua infinita continuidade. Ele se estende de estrela a estrela, e quando uma molécula de hidrogênio vibra em uma
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estrela da constelação do Cão, o meio recebe os impulsos destas vibrações, e depois de transportá-la em seu imenso regaço por três anos, entrega-os no devido tempo, de maneira regular, ao espectroscópio do Sr. Huggins, em Tulse Hill (MAXWELL apud TORT; CUNHA; ASSIS, 2004, p. 281).
Com a necessidade de se postular mais uma vez o éter na história da ciência, vemos a física recair no mesmo tipo de explicação metafísica dos modernos Descartes, Boyle, Newton: sem se ter explicações empíricas para os fenômenos próprios da natureza, faz-se necessário que se recorra a “substâncias” cuja função não é mais do que a de dar inteligibilidade a um sistema. Nos dizeres de Poincaré, “pouco nos importa que o éter exista realmente: é um problema para os metafísicos. O importante para nós é que tudo se passa como se ele existisse, e essa é uma hipótese cômoda para a explicação dos fenômenos” (POINCARÉ, 1984, p. 157). Mas não será por isso que a contribuição de Maxwell será diminuída na história da ciência. Na verdade, a onda eletromagnética não precisaria do éter para se propagar. Foi o que ficou demonstrado pelo famoso experimento de Michelson e Morley30, que eliminaram de vez a existência do éter dos terrenos da física. Muito mais importante do que a ideia de como esse campo era “fisicamente” constituído é a contribuição de Maxwell para a matematização do próprio campo, como também dos fenômenos eletromagnéticos. Ele desenvolveu um trabalho matemático com o propósito de construir expressões que descrevessem como as ações eletromagnéticas ocorriam e como eram transmitidas. Elaborou equações diferenciais para descrever uma onda eletromagnética. A energia de tal onda está contida em dois campos, o elétrico e o magnético, que se encontram polarizados, transversamente e perpendiculares entre si, enquanto a própria onda se propaga em ângulo reto com o plano da polarização. Quando calculou a velocidade de propagação a partir de suas equações, Maxwell descobriu que esse resultado coincidia com a mais recente estimativa 30 Sem maiores detalhes, em 1887, A. A. Michelson (1852-1931) e E. Morley (1838-1923), por meio de experimentos, demonstraram que a velocidade da luz era a mesma em qualquer direção e em qualquer momento. Portanto, ao se esperar que tal velocidade fosse diminuída quando do movimento de “subida” pelo éter, viu-se que nada disso acontecia, pois a luz não muda sua velocidade independentemente de estar “subindo a corrente” ou “descendo a corrente” ao viajar através de um éter inexistente.
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obtida, em laboratório, da velocidade da luz. Assim, ele inferiu que a luz devia ser uma onda eletromagnética. Mas as pretensões de Maxwell giravam ao redor da necessidade da comprovação da existência do campo e da conexão dinâmica que ele estabelece: agindo sobre os corpos e sofrendo a sua ação, isto é, o papel principal do campo é a criação de um vínculo, de uma conexão entre os corpos elétricos e magnéticos. De forma geral, suas equações são para um sistema onde dois corpos estão conectados através de um terceiro, mas ele introduz nelas as especificidades dos fenômenos elétricos e magnéticos e analisa os fenômenos de indução, que exibem o papel do campo, fazendo uma conexão entre dois circuitos ou duas correntes. Maxwell apresenta mais de 20 equações, equações essas reduzidas a um número de quatro por Oliver Heaviside, físico inglês que trabalhou nos desenvolvimentos posteriores da teoria de Maxwell, criando o formalismo matemático que permite que tais equações sejam escritas nessa forma sintética, como são conhecidas hoje. No geral, é isso que dizem as equações de Maxwell: a) uma carga elétrica produz um campo elétrico; b) existe um campo magnético entre os polos de um magneto; c) campos elétricos são produzidos por mudança de campos magnéticos; d) campos magnéticos são produzidos por mudança de campos elétricos e por correntes elétricas. Os dois primeiros princípios explicam os campos elétricos e magnéticos estáticos, ou seja, campos sem correntes ou mudanças de correntes. A contribuição mais significativa de Maxwell foi o quarto princípio. Ele reconheceu que os campos magnéticos não são produzidos apenas por correntes elétricas, mas também por mudança de campos elétricos. Depois de começar seu trabalho e elaborar as quatro equações, ele percebeu que as leis de número três e quatro significam que campos elétricos e campos magnéticos em propagação não podem ser separados porque um produz o outro. A partir dessa percepção, ele previu a existência de ondas de energia em sua maior parte invisíveis, que atualmente denominamos radiação eletromagnética. Ou seja, com base fundamentalmente na terceira e na quarta equações, Maxwell previu a existência
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de “campos” eletromagnéticos oscilatórios movendo-se pelo espaço como ondas ou pequenas ondulações em um lago irradiando-se de sua fonte (BRODY,1999, p. 204).
As ondas eletromagnéticas que consistem em uma série de cristas e depressões possuem três características: I) comprimento, que é a distância entre as cristas adjacentes; II) velocidade, que é a medida do movimento entre cristas e III) frequência, que é a quantidade que indica quantas cristas passam por um dado ponto em um segundo. Tais ondas só seriam encontradas oito anos após a morte de Maxwell, quando Heinrich Hertz (1857-1894) começou a procurar por elas, confirmando sua existência em 1888. Hertz demonstrou que as ondas de rádio, luz e calor irradiados eram as ondas eletromagnéticas cujo comportamento havia sido descrito pelas equações de Maxwell e que todas viajavam na velocidade da luz. Dessa forma, na eletrodinâmica – embora não na mecânica –, já não era mais necessário buscar refúgio na ação à distância instantânea newtoniana; o campo eletromagnético transmitia forças elétricas e magnéticas numa velocidade finita, a velocidade da luz. “As definições e axiomas, que Newton construíra, referiam-se a corpos e seus movimentos; mas, com Maxwell, os campos de força pareciam ter adquirido o mesmo status de realidade que os corpos na teoria newtoniana” (HEISENBERG, 1995. p. 75).
Considerações finais Esse capítulo pretendeu cumprir com as suas pretensões iniciais. Algumas questões podem, no entanto, surgir como por exemplo: o que é que se define aqui como metafísica? Com quais critérios tal metafísica é identificada? Onde se apresenta a metafísica nas discussões que envolvem a eletrodinâmica que, ao que parece, perverte toda e qualquer concepção que não seja eminentemente física? Não seria a pretensão de identificar as bases metafísicas da ciência um desrespeito para com toda sua construção empírica historicamente constituída? Como representantes do espírito filosófico, primeiramente, diríamos que a atitude dogmática diante da realidade (quer seja científica ou não), muitas das vezes apresentada como verdade fixa e definitiva, não pode ser nossa postura; e o respeito a toda construção científica durante os séculos foi previamente expresso por nossas pretensões. No entanto, nada nos impede de querer identificar nas construções teóricas a genialidade humana que, diante da falta
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de respostas e confirmações empíricas para a própria natureza, ousa utilizar-se do imaginário criativo e fabricar a própria realidade, isto é, elabora a teoria – dedutivamente costurada e matematicamente axiomatizada – e espera que esta seja endossada pela realidade. Contudo, o ponto de convergência da metafísica na ciência moderna altera-se depois de Newton: das leis da mecânica passa-se para a eletrodinâmica, com ênfase nos fenômenos eletromagnéticos. Nesse entremeio o atomismo mantém-se vívido com a teoria cinética dos gases, que será de vital importância para o entendimento da estrutura e funcionamento do átomo nas teorias no século XIX e início do século XX. Os trabalhos precursores nesse campo foram os de Clausius, Maxwell e Boltzmann, que pretendiam derivar as leis dos gases a partir do movimento das moléculas hipotéticas. Quanto a Maxwell, Em 1860, James Clerk Maxwell aprofundou o trabalho de Clausius, levando em consideração que os diferentes átomos presentes em qualquer volume se moviam a diferentes velocidades. Assim, mais apropriado do que utilizar nos cálculos um valor médio de velocidade, comum a todos os átomos, seria utilizar uma distribuição estatística de velocidades, representada por uma função matemática. Com base nessa proposta, em 1866 Maxwell foi capaz de mostrar que, a partir da teoria cinética, dotada das distribuições de velocidade que tinha introduzido, era possível calcular parâmetros macroscópicos do gás como, por exemplo, sua viscosidade. Por sua vez, baseado nesse cálculo da viscosidade, o químico austríaco Josef Lorschmidt obteve uma estimativa para o tamanho dos átomos. Desta forma, começavam a surgir as primeiras implicações quantitativas da teoria atomística, que podiam ser comparadas com dados experimentais (PORTO, 2013, p. 9).
Contudo, ainda assim, as representações metafísicas permanecem ativas. Vê-se isso, por exemplo, na insistência dos muitos físicos do século XIX que, por causa de uma visão mecanicista da natureza, foram obrigados a defender a existência de um ambiente misterioso que permeava todo o universo: o meio etéreo – como era o caso de Maxwell. E em que toda essa discussão contribui para a continuidade do desenvolvimento da física? Ela simplesmente lança luz sobre os campos os quais irão se desenvolver no século XX e que projeta grandes nomes como os de Ernest
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Rutherford (1871-1937), Niels Bohr (1885-1962), Albert Einstein (18791955) e muitos outros.
Referências BRAGA, Marco (Org.) Faraday e Maxwell: eletromagnetismo – da indução aos dínamos. São Paulo: Atual, 2004. (Ciência no Tempo) BRODY, D. E.; BRODY, A. R. As sete maiores descobertas científicas da história e seus autores. Tradução de Laura Teixeira Mota. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. CRUZ, Frederico Firmo de Souza. Faraday e Maxwell: Luz sobre os campos. São Paulo: Odysseus Editora, 2005. HEISENBERG, W. Física e Filosofia. Tradução de Jorge Leal Ferreira. 3. ed. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1995. TORT, A. C.; CUNHA, A. M., ASSIS, A. K. T. Uma tradução comentada de um texto de Maxwell sobre a ação à distância. Revista Brasileira de Ensino de Física, v. 26, p. 273-282, 2004. POINCARÉ, J. H. A Ciência e a Hipótese. Tradução de Maria Auxiliadora Kneipp. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1984. PORTO, C. M. O atomismo grego e a formação do pensamento físico moderno. Revista Brasileira de Ensino de Física, v. 35, n. 4, 4601, p. 1-11, 2013.
CAPÍTULO VII
HEINRICH HERTZ: MECÂNICA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA
Introdução
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o capítulo anterior, vimos Maxwell apresentar um modelo de equações como instrumento para tratar, segundo as leis da mecânica newtoniana, o campo não newtoniano de Faraday. É importante ressaltar que em momento algum Maxwell desmereceu a mecânica como um instrumento obsoleto para tratar dos fenômenos da natureza. Sua proposta era a de por meio da mecânica superar o modelo newtoniano da ação à distância e lançar luz sobre os campos. E foi pela formalização de suas equações que ele conseguiu relacionar todas as grandezas do campo eletromagnético e ainda mostrar que a velocidade de uma onda eletromagnética é igual à da luz, lançando mão, é claro, da crença de um meio etéreo pelo qual tais ondas viajariam. Por volta de 1870, o alemão Hermann Von Helmholtz (1821-1894), tendo em vista a confusão da situação do eletromagnetismo, de várias teorias para explicar o mesmo fenômeno, fundamentou seu trabalho na formulação de um potencial eletrodinâmico que generalizava os resultados dos trabalhos dos físicos, especialmente, de W. Weber, Neumann e J. Maxwell. Segundo Helmholtz, lado a lado com a teoria de Weber, existiam inúmeras outras, as quais tinham em comum o seguinte: todas elas consideravam que a intensidade da força expressa pela lei de Coulomb seria modificada pela influência de alguma componente da velocidade das quantidades elétricas em movimento (HELMHOLTZ, 1956)31.
31 HELMHOLTZ, H. von. Prefácio. In: HERTZ, H. The principles of mechanics: presented in a new form. Preface by Hermann von Helmholtz. Authorized English translation by D. E. Jones e J. T. Walley. With a new introduction by R. S. Cohen. New York: Dover Publication, 1956.
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Suas questões no campo do eletromagnetismo, especialmente sua contribuição para a formulação da Lei da Conservação de Energia, vai ao encontro justamente da certeza de que teorias como as de Weber e de Neumann, desenvolvidas a partir da noção da ação à distância de Ampère (ou de Newton) não poderiam conviver cientificamente lado a lado com a teoria de Maxwell. Utilizando-se do princípio da conservação de energia, Helmholtz consegue deduzir as equações de Newton e, com isso, conclui que todas as teorias físicas ou deveriam ser newtonianas ou violariam a conservação de energia (CRUZ, 2005, p. 213). É o caso da teoria de Weber que introduz uma força independente da velocidade, o que viola os princípios de Newton e, portanto, o princípio da conservação de energia. Após um estudo mais aprofundado, Helmholtz concluiu que as diferenças mais importantes entre as teorias estavam relacionadas com previsões e explicações sobre fenômenos envolvendo correntes abertas. Essas correntes ocorrem em circuitos que tenham fios separados por uma certa distância, isto é, separados por uma camada de dielétrico. Por exemplo, um circuito que tenha um capacitor ou um circuito com extremidades próximas, mas separadas pelo ar. Nesses circuitos as correntes de deslocamento de Maxwell têm um papel fundamental (CRUZ, 2005, p. 213).
Helmholtz decide, então, testar as teorias eletromagnéticas disponíveis. Segundo suas afirmações, feitas no Prefácio de The principles of mechanics de Hertz, o que ele faz, primeiramente, é averiguar a adequação das diversas teorias ao comportamento da corrente elétrica em circuitos abertos e fechados. As questões a serem respondidas eram: quem estaria certo, o partido de Weber que, admitindo a ação à distância, sugeria que a eletricidade seria dotada de “um certo grau de inércia” ou o de Maxwell, que rejeitava a ação à distância e propunha a explicação dos fenômenos eletromagnéticos a partir da polarização dielétrica de um meio interveniente hipotético? Coube ao seu pupilo, Hertz, procurar experimentalmente a resposta. Hertz, elogiado por Helmholtz como um “ser dotado dos mais raros dotes de caráter e intelecto” (HELMHOLTZ, 1956, Prefácio), a convite do próprio Helmholtz, inicia o que viria ser um dos trabalhos científicos de maior impacto em todos os tempos na história da ciência. Enquanto pesquisador do
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laboratório comandado por Helmholtz em Berlim, suas pesquisas decidiram a questão proposta por seu mestre. Projetou experimentos para investigar se a variação da polarização de um dielétrico, isto é, a corrente de deslocamento, poderia induzir ou não efeitos magnéticos. As teorias em questão forneciam conclusões diversas sobre o assunto. Hertz, no entanto, percebe que esses efeitos poderiam ser mais facilmente detectados se um campo elétrico alternado de alta frequência fosse aplicado ao circuito. A oscilação causaria uma rápida agitação da polarização do dielétrico, o que amplificaria o efeito – e foi assim que ele identificou “oscilações elétricas” (HELMHOLTZ, 1956, Prefácio) propagando-se entre extremidades de condutores abertos. Observando que a frequência tinha um papel importante nos efeitos, Hertz busca nas diversas teorias um apoio para interpretar os resultados e prosseguir a investigação. Ao se aprofundar na teoria de Maxwell consegue controlar as características das oscilações produzidas, medir o comprimento de sua onda e a velocidade de propagação no ar. A conclusão foi a de que a perturbação que se propagava de um circuito para outro era uma onda eletromagnética à velocidade da luz. Isso lhe permitiu investigar a existência de comportamentos ondulatórios, tais como interferência, reflexão e refração e os resultados obtidos comprovaram todas as previsões de Maxwell. Mas como o trabalho de Hertz ultrapassa os limites do domínio do eletromagnetismo e da ótica e o limite desse capítulo funda-se na análise dos conceitos centrais de sua filosofia da ciência e não de sua física como um todo, propomo-nos entender o funcionamento de sua mecânica e averiguar como seu ideal filosófico de representação ali se manifesta. O principal procedimento em busca dos necessários esclarecimentos é o de tentar entender o que The principles of mechanics (presented in a new form) pretendiam resolver.
7.1 A mecânica de Hertz: considerações preliminares A obra Eletric Waves (1893) foi o ponto de partida para a análise filosófico-metodológica das teorias científicas por parte de Hertz e a culminância dessa prática deu-se com The principles of mechanics (1894). Nas introduções a essas duas obras, um tema meta-científico se apresenta como núcleo central. Nelas Hertz trata das diferentes representações, imagens ou modelos (esquemas conscientemente construídos, portanto, Darstellungen) dos fenômenos
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físicos: no caso da primeira obra, dos fenômenos eletromagnéticos; no caso da segunda, dos fenômenos mecânicos. E a questão que tenta resolver é a seguinte: qual é a origem da pluralidade de imagens nas teorias científicas? Seria ela inevitável? Em Electric Waves, o foco da análise se dá sobre os diferentes conjuntos de equações utilizadas por Maxwell para expressar sua teoria eletromagnética. Hertz entende que no Treatise on Electricity and Magnetism (1873), Maxwell oscila entre diferentes modos de representação de sua teoria, o que explicaria inconsistências em seu interior, favorecendo a introdução de “ideias supérfluas e rudimentares”. É o caso do conceito de eletricidade, “Hertz considerava ser impossível dar uma significação única ao termo ‘eletricidade’ como ele é empregado por Maxwell [...]. Convivem lado a lado na teoria duas concepções incompatíveis entre ‘eletricidade’ e ‘polarização’” (ABRANTES, 1992, p. 356). Tentando determinar a natureza precisa da teoria de Maxwell através da análise do conjunto de equações que expressam sua teoria e, com isso, discernir sobre o que Maxwell está tratando acerca da natureza dos fenômenos eletromagnéticos, Hertz conclui que Maxwell não dizia nada acerca da natureza física desses fenômenos. Sua teoria, “muito abstrata e sem colorido”, resume-se em equações que eram fórmulas lógicas que o habilitavam a lidar com os fenômenos e a entender como eles funcionavam. Daí, Hertz chega à conclusão sobre a teoria de Maxwell: À questão, “O que é a teoria de Maxwell?” Eu não conheço uma resposta mais direta ou definitiva do que a seguinte: - a teoria de Maxwell é o sistema de equações de Maxwell. Toda teoria que conduza ao mesmo sistema de equações, e, portanto, abranja os mesmos fenômenos, eu consideraria uma forma ou um caso especial da teoria de Maxwell [...]. Assim, neste sentido, e apenas neste sentido, podem as duas dissertações teóricas tratadas no presente livro ser consideradas como representações da teoria de Maxwell. Em nenhum sentido elas podem ter a pretensão de serem consideradas traduções precisas das ideias de Maxwell. Ao contrário, é duvidoso que Maxwell, enquanto vivo, as reconheceria como representantes de seus próprios pontos de vista em qualquer aspecto (HERTZ, 1956 apud COHEN, 1955, Ensaio Introdutório – grifos nossos).
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Hertz propõe, então, a reconstrução axiomática da teoria de Maxwell reduzindo as suas equações a apenas quatro32, adotando-as em um sistema dedutivo, onde estas são apresentadas como “relações entre magnitudes físicas que são efetivamente observadas, e não entre magnitudes que servem somente ao cálculo” (HERTZ, 1962, p. 196). Isso resolveria um problema prático ao invés de somente fornecer um quadro de referência matemático para tratar de problemas da física, dotando-a de uma estrutura lógica. Hertz reconhece que “não é agradável ver equações apresentadas como resultados diretos da observação, onde estávamos acostumados a ver longas deduções como provas aparentes delas”. Mas reconhece que esse é o preço que se paga por confundir “a figura simples e familiar apresentada pela natureza, com os trajes vistosos com que nos habituamos a vesti-la” (HERTZ, 1962, p. 28). Segundo Abrantes (1992, p. 356), em Electric Waves já se encontram definidas as posições metodológicas de Hertz e sua concepção da tarefa da filosofia da ciência, que são: 1. A tese de que nossas “ideias físicas e matemáticas” constituem “modos de representação” dos fenômenos (que subdeterminam tais modos de representação). 2. Importância do critério lógico (consistência) na aceitabilidade da teoria científica. 3. A exigência de parcimônia no emprego de hipóteses nas teorias científicas.
Mas é a obra Princípios da Mecânica que irá aprofundar e sedimentar a visão crítica de Hertz acerca da física do seu tempo. Publicada postumamente, The principles of mechanics – Presented in a new form, de 1894, ocupou os três últimos anos da vida de Hertz. Sobre a estrutura e finalidade dessa obra, sua leitura parece apontar para a realidade da representação no interior das teorias científicas: sua forma, conteúdo e finalidade. O termo “representação” havia ganhado bastante destaque entre os cientistas-filósofos alemães no século XIX – é o caso de G. Kirchhoff, H. Helmholtz, 32 Redução que ocorreu definitivamente com Oliver Heaviside, físico inglês que trabalhou nos desenvolvimentos posteriores da teoria de Maxwell, criando o formalismo matemático que permite que tais equações sejam escritas na forma sintética, como são conhecidas hoje.
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E. Mach, L. Boltzmann – e teria entrado em circulação através das filosofias de Kant e Schopenhauer. Segundo Janik e Toulmin (1991, p. 147-156), dois termos na língua alemã equivalem à palavra “representação”, com significados completamente diferentes, mas que, até hoje, são confundidos e trocados um pelo outro: um com sentido usualmente ligado ao “sensorial” ou “perceptivo” e o outro mais “público” ou “linguístico”. O primeiro (sensorial) estava ligado à palavra alemã Vorstellung e o segundo (público), à palavra Darstellung. O primeiro pode ser relacionado com a óptica de Helmholtz ou a psicologia de Mach e equivale ao termo lockiano “ideia” – termo utilizado pelos filósofos britânicos e que equivale a “sensações”. Mas, na Alemanha, Vorstellung “é a palavra corretamente empregada pelos alemães para denotar um quadro mental de um dado sensorial” ( JANIK, TOULMIN, 1991, p. 156). Já no caso de Darstellung (termo utilizado na mecânica de Hertz), o mesmo não quer significar uma representação como reprodução de impressões sensoriais, mais do que isso, equivale a “esquemas cognitivos”, “fórmulas”, “modelos” – esquemas conscientemente construídos para o conhecimento: “Nesse modo de representação, os homens não são meros espectadores passivos a quem as “representações” (como as “impressões” de Hume ou as “sensações” de Mach), simplesmente acontecem” ( JANIK, TOULMIN, 1991, p. 156). É da confusão na tradução desses dois termos que muitos problemas interpretativos surgem. Na época de Hertz, havia duas representações da mecânica em voga: uma derivada da mecânica newtoniana, que tinha no conceito de força um dos seus elementos fundamentais; e a outra, baseada no Princípio da Conservação da Energia, que partia dos mesmos fundamentos da primeira, com exceção do conceito de força, que fora substituído pelo de energia. Na primeira representação, o conceito newtoniano de força era por Hertz considerado problemático e servia como uma espécie de engrenagem extra da descrição mecânica (tal conceito era ao mesmo tempo confuso e supérfluo, na avaliação de Hertz). No caso da segunda representação, era o conceito de energia que se apresentava problemático – “surgem aqui problemas com o significado de energia: como distinguir, no caso geral, os dois tipos (cinética e potencial) e onde ‘situar’ a energia potencial [...]” (MOREIRA, 1995, p. 34). Certo é que Hertz procurará fazer a mais ambiciosa unificação da descrição mecânica da natureza. E por que isso? A mecânica até então desenvolvida não serviria mais à tarefa para a qual se dispunha?
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Até aquele momento a busca de uma explicação mecânica para todos os fenômenos naturais era aceita como possível e o que variavam eram os modelos de teoria para teoria – a sistematização ou representação dessas teorias. É o próprio Hertz quem explicará seus motivos: Eu não me dediquei a esta tarefa porque a mecânica vem mostrando sinais de inadequação em suas aplicações, nem porque ela, de alguma forma, conflita com a experiência, mas, somente, como forma de me livrar do sentimento opressivo de que seus elementos não estariam livres de coisas obscuras e ininteligíveis. Não procuro a única imagem da mecânica, nem ainda a melhor imagem, eu só procuro encontrar uma imagem inteligível e mostrar por um exemplo que isso é possível e que se deve procurar como (HERTZ, 1956, p. 33).
Assim, os conceitos de força e energia, ponto fulcral da mecânica, precisariam ser revistos, isso porque classificar-se-iam como “obscuros” e “ininteligíveis” por perverter os três critérios, formulados por Hertz, que permitem avaliar criticamente qualquer teoria científica, a saber: permissibilidade (Zulaessigkeit) lógica, correção (Richtigkeit) e adequação (Zwegmaessigkeit) (HERTZ, 1956, p. 2). A permissibilidade é o requisito de consistência lógica que tem que ser cumprido por qualquer teoria: as imagens não podem contrariar as “leis do nosso pensamento”, isto é, não podem ser logicamente contraditórias. A correção é o requisito de que haja correção empírica: qualquer teoria proposta tem que ser compatível com os dados da experiência existentes; as imagens devem satisfazer à exigência de conformidade com os fatos33. Por fim, a adequação, que tem a ver com a forma exterior da teoria, com a simplicidade e elegância dos conceitos e leis utilizados. Se duas teorias são permissíveis e corretas empiricamente, então podemos ainda escolher entre elas olhando para a simplicidade e elegância dos seus conceitos e leis fundamentais. Segundo Hertz, considerando os três critérios, não há ambiguidade quanto à aplicação do primeiro e 33 Embora ele fosse kantiano, considerando a necessidade formal do pensamento tema do livro I de The principles of mechanics, era também, como Kant, implacavelmente empírico considerando as relações coordenadas do pensamento aos fatos (tema do livro II da mesma obra) – “aquilo que é derivado da experiência pode novamente ser anulado pela experiência”. Para Hertz o teste de verdade é, por fim, um problema experimental (HERTZ, 1956, p. 9).
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do segundo critérios, já que a aplicação do primeiro depende da “natureza de nossa mente” (1956, p. 3) e do segundo do “estado presente de nossa experiência” (1956, p. 3). No entanto, há margem para interpretações diferentes do terceiro, isto é, da “adequação”: “Uma imagem pode ser mais adequada para um propósito, outra para outro; somente testando gradualmente várias imagens podemos finalmente ter sucesso em obter a mais apropriada” (HERTZ, 1956, p. 3). E se há uma antecedência entre um critério e outro, Hertz deixa claro sua predileção pelo critério de permissividade lógica: O conhecimento maduro vê a clareza lógica como de importância primordial: somente imagens claras logicamente são testadas quanto à correção; somente imagens corretas são testadas quanto à sua adequação. Pela pressão das circunstâncias o processo é, frequentemente, invertido (HERTZ, 1956, p. 10).
Os critérios apresentados na Introdução aos Principles formam uma filosofia da ciência bastante sofisticada que inspirou muitos epistemólogos do século XX: é o caso de Boltzmann, que definiu a ordem de critérios para aceitação das teorias físicas tendo como precedência I) a correção e II) a simplicidade (para ele as leis do pensamento não são perfeitas e as teorias evoluem aos saltos); Poincaré que ordenou assim os seus critérios: I) unidade da natureza, II) simplicidade e III) correção; e Albert Einstein que, enquanto defensor do racionalismo crítico e do realismo, assim definiu seus critérios: I) correção, II) naturalidade ou simplicidade lógica e III) generalidade, abrangência da teoria (MOREIRA, 1995, p. 43). Outra contribuição dada à epistemologia e que já se apresenta na Introdução ao The principles of mechanics é o seu método crítico de análise de problemas filosóficos no interior das teorias físicas, isto é, um método de clarificação filosófica. Com esse método é possível identificar problemas filosóficos no interior dos debates científicos. É o caso das questões sobre a natureza do conceito de “força” ou de “energia”. No entendimento desses conceitos encontram-se subjacentes pseudoproblemas que devem ser eliminados e não resolvidos. E foram justamente eles os que promoveram as representações históricas da mecânica supramencionadas e que não representam nada mais que um emaranhado de problemas filosóficos.
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7.2 A mecânica de Hertz Segundo Videira (1995), o século em que viveram Helmholtz, Boltzmann e Hertz testemunhou o nascimento de um novo ramo de especialização da física, denominado física teórica – que se utiliza de modelos matemáticos e conceitos físicos juntos com técnicas de dedução, como a lógica e a análise crítica, com o objetivo de explicar de modo racional e prever fenômenos físicos. “Essa especialização acarretou a impossibilidade, salvo honrosas exceções, como a dos três cientistas, de uma pessoa ser ao mesmo tempo, físico teórico e físico experimental” (VIDEIRA, 1995. p. 12-13). Seu surgimento granjeou-lhe grande relevância, garantindo-lhe cadeiras nas maiores universidades do mundo. E se a física teórica conseguiu tamanha relevância no campo do conhecimento, isso se deve às obras dos três grandes cientistas supracitados. E o que tem The principles of mechanics a ver com física teórica? A resposta é simples: dada a identificação de “ideias rudimentares e supérfluas” nas duas primeiras representações da mecânica, Hertz propõe uma terceira que aqui denominamos por “mecânica de Hertz”. Nessa representação teórica da mecânica, o que ele faz é dar uma explicação racional dos fenômenos mecânicos, aperfeiçoando e corrigindo teorias precedentes e traduzindo-as para uma linguagem matemática mais apropriada. Alguém poderia, no entanto, retorquir: mas na física teórica, a teoria formulada não é alimentada pelos dados obtidos na experiência, oferecendo explicações para esses dados e prevendo efeitos e fenômenos que possam ser testados experimentalmente? E aqui encontraremos um “problema” na mecânica de Hertz que vai justamente ao encontro de seus objetivos e que recai exatamente em sua filosofia da ciência: estaria Hertz preocupado que sua teoria se confirmasse com a experiência? Parece não ser esse o caso tendo em vista esta sua afirmação: O tema do primeiro livro é completamente independente da experiência. Todas as afirmações feitas são julgamentos a priori no sentido de Kant. Elas são baseadas nas leis da intuição interna, nas formas lógicas seguidas pela pessoa que faz as asserções; com a experiência externa elas não têm qualquer outra conexão além das que essas intuições e formas podem ter (HERTZ, 1956, p. 45).
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Mas tal afirmação representa um primeiro momento do Principles, o do primeiro livro, que introduz os conceitos físicos e teoremas sem referência ao mundo externo (daí sua filosofia da ciência); todas as proposições expressas, de acordo com o que foi dito, “são julgamentos a priori no sentido de Kant”. Elas são afirmadas pelas “leis da imaginação interior” e pelas formas da lógica. No entanto, no segundo livro, serão as concepções físicas, assim definidas, relacionadas a eventos no mundo externo. Para Hertz, embora a mecânica vista como um sistema formal parecesse muito similar com o sistema formal de lógica, ela mantém sua relação referencial com a natureza. Do contrário, a afirmação exposta anteriormente contrariaria a exigência de que sua própria teoria não desrespeitasse o critério de “correção” – mas adiaremos um pouco essa reflexão. Como se caracteriza, então, a representação hertziana da mecânica? Primeiramente, ela evita a utilização de conceitos como “força” e “energia” e “parte de apenas três concepções fundamentais independentes, ou seja, tempo, espaço e massa” (HERTZ, 1956, p. 24) e o seu objetivo é “representar as relações naturais entre estas três concepções, e apenas três” (HERTZ, 1956, p. 25). A justificativa para a rejeição dos dois primeiros grandes sistemas mecânicos foi dada anteriormente, resta-nos saber de que forma tais sistemas serão superados. Em substituição ao conceito de força, Hertz introduzirá sistemas com vínculos regidos por uma lei fundamental que reza que “todo sistema livre persiste em seu estado de repouso ou de movimento uniforme na trajetória a mais retilínea” (HERTZ, 1956, p. 144). De acordo com ele, no enunciado da lei fundamental de sua imagem da mecânica, estão condensados a lei da inércia de Newton e o princípio da ação mínima de Gauss. Trata-se de um princípio variacional local, ao contrário do princípio de Hamilton, que possui um caráter global, mas cuja explicação é geral, aplicando-se, evidentemente, a qualquer outra representação caracterizada por um conjunto de princípios ou leis fundamentais. De acordo com o grau de complexidade envolvido, Hertz irá estabelecer também um tipo de hierarquia dos sistemas: sistemas livres, onde a aplicação de sua lei é imediata; sistemas “adaptáveis”, onde é necessária para a descrição a introdução de massas ocultas; sistemas vivos, que não
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podem ser representados diretamente no seu modelo, mas para os quais a hipótese é permissível (MOREIRA, 1995, p. 34).
Portanto, a aplicação de sua lei fundamental restringe-se apenas à aplicação mecânica da natureza inanimada e não aos processos internos da vida: Por enquanto, ela nos permite abordar todo o domínio da mecânica, ela nos mostra quais são os limites deste domínio. Ao nos fornecer apenas fatos conhecidos, sem atribuir a eles qualquer aparência de necessidade, ela nos torna capazes de reconhecer que tudo poderia ser completamente diferente (HERTZ, 1956, p. 38).
Em sua representação, o conceito de força somente aparecerá como uma espécie de auxílio matemático ou resultado da interdependência dos movimentos de dois corpos pertencentes a um mesmo sistema – “o movimento do primeiro corpo determina uma força e esta força, então, determina o movimento do segundo corpo” (HERTZ, 1956, p. 28). Conforme determinado pela lei fundamental, nesse caso, a força será considerada como causa e consequência do movimento, apresentando-se como “uma consequência necessária do pensamento” (HERTZ, 1956, p. 28). Outra substituição promovida pelo sistema hertziano, ou pela mecânica de Hertz, é do conceito de energia ou da estranheza do conceito de energia potencial. Na superação das dificuldades promovidas por esse conceito, Hertz vê-se envolvido com a noção de objetos físicos não mensuráveis (massas ocultas), pelos quais irá pagar um alto preço. Se tentarmos entender os movimentos dos corpos à nossa volta, e remetê-los a regras simples e claras, prestando atenção somente no que pode ser diretamente observado, nossa tentativa, geralmente, falhará. Logo perceberemos que a totalidade das coisas visíveis e tangíveis não forma um universo de acordo com a lei, no qual os mesmos resultados sempre são obtidos a partir das mesmas condições. Nós nos convenceremos de que a diversidade do universo real deve ser maior do que a diversidade do universo que nos é diretamente revelado pelos nossos sentidos. Se desejarmos obter uma imagem do universo que seja bem modelada, completa e conforme a lei, temos que pressupor, por trás das coisas que vemos, outras coisas invisíveis: devemos imaginar aliados ocultos além dos limites de nossos
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sentidos. Tais influências subjacentes foram identificadas nas duas primeiras representações; nós as imaginamos como tipos especiais e peculiares de entidades e, então, criamos as ideias de força e energia. Mas um outro caminho se mostra aberto. Podemos admitir que exista algo oculto atuando e, mesmo assim, negar que esse algo pertença a uma categoria especial. Estamos livres para assumir que este algo escondido não é nada mais do que movimento e massa novamente – movimento e massa que diferem dos casos visíveis apenas por não poderem ser percebidos pelos nossos meios usuais de percepção. Este modo de concepção é simplesmente nossa hipótese (HERTZ, 1956, p. 25, grifos nossos).
Mesmo admitindo que o conceito de massa oculta represente uma dificuldade extra no sistema de Hertz, visto que desrespeita seu próprio critério de simplicidade, dando a aparência de que a metafísica entrou pela porta do fundo e tomou o lugar da física, para Hertz a questão não era bem assim: “não se remove uma dúvida que impressiona nossas mentes ao chamá-la de metafísica” (HERTZ, 1956, p. 23). Quanto às massas ocultas, “a razão da complicação é perfeitamente óbvia. A perda de simplicidade não se deve à natureza, mas ao nosso conhecimento imperfeito da natureza” (HERTZ, 1956, p. 39). Hertz promove, então, uma distinção entre teses ontológicas (de que há “desígnios na natureza”, assim como pensava Aristóteles) e exigências metodológicas. No caso das massas ocultas, estas representam uma exigência metodológica importante em seu sistema e não se trata de uma tese ontológica. É verdade que não podemos a priori exigir simplicidade da natureza, nem podemos julgar o que é simples na opinião da natureza. Mas, com respeito a imagens de nossa própria criação, podemos estabelecer exigências. Estamos justificados em decidir que, se nossas imagens são bem adaptadas às coisas, as relações reais das coisas devem ser representadas por relações simples entre as imagens (HERTZ, 1956, p. 23).
E conclui: Portanto, nossa exigência de simplicidade não se aplica à natureza, mas às imagens dela que nós talhamos; e nossa repugnância com respeito a uma proposição complicada como uma lei fundamental somente expressa a
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convicção de que, se os conteúdos da proposição são corretos e abrangentes, ela pode ser formulada de forma mais simples por uma escolha mais conveniente das concepções fundamentais (HERTZ, 1956, p. 24).
Portanto, reitera-se, a introdução das massas ocultas não promove a construção de uma tese ontológica, mas trata-se de uma exigência metodológica: “O problema que um sistema com massas ocultas oferece para a consideração da mecânica é o seguinte: - Predeterminar os movimentos das massas visíveis do sistema, ou as mudanças de suas coordenadas visíveis, não obstante nossa ignorância sobre as posições das massas ocultas” (HERTZ, 1956, p. 224). Então, não é necessariamente um problema, mas uma imagem, um modelo matemático, que na prática figuraria um evento do mundo. Uma boa representação teórica igual à mecânica hertziana, implicando pseudo-objetos como partes constitutivas, mostra a generalidade e a independência formal do sistema; este deveria ser o caso para qualquer representação das ciências naturais, independentemente de como elas possam aparecer. Já com relação à mecânica, a partir do que foi por ele estabelecido, pode-se derivar “todo resto da mecânica por meio de puro raciocínio dedutivo” (HERTZ, 1956, p. 28). A própria organização de The principles of mechanics denuncia suas pretensões. A questão não era a de construir uma nova teoria mecânica, porque, como vimos, isso ainda não era visto como necessário por parte de Hertz. Sua pretensão resumia-se em apresentar a mecânica sob uma nova forma, que fosse mais interessante do ponto de vista lógico e físico. O livro I trata da “Geometria e Cinemática dos Sistemas Materiais” e deste livro interessa-nos o entendimento dos capítulos I (“Tempo, espaço e massa”), capítulo II (“Posições e deslocamentos de pontos e sistemas”) e capítulo VII (“Cinemática”). Além da nota preliminar do livro I, que nos chama a atenção sobre suas intenções, de que “suas asserções são julgamentos a priori no sentido de Kant”, surpreendem-nos, no capítulo I, as definições que Hertz dá de tempo, espaço e massa: “O tempo do primeiro livro é o tempo de nossa intuição interna [...]. O espaço do primeiro livro é o espaço tal como nós o concebemos [...]. A massa do primeiro livro será introduzida por uma definição” (HERTZ, 1956, p. 45). A noção de massa será expressa por meio de definições:
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Definição 1: Uma partícula material é uma característica pela qual associamos sem ambiguidade um ponto dado no espaço em um dado momento com um ponto dado no espaço em qualquer outro momento. Cada partícula material é invariável e indestrutível (HERTZ, 1996, p. 45).
Vê-se aqui que Hertz mantém a noção grega original de que as partículas materiais (átomos, no caso de Demócrito) são invariáveis e indestrutíveis. Mas, como entender massa por uma definição como essa? Parece-nos que a melhor maneira de a entender sob esse ponto de vista é caracterizando a “partícula material” a partir de sua associação de pontos em uma espécie de sistema de coordenadas. Isso fortifica a geometrização hertziana a partir de um modelo previamente estabelecido34. E se Hertz está definindo massa como invariável e indestrutível, isso se deve à proposta geral do livro I: apresentar seus elementos como julgamentos a priori no sentido de Kant. Daí, a massa será entendida dentro das formas kantianas de espaço e tempo35, portanto, será uma experiência a priori. Hertz não está falando em partículas materiais das quais trata a física de partículas, está tratando de simplicidade lógica – algo muito parecido com o atomismo de Demócrito. Hertz descreve uma Massenteilchen (partícula material) como uma propriedade característica do espaço e tempo, ela não é o objeto material no espaço e tempo. Partículas materiais são propriedades do espaço e não têm extensão espacial (não têm, por exemplo, a propriedade de ser pesada); sua função é simplesmente para marcar uma única localização no espaço-tempo. A segunda definição é dada e essa trata diretamente da conceituação de massa: Definição 2: O número de partículas materiais em qualquer espaço, comparado com o número de partículas materiais em algum espaço escolhido
34 Não podemos esquecer que Hertz está propondo uma representação da mecânica numa espécie de modelo generalizado e formalmente sistematizado.
35 “[...] na parte analítica da Crítica se demonstrará que espaço e tempo são apenas formas da intuição sensível, isto é, somente condições da existência das coisas como fenômenos e que, além disso, não possuímos conceitos de entendimento e, portanto, tampouco elementos para o conhecimento das coisas, senão quando nos pode ser dada a intuição correspondente a esses conceitos; daí não podemos ter conhecimento de nenhum objeto, enquanto coisa em si, mas tão-somente como objeto da intuição sensível [...]”. (KANT, 2008, BXXVI)
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em um momento fixo, é chamado de a massa contida no primeiro espaço (HERTZ, 1956, p. 46).
Interpretada como definição de massa a priori, pode-se dizer que se pode escolher certa área de pontos no espaço, definida por um jogo de coordenadas, e usar isso como unidade de medida a fim de definir a massa de algum outro jogo de pontos do espaço. Após introduzir o conceito de massa, Hertz introduz o conceito de ponto material, utilizando-se do conceito de massa. A massa relacionada à região do espaço-tempo é chamada de “ponto material” de acordo com a definição 3. Definição 3: Uma pequena massa finita ou infinita, concebida como estando contida em um espaço infinitamente pequeno, é chamada um ponto material. Um ponto material consequentemente consiste de qualquer número de partículas materiais conectadas umas às outras (HERTZ, 1956, p. 46).
Um ponto material é um determinado arranjo de partículas materiais. Definição 4: Um número de pontos materiais considerados simultaneamente é chamado de um sistema de pontos materiais, ou resumidamente um sistema. O total das massas dos pontos separados é, pelo § 4, a massa do sistema. Daí um sistema finito consiste de um finito número de finitos pontos materiais, ou de um número infinito ou infinitamente pequeno ponto material, ou de ambos. É sempre permissível considerar um sistema de pontos materiais como sendo composto de um infinito número de partículas materiais (HERTZ, 1956, p. 46).
Hertz desenvolve sua representação da mecânica a partir do estudo de sistemas materiais, partindo do pressuposto que cada sistema é formado pela conjunção de pontos materiais e que “um ponto material pode ser considerado como um caso especial e como um simples exemplo de um sistema de pontos materiais” (HERTZ, 1956, p. 47). Somente esses sistemas podem ser objetos apropriados de teorias físicas. É importante compreender por que Hertz propõe todas essas definições a priori para chegar à noção de um sistema. Já na Introdução ao Principles, ele
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apresenta suas ideias sobre modelos ou imagens, dizendo que “nós formamos para nós mesmos imagens ou símbolos de objetos externos; de tal modo que as consequências necessárias das imagens no pensamento são sempre as imagens das consequências necessárias na natureza das coisas retratadas” (HERTZ, 1956, p. 1). Dessa forma, nós podemos prever os eventos futuros e conferir a validade de nossas imagens. Essas imagens não retratam coisas em si mesmas, elas retratam determinadas estruturas das coisas, o arranjo das coisas. Elas são nossas concepções das coisas e a conformidade delas com a natureza se esgota na adequação ao que delas é requisitado no processo anteriormente descrito. O que vemos é que Hertz está fazendo um esforço para criar os fundamentos de uma ciência da mecânica que não postulasse nada sobre coisas em si mesmas. Os únicos objetos apropriados da física seriam os sistemas de pontos materiais, formados por partículas materiais. Nós podemos postular um certo comportamento, ou certas leis para um certo sistema, e conferir se eles acontecem na natureza. Mas os objetos, os simples, nós só podemos definir logicamente. O ponto é que, mesmo que nós não possamos saber sobre a realidade, podemos ainda lhe alcançar fundamento para nossa ciência, quando conhecermos a sua estrutura. E isso é tudo que precisamos para a física36. Na sequência do livro I, portanto, vemos Hertz apresentar, além das definições de tempo, espaço e massa, a descrição de conexões, trajetórias mínimas, trajetórias geodésicas, trajetórias “mais retilíneas” e “uma série de proposições arbitrárias” (HERTZ, 1956, p. 135) que devem ser remetidas ao conteúdo do livro II. E sua crença na imutabilidade da componente a priori se expressa na conclusão desse livro: “[...] a correção ou incorreção dessas investigações não podem ser nem confirmadas nem negadas por quaisquer possíveis experiências futuras” (HERTZ, 1956, p. 135). O livro II, denominado “Geometria e Cinemática dos Sistemas Materiais”, trata da mecânica propriamente dita – da componente que deriva da experiência. Nele Hertz trata novamente do tempo, espaço e massa, da lei fundamental, do movimento de sistemas livres, dos sistemas de massas ocultas e dos sistemas com descontinuidade. Nesse livro, “[...] tempos, espaços e 36 “Nós consideramos um fenômeno do mundo material como mecanicamente e, portanto, fisicamente explicado, quando nós provamos ser ele uma consequência necessária da lei fundamental e daquelas propriedades dos sistemas materiais que são independentes do tempo” (HERTZ, 1956, p. 145).
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massas, são símbolos para objetos da experiência externa [...]”. As relações entre tais símbolos devem, portanto, “satisfazer não somente as leis de nossa intuição e pensamento, mas também a experiência” (HERTZ, 1956, p. 139). Isso porque, conforme a exigência de “correção” (e aqui voltamos à questão que deixamos em aberto), instituída por ele mesmo, qualquer teoria proposta tem que ser compatível com os dados da experiência existentes – “a questão da correção de nossas proposições coincide, portanto, com a questão da correção ou validade geral daquela única proposição” (HERTZ, 1956, p. 139). No entanto, segundo Abrantes (1992), essa relação entre teoria e experiência em Hertz é um tanto quanto confusa, isso porque, Em certas passagens, Hertz afirma que as relações fundamentais (“leis”) das diversas representações podem ser confrontadas diretamente à experiência. Ele afirma, por exemplo, que toda a contribuição da experiência está contida na “lei fundamental” [...]. Em outras passagens, contudo, ele parece adotar uma posição holística semelhante à defendida por P. Duhem: “cada fórmula separada não pode ser especialmente testada pela experiência, mas somente o sistema como um todo”37 (ABRANTES, 1992, p. 372-373).
Assim, podemos perguntar: a mecânica hertziana resiste aos próprios critérios elaborados por Hertz para avaliar criticamente qualquer teoria científica? Quanto ao critério de permissibilidade lógica e de adequação, Hertz assume que a sua imagem da mecânica se equipara à representação newtoniana. Primeiro porque ambas foram colocadas em uma forma completamente satisfatória do ponto de vista lógico e, segundo, por assumir que a primeira imagem (a newtoniana) tem se completado por adequadas adições e que as vantagens de ambas, em direções diferentes, são de igual valor (HERTZ, 1956, p. 40). Sem mais explicações, ele avança para tratar do critério de correção. Para ele apenas uma das duas imagens pode ser correta, no entanto, a sua representação se define, do ponto de vista da correção, como melhor “na medida em que um conhecimento mais refinado nos mostra que a suposição de forças à distância invariáveis fornece apenas uma primeira aproximação da verdade” 37 Aqui Abrantes (1992) cita o próprio Hertz (1956, p. 195), D’Agostinho (1990, p. 391) e Cohen (1956).
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(HERTZ, 1956, p. 41). Os fenômenos eletromagnéticos não apenas são capazes de consolidar a terceira imagem (a hertziana) como a mais apropriada, mas também definem os pressupostos sobre os quais se apoiariam a mecânica: O balanço das evidências será inteiramente favorável à terceira imagem quando uma segunda aproximação da verdade puder ser obtida pela associação das supostas ações à distância a movimentos em um meio que tudo permeia, cujas partes estão sujeitas a conexões rígidas; um caso que também parece muito próximo de ser concretizado na mesma esfera das forças eletromagnéticas. Este é o campo no qual será travada a batalha decisiva entre os pressupostos fundamentais (HERTZ, 1956, p. 41).
E aqui, mais uma vez, compromete-se a intenção de correção da mecânica hertziana que por si só é complicada. Seu compromisso para com o programa do éter parece atropelar de vez seu critério de correção. Não é possível se pensar em um critério que tem como pressuposto que uma teoria científica deve satisfazer à exigência de conformidade com os fatos, estando subjacente a essa teoria a ideia da “associação de supostas ações à distância a movimentos em um meio que tudo permeia (meio etéreo)”. Isso nos remete a uma questão instigante e de difícil resposta: por que Hertz mantém a ideia de éter, apesar de essa estar em aparente contradição com seus critérios? Acreditamos que seu compromisso com tal programa se deve à sua filiação maxweliana, que tinha a pretensão de desenvolver uma teoria completa dos fenômenos eletromagnéticos a partir da noção de ação física que se transmite de forma contígua e mediatizada. Daí a evocação do éter, como no caso das massas ocultas, servir-se-ia como uma espécie de linguagem figurada que apontaria para uma “realidade” no sistema. Em resumo, sua admissão estaria compromissada com a universalização e independência formal do seu sistema, aos moldes da teoria de Descartes, que explicaria a atração gravitacional à distância, postulando movimentos giratórios dos vórtices de centro invisível no onipresente éter. Sua existência é postulada, seus arranjos e relações são também postulados, mas sua admissão assegura formalmente a inteligibilidade do sistema. Se a representação hertziana da mecânica se complica com o critério de correção, muito mais se complicará com o de adequação (simplicidade). E toda essa complicação, como já foi adiantado, remonta-se ao conceito de massas
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ocultas38. O que seriam essas massas ocultas? Que exemplos teríamos delas? Infelizmente, essa resposta terá que ser adiada porque Hertz não dá sequer um breve esclarecimento. O próprio Helmholtz, no Prefácio da obra, lamenta a ausência de exemplos que ilustrem a aplicação e, portanto, a necessidade da hipótese de massas e movimentos ocultos. Infelizmente ele não deu exemplos que ilustrassem a suposta maneira pela qual tal mecanismo hipotético deveria atuar; a explicação nesses termos, mesmo dos casos mais simples de forças físicas, demandaria, claramente muita intuição científica e capacidade imaginativa. Neste sentido, Hertz parece ter depositado bastante confiança na introdução de sistemas cíclicos com movimentos invisíveis (1956, Prefácio).
Mas o que não faltam são críticas e objeções a esse elemento suprassensível que, além de “nada” esclarecer ou ajudar no sistema (do ponto de vista dos seus críticos), ainda introduz novas dificuldades: O conceito de massas ocultas parecia uma especulação desnecessária e, se substituía conceitos confusos como o de força ou possuidores de alguma ambiguidade, como o de energia, não era isento de desvantagens, além de tornar a explicação mecânica dependente de objetos não observáveis, para usar um termo atual (MOREIRA, 1995, p. 36).
Assim, verificamos que, mesmo a par das convicções pessoais de Hertz, sob o olhar de estudiosos de física, sua obra não subsiste aos critérios por ele próprio estabelecidos. E se os Principles não encontraram repercussão nos meios acadêmicos não aparecendo nas mesas de discussões ou em livros-texto39, o mesmo não pode ser dito de sua filosofia da ciência. Sua análise dos aspectos filosófico-metodológicos das teorias científicas ganhou repercussão e foi fonte de inspiração para muitos pensadores. 38 Bem como com o conceito de éter, que se trata de um expediente adicional que acaba por imergir a mecânica num mar de complicações que extravasam quaisquer critérios que pretendam simplicidade.
39 Segundo Moreira (1995, p. 40), quando muito, as referências ao The principles of mechanic de Hertz, aparecem nos meios acadêmicos quando se trata do princípio mecânico do trajeto mais “reto” ou de menor curvatura. E isso se deve ao fato de ser uma obra complicada e incapaz de resolver os problemas apresentados pelas representações newtoniana e energetista da mecânica.
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Considerações Finais O presente capítulo objetivou apresentar o pensamento de H. Hertz. Num primeiro momento, nossa pretensão era a de inseri-lo na tradição dos campos eletromagnéticos e demonstrar como é nítida sua superioridade tanto com relação aos que o precederam, quanto aos seus contemporâneos. Superioridade não no sentido de anterioridade a qualquer das teorias disponíveis, mas no sentido de como foi capaz de ir além de qualquer concepção empirista ingênua. Sua superação se deu em várias direções: primeiro, conseguiu distinguir nas equações de Maxwell relações contraditórias, circulares e vazias (sem desmerecer a importância do pensamento do escocês); propôs a abreviação de suas equações e conseguiu identificar e qualificar o caráter ondulatório dos fenômenos eletromagnéticos refletidos nas equações de Maxwell. Segundo, superou Helmholtz no sentido de demonstrar que para efetivação de mecânica energetista caberia melhor uma teoria onde a ação física se transmitisse de forma contígua e mediatizada do que à distância. Terceiro, conseguiu identificar nas mecânicas newtoniana e energetista “relações vazias” promovidas por ideias “supérfluas e rudimentares”, isto é, conseguiu coligar as ideias de força e energia a pseudoconceitos que não apontavam para nada na natureza. Em substituição, ou em aperfeiçoamento dessas imagens, sedimentadas no ideário da comunidade científica, propôs uma terceira imagem, na qual ideias como a de força e energia desapareceriam. Em troca, alvitrou um sistema mecânico fundamentado na relação de conexões geométricas que admitia liberdade para introduzir elementos suprassensíveis (massas ocultas, éter). Tais elementos, que pareciam não apontar para nada, na verdade, eram representação de algo na realidade do fenômeno. Mas, para nós, o mais importante, e em quarto lugar, está sua contribuição para a filosofia da ciência, contribuição essa refletida em sua concepção filosófico-metodológica do funcionamento da ciência. Baseado no ideal kantiano das formas representação, Hertz propôs que os problemas subjacentes às teorias da ciência tivessem base no modo como tais teorias eram representadas. Toda e qualquer teoria que propõe termos para os quais nada se pode apontar incorre no risco de tornar-se autocontraditória e confusa. E na representação de uma teoria, nada funciona melhor que o cálculo (a estrutura matemática), interpretado como regra de correspondência, como componente a priori dessa mesma teoria. No entanto, para se verificar se uma
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teoria se sustenta, é preciso submetê-la ao crivo dos critérios estabelecidos pelo próprio Hertz, que avaliam sua permissibilidade lógica (a coerência interna), sua correção (a compatibilidade com os dados da experiência) e sua adequação (a que melhor representa as relações essenciais do objeto). Hertz propõe, então, um misto de teoria que se apresenta primeiramente como um sistema dedutivo baseado na intuição interna e, depois, como proposições que são símbolos de objetos de nossa experiência externa. A componente a priori de sua representação, antes de apontar para qualquer realidade metafísica, indica uma necessidade metodológica de seu sistema, isso porque, para ele, teoria e experiência são indissociáveis. E o que ele trata por inserção de “relações vazias” refere-se a um legítimo procedimento pelo qual o pensamento antecipa eventos futuros.
Referências ABRANTES, P. A filosofia da Ciência de Heinrich Hertz. In: ÉVORA, F. R. R. (Ed.). Século XIX: O Nascimento da Ciência Contemporânea. Campinas: Unicamp, 1992. p. 351-375. COHEN, R. S. Hertz’s philosophy of science: an introductory essay. In: HERTZ, H. The principles of mechanics. New York: Dover, 1956. CRUZ, Frederico Firmo de Souza. Faraday e Maxwell: Luz sobre os campos. São Paulo: Odysseus Editora, 2005. HELMHOLTZ, H. von. Prefácio. In: HERTZ, H. The principles of mechanics: presented in a new form. Preface by Hermann von Helmholtz. Authorized English translation by D. E. Jones e J. T. Walley. With a new introduction by R. S. Cohen.New York: Dover Publication, 1956. HERTZ, H. Electric Waves. New York: Dover Publications, 1962. HERTZ, H. The principles of mechanics: presented in a new form. Preface by Hermann von Helmholtz. Authorized English translation by D. E. Jones e J. T. Walley. With a new introduction by R. S. Cohen. New York: Dover Publication, 1956. JANIK, A.; TOULMIN, S. A Viena de Wittgenstein. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Campus, 1991. KANT, I. Crítica da razão pura. tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. 6. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.
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MACH, E. The Science of mechanics: a critical and historical account of its development. Open Court Publishing Company, 1960. MAXWELL, James Clerk. A treatise on electricity and magnetism. Nova York: Oxford University Press, 1998. 2 vols. MOREIRA, I. C. As visões física e epistêmica de Hertz e suas representações. Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência, n. 13, p. 33-43, jan.-jun., 1995. VIDEIRA, A. A. P. A Física entre a Mecânica Clássica e a Filosofia: os exemplos de Helmholtz, Boltzmann e Hertz. Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência, n. 13, p. 11-14, jan.- jun., 1995.
CAPÍTULO VIII
ANTECEDENTES REALÍSTICOS DO ATOMISMO PRÉ-QUÂNTICO
Introdução
A
história do realismo e antirrealismo na física do século XX trata-se, na verdade, de desdobramentos de discussões mais antigas em filosofia que envolvem um debate entre materialistas e idealistas acerca da natureza da realidade. Tal discussão acabou por promover desenvolvimentos de outras doutrinas sob a égide de nomenclaturas que fazem defesa de ideais diversos, tais como: naturalismo, determinismo, reducionismo, positivismo, empirismo, fideísmo, ceticismo, sensualismo, solipsismo, agnosticismo etc. Todas essas doutrinas estão de certa forma envolvidas com a questão da natureza última da realidade e compõem o debate inicial fomentado pelas correntes materialistas e idealistas dentro da história da Filosofia. Em termos resumidos, o materialismo defende a ideia do reconhecimento da existência dos objetos em si, fora da mente, e de que as ideias e as sensações são cópias ou reflexos desses objetos. Por outro lado, o idealismo concebe a realidade como existindo dependentemente da mente humana. Os objetos não existem fora da mente, eles não são mais do que combinações de sensações. Vê-se, portanto, que para o idealista a ausência do observador consciente, que capta e reflete acerca da realidade, inviabiliza a existência da própria realidade. No campo filosófico, o debate materialismo vs. idealismo retroage às disputas na Antiguidade grega, que envolvem nomes como os de Platão40 e de 40 Grande parte dos intérpretes da filosofia de Platão convencionou que seu pensamento defende um tipo de realismo, a saber, o “realismo das ideias”, isso porque, segundo eles, o “idealismo” platônico remete à Ideia, aos Eidos, e não à primazia da mente como fundamento último da realidade e essa leitura parece-me correta. Contudo, ainda assim, mantenho a leitura do pensamento platônico, em concordância com Heisenberg, como sendo um tipo de idealismo, idealismo das
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Epicuro e que tratam da questão a respeito da relação entre o pensar e o ser ou sobre aquilo que seria originário: a natureza ou o espírito? Como se disse, essa questão ganhou relevância filosófica por séculos e de tempos em tempos ela se revela ora mais forte em tons materialistas (Epicuro, Lucrécio, la Mettrie, Holbach, Gassendi, Feuerbach, Marx, Engels, Lênin etc.), ora em tons idealistas (Platão, Berkeley, Kant, Fichte, Schelling, Hegel etc.). Sobre o materialismo de Epicuro, sobre o qual tratamos no Capítulo I, esse, de uma forma ou de outra, reflete as posições materialistas ortodoxas da física clássica. Por outro lado, teorias como as do misticismo quântico e aquelas que dão ênfase à subjetividade no entendimento da realidade, podem também estar atreladas ao idealismo filosófico quando da defesa de que a mente tem um papel essencial na constituição da realidade. Em filosofia, quem radicaliza esse tipo de ideia é o idealismo imaterialista de George Berkeley (1685-1753). Berkeley, no seu Tratado sobre os Princípios do Conhecimento Humano (1710) e em Três Diálogos entre Hylas e Phylonous (1712), defende seu imaterialismo sustentado na negação da realidade de qualquer objeto no mundo exterior que não fosse percebido pelo espírito ou pela mente. Para ele, ser é ser percebido (esse percipiti), isto é, as coisas só existem se, e enquanto, alguém as percebe. O ponto de partida de sua filosofia, portanto, é por demais conhecido: seu ideal é o da defesa da religião contra as ameaças da filosofia atomista (Gassendi, Galileu, Basson, Bérigard) e contra todas as ideias que pudessem conduzir ao materialismo e ao ceticismo. Uma filosofia corpuscular conflita com os princípios religiosos, pois se todos os eventos são determinados por condições físicas, somos forçados a assumir também uma concepção materialista do “espírito humano”. Em virtude disso, na mente do bispo Berkeley, fazia-se necessário a destruição do ceticismo propiciado pela nova ciência materialista, visto que suas “verdades” são totalmente incompatíveis com a religião revelada. Diz o filósofo: “Como já mostramos, a doutrina da matéria ou substância corpórea foi o verdadeiro pilar ou suporte do ceticismo e sobre a mesma base assentaram os sistemas do ateísmo e da irreligião” (BERKELEY, 1710, § 92). formas puras. Para tal, levo em consideração que “formas puras” ou “entes matemáticos” não são realidades que existem independentemente da mente, sendo, portanto, reais. Em Problemas da Física Moderna, ao se referir às simetrias como as “formas puras” da matéria, Heisenberg chama tal posição de “idealismo platônico” por conceber as partículas elementares da matéria como expressões de princípios formais de simetria, que seriam os eidos da matéria. Para ele, a moderna física estaria mais próxima do idealismo platônico do que do atomismo materialista de Epicuro.
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Em suma, o que defende o imaterialismo de Berkeley é que as coisas são um conjunto de ideias. Os objetos não existem fora da mente e a realidade é aquilo que nós percebemos, isto é, combinações de sensações. Segundo Berkeley (1710, § 5), “o objeto e a sensação são a mesma coisa e não podem por isso ser abstraídos um do outro”. O espaço e todas as coisas que nele existem (casas, montanhas, rios, vales, árvores etc.) são em si impossíveis, simples imaginações. [...] Se a palavra substância for tomada no sentido filosófico – como a base de acidentes ou de qualidades (existentes) fora da consciência –, então, reconheço realmente que a elimino, se é que se pode falar de eliminação daquilo que nunca existiu, não existiu sequer na imaginação (BERKELEY, 1710, § 37).
Com essa postura, Berkeley inaugura a corrente do idealismo imaterialista dogmático, cujos reflexos hão de se apresentar, com nuances particulares, nas filosofias da ciência de Ernst Mach, Richard Avenarius, Karl Pearson, P. Duhem e Henri Poincaré e que, consequentemente, refletir-se-á em algumas interpretações da realidade na física do século XX. Por outro lado, o materialismo filosófico apresentar-se-á, sob forma de realismo científico, em toda vertente ortodoxa da física contemporânea41, cujas linhas mestras serão apresentadas adiante. Resta-nos, entretanto, apresentar o que se espera com tradução dos termos materialismo e idealismo para a física do século XX. O que apresentamos por materialismo em filosofia aqui será traduzido para o campo da física e do atomismo químico pré-quântico, com a terminologia de realismo, a saber, realismo fisicalista42. Em geral, a tese que lhe subjaz é a de que tudo o que existe pode ser reduzido a realidades físicas, como matéria, energia, entropia, campos etc. e que as entidades atômicas são objetos reais que independem na nossa mente. Trata-se, portanto, de uma concepção epistemológica que se convencionou chamar de realismo de entidades, isso 41 Importante observar que não estamos falando da vertente ortodoxa da “física quântica” sobre a qual trataremos mais tarde.
42 Em filosofia, principalmente nas correntes filosóficas que adotam o pensamento científico como ponto de partida, esse tipo de realismo ganha diversas denominações: realismo empírico (I. Kant), realismo natural (W. Hamilton), realismo ingênuo (G. Schuppe), realismo científico (O. Külpe), realismo crítico ( J. Maritain) e materialismo (Lenin). Trata-se de um tipo de realismo que na filosofia contemporânea geralmente é encontrado no existencialismo, no instrumentalismo e no empirismo lógico.
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para diferenciar das dezenas de realismos encontrados na literatura pertinente da filosofia da física (realismo ontológico, epistemológico, objetivista, de potencialidades, relacionista, metafísico, harmônico, comunicável, desubstancializado, axiológico, simbólico etc.)43. Tal abordagem realista fisicalista não pode ser confundida com positivismo, que se trata de concepção diversa. O positivismo, no pensamento científico, tem como tarefa fundamental a descrição positiva dos fenômenos naturais a partir dos dados da experiência. O positivista fixa-se nas observações, nos dados positivos obtidos pelos instrumentos científicos e declara como metafísica qualquer teoria que reconheça a existência e a cognoscibilidade da realidade objetiva fundada em premissas não observáveis. Há de se ressaltar, entretanto, que, diferentemente do positivismo, o realismo científico, no contexto da descoberta, pode manter uma perspectiva realista de entidades não observáveis. Substituiremos, por outro lado, o termo idealismo por antirrealismo científico. Aqui, mais uma vez, excluiremos de nossa análise o montante de antirrealismos da taxonomia da filosofia da física (antirrealismo subjetivista, epistemológico, subjetivista objetificado, parcial, transformador, criador, voluntarista etc.). Isso porque o nosso interesse restringir-se-á ao antirrealismo que diz respeito a entidades e substâncias. No antirrealismo, tal como no idealismo, duas posturas se destacam: I) a de que não existe uma realidade que independe da mente; II) a de que a mente tem um papel essencial na constituição do mundo. Tais posturas são muito comuns em teorias físicas em que o misticismo toma conta da teoria, deixando margem para asserções contraintuitivas e por demais esquisitas, como naquelas em que a mente desempenha um papel essencial no desdobramento dos fenômenos quânticos. Circunscreveremos também no campo das teorias 43 Reforça-se, entretanto, que se todo materialismo é realismo, nem todo realismo é materialismo. É por isso que, para não nos metermos nas confusões conceituais da esotérica taxonomia dos realismos e antirrealismos promovida pela filosofia da física, o que propiciaria, por exemplo, que um mesmo pensador pudesse muito bem ser realista em relação a “p, q, r” e um antirrealista em relação a “x, y, z”*, restringiremos a nossa análise, ora em diante, apenas àquilo que diz respeito ao realismo de entidades ou de substâncias. * “Heisenberg foi um anti-materialista, isto é, negou a partícula elementar de matéria como a realidade última a partir da qual todas as coisas são feitas, e assumiu um nível mais profundo de realidade, do qual a matéria seria o fenômeno. É, portanto, à ontologia do realismo de substância que o físico filósofo se contrapôs. Ele assume um realismo matemático nomológico, ou desubstancializado, mas nega o realismo materialista que postula as partículas elementares como constituintes da realidade física última” (DA SILVA; BRANCO, 2019, p. 268).
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antirrealistas, incluindo algumas teorias ortodoxas, aquelas que se fundam no ideal de que o formalismo matemático deve dar conta de uma suposta realidade, mas não assegura que tais equações digam respeito à própria realidade, isto é, não assume a perspectiva realista de entidades não observáveis. Esse tipo de teoria antirrealista acaba por funcionar muito mais como uma fabricação da realidade, uma vez que o formalismo fornece inteligibilidade e universalidade à teoria, mas, de maneira ad hoc, introduz acréscimos impossíveis de se testar, que servem para resolver aquilo que se evidencia problemático. O que se pergunta, entretanto, é se, nesses casos, um programa de pesquisa quando se depara com algumas dificuldades, ou com alguns fenômenos recalcitrantes, deveria ser abandonado? Ou se vale para a manutenção do programa a criação de elementos ad hoc, mesmo que esses possam não dar conta do fenômeno real? Ou se, por fim, bastaria um ajuste no “cinturão de proteção”44, mesmo a contragosto da realidade, para que os físicos pudessem “tocar a vida adiante”? No lado das teorias realistas, mesmo sendo difícil de rotular um teórico qualquer – nem sempre eles deixam pistas sobre o que professam –, acreditamos estarem os nomes de Einstein, de Broglie, David Bohm, John Bell, Taketani, Jordan, Zeh, Cramer, Everett, Zurek, Giraldhi, Landé; e no lado das teorias antirrealistas poderíamos levantar as interpretações de Bohr, Heisenberg, Schrödinger, von Neumann, London & Bauer, von Weizsäcker, Wheeler, Wigner, Heitler. Suas teorias compõem o desenvolvimento da física atômica no século XX e a maiorias das interpretações acerca da realidade encaixam-se no campo da física quântica. Entretanto, anterior a isso, cumpre-nos apresentar os precedentes ortodoxos das teorias atômicas desenvolvidas no século XIX e que formam a base daquilo que viemos a conhecer sobre a realidade do átomo no século XX.
8.1 Precedentes realistas nas teorias atômicas anteriores ao século XX no campo da Química O ideal que governava a observação e a explicação físicas de Demócrito até Descartes chegando aos filósofos naturalistas do século XIX, era aquele que admitia que a inteligência seria capaz de um conhecimento total e definitivo 44 Tese fundamental de Imre Lakatos (1922-1974) na qual o cinturão protetor se refere a uma série de teorias auxiliares que protegem o núcleo firme e proíbe a falsidade (heurística negativa) do programa de pesquisa.
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da natureza – que existia independentemente de nossas mentes – donde o comportamento e o movimento da matéria, pelo seu caráter de objetividade, estariam sujeitos a leis rígidas. Tratava-se de um mecanicismo que supunha que todo o universo se reduzia a um sistema de volumes geométricos animados de movimentos, os quais eram compostos de pequenas partes indivisíveis da matéria, os átomos. Eram justamente esses componentes últimos da realidade que propiciavam a explicação, a diversidade, a mensurabilidade e a tangibilidade da matéria. Durante a segunda metade do século XIX a matéria parecia ser algo de permanente a que nós podíamos agarrar. Existia um pedaço de matéria que nunca tinha sido criado (tanto quanto cada físico sabia) e que nunca podia ser destruído! Podia-se pegar nele e sentir que não fugiria por entre os dedos (SCHRÖDINGER, 1999, p. 104).
Visto dessa forma, o realismo fisicalista de entidades era quem vigorava. Os físicos clássicos estavam convencidos de que os átomos eram individuais, identificáveis, pequenos corpos, tais como os demais objetos palpáveis que nos rodeiam. Tais átomos se movimentavam segundo as forças de partes próximas da matéria exercidas sobre eles. Todo o seu movimento era previsível, possibilitando, com isso, a formulação de leis, já que o seu comportamento era rigidamente determinado pelas condições iniciais. A previsibilidade era possível ao se lançar mão de um instrumento matemático, fundado sobre um sistema de equações diferenciais, para abreviar o processo de análise do comportamento da matéria passo a passo, permitindo analisar o que poderia acontecer à velocidade de uma partícula em movimento à medida que a diferença temporal se tornasse infinitesimal. Essa posição realista constituía-se da ideia de que as teorias científicas não eram puramente construções mentais possíveis. Elas eram, de fato, conhecimentos verdadeiros a respeito do mundo, da realidade. Dessa forma, não havia como separar a questão do realismo científico da questão da verdade, pois em toda posição realista a aceitação de uma teoria científica envolvia a crença de que ela era verdadeira. Pode-se dizer que a concepção moderna de átomo enquanto corpúsculo permeado por um enorme espaço vazio retroage a Robert Boyle. Em 1661, quando publicou O Químico Cético, Boyle questionou uma concepção que
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retroagia a Empédocles e Aristóteles e que vigorava até o século XVII: a de que o fundamento último da realidade estava sustentado sobre os quatro elementos primordiais, a saber, água, fogo, terra e ar. Mesmo com a luta de Francis Bacon contra os ídolos e com a sua inauguração do método científico de fundo empirista, ainda assim, as pessoas não reconheciam que esses quatro elementos eram feitos de uma combinação de elementos mais básicos. Boyle, imerso na pesquisa qualitativa, utilizou-se de ferramentas científicas (fotômetro de chamas, testes de triagem, testes de precipitação, etc.) para descobrir os elementos básicos componentes dos minerais e outros materiais. Em 1662, ele descobriu que o volume de um gás é inversamente proporcional à pressão exercida sobre ele. Se se dobra a pressão sobre o gás, reduz-se consequentemente o seu volume à metade; reduzindo-se, por outro lado, a pressão para a metade do estado original, o gás dobrará o seu volume. Com isso, a conclusão de Boyle foi a de que os gases são feitos de minúsculos corpúsculos permeados por um enorme espaço vazio. Essa concepção fora endossada por seu amigo Isaac Newton quando se referiu aos átomos como “pequenas partículas dos corpos de certos poderes, virtudes ou forças por meio dos quais agem a distância não apenas sobre os raios de luz, refletindo-os, refratando-os e inflectindo-os, mas também umas sobre as outras, produzindo grande parte dos fenômenos da natureza” (NEWTON, 1721, p. 350). Mesmo com a apresentação racional prévia da realidade do átomo feita por Boyle será John Dalton (1766-1844) aquele a construir a primeira teoria moderna dos átomos, seguido de Dmitri Ivanovitch Mendeleev (1834-1907), que desenvolverá a estrutura conceitual para os elementos que ocorrem na natureza, com os seus respectivos números e pesos atômicos. Antoine Laurent Lavoisier (1743-1794) foi quem, no desenvolvimento da teoria de Joseph Priestley (1733-1804) – que havia isolado o oxigênio em 1774 e descrito o seu papel na combustão e respiração, mas que ainda mantinha a concepção de ar desflogistizado em alusão ao flogisto45 de Georg Ernst Stahl (de 1729) –, transpôs a teoria do flogisto pesando cuidadosamente as substâncias para determinar o efeito do aquecimento em cada uma delas. Com 45 Segundo Stahl, o flogisto tratava-se de uma substância invisível, inodora, insípida, incolor e de peso negativo que justificava o fato de que um material se tornava mais pesado quando entrava em combustão, sofria corrosão ou era calcinado, isso porque perdia o seu flogisto. Quanto mais combustível for um material, mais flogisto liberta na combustão.
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isso, ele isolou o oxigênio do ar e desenvolveu a teoria sobre a importância do oxigênio no processo da combustão e na respiração. Na utilização de procedimentos quantitativos e experimentos, Lavoisier chega a algumas conclusões: I) que uma substância só pode ser considerada elementar se não se subdividir em substâncias mais simples ao ser tratada quimicamente; II) que a água era produto da combinação de oxigênio e hidrogênio; III) que o oxigênio tem uma lógica própria46; IV) que era possível enunciar uma lei da conservação das massas – que foi resumida no seguinte princípio: “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”; V) que era possível expandir a lista de elementos conhecidos a 33 elementos – isso foi feito no seu Traité Élémentaire de Chimie (1789). Foi justamente a base dos estudos de Lavoisier que proporcionou a Dalton o caminho para a formulação da teoria moderna do átomo. Retomando o trabalho de Dalton, sua obra A New System of Chemical Philosophy (1808) foi quem lhe granjeou o status de pai da teoria atômica moderna. Nessa obra, ele formula o princípio de que cada elemento químico é composto de átomos idênticos de massa característica e que os compostos são combinações de átomos de elementos diferentes em proporções numéricas simples. Ele aprimora também o conceito de elemento de Lavoisier, fornecendo-lhe uma fundamentação ontológica por meio da articulação com o conceito de átomo. A reelaboração do conceito possibilitou a compreensão dos átomos como unidades mínimas de combinação da matéria. Em uma apresentação à Sociedade Literária e Filosófica de Manchester sobre a mistura e a solubilidade de diferentes gases, Dalton confirma o sucesso de suas investigações a respeito da realidade dos átomos, quando afirma: “Uma investigação sobre os pesos relativos das partículas últimas dos corpos é um assunto, até onde eu sei, inteiramente novo. Eu venho, ultimamente, empreendendo essa investigação com notável sucesso” (DALTON, 1805 apud OKI, 2009, p. 1073). O sucesso da investigação de Dalton se pauta nas seguintes conclusões: a) os elementos são compostos de minúsculas partículas indivisíveis, denominadas átomos; b) os átomos de cada elemento são parecidos, mas diferem dos átomos de todos os demais elementos (define o peso atômico como a massa de um átomo de hidrogênio); c) não há criação nem destruição de matéria durante as transformações químicas; d) a combinação química 46 Lavoisier foi o primeiro a empregar o termo oxigênio, de oxygine, isto é, formador de ácido.
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ocorre quando os átomos de dois ou mais elementos formam uma firme união, ou molécula. O trabalho de Dalton foi a primeira aplicação sistemática e bem-sucedida do atomismo às observações quantitativas. Entretanto, um problema ainda persistia no atomismo químico moderno, contra o qual Dalton já havia investido. A questão da indivisibilidade do átomo era crucial para a manutenção da teoria, sem ela faltaria a base firme para a teoria química, conforme as leis de Proust e do próprio Dalton. Um problema, contudo, fez-se presente: a partir de um volume de oxigênio e um de nitrogênio, dois volumes de óxido de nitrogênio são formados. Se a partir de um átomo de oxigênio e um de nitrogênio formou-se dois óxidos de nitrogênio, isso significa que os átomos foram divididos, o que perverteria o princípio da indivisibilidade do átomo (ROCHA, 2007). A solução para esse problema veio por meio das leis volumétricas de Joseph Gay-Lussac (1778-1850) e da hipótese de Amadeo Avogadro (1776-1856). A lei volumétrica dos reagentes gasosos em uma reação química foi enunciada por Lussac em 1808 e apresentada à Sociedade de Arcueil em 1809, e afirma: Gases [...] combinam-se entre si em proporções muito simples, e a contração de volume que eles experimentam durante a combinação também segue uma lei regular. Compostos de substâncias gasosas umas com as outras são sempre formados nas razões mais simples (nas proporções mais simples) e de forma que quando um dos termos é representado pela unidade, o outro é 1 ou 2 ou no máximo 3 [...] (LUSSAC, 1809 apud OKI, 2009, p. 1074).
Seguindo a tradição empirista do início do século XIX, que valorizava as propriedades mensuráveis, como volume e equivalente, e questionando o uso de entidades não visíveis como os átomos, a lei de Lussac especifica que “i) as combinações dos gases sempre ocorrem em proporções simples de volume; ii) quando o produto da reação é ela mesma um gás, seu volume também forma uma proporção simples com aquelas de seus componentes” (ROCHA, 2007, p. 74). Foram justamente as ideias de Lussac sobre a combinação gasosa que deram a Avogadro a possibilidade de formular, em 1811, as hipóteses de que as partículas elementares não são necessariamente átomos, mas podem ser grupos
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de átomos unidos em moléculas; e de que volumes iguais de gases contêm números iguais de moléculas. Introduzindo suas próprias ideias sobre a constituição de moléculas, Avogadro usou preferencialmente o termo molécula em lugar de átomo na defesa do seu ponto de vista. Os dois termos eram usados no início do século XIX, embora os significados atribuídos diferissem dos atuais. Na sua hipótese mais popular, ele admitia que volumes iguais de gases diferentes, nas mesmas condições de temperatura e pressão continham o mesmo número de moléculas (OKI, 2009, p. 1074).
Avogadro demonstrou que a sua hipótese estava de acordo com as observações de Lussac. Tal hipótese implica que as massas relativas das moléculas podem ser determinadas sem mesmo precisarmos observar um átomo ou molécula individual, basta medir as massas relativas das amostras macroscópicas sob condições ideais. Apesar da exatidão e utilidade, a hipótese de Avogadro não condizia com princípios aceitos na época. A diferenciação entre os conceitos de átomo e molécula não aconteceu com facilidade naquele período. Foi somente a expansão gradual da lista de elementos que ocorrem naturalmente que conduziu à tabela periódica desenvolvida de maneira independente por Julius Lothar Meyer (1830-1895) e Dmitri Mendeleev. Em 1869 eram conhecidos 63 elementos naturais quando Mendeleev publicou a sua tabela que refletia a periodicidade destes. Na prática, o que Mendeleev fez foi preparar um conjunto de cartões nos quais as propriedades dos elementos eram catalogadas separadamente e, ao ordenar e reordenar os cartões, percebeu que as propriedades (peso atômico, gravidade específica, volume, valência, calor específico etc.) recorriam periodicamente (por isso, tabela periódica) na organização dos cartões, de acordo com o peso atômico crescente. Assim, em virtude dessa regularidade entre pesos atômicos, foi possível prever, de uma forma razoavelmente acurada, várias propriedades físicas e químicas dos elementos que estavam faltando. Para isso, como ele descobriu que diversos elementos químicos não haviam ainda sido descobertos, deixou espaços em branco na tabela para que fossem preenchidos futuramente na medida da descoberta de tais elementos. Foi o que aconteceu, por exemplo,
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com um elemento de peso atômico 44 que teria que ser encontrado para ocupar o espaço seguinte ao cálcio. Em 1879, o químico sueco Lars Fredrik Nilson (1840-1899) descobriu o escândio. Posteriormente, duas novidades foram importantes para o desenvolvimento da tabela periódica: a primeira com relação ao gases nobres, que pareceram, inicialmente, não ter um lugar na tabela periódica, mas que depois, devido ao fato de não formarem combinações químicas graças à conexão mútua destes elementos, foram considerados um grupo especial; a segunda extensão, de grande importância para a fundamentação teórica da tabela periódica, foi a presença de isótopos, que se tornaram evidentes através do estudo da radioatividade. Contudo, a razão fundamental dessas observações, e da periodicidade das propriedades dos elementos, permaneceu desconhecida. Apenas meio século depois do trabalho de Mendeleev esses fenômenos receberiam um modelo explicativo através da estrutura eletrônica dos átomos (ROCHA, 2007, p. 75).
Até o fim do século XIX, as teorias químicas não conseguiam dar conta do comportamento do átomo. Os físicos desse período achavam insatisfatória a descrição do átomo feita por Dalton, visto que não se enquadraria no sistema newtoniano dos princípios físicos, bem como não dava conta do comportamento elétrico da matéria, isto é, não explicava o comportamento elétrico dos gases quando combinados à eletricidade. Foi o químico e físico britânico William Crookes (1832-1919) que, em 1879, apresentou o resultado de suas pesquisas envolvendo descargas elétricas através do gás. Os experimentos com descarga elétrica nos gases raros já haviam retido a atenção de Faraday (1839), de Geissler (1860) e de Hittorf (1860), mas o estudo completo do que G. H. Wiedmann (1826-1899) chamou de “raios catódicos” se deu com Crookes. Com o uso de um tubo de gás concebido pelo próprio Crookes, que continha um cátodo e um ânodo (elétrodos positivo e negativo), desenvolveu experimentos que permitiam que uma carga elétrica passasse pelo tubo. O resultado de suas observações foi o de que raios de composição e origem desconhecidos saíam do tubo quando eletricidade passava através do gás nele. Com isso, Crookes consegue identificar várias características desses raios, dentre elas a de que se propagam em linha reta e produzem fosforescência e calor em determinados materiais para os quais Crookes não
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encontrava uma resposta definitiva. Foi justamente o esforço para entender a natureza dos raios catódicos quem propiciou uma ligação direta para a descoberta da estrutura e do comportamento dos átomos.
8.2 Primeiros passos na descoberta do comportamento dos átomos: a radiação ionizante A marca histórica do início da descoberta da radiação ionizante foi o dia 8 de novembro de 1895, quando Wilhelm Conrad Röntgen (1845-1923) retomou seus experimentos sobre a descarga elétrica nos gases rarefeitos. Tendo enviado a descarga elétrica produzida por uma potente bobina de indução para o seu tubo de Crookes cuidadosamente envolvido em papel negro, ficou surpreendido com a fluorescência de um écran de platino-cianeto de bário abandonado em cima da mesa, e ainda mais pela persistência dessa fluorescência quando o écran foi afastado dois metros. Roentgen teve imediatamente a intuição genial de que a emissão proveniente do tubo devia ser análoga a uma luz (PIZON, 1975, p. 67).
Entretanto, essa emissão era diferente da luz, uma vez que a visão não a percebe, excita a fluorescência do platino-cianeto de bário, mas não produz efeito de calor, não reflete e nem sofre refração, polarização ou concentração por uma lentícula e nem interferência (PIZON, 1975). Mesmo assim, Röntgen dá sequência aos seus experimentos metodologicamente conduzidos, utilizando-se de uma série de materiais alternativos (porta pintada por pigmento branco constituído de carbonato de chumbo, fio metálico enrolado em bobina, bússola e lâminas de metais diversos). Com esses experimentos, percebeu que os raios saíam do tubo e penetravam várias substâncias e objetos na sala, e que a origem da emissão se situava no ponto de impacto do feixe catódico com a parede do tubo que se tornava fluorescente. Depois de investigar o efeito por semanas, Röntgen dirigiu os raios para chapas de fotografias sensíveis e conseguiu registrar os ossos da mão da sua esposa em 22 de dezembro de 1895. Em virtude do uso do símbolo científico “X” para o que não se conhece, ele chamou aqueles raios de raio X. Pela sua descoberta do raio X, Röntgen se tornou o primeiro a receber o Prêmio Nobel de Física em 1901.
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Algumas questões, entretanto, ficaram para as quais respostas eram necessárias: os raios catódicos seriam luz ou eletricidade? Seriam onda luminosa ou partícula material? Antoine Henri Becquerel (1852-1908), que em 1896 estudava a fosforescência produzida por diversos tipos de rochas que brilhavam no escuro, ficou particularmente interessado pelos resultados de Röntgen e passou a testar a hipótese da relação entre os raios X e a luz. Em seu relatório à Academia de Ciência em Paris, em 24 de fevereiro de 1896, Becquerel informou que a fosforescência das rochas expostas à luz ultravioleta do sol também emite raios X. Entretanto, percebeu que algo estava errado, visto que as chapas fotográficas estavam registrando imagem, apesar de estarem guardadas numa gaveta escura. Foi aí que Becquerel deduziu que o urânio presente em um pedaço de sulfato potássico de urânio guardado dentro da gaveta estava emitindo radiação sem ser exposto à luz solar. Essa emissão chamada “radiação urânica” é o “primeiro exemplo” de um metal que apresenta um fenômeno do tipo de uma fosforescência invisível; apresenta-se semelhante aos raios X emitidos pelo tubo de Crookes, em particular pelas propriedades ionizantes, mas difere deles por uma energia incomparavelmente mais elevada (PIZON, 1975, p. 67).
Marie Curie (1867-1934), que estava fascinada com as descobertas dos raios X de Röntgen e com a radiação invisível do urânio por Becquerel, em 1896, escolheu como problema de tese de doutorado as seguintes questões: Qual era a fonte da energia que escurecera as chapas fotográficas de Becquerel? O que eram os raios que emanaram do urânio? Para responder a essas questões, M. Curie fez um estudo sistemático de diversos minerais recorrendo às propriedades ionizantes da emissão por meio de um eletrômetro de piezoquartzo47, que fora concebido pelo seu esposo Pierre Curie (1859-1906) em 1885. Com o uso do eletrômetro, M. Curie descobre que na pechblenda havia um corpo desconhecido cuja emissão superava em intensidade o urânio e o tório. Esse corpo fora designado por ela de polônio (cujo nome foi dado em homenagem à Polônia). Meses depois, ela anuncia a existência de outro elemento chamado 47 O eletrômetro de piezoquartzo media a débil corrente elétrica que emanava do urânio e de outras substâncias.
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rádio (que se tratava de um elemento um milhão de vezes mais radioativo que o urânio). Inventou o termo “radioatividade”, do latim radius, que significa “raio” para definir a espontaneidade da emissão e o seu caráter atômico. Foi M. Curie quem desenvolveu a teoria de que a emissão dos raios tinha que ser um fenômeno advindo do interior do próprio átomo de urânio e que átomos de elementos diferentes poderiam possuir um componente básico comum. Ernest Rutherford (1871-1937) foi quem, em 1907, fez uma síntese dos conhecimentos adquiridos pelo casal Curie, edificando a teoria das transformações radioativas fundamentada nas seguintes premissas: I) corpos radioativos sucedem uns aos outros; II) tais corpos permanecem em equilíbrio quando a produção é igual à destruição espontânea; III) apresentam suas individualidades químicas quando estão isolados. A partir desses trabalhos, notou-se que certos elementos de grande peso atômico espontaneamente se desintegram em elementos de peso atômico menor. Além disso, a desintegração é acompanhada por emissão de raios, cuja investigação revelou serem de três tipos, que foram chamados de alfa, beta e gama. Os raios alfa e beta foram identificados como feixes rápidos de partículas materiais que tinham, respectivamente, carga elétrica positiva e negativa, e que se diferenciavam da química orgânica pela massa e pela velocidade (ROCHA, 2007, p. 76).
Rutherford demonstrou evidente que a radioatividade é própria dos elementos cujas massas atômicas são muito elevadas. Depois da radiação gama (radiação eletromagnética), antecipada por Becquerel, e do feixe beta (feixe de elétrons de energia anormalmente elevada), descoberta por Becquerel e Pierre Curie (em 1900) e, por fim, do feixe alfa (não desviado pelo campo magnético, mas detido pelo alumínio), descoberto por Paul Villard (também em 1900), Rutherford demonstrou, em 1906, que a partícula alfa, de carga elétrica positiva, é constituída pelo hélio sob a forma ionizada, isto é, com núcleos de hélio desprovidos dos seus elétrons. Enfim, o que se pode concluir das pesquisas com radiação ionizante é que “a emissão radioativa é uma emissão permanente de radiações eletromagnéticas, de elétrons, de núcleos de hélio, todos dotados de uma energia variável, mas sempre considerável, que só poderia ser proveniente da própria matéria
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na ausência de qualquer dependência de uma energia exterior” (PIZON, 1975, p. 77). Tal fenômeno radioativo, portanto, só pode ser proveniente do núcleo do átomo, de uma transformação atômica que implicasse a substituição em filiação de um a outro elemento.
8.3 Planck, Einstein e a teoria dos Quanta de energia e de luz As novas descobertas do século XIX agregaram uma série de novos conhecimentos que as teorias clássicas até então vigentes não davam conta de explicar. Descobertas acerca da estrutura eletrônica dos átomos, da radioatividade e do efeito fotoelétrico faziam crescer cada vez mais o conhecimento acerca da luz, da energia e da matéria. E a física, que até então conseguia explicar os fenômenos na esfera do macro, já não dava conta de elucidar os fenômenos recentemente estabelecidos à escala do átomo. A natureza da luz, da eletricidade e do magnetismo excitava o espírito da física contemporânea na tentativa da descoberta dos seus fundamentos últimos. A explicação para esses fenômenos até então era dada pela teoria do eletromagnetismo de Maxwell, que foi resumida em suas equações de 1865. Essa teoria postula que a luz é uma onda eletromagnética que se propaga num ambiente imaterial cognominado éter. Apesar dos experimentos de Michelson e Morley demonstrarem, em 1887, que a invariabilidade da velocidade da luz, “ao subir e ao descer o éter”, negaria a existência do próprio éter, H. A. Lorentz (1853-1928) conseguiu, em 1893, desenvolver um meio algébrico para validar as equações de Maxwell. A validação desse artifício matemático se deu em 1896, quando Lorentz explicou a modificação das raias do espectro luminoso quando submetido ao campo magnético. Em 1897, Joseph John Thomson (1856-1940) demonstrou que pelo menos um tipo da radiação emitida do tubo de raios catódicos de Röntgen consistia, segundo sua denominação, em um fluxo de pequenos corpúsculos, que vieram a ganhar o nome de elétrons. A descoberta dos elétrons levantara dificuldades para a teoria da radiação luminosa, visto que, se a luz era produzida por elétrons que giravam ou vibravam, deveria mudar continuamente a cor conforme os elétrons fossem perdendo a energia por radiação. Entretanto, o testemunho do comprimento de onda constante no espectro óptico provava que não era assim. “Por outro lado, a termodinâmica, a radiação do corpo
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negro, a distribuição do espectro num recinto vazio, a relação entre o espectro e a temperatura do corpo emissor, levantaram o problema da natureza da energia, da sua conservação e das suas trocas com a matéria” (PIZON, 1975, p. 79). De acordo com a teoria eletromagnética clássica, toda a energia de um corpo quente deveria estar concentrada num comprimento de onda curta. Isso explicaria o fato de que, na radiação de um corpo negro (carvão ou ferro, por exemplo), o brilho de tais materiais deveria apresentar cor azul. Entretanto, o que se vê, na prática, é o brilho do carvão em brasa vermelho. Em 1900, Max Planck (1858-1947) publicou o seu famoso trabalho sobre o estudo da radiação do corpo negro, onde consegue eliminar essa dificuldade ao tratar o eletromagnetismo da mesma forma que se tratava a termodinâmica. No lugar de átomos, imaginou campos eletromagnéticos gerados por pequenos osciladores, onde cada um poderia assumir certa quantia da energia eletromagnética que era compartilhada entre muitas dessas outras entidades elementares. Planck sugeriu que a energia dos átomos não podia ser emitida continuamente, era irradiada por fracções; por outras palavras, que a energia, exatamente como a matéria, era atómica, e que a sua atomicidade não estava na energia em si mas numa curiosa quantidade-acção (ou energia multiplicada pelo tempo). Havia por conseguinte um quantum (ou quantidade suficiente de acção) constante, a constante de Planck (h = 6,6 × 10-27 ergo por segundo), que controlava a quantidade de todas as trocas de energia nos sistemas atómicos (BERNAL, 1969, p. 741).
As trocas entre a energia da onda eletromagnética e a matéria efetuam-se por porções descontínuas e invisíveis, múltiplos de uma quantidade fundamental que é o quantum: constante de ação que controlava a quantidade de todas as trocas de energia dos sistemas atômicos. Com isso, Planck acabara por descobrir a estrutura quântica da radiação eletromagnética. Mesmo assim, ele não avaliava de modo realista o seu trabalho e via todo o seu esforço somente como um artifício matemático para se obter a resposta esperada. A sua noção de “pacotes de energia” fazia-o acreditar que os tais pacotes não surgiam das ondas de luz em si, mas de algumas propriedades dos átomos que emitiam e absorviam radiação somente em quantidades discretas. “Apenas cinco anos após o trabalho de Planck, o quantum de luz foi entendido como uma entidade
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física existente independentemente do mecanismo de sua emissão ou absorção pelos átomos” (ROCHA, 2007, p. 87). Foi Albert Einstein quem, em 1905, partindo da hipótese do quantum de luz (que em 1920 irá receber o nome de fóton), não só derivou a fórmula de Planck como explicou fenômenos até então inexplicáveis, como o efeito fotoelétrico48. Raciocinando sobre o conceito do quantum de energia de Planck, Einstein argumentou que a luz existe em pequenos pacotes, isto é, em porções descontínuas e indivisíveis de corpúsculos que viajam no vazio à velocidade de 300.000 km/s, caracterizados por uma energia ligada à frequência da onda eletromagnética por intermédio do quantum de energia de Planck. A existência do quantum de luz correndo livremente pelo espaço pressupunha a garantia da explicação das leis empíricas a respeito do efeito fotoelétrico. Com efeito, parece-me que as observações da “radiação do corpo negro”, fotoluminescência, produção de raios catódicos por luz ultravioleta, e outros fenômenos relacionados associados com a emissão ou a transformação da luz parecem mais facilmente entendidos se supusermos que a energia da luz seja distribuída descontinuamente no espaço (EINSTEIN, 2005, p. 178).
A ideia dos quanta de luz de Einstein não teve aceitação imediata da comunidade dos físicos. No geral, eles não gostavam dela porque não reverenciava a descrição de luz como ondas, resumida elegantemente nas equações de Maxwell. Einstein havia invertido a imagem ondulatória da luz e regressado à ideia de Newton, segundo a qual, a luz era feita de partículas. Mas um montante de experimentos que confirmaram que as energias dos elétrons libertados cresciam com a frequência da luz rapidamente tornaram essa ideia um fato. Em virtude dessa teoria, em 1921, Einstein ganhou o Prêmio Nobel de Física, e não pela Teoria da Relatividade.
48 O efeito fotoelétrico figurava-se bem misterioso, pois que a energia dos elétrons arrancados ao metal por uma luz qualquer é independente da do feixe luminoso, isto demonstra que a teoria da luz como onda era falsa ou, no mínimo, insuficiente.
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8.4 O modelo atômico de Rutherford Embora as pesquisas com os raios X, a luz e as ondas de rádio continuassem no início do século XX, uma vez que a descoberta dos raios X levou a pesquisas sobre o átomo, inevitavelmente, a partir de agora, o foco das pesquisas se transfere para as partículas subatômicas a exemplo do elétron, do fóton e das partículas alfa. A descoberta dos elétrons, que estariam carregados negativamente, levou os físicos à suposição da existência de alguma matéria com carga positiva nos átomos. Entretanto, diante da falta de informação a esse respeito, eles só tinham como pensar vagamente a respeito de tal realidade. Até o presente momento, ninguém havia apresentado uma imagem convincente do átomo. Foi assim que, em 1897, J. J. Thomson, disparando uma corrente elétrica através do gás contido em um tubo de vidro, libertou elétrons dos átomos. Como quase nada se sabia sobre como os elétrons distribuíam-se na matéria, ele propôs o modelo atômico do “pudim de ameixas”, no qual elétrons carregados negativamente ficavam cravejados como ameixas em uma massa de carga positiva. A atração entre os elétrons e as cargas positivas supostamente mantinha o átomo coeso, misturando-se ao longo do pudim. Em 1907, quando Rutherford retornara para a Universidade de Manchester, Inglaterra, prosseguiu seu diálogo com Becquerel a respeito do comportamento das partículas alfa emitidas por materiais radioativos. De Becquerel, Rutherford teve a informação de que as partículas alfa, pelo que indicavam os experimentos, pareciam desviar-se em moléculas de ar que se encontravam pelo caminho. Em 1909, juntamente com os seus colegas Hans Geiger (1882-1945) e Ernest Marsden (1889-1970), Rutherford embrenha-se na tentativa de descobrir por que isso ocorria. Dessa forma, dispararam partículas alfa pesadas, emitidas por polônio radioativo, contra uma chapa de folha de ouro extremamente fina, com a espessura de poucos átomos, e descobriram que a cada oito mil partículas alfa uma ricocheteava quando batia na chapa. Muitas tinham a direção invertida, sendo desviadas por ângulos grandes, obtusos, como se tivessem atingido algo duro. Rutherford falou, numa palestra proferida no final da sua vida, sobre a época em que Geiger e Marsden fizeram o experimento pela primeira vez:
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Então me lembro de que dois ou três dias depois Geiger me procurou muito entusiasmado e disse: “Conseguimos obter algumas das partículas alfa que vinham de trás...”. Era sem dúvida o acontecimento mais inacreditável que eu jamais testemunhara na minha vida. Era quase tão inacreditável como se você tivesse disparado uma bala de 38cm num lenço de papel e ela tivesse voltado e batido em você (ANDRADE, 1964, p. 11).
Em 1911, Rutherford aventou que, para as partículas alfa ricochetearem, a maior parte do átomo deveria estar concentrada em um minúsculo núcleo compacto, duro e maciço carregado em seu centro. Daí sua rejeição pelo modelo de J. J. Thomson, pois o modelo do “pudim de ameixas” não podia explicar tal fenômeno. Esse modelo concebia o átomo como uma mistura de cargas positivas e negativas que não eram duras ou pesadas o suficiente para poder bloquear uma partícula alfa. Ao invés disso, em 7 de março de 1911, em uma reunião da Sociedade Filosófica e Literária de Manchester, Rutherford anunciou sua comprovação experimental de que o átomo é dotado de uma carga elétrica concentrada em uma região ultraminúscula, envolvida por uma distribuição esférica uniforme de eletricidade oposta e de igual quantidade. Em outras palavras, o átomo consiste em um centro com carga positiva, ou “núcleo”, que contém quase toda sua massa, e é cercado por uma nuvem de elétrons com carga negativa. Dois meses depois, o modelo do átomo nuclear estava publicado no volume 21 da Philosophical Magazine49, mostrando que o núcleo atômico concentra toda a carga elétrica positiva e praticamente toda a massa do átomo. Era o início da era da física nuclear contemporânea. Em 1815, William Prout (1785-1850) havia sugerido que os átomos eram compostos de múltiplos do átomo mais simples, nesse caso, o hidrogênio. Rutherford conseguiu demonstrar que os outros elementos, de fato, contêm núcleos de hidrogênio, uma vez que cargas positivas eram extraídas quando partículas alfa eram disparadas através de gás nitrogênio, que acabava por se transformar em oxigênio nesse processo, transformando um elemento em outro. Em 1920, Rutherford nomeou o núcleo de hidrogênio como “próton”, em grego, “primeiro”, para evitar confusão com o gás hidrogênio propriamente dito. James Chadwick (1891-1974), colega de Rutherford, em 1932, encontrou 49 RUTHERFORD, E. The Scattering of α e β Particles by Matter and the Structure of the Atom. Philosophical Magazine, 21, series 6 (April, 1911).
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uma nova partícula, uma partícula neutra. Essa partícula, que tinha a mesma massa de um próton, era pesada o suficiente para expulsar prótons da parafina, entretanto, não tinha carga. Ela foi batizada de nêutron e o modelo do átomo foi reorganizado. Pela descrição que fez do átomo, Rutherford recebeu várias honrarias e foi sagrado cavaleiro em 1914. Ele recebeu, inclusive, o Prêmio Nobel de Química pela pesquisa sobre a desintegração de elementos e sobre a química das substâncias radioativas, mas nunca recebeu o Prêmio Nobel de Física. Embora seu trabalho fornecesse a base para a atual compreensão do átomo, sabe-se que sofre de restrições importantes. Diversos físicos, incluindo o próprio Rutherford, concluíram que, se o modelo estivesse correto, teria que haver uma razão que justificasse o fato de os elétrons em órbita não serem sugados para dentro do núcleo com carga positiva. O modelo de Rutherford, contudo, era inteligível, mas o seu átomo era instável mecânica e eletromagneticamente falando. Tal fato marcou o início do esforço conjunto para encontrar um mecanismo que pudesse equilibrar a estrutura do átomo.
8.5 O átomo de Niels Bohr e a explicação da estabilidade dos elétrons Em 1911, o dinamarquês Niels Henrik David Bohr (1885-1962) chega à Inglaterra para estudar no Cavendish com J. J. Thomson. O projeto inicial era estudar o núcleo do “pudim de ameixa” de Thomson, mas as divergências entre os dois a respeito das suas concepções de átomo fizera com que Bohr deixasse o Cavendish para trabalhar com Rutherford em Manchester, em 1912. Uma vez que as concepções de Bohr e Rutherford eram convergentes em muitos aspectos, o resultado da parceria foi um trabalho frutífero no entendimento da estrutura do átomo. Rutherford desenvolvera um modelo planetário constituído segundo uma lei análoga à da gravitação, onde as cargas elétricas no núcleo e as cargas eletrônicas no átomo desempenhavam o papel da gravitação no universo. Entretanto, conforme a percepção de Bohr, tal modelo tornava-se insustentável em virtude da sua instabilidade manifesta. Mas quais eram, de fato, os problemas encontrados por Bohr a ponto de considerar o modelo de átomo de Rutherford instável?
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Fundamentalmente, as leis da Eletrodinâmica Clássica. Os elétrons, sendo partículas carregadas negativamente, ao serem submetidas a uma força de atração coulombiana do núcleo positivo, deveriam emitir uma radiação, perdendo gradativamente energia e acabando por cair no núcleo. Haveria uma perda contínua de energia, o que contrariava os resultados experimentais da espectroscopia atômica que tinham sido obtidos no final do século XIX (MARTINS, 2001, p. 52).
Em resumo, o modelo de átomo de Rutherford não estava de acordo nem com o eletromagnetismo e nem com as leis dos espectros de emissão ou absorção. Em Sobre a Constituição de Átomos e Moléculas, de 1913, Bohr trata das dificuldades enfrentadas pelo modelo de Rutherford: Numa tentativa de explicar algumas das propriedades da matéria neste modelo atômico deparamos, todavia, com dificuldades de natureza muito séria derivadas da aparente instabilidade do sistema de elétrons [...]. Contudo, a maneira de considerar um problema dessa espécie sofreu alterações em anos recentes devido ao desenvolvimento da teoria da radiação de energia e à confirmação direta de novos pressupostos introduzidos nessa teoria, encontrada em experiências relacionadas com fenômenos muito diferentes tais como calores específicos, efeito fotoelétrico, raios Röntgen, etc. O resultado da discussão dessas questões parece ser um reconhecimento geral de que a eletrodinâmica não consegue descrever o comportamento de sistemas de dimensões atômicas (BOHR, 1963, 95-97).
Para resolver o problema, Bohr sugeriu que as teorias de Planck e Einstein a respeito da luz – que consistia em quantidades descontínuas de energia denominadas quanta – poderia ser aplicada ao átomo. Seu pensamento foi sobre a possibilidade de a quantização ser uma propriedade fundamental de toda energia. Se assim o fosse, poder-se-ia explicar por que o átomo era estável. O problema a ser desvendado, então, era: as órbitas fixas em torno do núcleo poderiam estar relacionadas a quantidades fixas de energia? Com o problema em foco, Bohr se esforçava para pensar uma teoria que pudesse lhe dar uma resposta ao mesmo tempo conceitual e matemática, quando foi informado de
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uma fórmula que Joseph Balmer (1825-1898) havia desenvolvido e que fornecia a frequência da luz emitida por átomos. De imediato, Bohr associou a referida fórmula com a teoria dos quanta de Planck e Einstein para descrever o comportamento dos elétrons que orbitavam em torno do núcleo. A aplicação da fórmula aos quanta demonstrou: a) Os elétrons negativamente carregados trafegam por órbitas em torno de um núcleo carregado positivamente, à maneira dos planetas que orbitam o Sol; b) Os elétrons são mantidos próximos ao núcleo por meio de forças eletrostáticas (atração mútua entre cargas positivas e negativas); c) Um sistema atômico possui um número de estados nos quais nenhuma emissão de radiação se efetua. Possui, portanto, uma energia constante. Esses estados são denominados “estados estacionários do sistema”; d) De todas as órbitas infinitas permitidas pela teoria clássica, somente são possíveis aquelas nas quais o momento angular orbital do elétron é um múltiplo inteiro n da constante de Planck h 50; e) Por fim, um elétron que salta de uma órbita para outra acarreta um aumento ou uma liberação de um quantum de energia. Segundo Bohr, os elétrons podem se mover entre órbitas subindo e descendo na escala. Esses movimentos são conhecidos como saltos quânticos. Um átomo não emite radiação quando de seu estado estacionário; isso só ocorre quando faz uma transição, dá um salto, de um estado para o outro. A diferença de energia entre os degraus é adquirida ou perdida com o elétron absorvendo ou emitindo luz de uma frequência correspondente. Tal energia se apresenta na forma de radiação eletromagnética, que pode ser vista sob forma de luz – isso produz as linhas espectrais. Em suma, o átomo não absorve nem emite radiação continuamente, somente por meio dos saltos quânticos. A teoria de Bohr teve êxito imediato, que fora amplificado com Henry Moseley (1887-1915) que, em 1913, demonstrou que ela explica totalmente 50 “Os diferentes possíveis estados estacionários são constituídos por elétrons solitários, girando em torno de um núcleo positivo, com um momento angular L dado pela expressão: L = n. (h/2π) Sendo h a constante de Planck e n um número inteiro e positivo, chamado usualmente de ‘número quântico’” (MARTINS, 2001, 54).
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a espectrografia dos raios X. Por uma série de experimentos, Moseley comprovou que a luz emitida quando elétrons passam por um estado de alta para baixa energia ocorria em forma de raios X – isso explica a relação entre elétrons e raios X. Demonstra também que existe uma correlação matemática entre a frequência de raios X de cada elemento e o seu número atômico. Se se conhece a frequência dos raios X, logo, pode-se determinar a quantidade de carga que há no núcleo. Por fim, o modelo de Bohr permitiu fornecer uma base teórica à tabela periódica dos elementos químicos, mais precisamente, forneceu uma explicação para a ocorrência das ligações químicas. A associação dos átomos para formar moléculas se dá quando há elétrons sem par na órbita exterior do átomo. Os elétrons são compartilhados pelos átomos para formar moléculas, como resultado da tendência que têm os elétrons para se distribuírem entre os átomos de modo que a energia de um grupo de átomos seja mais baixa do que a soma dos átomos componentes de tal grupo. A valência será, portanto, o número de elétrons sem par em sua órbita e a covalência será a ligação ou o compartilhamento de elétrons. Grandes foram os passos dados por Bohr na construção da imagem da estrutura e funcionalidade do átomo na contemporaneidade. [...] Teve habilidade de combinar numa síntese as quatro linhas diferentes: o núcleo duro da experiência de bombardeamento, as leis simples há muito descobertas por Balmer (1825-1898) relativas às frequências no espectro de hidrogênio, a regularidade dos comprimentos de onda dos raios X dos vários elementos, e a teoria dos quanta de Planck, que serviria para relacionar o conjunto (BERNAL, 1969, p. 743).
Entretanto, a introdução de elementos estranhos à física clássica no modelo atômico, a exemplo do comportamento dual da radiação, acabou por conduzir a física para uma imagem diferente da realidade, que obrigará o desenvolvimento da mecânica quântica.
Considerações finais O objetivo do presente capítulo, conforme apresentado ao longo das páginas precedentes, foi o de apresentar a historiografia das teorias atômicas dos
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séculos XIX e XX, cujo realismo compôs, na contemporaneidade, as bases para os desenvolvimentos subsequentes que se deram com a mecânica quântica. A proposta aqui não foi a de apresentar uma reflexão crítica sobre o que fora produzido nesse período, nem, muito menos, levantar as abordagens metafísicas, uma vez que tais teorias dizem respeito à natureza da realidade e que, portanto, carregam uma ontologia de fundo. Nosso enfoque foi mostrar que por trás da abordagem do realismo fisicalista, encontra-se a preocupação com o real, cuja inexistência implicaria a própria impossibilidade da ciência. As teorias que aqui se apresentaram representam, com nuances diferentes, a preocupação com a demonstração da própria natureza física do real e de como ele se comporta. A par da assunção de que muitas dessas teorias ditas realistas trazem no seu bojo o compromisso com entidade não observáveis, ainda assim, não podem ser tratadas de antirrealistas, uma vez que não assumem o compromisso com a ideia de que a realidade somente é possível em virtude da existência do sujeito cognoscente que lhe dá o devido sentido. Por outro lado, o realismo ora aqui apresentado não professa nenhuma espécie de realismo ingênuo que declara a existência da realidade pela realidade, dispensando a presença e a importância do sujeito pensante. Ao invés disso, provendo o realismo fisicalista de alto grau de racionalidade, apesar de assumir que a realidade está posta e que existe independentemente da mente humana, ainda assim, defende a importância da razão no entendimento e no deciframento da natureza que se apresenta em linguagem cifrada. É a razão a responsável em dar inteligibilidade ao real, de exigir que a natureza apresente respostas às suas indagações e, por fim, de representar, por meio de uma linguagem própria (a linguagem científico-matemática), a configuração simbólica, portanto, sintática da natureza. Dessa forma, no processo de cognoscibilidade da natureza, faz-se necessário tanto uma representação semântica, que concerne aos significados das mensagens cifradas emanadas da natureza, quanto sintática, que representa a simbolização ou formalização das mensagens em uma linguagem que, fugindo da coloquialidade, faça-se entendida pela comunidade dos especialistas. Em tudo isso está a razão que, a despeito desses procedimentos, assume que, ainda assim, a realidade (ou o mundo) existe independentemente da nossa certificação racional.
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CAPÍTULO IX
O ANTIRREALISMO NA AURORA DA MECÂNICA QUÂNTICA
Introdução
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esse capítulo, ao tratar da teoria quântica, não estabeleceremos qualquer distinção entre os termos física quântica, teoria quântica ou mecânica quântica. Toda a discussão será abrigada sob o cognome de “teoria quântica”. Teoria esta que trata de analisar e descrever o comportamento dos sistemas físicos de dimensões reduzidas, próximos dos tamanhos de moléculas, átomos e partículas subatômicas. Na teoria quântica, veremos que o determinismo da física clássica não se aplica e que as medidas obtidas de sistemas quânticos são expressas em termos de probabilidades. Todo o seu desenvolvimento teve como suporte a descoberta de Planck de que a energia, tal como a matéria, era atômica e que a sua atomicidade não estava na própria energia, mas num quantum (quantidade suficiente de ação) constante que controlava a quantidade de todas as trocas de energia. Entretanto, foi da teoria dos quanta aplicada ao átomo de Bohr que vimos nascer a teoria quântica que se tornou capaz de compreender mecanismos como os decaimentos radioativos, a emissão e absorção de luz pelos átomos, a produção de raios x, o efeito fotoelétrico, as propriedades elétricas dos semicondutores etc. Em suma, trata-se de um dos mais bem-sucedidos campos da física, cujos desenvolvimentos nos levam ao conhecimento das mais estranhas explicações do comportamento da realidade na escala do átomo, quando do indeterminismo e da irracionalidade no interior dos postulados de algumas interpretações. No século XX, principalmente na sua primeira metade, os rumos da física se alteraram com o caminhar do desenvolvimento das teorias atômicas. Até o
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emergir da física quântica, viu-se um movimento claro de inclusão do sujeito observador na própria descrição da realidade, o que levou a física a adicionar uma dimensão pragmática à imagem de conhecimento científico. Forma e conteúdo passaram a ser, portanto, fatores fundamentais da crítica antirrealista das teorias atômicas de muitos físicos, isso porque, na explicação da questão sobre como é que a individualidade surgia em objetos compostos por elementos não individuais, era preciso que se ficassem claras as fronteiras que delimitavam a diferença entre forma e configuração. “É evidentemente a forma ou configuração (Gestalt) que indubitavelmente invoca a identidade e não o conteúdo material”, afirmava Schrödinger (1999, p. 109). E, “quando se trata das partículas elementares constituintes da matéria, parece que não faz sentido pensar nelas novamente como constituindo em algo material” (SCHRÖDINGER, 1999, p. 110). Nesse sentido antirrealista, nós não teríamos acesso à realidade última da matéria a não ser de forma conceitualizada e, por conseguinte, não haveria como representar uma realidade independente de nós. O mundo não seria aquilo a que corresponde uma proposição verdadeira, já que somos nós quem conformamos o mundo com os nossos conceitos. Dessa forma, a estrutura externa passa a ser definida pelas condições internas do nosso entendimento. Pensar com sentido sobre a estrutura elementar da matéria pressuporia não pensar na existência de uma forma geométrica dos átomos – tais como aquelas que se apresentam nos livro-textos do campo da física – e sim pensar no modelo, na representação, ou na imagem mais adequada para que a teoria possa explicar a realidade e deduzir as características observáveis a partir desse modelo. Assim, falar sobre a verdade de uma teoria seria também um equívoco, pois o conceito mais apropriado para tratar de um modelo – e a teoria é um modelo – não é o de verdade e sim o de adequação. À medida que os nossos olhos mentais penetram no interior de distâncias cada vez mais pequenas e em tempos cada vez mais curtos, descobrimos que a Natureza se comporta de forma tão completamente diferente daquela que observamos nos organismos visíveis e palpáveis que nos rodeiam que nenhum modelo moldado de acordo com as nossas experiências em larga escala poderá alguma vez ser “verdadeiro” (SCHRÖDINGER, 1999, p. 113).
O ANTIRREALISMO NA AURORA DA MECÂNICA QUÂNTICA
A adequação do modelo e sua simplicidade (quanto mais simples a imagem, mais adequada ela é) seriam os garantidores da dedução das características observáveis dos próprios modelos. Toda teoria científica seria um sistema de enunciados ou “um sistema lógico de pensamentos” (EINSTEIN, 2000, p. 95), ou ainda, a “fundamentação da física dotada da máxima uniformidade lógica possível” (EINSTEIN, 2000, p. 70). No caso das teorias atômicas do século XX, em sua grande parte, afirmar que se trata de uma teoria adequada e não verdadeira se justifica porque para ser “verdadeira, deverá poder ser comparada diretamente com fatos verdadeiros. E esse não é habitualmente o caso dos nossos modelos” (SCHRÖDINGER, 1999, p. 111). Nos dizeres de Heisenberg (1995, p. 140), “os próprios átomos e partículas elementares não exibem o mesmo tipo de realidade: eles dão lugar a um universo de potencialidades ou possibilidades ao invés de um mundo de coisas e fatos”. Conforme o quadro característico da representação da matéria no século XX, vê-se uma tendência ao enviesamento para o antirrealismo, principalmente entre aqueles que dialogam com a física quântica. Nesse campo, tratar de órbitas eletrônicas, ondas materiais, densidades de carga, energia e momento linear ou das partículas elementares que compõem o átomo é tratar de termos teóricos que ocorrem nas teorias científicas aceitas, mas que não se referem a entidades reais (VAN FRAASSEN, 1980). É claro que a maioria dos físicos do século XX primava pelo caráter experimental da teoria, o que os obrigava ao constante trabalho laboratorial. No entanto, dentro do trabalho teórico, certifica-se também a dependência da inclusão de elementos ad hoc na “explicação da realidade” a partir da criação de modelos que buscam antecipar adequadamente essa mesma realidade. É o caso, por exemplo, do princípio de complementaridade entre sujeito, aparelho de medição e objeto na teoria de Niels Bohr que, mesmo sendo rotulado de positivista (PESSOA JR., 2001), trata-se de uma visão que não coaduna com a realidade, portanto, de um antirrealismo puro. Ou então, da noção de colapso da função de onda provocado pelo observador, defendido por Heisenberg no Congresso de Solvay de 1927; esse também não se trata de um fenômeno que possa ocorrer espontaneamente na natureza. E é em virtude disso, e de muitos outros exemplos, que não se pode rotular boa parte das interpretações da teoria quântica como representativas de uma realidade independente da mente.
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Nesse capítulo, tomaremos como viés de nossa análise aquilo que há de realismo materialista, de entidades, na teoria física do século XX, mas, em virtude dos propósitos filosóficos que orientam essa obra, daremos tratamento especial às manifestações de antirrealismo no interior dessas mesmas teorias. Acreditamos nós serem tais teorias providas de maior material filosófico que fundamenta a crítica que se pode fazer às explicações metafísicas que sustentam o entendimento da realidade quântica.
9.1 A dualidade onda-partícula É extremamente complicado apresentar uma explicação que não seja multifacetada à pergunta sobre a essência da física quântica e sobre a diferença entre o quântico e o clássico no campo da física. Sobre a física clássica, penso que já apresentamos nos itens precedentes um pouco sobre a sua essência. Trata-se da física do determinismo causal, onde a mensuração e elucidação é possível em todas as esferas, onde não há espaço para a dubiedade e irracionalidade, onde a natureza se comporta de maneira previsível, não restando para ela qualquer tipo de liberdade. Quanto à teoria quântica, além de apresentar o ecletismo das dezenas de interpretações, abriga em seu interior as maiores esquisitices elucidativas do comportamento do mundo na escala do átomo. No entanto, ainda assim, é possível apresentar, a partir do interior dessas interpretações, uma suposta essência da teoria quântica. O nome “quântico” pode sugerir quantidades discretas de energia, ou pacotes de energia e luz, aos moldes das teorias de Planck e Einstein. A teoria quântica pode também ser tida como aquela que sugere uma indeterminação na essência da realidade que só pode ser abarcada sob o viés da probabilidade. Tal teoria também promove interpretações onde o observador possui o status especial de não estar separado do objeto observado. Trata-se também de uma teoria que admite a possibilidade da estranha superposição de estados quânticos, a exemplo do gato de Schrödinger. Ou então, admite a realidade de uma não-localidade, a exemplo do teorema de John Bell. Enfim, alguns acreditam que o mais importante da teoria quântica e que, portanto, a caracteriza a contento é “que ela atribui, para qualquer partícula individual, aspectos ondulatórios e, para qualquer forma de radiação, aspectos corpusculares” (PESSOA JR., 2019, p. 1). É da noção de dualidade onda-partícula que começaremos a
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exposição dos itens que, a nosso ver, na teoria quântica, apresentam-nos as mais interessantes questões filosóficas a respeito da concepção física do mundo, isto é, de como os seres humanos criam o universo em que vivem, e que nos proporcionam bons conteúdos de reflexão. Afinal, é a luz onda ou partícula? De Newton tínhamos uma primeira resposta que admitia a natureza corpuscular da luz, isto é, a luz era feita de corpúsculos ou partículas. A noção geral que vigorou na mecânica clássica era a de que uma partícula é uma entidade bem pequena que se locomove no espaço, cuja posição é bem definida, possuindo uma velocidade precisa. A partícula descreve uma trajetória contínua e mantém sua identidade sem desintegrar (até uma certa energia de destruição). Por outro lado, o eletromagnetismo defendia a luz como sendo uma onda eletromagnética de frequência extremamente alta que viajava num meio tênue e imóvel, sem peso, invisível, de viscosidade zero, chamado éter, cuja realidade era resumida elegantemente nas equações de Maxwell. Um exemplo simples e recorrente em livros técnicos a respeito da estranha propriedade onda-partícula da matéria pode ser esclarecedor. Trata-se do exemplo das famosas franjas de Young. Em 1801, o físico britânico Thomas Young (1773-1829), por meio de um pedaço de cartolina com duas fendas nele recortadas, fez passar um raio de sol. A luz projetou uma série de listas que ficaram conhecidas como franjas de Young. Com o fechamento de uma das fendas, aparecia um único arco-íris que era ladeado por algumas manchas mais fracas. Young compreendeu que a luz estava se comportando como ondas de água, pois se temos uma onda de água (plana) que é barrada por uma parede qualquer e essa parede possui uma abertura, parte da água passará pela abertura e formará uma onda circular. Algo mais ou menos assim:
Fonte: uol.com.br/fisica/difração. Acesso em: 24 ago. 2020
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Por outro lado, quando a parede possui duas aberturas o comportamento é outro. Formam-se duas ondas circulares com interferência entre elas (gerando uma onda resultante igual à soma das perturbações de cada onda) e com locais em que uma das ondas sempre cancela a outra. Temos um exemplo disso no próprio artigo de Young de 1801, proferido na Royal Society de Londres e publicado em 1802 nas Philosophical Transactions.
Fonte: Young (1801).
Os pontos C, D, E, F são as marcações onde ocorrem as interferências. Nos pontos em que coincide de as cristas e os vales se encontrarem, as ondas ajustam e crescem, isto é, acontece uma interferência construtiva. Já nos pontos em que há um desajuste entre cristas e vales, isto é, quando uma crista não se encontra com um vale, eles cancelam um ao outro.
Fonte: www.blog.ipv7.com.br/tecnica/interferencias. Acesso em: 24 ago. 2020
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O resultado foi que, “ao usar uma dupla fenda, Young fez dois fluxos de luz – um de cada – interferirem. Suas fases relativas eram ditadas pelas diferentes trajetórias ao atravessar a cartolina e depois disso. Onde as ondas se combinavam para reforçar uma à outra, o resultado era uma listra brilhante. Onde elas se anulavam, o fundo ficava escuro” (BAKER, 2015, p. 21). Algo que pode ser assim ilustrado:
Fonte: aminoapps.com/c/tudo-sobre-ciencia. Acesso em: 24 ago. 2020
A descoberta de Young, portanto, foi a de que a natureza da luz é ondulatória. Contudo, isso não foge de uma posição já convencionada na física clássica – lembre-se, por exemplo, da descrição que Maxwell, para quem a luz também é onda, dá desse mesmo fenômeno. Onde se dá, então, a passagem do clássico para o quântico na análise desses exemplos? Para transportar esse experimento de física clássica em física quântica, precisa-se, primeiramente, diminuir exponencialmente a intensidade de luz e, em segundo lugar, utilizar-se de um aparelho supersensível para detectar a luz. Dessa forma, é possível medir as franjas de interferência ponto a ponto, como na imagem a seguir.
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Fonte: Pessoa Jr. (2019, p. 4)
O que se vê aqui são experimentos no campo da física que se revelam, no mínimo, estranhos: vê-se que o padrão de interferência, na verdade, forma-se por manifestações que são pontuais, isto é, revela um fenômeno formado por partículas. E, como pode um mesmo objeto, a luz, ser onda e partícula? Não podemos dizer que a ocorrência das duas realidades se deu ao mesmo tempo, pois, se assim o fosse, estaríamos diante de uma contradição manifesta. Entretanto, é estranho admitir que um objeto quântico, ao se propagar (quando ainda não é medido), é onda, mas que em um outro momento, quando detectado pela trajetória ou pelo caráter pontual, isto é, quando ele é medido, é partícula. Se houve um colapso da onda quântica quando da detecção da partícula, como explicar tal colapso? Onde ele se dá? Qual é a certeza que temos acerca da existência do objeto quântico? Os experimentos que se dizem quânticos aqui não são, na verdade, clássicos? Podemos admitir a realidade de um objeto quântico ou isso não passa de uma pressuposição? Qual a metafísica estaria alocada no interior de tais teorias? Seria a teoria quântica completamente indeterminista? Veremos se é possível apresentar algumas respostas a essas perguntas nos itens que se seguem.
9.2 A mecânica matricial e o princípio da incerteza de W. Heisenberg As ideias sobre o dualismo onda-partícula para a luz foram estendidas por Louis-Victor de Broglie (1892-1987) a todos os objetos atômicos dotados de massa: elétrons, prótons, nêutrons e todos os sistemas atômicos e subatômicos dotados de massa (SELLERI, 1990). De Broglie, em uma tese defendida em 1924, argumentou que, assim como Einstein mostrara, as ondas de
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luz possuíam propriedades inerentes às partículas, bem como poderia a luz ter propriedades ondulatórias. Postulou também que se elétrons fossem adequadamente submetidos ao experimento de dupla fenda, apresentariam um padrão de interferência. Em 1927, o experimento de Davisson e Germer, nos Laboratórios Bell, confirmou essa previsão de de Broglie, estabelecendo a dualidade onda-partícula da matéria. O prenúncio de de Broglie foi um passo importante para a nossa compreensão da realidade quântica; só precisava que alguém viesse e sistematizasse teórica e matematicamente tal mecânica. Werner Heisenberg (1901-1976) foi o primeiro. Em 1920, Niels Bohr inaugurou um instituto de física na Universidade de Copenhague. Para lá achegaram-se físicos do mundo inteiro para trabalhar em sua teoria atômica. Como vimos anteriormente, o modelo das órbitas dos elétrons de Bohr explicava o espectro do hidrogênio e algumas propriedades da tabela periódica, mas vinha sofrendo grandes reveses, a saber: da evidência da dualidade onda-partícula, da difração dos raios X, dos elétrons que também comprovavam a hipótese de de Broglie e do fato de que as propriedades das linhas espectrais dos átomos maiores não se encaixavam na sua teoria. Bohr, após a introdução dos principais pressupostos do seu modelo, conseguiu explicar a emissão espectral dos átomos – uma espécie de quebra-cabeças que a teoria atômica estava pendente de resolver. Para tal, derivou a chamada constante de Rydberg, bem como o raio do hidrogênio no estado fundamental e o potencial de ionização. No entanto, isso foi feito, conforme concepção de Lakatos, em forma de ajustes no cinturão protetor. Ajustes esses que são ad hoc, isto é, que não resultam em previsões de fatos novos ou, sendo previstos, não são corroborados. A concordância entre os comprimentos de ondas medidos e aqueles previstos por Bohr não foram perfeitos e, segundo Alfred Fowler, um espectrocopista britânico, a pequena discrepância era grande o suficiente para invalidar a teoria. A reposta de Bohr, publicada na Nature no outono de 1913, foi um outro exemplo brilhante do que o filosofo Imre Lakatos tem chamado ajuste monstruoso – tornar um contraexemplo num exemplo. Bohr apontou que a quantidade m (massa do elétron) na expressão de R (constante de Rydberg) deveria ser, na verdade, a massa reduzida mM/(m + M), com M sendo a massa nuclear. Com essa correção a discrepância desapareceu (KRAGH, 2002, p. 55).
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O problema era que Bohr, Planck e a maioria dos físicos de sua época imaginavam regras e números quânticos que emergiam das regularidades nas estruturas básicas dos átomos. Não tinham ciência, portanto, de que o determinismo clássico não é regra para os atributos quânticos, que têm outra “lógica” de funcionamento. Em 1924, Heisenberg visitava periodicamente Bohr para fins de estudos e tentava maneiras de calcular as linhas espectrais do hidrogênio. Sua ideia foi a de que, em virtude do fato de que os físicos não sabem nada sobre o que acontece dentro do átomo, o negócio era trabalhar com o que podia ser observado. Com isso, começou a elaborar uma estrutura intelectual que conjugasse todas as variáveis quânticas. Mas Heisenberg tinha um problema sério de alergias e, no verão de 1925, teve que ir se recuperar de um ataque de febre do feno na ilha de Helgoland, na costa alemã do mar do Norte, lugar onde teve um insight revelador. Inspirado em suas conversas com Bohr sobre os mistérios do quantum, juntou as peças e criou a mecânica matricial, a primeira mecânica quântica surgida no mundo. A formulação matematicamente precisa da teoria quântica emergiu finalmente como consequência de dois diferentes desenvolvimentos. O primeiro deles derivou do princípio de correspondência de Bohr. Tinha-se aqui que abandonar o conceito de órbita eletrônica, mas mantê-lo no limite dos grandes números quânticos, isto é, para as grandes órbitas. Nesse último caso, a radiação emitida – por intermédio de suas frequências e intensidades – propicia uma imagem das órbitas eletrônicas que deriva do que os matemáticos denominam de expansão de Fourier da órbita. A ideia trazia consigo a sugestão de que se deveria expressar as leis mecânicas, não por equações para as posições e velocidades dos elétrons, mas, sim, por equações para as frequências e amplitudes da expansão de Fourier. Esse plano pode de fato ser posto em prática e, no verão de 1925, deu lugar ao formalismo matemático que foi denominado mecânica das matrizes ou, para se usar uma expressão mais geral, mecânica quântica (HEISENBERG, 1995, p. 34-35).
As matrizes, usuais na matemática, mas incomuns na física, são arranjos de números formando um quadrado, sendo que cada matriz representa um atributo diferente, tais como energia, quantidade de movimento, massa, impulso etc. Suas diagonais mostram a probabilidade de que o sistema possua
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aquele valor do atributo e os elementos fora da diagonal representam a intensidade das conexões não clássicas entre os valores possíveis daquele atributo. Desse modo, a quantidade de movimento p de um elétron não é representada por um número, como na física clássica, mas por uma dessas matrizes quadradas. O mesmo acontece com a posição x, a energia E, ou qualquer outro atributo do sistema: são todos representados por matrizes. A evolução dessas matrizes segue uma lei especial de movimento que lembra a lei de Newton, mas contém diferenças que lhe são peculiares. Uma grande diferença é que, ao contrário dos números, as matrizes não são comutativas. Isso significa que faz diferença a ordem em que as matrizes são multiplicadas. Em particular, se p e x são arranjos quadrados, o produto de p por x não é igual ao produto de x por p (HERBERT, 1989, p. 59-60).
Se as matrizes não são comutativas, isso significa que px ≠ xp, o que obrigava Heisenberg a introduzir um postulado para saber qual é a diferença entre px e xp. A fim de obter um sistema de equações que levasse aos valores corretos das frequências e das intensidades relativas das linhas espectrais, Heisenberg concluiu que a equação px – xp = i(h/4π)1, em que 1 é a matriz unitária. O resultado desse cálculo foi a relação de incerteza de Heisenberg exposta na seguinte fórmula: ∆x . ∆p ≥ h/4π. Mas o que revela a mecânica matricial desenvolvida por Heisenberg? Para prever a intensidade de várias linhas espectrais de um átomo, ele substituiu a ideia de Bohr de órbitas fixas dos elétrons por uma descrição matemática delas como harmônicos de ondas estacionárias. Ele conseguiu ligar suas propriedades às de saltos quânticos em energia, usando uma série de equações equivalente a séries de multiplicações (BAKER, 2015, p. 58).
Com o seu ex-aluno Pascual Jordan, Max Born, a quem Heisenberg havia mostrado os seus cálculos, adensou as equações em formato de matriz. Os valores na tabela ligavam energias dos elétrons com as linhas do espectro e não eram baseados na imagem de órbitas inobserváveis de elétrons e sim em um formalismo matemático que eliminava as representações mentais deficientes,
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segundo Heisenberg, substituindo-as pelo que ele acreditava consistir na única percepção possível da realidade. O uso de matrizes originou implicações para a mecânica quântica. Pelo seu enfoque nos níveis de energia e intensidade das linhas, acabou-se por não dizer nada sobre o elétron (Onde ele se encontra? Como se movimenta?), bem como sobre a própria matriz (O que são seus números? Qual o seu significado na vida real?). Tudo era muito abstrato! E, no final, a mecânica de matriz não podia explicar algumas qualidades dos átomos simultaneamente, por exemplo, posição e quantidade de movimento, medida de energia e intervalo de tempo. E o que restou? A incerteza! Consequência algébrica da mecânica matricial de Heisenberg, a incerteza enquanto princípio, tornou-se a derrocada do determinismo clássico newtoniano. Como vimos, a mecânica newtoniana preconizava que se conhecêssemos, em um determinado instante, as posições e velocidades das partículas que compõem um sistema qualquer, poderíamos deduzir com certeza absoluta as posições e as velocidades em todo instante passado e no futuro. Passado e futuro, portanto, estariam em nossas mãos e toda a realidade seria previamente determinada. O determinismo era a “mais bem estabelecida das crenças que por séculos, senão por milênios, havia sido o próprio fundamento do estudo científico do mundo. ‘Uma ciência que não seja determinista não é uma ciência em absoluto’, havia afirmado Henri Poincaré ao final de 1912” (PULLMAN, 1998, p. 293). O princípio da incerteza de Heisenberg, entretanto, quebra o determinismo e torna impossível, por exemplo, o conhecimento preciso e simultâneo, no ato de medição, da posição e da quantidade de movimento de uma partícula quântica. Pode-se medir, tão acuradamente quanto se queira, um atributo isolado de um quantum, mas essa medida inevitavelmente tornará impreciso algum outro atributo do quantum. Os atributos quânticos parecem estar ligados a outros atributos, pelo menos durante o ato da medição. E o fato de estarem conjugados limita a precisão com que se pode conhecê-los. Para construir uma base apropriada para a estrutura do átomo, seria necessário dar uma precisão ao que se quer dizer por “posição do elétron” por meio de um experimento cuja finalidade seria justamente a medição da “posição do elétron”. Caso isso não ocorresse, qualquer proposição que dissesse respeito à tal “posição do elétron” seria sem sentido. Essa questão sugere um paradoxo
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que envolve o dualismo onda-partícula, que a ciência empírica não dá conta de resolver. Quando queremos ter clareza sobre o que se deve entender pelas palavras “posição do objeto”, por exemplo do elétron (relativamente a um dado referencial), então é preciso especificar experimentos definidos com o auxílio dos quais se pretenda medir a “posição do elétron”; caso contrário, a expressão não terá nenhum significado (HEISENBERG, 1983, p. 64).
O princípio da incerteza revolve o problema da dualidade onda-partícula ao estabelecer a impossibilidade de conhecermos simultaneamente a posição e o momentum (quantidade de movimento) de uma partícula, ou então, a impossibilidade de conhecermos simultaneamente a medida de energia de uma determinada quantidade e a correspondente medida do tempo (∆E . ∆t ≥ h/4π). “As relações de Heisenberg demonstram que qualquer experiência terá um ponto cego suficientemente grande para esconder a solução do enigma onda/partícula” (HERBERT, 1989, p. 91). Assim, o que vigora é a incerteza sobre o que de fato é a sua realidade: onda ou partícula? O princípio da incerteza dá-nos também a percepção de que a ênfase nos conceitos clássicos consistia em um passo retrógrado com relação à construção de teorias científicas adequadas à microfísica, isso porque o que rege a realidade do objeto quântico é a indeterminação que lhe subjaz. As características de incerteza, conforme vimos, abalaram os pilares do realismo e racionalismo da física clássica e impuseram implicações filosóficas por demais importantes. Isso significa que princípios como os da causalidade ou do reducionismo desenvolvidos desde a Antiguidade foram desafiados restando a indeterminação como explicação para os fenômenos quânticos. No nível quântico, sabe-se que o conhecimento é sempre limitado. O que podemos obter em termos de conhecimento são valores prováveis e não exatos. E as implicações filosóficas decorrentes do indeterminismo ou incerteza quântica, segundo Silva (2012, p. 77-82), advêm das seguintes razões: I) Ontologicamente, a realidade é fundamentalmente incerta; não podemos conhecer os estados quânticos porque estes são indeterminados.
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O limite imposto pelo princípio da incerteza não depende da maneira pela qual você tenta medir a posição ou velocidade da partícula, nem do tipo de partícula. O princípio da incerteza de Heisenberg é uma propriedade fundamental, inescapável, do mundo, e teve profundas implicações na maneira como vemos o mundo (HAWKING, 2005, p. 95 apud SILVA, 2012, p. 78).
O princípio da incerteza rompe com a ontologia materialista dado o antirrealismo que lhe é inerente. Sobre a “objetividade” das ondas, por exemplo, “dificilmente se poderá chamá-las de ‘reais’, a menos que se queira mudar o sentido do termo” (HEISENBERG, 1995, p. 101); e sobre as partículas, “a hipótese de que as partículas são reais, no sentido da ontologia materialista, sempre conduzirá à tentação de se considerar desvios na validade do princípio de indeterminação como ‘basicamente’ possíveis” (HEISENBERG, 1995, p. 103). Segundo o antirrealismo de Heisenberg (e também de Bohr), o objeto quântico não tem qualquer existência independente do sujeito que observa51; II) Epistemologicamente, o entendimento humano revela-se limitado para conhecer a ordem intrínseca da natureza que se encontra velada pela incerteza manifesta; III) Tecnologicamente, os instrumentos de medição não são suficientemente eficientes para dar conta do desvelamento das relações de incerteza – restaria, entretanto, que o sujeito cognoscente, como os demais instrumentos de medida, tornasse-se complementar à mensuração, a fim de lhe atribuir valor epistêmico, conforme pretendia Bohr; IV) Estatisticamente, os sistemas quânticos são complexos e não individuais. Haverá sempre um atributo quântico ligado a outros atributos, pelo menos durante o ato da medição. Isso favorece que as relações de incerteza sejam produtos das análises estatísticas dos sistemas quânticos, o que está inteiramente alinhado com o pensamento de Einstein, que insistia que a mecânica quântica não deveria ser entendida como uma teoria sobre objetos individuais, e sim sobre ensembles estatísticos. Se se trata de uma mecânica que lida com agrupamentos de entidades quânticas, portanto com complexos, seu comportamento tem que ser estatístico, logo, indeterminado, provável. Acrescem-se aos fatores mencionados por Silva 51 Vale destacar que esse antirrealismo de Heisenberg é aquele da interpretação de Copenhagen. Um “segundo Heisenberg”, já mais intelectualmente independente em relação a Bohr e menos compromissado com Copenhagen, vai se afastando desse ideário antirrealista e se tornando um pensador mais original.
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(2012), V) Logicamente, o princípio da incerteza perverte o princípio do terceiro excluído (tertium non datur) da lógica clássica. Se antes a percepção de que para a proposição só existia dois caminhos possíveis, isto é, ou era verdadeira ou era falsa – o terceiro caminho era excluído –, aqui temos a exigência do desenvolvimento de uma nova lógica que, diferentemente das lógicas tradicional e clássica, dê conta das relações de incerteza, substituindo talvez o conectivo “necessariamente” por “possivelmente” aos moldes da lógica modal – se é que ela dá conta da análise das proposições que envolvem a realidade quântica. Na teoria quântica, o “princípio do terço excluído” precisa ser modificado. Poderemos, todavia, adotar uma atitude contrária a qualquer alteração nesse princípio fundamental e argumentar, de pronto, que esse princípio é implicitamente admitido na linguagem comum e que é nessa linguagem que devemos nos expressar, mesmo que venhamos falar da eventual modificação da lógica que a rege. Seria, portanto, mergulhar na contradição, pretender descrever, na linguagem comum, um esquema lógico que a ela não se aplicasse (HEISENBERG, 1995, p. 137).
VI) Por fim, linguisticamente, o princípio da incerteza realoca um problema que é crucial para a física como um todo: como é possível expressar a “realidade quântica” por vias da linguagem ordinária? Se a formalização matemática parece suficiente para a descrição de fenômenos quânticos para a comunidade dos físicos, isso não é uma verdade quando se fala no entendimento do cidadão comum. Dessa forma, princípios como os da incerteza, no campo da física, sofrem de restrições linguísticas na transliteração para a linguagem ordinária. Como transpor equações matemáticas para o uso cotidiano? “Aqui não se tem, de começo, nenhum critério simples para se correlacionar os símbolos matemáticos aos conceitos da linguagem cotidiana; e a única coisa que sabemos, como ponto de partida, é que os conceitos comuns não são aplicáveis ao estudo das estruturas atômicas” (HEISENBERG, 1995, p. 134). Isso tem como reflexo o distanciamento, as controvérsias e, às vezes, até a rejeição das ciências naturais e exatas pelo cidadão comum, em virtude do fato da dificuldade de comunicação de descrições da realidade em linguagem que seja inteligível ao grande público. O que é, afinal, o átomo sobre o qual, e cujo
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comportamento incerto, os físicos querem inferir? Como elucidá-lo servindo-se de uma clareza que se faz necessária? Como torná-lo inteligível para os simples mortais? [...] Os problemas linguísticos são, nesse caso, realmente sérios. Nós, afinal, desejamos poder falar – de alguma maneira – sobre a estrutura dos átomos, digamos, e não somente acerca de “fatos”, esses últimos sendo, por exemplo, manchas negras em uma chapa fotográfica ou gotículas d’água em uma câmara de Wilson. Mas não teremos como descrever a estrutura dos átomos na linguagem comum (HEISENBERG, 1995, p. 135).
Vemos, portanto, que o princípio da incerteza está envolvido com uma realidade que não pode ser tratada em ato, aos moldes de Aristóteles. A única opção que nos resta seria tratar essa realidade do ponto de vista da potência, o que foi feito pelo próprio Heisenberg, cuja explanação foge dos propósitos do presente tópico. Antes mesmo que os problemas da mecânica matricial e sua consequente concepção de incerteza fossem resolvidos, tal mecânica foi superada por uma nova teoria. O físico E. Schrödinger apresentou uma explicação concorrente para as energias dos elétrons baseada em suas funções de ondas.
9.3 E. Schrödinger: função e colapso de ondas Como se viu, no início do século XX o tema da dualidade onda-partícula estava em voga e já havia ocupado teorizações por parte de Einstein, Bohr, de Broglie e Heisenberg, por exemplo. No fim de janeiro de 1926, Erwin Schrödinger (1887-1961) conseguiu descrever matematicamente as energias dos átomos ao tratá-los como ondas e não como partículas. Em uma série de quatro artigos, ele inicia representando a substância quântica por meio de uma forma ondulatória e formula as leis quânticas do movimento às quais tal forma ondulatória deveria obedecer. Isso foi feito através da equação (denominada equação de Schrödinger) que descreve a chance de uma partícula se comportar como onda em determinado lugar. Previu, com isso, os comprimentos de onda das linhas espectrais do hidrogênio. No segundo artigo, Schrödinger propôs aplicar sua teoria a sistemas atômicos básicos, a exemplo da molécula diatômica. No terceiro artigo, “descobriu, para sua surpresa e satisfação, que seu próprio formalismo e o cálculo matricial de Heisenberg são matematicamente
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equivalentes, apesar das disparidades óbvias em suas suposições básicas, aparato matemático e teor geral” ( JAMMER, 1974, p. 22). E no quarto artigo, incorporou a dependência do tempo, mostrando como uma função de onda evoluiria. A função de onda, apesar de sua intuitividade para aqueles que já estão habituados com a teoria ondulatória clássica e de ter se mostrado um ótimo expediente para explicar fenômenos quânticos como o comprimento das linhas espectrais do hidrogênio, ainda assim, trata-se de um expediente probabilístico, e deixa lacunas quanto ao que de fato descobrimos acerca do mundo real. A onda é um simples instrumento do cálculo e não uma onda real localizada em algum lugar do espaço, conforme asseverava von Neumann, que não associava a função de onda a uma realidade. “Funções de onda são difíceis de captar, porque não as testemunhamos em nossa vivência pessoal e não é fácil de visualizá-las e interpretá-las. [...] Ainda havia um oceano entre a descrição matemática de uma onda-partícula e a entidade real, um elétron ou um fóton, por exemplo” (BAKER, 2015, p. 62). Diferentemente da física clássica que nos permite calcular a localização da partícula e a direção do seu movimento, por exemplo, na mecânica ondulatória só podemos dar a probabilidade da localização do elétron em virtude da amplitude da onda – quanto maior for a amplitude da função de onda, maior a probabilidade de que um elétron esteja naquele lugar. Apresentamos uma descrição completa e contínua no espaço e no tempo sem quaisquer lacunas, conforme com o ideal clássico – uma descrição de algo. Mas não afirmamos que este “algo” são os fatos observados ou observáveis, e ainda menos afirmamos que desta forma conseguimos descrever o que é realmente a Natureza (matéria, radiação, etc.). De fato, utilizamos esta imagem (a referida imagem da onda) sabendo perfeitamente que não é nenhum dos aspectos (SCHRÖDINGER, 1996, p. 124).
Os físicos utilizam a função de onda para calcular a probabilidade de que certos valores de um atributo surjam na medição. Por lidar com a probabilidade, tal função possui um significado estatístico evidente, relevante para o estudo do comportamento de muitos objetos quânticos, bem como de um objeto quântico isolado, pois se todos os objetos quânticos são fisicamente idênticos, a distinção entre descrição estatística e descrição individual desaparece. Dessa
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forma, sobressai-se na mecânica ondulatória uma descrição que é estatística e, por se tratar de um recurso matemático de localização de algo que se manifesta (o elétron na mais alta amplitude da onda, por exemplo), não diz nada acerca do real. Assim, qual seria a vantagem da mecânica ondulatória, uma vez que esta não nos descreve fatos observáveis ou o “aspecto real da Natureza”? Bem, na verdade crê-se que nos fornece informações acerca de fatos observados e da sua dependência mútua. Existe uma perspectiva otimista, nomeadamente a que defende que esta perspectiva nos fornece todas as informações que se podem obter a partir dos fatos observáveis e da sua interdependência. Mas esta perspectiva – que pode estar ou não correta – é otimista apenas na medida em que serve para lisonjear o nosso orgulho por possuirmos, em princípio, todas as informações que se podem obter. É pessimista no que diz respeito a um outro aspecto, talvez se pudesse mesmo afirmar que é epistemologicamente pessimista. Porque as informações que obtemos relativamente à dependência causal dos fatos observáveis é incompleta. (O problema tinha de surgir algures!). As lacunas, eliminadas da imagem das ondas, passaram para a ligação entre a imagem das ondas e os fatos observáveis. Estes últimos não estão em correspondência unívoca com a imagem. Continua a existir muita ambiguidade e, tal como afirmei, alguns pessimistas otimistas ou otimista pessimistas acreditam que esta ambiguidade é essencial, não pode ser evitada (SCHRÖDINGER, 1996, p. 124-125).
Essa citação é parte do texto O Expediente da Mecânica Ondulatória que se encontra no livro Ciência e Humanismo de Schrödinger. Depois de explicar os usos e sentidos da mecânica ondulatória desde os estudos de Christiaan Huygens (1629-1695), Schrödinger termina por assumir que “temos que desistir de estabelecer, até à origem, a história de uma partícula que se apresenta na placa [...]. Não podemos dizer onde é que a partícula se encontrava antes de atingir a placa. Não podemos dizer através de qual orifício é que ela surgiu” (SCHRÖDINGER, 1996, p. 129). Afirma que essa é uma lacuna na descrição dos fenômenos que são observáveis e aponta que para resolver o referido problema “temos de pensar em termos de ondas esféricas emitidas pela fonte, em partes de cada frente de onda que passam através de ambos os orifícios e que produzem o nosso modelo de interferência na placa – mas
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esse modelo apresenta-se à observação sob a forma de partículas únicas” (SCHRÖDINGER, 1996, p. 129). Dessa forma, Schrödinger antecipa uma das estranhezas, ao nosso ver, que se manifesta nos fenômenos quânticos: se, enquanto não medido, o objeto quântico propaga-se como onda, mas quando medido é observado como partícula, o que aconteceu nessa transição? Como e quando se dá o colapso da função ondulatória? Quem é responsável pelo colapso da onda quântica? Como a mecânica quântica explica esse fato? A questão do colapso da onda está intimamente relacionada com a questão da medição quântica. Existem concepções diversas sobre a medição quântica que foram desenvolvidas por físicos como Bohr, Bohm e pelo matemático von Neumann, por exemplo. A interpretação que aqui exploraremos, a realista ondulatória, diz que um objeto quântico pode estar localizado em dois lugares diferentes ao mesmo tempo. É como se antes da observação ele estivesse dividido simetricamente em dois, apesar de sempre ser observado como um só. A luz, por exemplo, é onda eletromagnética, mas, na detecção, se apresenta como algo pontual, como um fóton. Quando a detectamos, a onda quântica colapsa deixando uma forma: um pontinho na placa detectora. Segundo tal interpretação, a luz não faz isso para alterar seu comportamento, mas porque realmente consiste nas duas coisas. Para explicar como isso se dá, tomaremos de empréstimo duas figuras de Pessoa Jr. (2007-11). A primeira figura, conforme vimos anteriormente, mostra-nos a experiência de um objeto quântico – um elétron ou um fóton, por exemplo – que passa por uma fenda e se propaga no formato de uma onda circular. Nesse caso, o objeto quântico estaria espalhado, segundo a presente interpretação.
Fonte: PESSOA JR. (2007-11)
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Entretanto, quando se coloca uma placa de detecção – uma tela de fósforo ou uma tela de cintilação, por exemplo –, o que o instrumento capta, ou o que observamos, é um ponto (P). O objeto quântico é captado como uma partícula e a onda que estava espalhada entra em colapso, desaparece.
Fonte: Pessoa Jr. (2007-11)
Segundo Pessoa Jr. (2007-11, p. 8), Essa ideia de que “uma onda real vai se propagando por aí e, quando é observada (medida), sofre um colapso” nunca foi muito bem aceita entre os físicos, pela seguinte razão. Considere a região em torno do ponto Q, na figura. Logo antes da detecção em P, havia uma onda em torno de Q, mas com a detecção em P, a onda em Q desaparece instantaneamente. P e Q podem estar separados a uma distância imensa, como a distância entre a Terra e o Sol: como é que uma medição na Terra (P) poderia afetar instantaneamente uma onda no Sol (Q)?
O que ocorreria aqui é um exemplo de uma “ação à distância”, “não-local”, o que, segundo o autor, os físicos normalmente “odeiam”, gostando, entretanto, de “ação por contato” ou “localidade”. Veremos, entretanto, que teoremas interessantes na física quântica, como é o caso do teorema de John Bell, preconizam uma realidade não-local, admitindo, portanto, influências de velocidades acima da luz. Tal teorema trata-se, por um lado, de uma resposta a todos os modelos da realidade quântica, inclusive a interpretação de Copenhague, bem como resolve um problema imposto pela formalização matemática de von
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Neumann, que previa que, se a mecânica quântica estivesse correta, não haveria de conceber a existência de objetos comuns que combinam entre si de maneira razoável. O teorema de Bell admite a interconectividade que é comprovada pela experiência Einstein, Podolsky e Rosen (EPR), que veremos adiante. Sobre von Neumann, gostaríamos de fazer um adendo para apresentar, em linhas gerais, como ele trata da questão do colapso da função de onda e como seu tratamento escancarou as portas para as mais estranhas concepções, que propõem seus fundamentos na teoria quântica, mas que, ao fim e ao cabo, introduzem esse campo da física no mais profundo pântano do chamado misticismo quântico. Nesse caso, referimo-nos às chamadas interpretações ondulatórias subjetivistas. Conhecido mundialmente por ter participado de grandes e importantes projetos no século XX (concepção de computador programável, teoria dos jogos estratégicos, primeiros robôs, desenvolvimento da bomba atômica etc.) o matemático húngaro John von Neumann (1903-1957), juntamente com Garrett Birkhoff (1911-1996), propôs a ideia da lógica quântica, mas se tornou notável pelo seu livro, a bíblia quântica, Mathematical Foundations of Quantum Mechanics. Ao terminar a década de 20, os físicos haviam construído uma teoria quântica, que satisfazia as suas necessidades do dia-a-dia, utilizando uma grosseira estrutura matemática que organizava os fatos quânticos. Nesse ponto, von Neumann entrou em cena, dando uma forma rigorosa à crua teoria dos físicos, colocando a teoria quântica num elegante edifício matemático denominado “espaço de Hilbert”, onde ela reside até hoje, e conferindo à recém-nascida teoria física o selo de aprovação dos matemáticos (HERBERT, 1989, p. 41).
Sobre o colapso da função ondulatória, von Neumann estava curioso em encontrar o exato local de sua ocorrência, algo que era essencial para a sua interpretação da mecânica quântica. Examinou detidamente o processo de medida, dividiu o ato de medir em pequenos passos, formou uma cadeia que ia desde a fonte do objeto quântico até a consciência do observador onde, segundo ele, se dá o registro final da medição. Nesse processo, von Neumann procurou a localização natural onde a cadeia pudesse interromper, isto é, onde de fato
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se dava o colapso da função ondulatória. Descobriu, entretanto, que é possível seccionar a cadeia e incluir o colapso em qualquer ponto que se deseje, isso porque os resultados não nos fornecem quaisquer indícios sobre onde se localiza a divisão entre o sistema e o instrumento de medição. Com isso, ele acabou também por inaugurar a noção de “paralelismo psicofísico”, que preconiza que o corte entre sujeito clássico e objeto quântico pode ser traçado em qualquer ponto da cadeia ligando o objeto ao observador. Von Neumann não pôde encontrar um lugar natural para colocar o seu “milagre”. Tudo, afinal de contas é feito de átomos: não há nada de santo num instrumento de medida. Seguindo a cadeia que tem o seu nome, impulsionado por sua própria lógica, em desespero von Neumann agarrou-se ao seu único elo estranho: o processo pelo qual um sinal físico no cérebro se transforma numa experiência da mente humana. Esse é o único processo em toda a cadeia de von Neumann que não consiste de meras moléculas em movimento. Relutantemente, von Neumann chegou à conclusão de que a consciência humana é o local do colapso da função ondulatória (HERBERT, 1989, p. 181, grifos nossos).
Na verdade, a ideia de que a consciência humana é o local da função ondulatória, foi popularizada Fritz London e Edmond Bauer, em 1939, pois von Neumann não havia incluído a consciência no observador na cadeia de medição. Segundo London e Bauer (1939, p. 42 apud WHEELER; ZUREK, 1983, p. 259), O observador possui uma impressão completamente diferente. Para ele, é só o objeto x e o aparato y, que pertencem ao mundo externo, ao que ele chama de “objetividade”. Por contraste, ele possui relações consigo mesmo de uma característica muito especial. Ele possui uma característica e uma faculdade bastante familiar, a qual nós podemos chamar de “faculdade de introspecção”. Ele pode rastrear o caminho do seu próprio estado a cada momento. Em virtude desse “conhecimento imanente” ele atribui a si mesmo o direito de criar a sua própria objetividade – isto é, de cortar a cadeia de correlações estatísticas (...) declarando “eu estou [nesse] estado”.
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Esse subjetivismo travestido de objetividade é expressão de mais uma manifestação de antirrealismo na mecânica quântica, uma vez que tem como consequência o fato de que, no mundo criado pela consciência, as coisas não existem a não ser que alguma mente as perceba e, inclusive, intervenha (“corte a cadeia”) sobre elas. Como dissemos, essa conclusão de von Neumann – e a consequente difusão por London e Bauer –, abre as portas para as mais diversas formas de misticismo quântico que, por meio de um subjetivismo aquém da própria ciência, pretende explicar a natureza da realidade colocando a mente humana como protagonista não somente da explicação dos fenômenos quânticos, mas também como responsável pela existência desses mesmos fenômenos, uma vez que não é possível a existência da natureza independente do sujeito. Há, contudo, uma espécie de misticismo, “conciliador” com a ciência, e que pode ter tido a sua origem justamente na interpretação de Copenhague da mecânica quântica: “mais obscura e mística, endossada pela maioria dos físicos de hoje” (HERBERT, 1989, p. 12).
9.4 A Interpretação de complementaridade Viu-se surgir nos anos de 1926 e 1927 duas interpretações que eram compatíveis entre si em termos de descrição dos fenômenos quânticos, mas concorrentes em popularidade entre os físicos da época. A mecânica matricial de Heisenberg demorou a ganhar impulso e levantou muitas controversas, pois se encontrava numa linguagem matemática com a qual os físicos não estavam habituados. Ela explicava muito bem fenômenos descontínuos, de movimentos discretos de dimensão finita, e asseverava que tanto faz usar uma representação em termos de partículas quanto ondulatória, visto que ambas fornecem as mesmas previsões experimentais. Por outro lado, a mecânica ondulatória de Schrödinger, justamente por ser ondulatória – baseada na noção de continuidade, de transição gradual –, ganhou rapidamente simpatia entre os físicos porque era baseada no recurso de equações diferenciais, muito comuns entre eles. Por ser semelhante à mecânica clássica dos fluidos, a imagem era facilmente visualizável e sugestiva. Aqueles que em seu desejo pela continuidade odiavam renunciar à máxima clássica natura a non facit saltus aclamaram Schrödinger como o mensageiro de uma nova aurora. De fato, em poucos meses, a teoria
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de Schrödinger cativou o mundo da física, pois parecia prometer a “realização daquele desejo irreprimível e por longo tempo malogrado” nas palavras de K. K. Darrow [...]. Planck declarou: “Estou lendo-a com a sensação de uma criança que monta um quebra-cabeças”, e Sommerfeld ficou exultante. Assim, naturalmente, estava Einstein que, em princípios de 1920, escrevera a Bohr, “Eu não acredito que alguém vai resolver os quanta abandonando o continuum” (HOLTON, 1984, p. 58).
Os próprios Heisenberg e Schrödinger marcaram suas posições quanto às impressões que tiveram a respeito das resultantes físicas e teóricas das interpretações uns dos outros. Em uma carta a Pauli, ele [Heisenberg] escreveu: “Quanto mais eu penso sobre a parte física da teoria de Schrödinger, mais detestável (desto abscheulicher) me parece”. Schrödinger não foi menos franco sobre a teoria de Heisenberg quando disse: “... fiquei desencorajado (abgeschreckt), se não repugnado (abgestoβen) pelo que me pareceu um método bastante difícil de álgebra transcendental, desafiando qualquer visualização (Anschaulichkeit) ( JAMMER, 1966, p. 272 apud HOLTON, 1984, p. 58).
Bohr, por sua vez, gostou da teoria de Heisenberg, pois esta se relacionou bem com suas ideias sobre saltos quânticos discretos e com a sua noção de complementaridade. As posições de Heisenberg e Schrödinger, bem como dos partidários que cada um havia de ganhar em apoio, na verdade, refletiam a realidade de uma época, onde a física quântica nascente debatia-se com os problemas da representação clássica e lutava para fixar uma identidade própria – a despeito dos seus muitos críticos, como era o caso de Einstein, que também fora um dos seus fundadores. Holton (1984, p- 49-50) resume muito bem o estado de coisas que, naquela época, representava as diferenças básicas das descrições clássica e quântica da física: 1) Na física clássica, o movimento dos planetas ou de objetos suficientemente grandes podem ser explicados, descritos e definidos com pequena interferência do observador e com pequena incerteza. Na física quântica, a descrição do estado do sistema não pode ser feita sem a influência do observador. “A razão de tal situação é simples: os átomos,
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tanto no sistema a ser observado quanto no instrumento utilizado para fazer a observação, nunca são arbitrariamente precisos em suas reações” (HOLTON, 1984, p. 50). Vimos sobre isso quando tratamos do princípio da incerteza de Heisenberg; 2) Um sistema clássico pode ser considerado fechado, apesar de estar sendo observado, visto que o fluxo de energia para dentro e para fora é insignificante comparado com as trocas de energia durante as interações das partes do mesmo sistema. Na descrição quântica, por outro lado, não se pode negar a interação entre o sujeito da observação (operação ou equipamentos utilizados para a observação) com o próprio objeto (sistema a ser observado); 3) No sistema clássico, temos noções de causalidade e coordenação normal espaço-tempo que podem coexistir. No caso do sistema quântico, não existe corrente de causalidade por se tratar de uma física indeterminista e probabilística. “Se submetermos o ‘objeto’ a observações de espaço-tempo, ele não mais realizará sua própria sequência de causalidade probabilisticamente” (HOLTON, 1984, p. 50); 4) Na física clássica, questões como a da natureza da luz, fenômenos de interferência no vácuo e as propriedades óticas nos meios materiais são explicados pela teoria eletromagnética e pelo princípio da superposição teórica da onda. Por outro lado, na física quântica, “a conservação de energia e movimentos realizados durante a interação entre radiação e matéria, como evidente nos efeitos fotoelétricos e de Compton, encontram sua expressão adequada exatamente à luz da ideia quântica difundida por Einstein” (HOLTON, 1984, p. 50). Por trás dessas posições antagônicas, numa terminologia kuhniana, estava o questionamento a respeito da incomensurabilidade dos paradigmas. O paradigma quântico impôs uma revolução que requer a revogação do paradigma clássico? Ou entre as posições paradoxais uma seria de alguma forma subordinada ou dissolvida na outra? O ponto fulcral que marca a diferença entre essas duas representações da física e que requeria uma resposta – que ocupou longos anos da vida de Bohr – são as antinomias existentes entre duas posições igualmente experenciáveis,
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lógicas ou coerentes, mas que chegam a conclusões diametralmente opostas: continuidade vs. descontinuidade, causalidade vs. indeterminação, localidade vs. não-localidade, ação por contato vs. ação à distância. Foi justamente tentando conciliar essas posições antitéticas que Bohr chegou na sua interpretação de complementaridade, também chamada de interpretação de Copenhague. Foi em setembro de 1927, em Como, na Itália, durante o Congresso Internacional de Física realizado em comemoração ao centenário da morte de Alessandro Volta (1745-1827), que Niels Bohr, pela primeira vez, apresentou ao público a sua formulação da complementaridade. Estava reunida a maioria dos fundadores da teoria quântica, exceto Einstein e Ehrenfest, que se encontrariam com Bohr no 5º Congresso de Solvay, em Bruxelas, no mês seguinte, onde sua palestra seria repetida. Em uma palestra intitulada O Postulado Quântico e o Recente Desenvolvimento da Teoria Atômica, Bohr faz, primeiramente, um apanhado do estado da arte da teoria quântica tratando dos seus problemas contemporâneos – a exemplo do princípio da incerteza. Trata também do desenvolvimento da mecânica matricial, da mecânica ondulatória, dos problemas da interpretação de Schrödinger, dos estados estacionários de um átomo e sobre as perspectivas futuras da teoria quântica. Em segundo lugar, Bohr trata de todos os temas resumidos por Holton (1984) nos itens precedentes, enfatizando as diferenças básicas das descrições clássica e quântica da física: discorre sobre a característica de descontinuidade dos processos quânticos, estranha às teorias clássicas; trata da renúncia que o postulado quântico faz a respeito da coordenação espaço-temporal de processos atômicos; aborda a interação entre o agente de observação e os fenômenos atômicos; expressa seu antirrealismo ao afirmar que não faz sentido atribuir realidade ao objeto físico independente de um observador: “[...] uma realidade independente no sentido físico ordinário não pode ser atribuída nem aos fenômenos, nem aos agentes da observação” (BOHR, 2000, p. 136); discute sobre a irracionalidade inerente ao postulado quântico quando da possibilidade do corte entre o sujeito e o objeto quântico em qualquer ponto da cadeia que une os dois; discorre sobre sistema físico que requer a eliminação de todos os distúrbios externos, nesse caso, sobre a equação de Schrödinger ou outro tipo de evolução unitária que se aplica a sistemas fechados; trata também do sistema em que há uma interação com o aparelho de medição, onde não se aplica uma equação determinista e sim um postulado de projeção: “[...] De modo a tornar
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possível uma observação, permitimos certas interações com agentes apropriados de medição que não pertencem ao sistema, então uma definição sem ambiguidades do estado do sistema naturalmente não é mais possível, e não se pode falar em causalidade no sentido ordinário da palavra” (BOHR, 2000, p. 137). No entanto, para os nossos propósitos, interessa-nos como ele introduz a sua noção de complementaridade. E é aqui Bohr introduz o seu primeiro enunciado da complementaridade: A própria natureza da teoria quântica nos força assim a considerar a coordenação espaço-temporal e a asserção da causalidade, cuja união caracteriza as teorias clássicas, como aspectos complementares, mas exclusivos da descrição, simbolizando a idealização da observação e da definição, respectivamente (BOHR, 2000, p. 137).
Trata-se de um enunciado que envolve o primeiro tipo de complementaridade de Bohr entre um par de características que são consistentes na física clássica, a saber, coordenação espaço-temporal e causalidade – que nessa citação deve ser entendida como “determinismo” – ou entre a observação e a definição. “De fato, na descrição de fenômenos atômicos, o postulado quântico nos apresenta a tarefa de desenvolver uma teoria da ‘complementaridade’, cuja consistência pode ser avaliada apenas pesando-se as possibilidades de definição e observação” (BOHR, 2000, p. 137). Um sistema isolado conserva energia e momento, e portanto pode-se dizer que satisfaz a causalidade. Como, porém, ele não pode ser observado, não é possível associar uma posição espacial e um instante temporal a ele. Por outro lado, ao ser observado, um sistema passa a ter uma coordenação espaço-temporal (dada pelo resultado da medição), mas seu estado (após a redução) não evoluiu a partir do estado anterior de acordo com a lei da causalidade (ou seja, de maneira determinista) (PESSOA JR., 2019, p. 94).
Essa primeira formulação da complementaridade, contudo, foi abandonada por Bohr, visto que para uma posição antirrealista tal como era a sua, essa noção fazia uma distinção entre um átomo enquanto existente e o mesmo átomo enquanto conhecido, o que não fazia sentido. “Apenas de um ponto
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de vista realista é possível dar sentido a este 1º tipo de complementaridade” (PESSOA JR., 2019, p. 94), o que não era o caso da interpretação de Bohr. Um segundo tipo de complementaridade é apresentado por Bohr e envolve a questão da complementaridade entre partícula e onda. Esse tipo de complementaridade ocorre a contragosto da física clássica, onde onda e partícula são elementos mutuamente excludentes. Bohr afirma: O problema da natureza dos constituintes da matéria nos apresenta uma situação análoga. A individualidade dos corpúsculos elétricos elementares nos é imposta pela evidência geral. Contudo, experiência recente, sobretudo a descoberta da reflexão seletiva de elétrons por cristais metálicos, requer o uso do princípio de superposição da teoria ondulatória, em conformidade com as ideias originais de L. de Broglie. Exatamente como no caso da luz, temos consequentemente, no caso da natureza da matéria, enquanto aderirmos a conceitos clássicos, que enfrentar um dilema inevitável que tem que ser considerado como a própria expressão da evidência experimental. De fato, estamos aqui novamente tratando não de representações contraditórias dos fenômenos, mas representações complementares, que somente juntas oferecem uma generalização natural do modo clássico de descrição (BOHR, 2000, p. 138).
Para Bohr, os aspectos ondulatórios (princípio de superposição na teoria ondulatória) e corpusculares (conservação de energia e momento) de um objeto quântico, embora mutuamente excludentes, são complementares. A definição pelo aspecto onda ou partícula dependerá do tipo de experimento levado a cabo pelo observador: se ele optar pela experiência da dupla fenda, por exemplo, evidenciará a natureza ondulatória; se a experiência for a do efeito fotoelétrico, por outro lado, a natureza se evidenciará corpuscular. Essa dualidade constitui uma descrição “exaustiva” do objeto quântico, pois esgotam suas possibilidades de descrição, ou seja, não haveria uma maneira mais completa de representar uma entidade quântica. O que Bohr faz é associar o aspecto ondulatório à definição (a função de onda ao não observado). Posteriormente, ele passará a definir o fenômeno ondulatório no âmbito da observação (quando ocorre interferência), assim como o fenômeno corpuscular (quando é possível
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inferir trajetórias) (PESSOA JR., 2000)52. O que ficará resolvido é que, para sistemas existentes na escala atômica, não existe um valor predeterminado para as grandezas físicas, são as medições que determinam o que deve aparecer durante eventos de observação. O terceiro tipo de complementaridade é entre os observáveis incompatíveis, como é o caso da posição e do movimento. Segundo Bohr (2000, p. 139), As dificuldades que a descrição espaço-temporal causal enfrenta na teoria quântica, e que têm sido assunto de repetidas discussões, estão agora colocadas em primeiro plano pelo recente desenvolvimento de métodos simbólicos. Uma contribuição importante para o problema de uma aplicação consistente destes métodos foi recentemente feita por Heisenberg. Particularmente, ele salientou a peculiar incerteza recíproca que afeta todas as medições de quantidades atômicas. Antes de entrarmos em seus resultados, será vantajoso mostrar como a natureza complementar da descrição que aparece nesta incerteza é inevitável já em uma análise dos conceitos mais elementares usados na interpretação da experiência.
Vimos que o princípio da incerteza de Heisenberg preconizava a impossibilidade de conhecimento preciso e concomitante da posição e da quantidade de movimento de uma partícula no ato de uma medição e que, para Heisenberg, tanto faz usar a representação corpuscular ou ondulatória, pois ambas fornecem as mesmas previsões experimentais. O terceiro tipo de complementaridade proposto por Bohr incorporou a física de Heisenberg à sua como sinônimo de incerteza. Aqui a complementaridade se dá por meio da tese de que duas quantidades conjugadas são complementares entre si no sentido de que ambas são mutuamente exclusivas, uma vez que a determinação mais precisa do valor de uma delas resulta em maior incerteza com respeito à quantidade complementar, mas juntas exaurem a descrição do objeto atômico. Somente de acordo com o experimento podemos usar ou uma descrição corpuscular ou uma ondulatória, mas nunca ambas ao mesmo tempo. Segundo Bohr, o uso de um quadro corpuscular ou ondulatório depende do experimento em questão e um “fenômeno” é a descrição daquilo que deve ser observado e 52 Nota 10 da tradução de: BOHR, N. (1928). O Postulado Quântico e o Recente Desenvolvimento da Teoria Atômica. Tradução de Osvaldo Pessoa Jr. In: Fundamentos de Física I – Simpósio David Bohm. Org. O. Pessoa Jr. São Paulo: Livraria da Física, 2000. p. 135-159.
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do equipamento usado para obter a observação, já que são complementares. O desmembramento das representações é meramente um sinal do fato de que, na linguagem normal a nós disponível para comunicarmos os resultados dos nossos experimentos, só é possível expressar a unidade da natureza através de um modelo complementar de descrição. O que Bohr estava mostrando, em 1927, era a descoberta curiosa de que no domínio atômico, a única maneira pela qual o observador (incluindo seu equipamento) podia não ser envolvido era se ele não observasse nada. Tão logo monta seu equipamento de observação, o sistema que escolheu para a observação e os instrumentos de medida para realizar o trabalho formam um todo inseparável. Por isso, os resultados dependem em grande parte do equipamento (HOLTON, 1984, p. 51).
Resumidamente, essa noção de complementaridade afirma que, em certo sentido, o átomo não medido não é real: seus atributos são criados ou definidos no ato da medição. Quando você pergunta: “O que é a luz?” a resposta é: o observador, suas variadas peças e tipos de equipamento, seus experimentos, suas teorias e modelos de interpretação, e tudo o mais que encha uma sala que, de outra forma, estaria vazia quando se faz com que a lâmpada se mantenha acesa. Tudo isso, junto, é luz (HOLTON, 1984, p. 52).
Esse tipo de interpretação é característica de um típico antirrealismo professado por Bohr53 e Heisenberg, que sustentam que o objeto não tem qualquer existência independente do sujeito que o observa. O caso da luz é um exemplo típico do que aqui se afirma: mesmo que existam a sala, o equipamento – com as suas várias peças e tipos –, teorias, modelos e tudo mais que pudesse encher a sala, ainda assim, sem a existência do sujeito que observa, que é complementar a tudo o mais, a existência do objeto luz, definitivamente, estaria comprometida. Os desdobramentos filosóficos dessa noção de complementaridade, portanto, encaminham-se por três vias: 1º) professa um tipo de antirrealismo onde 53 No caso de Bohr, o antirrealismo vem seguido de um fundo positivista por depositar no instrumento de medida a inteira confiança no deciframento da realidade, isto é, por sacralizar os instrumentos de medida.
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palavras como “partícula” ou “onda” não designam nada a respeito de objetos materiais ou propriedades materiais de tais objetos, isto é, não têm status ontológico, são apenas descrições de certos experimentos; 2º) sacraliza os instrumentos de medição a ponto de fazer com que o ato de observação e a figura do observador se tornem parte integral do próprio instrumento, isto é, perverte a concepção dita científica da dissociação entre sujeito, objeto e instrumentos científicos, além de tornar a medição o alfa e o ômega do conhecimento, já que não há nada observado além da própria observação; 3º) compromete a noção de “objetividade científica”, já que o fundamento do conhecimento científico se desloca do protagonismo do “objeto” para aquele do “sujeito”. Aliás, a distinção obsoleta entre sujeito e objeto já não é mais válida na visão dos complementaristas54. Segundo Schrödinger (1996, p. 131), o que Bohr e Heisenberg “querem dizer é que as descobertas recentes na física fizeram avançar o limite misterioso entre o sujeito e o objeto, e que assim verificou que esse limite não era, de todo, um limite preciso”. Bohr, por outro lado, salienta sua esperança de que “a ideia de complementaridade seja adequada para caracterizar a situação, que traz uma analogia profunda com a dificuldade geral na formação de ideias humanas, inerente na distinção entre sujeito e objeto” (BOHR, 2000, p. 159). Contudo, a ideia de complementaridade, apesar de constituir fundamento para a linha ortodoxa da teoria quântica, ainda assim não deixou de constituir-se em objeto de crítica de muitos dos seus contemporâneos, bem como de estudiosos recentes. [...] Pode-se dizer que o conceito de complementaridade, introduzido por Bohr na interpretação da teoria quântica, veio encorajar os físicos a utilizar uma linguagem ambígua ao invés de desprovida de ambiguidades, a 54 Mais tarde, já em 1955, quando Bohr profere um discurso numa reunião da Real Academia Dinamarquesa de Ciência, em Copenhague, ele tenta se defender de tal acusação. Segundo ele, “em vista da influência da concepção mecanicista da natureza no pensamento filosófico, é compreensível que às vezes se tenha visto na noção de complementariedade uma referência ao observador subjetivo, incompatível com a objetividade da descrição científica [...]. Na física quântica, como vimos, a explicação do funcionamento dos instrumentos de medida é indispensável à definição dos fenômenos, e devemos distinguir entre o sujeito e o objeto, por assim dizer, de tal maneira que cada caso isolado assegure a aplicação inambígua dos conceitos físicos elementares empregados da descrição. Longe de conter qualquer misticismo alheio ao espírito da ciência, a noção de complementariedade aponta para as condições lógicas da descrição e da compreensão da experiência na física atômica” (BOHR, 1995, p. 114-115).
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fazer uso de conceitos clássicos, de maneira muito vaga, em conformidade com o princípio de indeterminação, a aplicar em alternância conceitos clássicos distintos que, usados simultaneamente, levariam a contradições (HEISENBERG, 1995, p. 135).
Segundo Bunge (2000, p. 237), ao olharmos para a concepção de complementaridade, vemos que ela “não é uma doutrina física, mas filosófica, porque não se refere à matéria em movimento, mas aos conceitos e suas verbalizações”. Ainda assim, o mérito de Bohr está, ao nosso ver, em conseguir aplicar também os princípios da complementaridade em âmbitos que extrapolam as fronteiras da física atômica. Para uma boa dica de como isso se deu, que por razões objetivas não será tratado aqui, sugerimos a leitura de Holton (1984). Lá o leitor encontrará um histórico de como Bohr aplica seu princípio de complementaridade em outras áreas do saber, como: biologia, medicina, antropologia, etnologia, sociologia, ética e política, com a qual envolveu-se até os seus últimos dias, dedicando-se à luta pelo uso pacífico da energia nuclear e pelo controle de armas.
Considerações Finais Conforme vimos, o nascimento da física quântica trouxe com ele um rico material filosófico no que diz respeito à metafísica da natureza da realidade. É justamente da confirmação experimental da realidade do comportamento do átomo ora como onda, ora como partícula, que vimos surgir problemas que alimentaram o imaginário dos físicos e que encheram os olhos filósofos. Questões referentes à natureza dual do comportamento da matéria, à incerteza, à complementaridade e ao lugar da ocorrência do colapso da função de onda quebraram o paradigma clássico que fazia o mundo parecer determinado, contínuo e local, para cuja explicação seria necessário o uso da causalidade e da ação por contato. Esses problemas levantados pela nascente mecânica quântica fizeram nascer uma série de interpretações sobre a natureza última da realidade a ponto de nos perdermos no contingente de propostas interpretativas composto por quatro grandes grupos: interpretação ondulatória (no geral, realista), interpretação corpuscular (realista), interpretação dualista realista e interpretação dualista positivista (PESSOA JR., 2006). Nesse capítulo, a título precário, uma vez que o presente livro não é específico sobre filosofia da física
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quântica, quisemos dar ênfase ao caráter antirrealístico de interpretações que compõem a chamada ortodoxia da mecânica quântica. Dessa forma, tratar da interpretação da complementaridade de Borh, ou da interpretação ondulatória positivista de von Neumann, ou da incerteza de Heisenberg – que está próxima à complementaridade – é adiantar o compromisso que as interpretações ortodoxas55 têm com o dualismo e o antirrealismo (às vezes, chamado de positivismo ou instrumentalismo) de tais interpretações. Porém, o realismo advogado pela física clássica não havia sido revogado e diversas foram as tentativas de demonstrar que a conversão acrítica à escola de Copenhague carecia de sentido, pois, ao que parece, as proposições que fundamentam os argumentos subjacentes às interpretações ortodoxas necessitavam serem mais bem qualificadas. Einstein será o líder da cruzada que tentará demonstrar que a mecânica quântica, tal como entendida pela ortodoxia, era incompleta.
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CAPÍTULO X
A QUEBRA DA MONOCRACIA DA INTERPRETAÇÃO DE COPENHAGUE
Introdução
P
or muitos anos a ortodoxia da interpretação de Copenhague liderou os debates na esfera da mecânica quântica. Isso, entretanto, não garantiu aos seus partidários a “tranquilidade” esperada em tempos de ciência normal, na acepção de Kuhn. No próprio interior da ortodoxia, vimos desdobrar uma série de interpretações que, se não contradizem a interpretação da complementaridade, divergem em aspectos substanciais relacionados a ela. Dessa forma é que surgem no interior das interpretações ortodoxas interpretações como a ondulatória positivista, a subjetivista, a macrorrealista da complementaridade, a eclética, as leituras realistas da complementaridade, o instrumentalismo radical, a intepretação estroboscópica, a da matriz-S e a da soma sobre histórias (PESSOA JR., 2006). Mas foi exatamente de fora que a ortodoxia liderada por Bohr sofreu as maiores contrariedades. A insatisfação com o antirrealismo ortodoxo fez com que físicos defensores de posições, na maioria das vezes realistas, levantassem as vozes contra a autoridade de Bohr, o que gerou muitos dissabores e mais instabilidade no interior das interpretações ortodoxas da mecânica quântica. Desse modo, ganharam voz o realismo local de Einstein, o realismo das variáveis ocultas de Bohm, a não-localidade de Bell e o realismo determinístico de Everett, só para citar alguns exemplos. O que se vê com essas interpretações é que, muitas das vezes, o antirrealismo sustentado pelas interpretações ortodoxas sofre de problemas que aguçam a percepção de que há algo de errado com a mecânica quântica. O que pretende o presente capítulo é justamente demonstrar que a ortodoxia liderada por Bohr não é uma “verdade de fé” e que interpretações
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outras apresentam bons argumentos para justificar a necessidade da quebra da monocracia da interpretação de Copenhague. Em termos gerais, o que os argumentos demonstram é que, sob o ponto de vista de Copenhague, a mecânica quântica deve ser incompleta, nos dizeres de Einstein.
10.1 O debate Einstein-Bohr sobre os fundamentos da mecânica quântica Dizer que Einstein foi um inimigo da mecânica quântica é um erro, pois ele foi um dos seus fundadores. Entretanto, o realismo de Einstein não coadunava com as incertezas e com o antirrealismo da mecânica quântica e, justamente em virtude de seu conjunto de crenças clássicas, Einstein digladiou algumas vezes na arena da física quântica e Bohr foi um dos seus principais adversários intelectuais. Vimos que a interpretação da complementaridade proposta por Bohr defende que o ato da medição influencia um sistema quântico que o faz adotar características que são observadas a posteriori. Por exemplo, a manifestação da luz, ou como onda ou como partícula, depende do que o experimentalista faz que ela seja. Enquanto não se manifesta como uma coisa, ou como outra, é como que se ela permanecesse numa espécie de limbo. Até serem observados, os sistemas quânticos permanecem como que em estado de sobreposição, isto é, num misto de todos os estados possíveis. Veremos que três momentos marcam a história dos debates entre Einstein e Bohr a respeito das verdades da mecânica quântica: o 5º Congresso de Física do Instituto Solvay em 1927; o 6º Congresso de Física do Instituto Solvay em 1930; e o estudo publicado em 1935 que ficou conhecido como paradoxo EinsteinPodolsky-Rosen (EPR). O 5º Congresso de Física do Instituto Solvay, realizado em 1927 em Bruxelas, reuniu os maiores nomes da física da época. Só na foto oficial do evento constava 19 Prêmios Nobel (conquistados antes e depois do congresso). O 5º Congresso de Solvay era dedicado ao tema “Elétrons e Fótons” e foi marcado pelos grandes nomes que debateram sobre o status da mecânica quântica, bem como pelo embate de Einstein contra a ortodoxia crescente liderada por Bohr e corporificada na interpretação de Copenhague, cujos fundamentos se davam na concepção de complementaridade desenvolvida pelo próprio Bohr.
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Segundo Brown (1981, p. 60), “antes de 1927, Einstein devotou energia considerável a uma tentativa de reconciliar as condições quânticas com a descrição causal da teoria dos campos, ou seja, com a utilização de equações diferenciais para as equações de movimento”. A tentativa falhou, mas não o desejo de Einstein em basear a teoria quântica em uma linguagem teórica causal de campo. Em abril de 1927, ele recebeu de Bohr uma carta contendo uma cópia da análise das relações de incerteza de Heisenberg. Como vimos, o princípio de incerteza proibia que uma partícula tivesse medidos, ao mesmo tempo, os valores exatos de posição e velocidade. Da mesma forma, o princípio de complementaridade de Bohr, fundamentado na concepção de incerteza, impedia que um fenômeno ondulatório endossasse a afirmação de que o quantum detectado seguiria uma trajetória bem definida ao passar por uma fenda bem determinada e que “os limites operacionais impostos pelas relações asseguram a consciência da dualidade, pois ‘os aspectos diferentes do problema nunca se manifestam simultaneamente’” (BROWN, 1981, 60). Ora, é um dos dois temas essenciais da “oposição” de Einstein que esses “aspectos diferentes do problema”, ou seja, as considerações espaço-temporais e causais, não devem ser encarados na M.Q.56 como necessariamente incompatíveis entre si, segundo alegava Bohr [...]. Se Bohr tivesse razão, o programa da teoria causal seria fútil. A chamada tentativa de Einstein de “desacreditar” a nova mecânica a partir de 1927 era primordialmente motivada por essa consideração central (BROWN, 1981, 60).
Vê-se que o tema clássico da causalidade e das relações espaço-temporais eram fortes em Einstein e que a incerteza quântica era um incômodo permanente, posto que “Deus não joga dados” (... ob der liebe Gott würfelt). E foi justamente para negar essa noção que Einstein apresentou uma experiência de pensamento como um desafio à incerteza e à complementaridade. Voltemos ao exemplo do experimento das fendas:
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Fonte: aminoapps.com/c/tudo-sobre-ciencia Acesso em: 24 ago. 2020
Aqui vimos que uma entidade quântica (um fóton, por exemplo) seguiu a sua trajetória e foi detectada como um ponto na posição d. Atrás da tela detectora F temos um padrão de interferência formado pelo acúmulo de milhares desses pontos. A questão que fica é: por qual fenda teria passado a partícula? Bohr afirmava que esta pergunta não tinha resposta. Neste fenômeno ondulatório (ou seja, que exibe franjas de interferência), não faria sentido atribuir trajetória ao quantum detectado. Não se trata de uma questão de ignorância: não é que o quantum passa por uma das fendas e nós nunca saberemos por qual fenda ele passou. É mais do que isso! Na propagação, o quantum não se comporta como partícula! Ele passa por ambas as fendas! (PESSOA JR., 2007-11, p. 34).
Além disso, em uma experiência na qual em cada momento uma e somente uma das fendas b e c está aberta, sabe-se que as franjas de interferência não são obtidas em F. A conclusão óbvia disso é que, se as partículas possuíssem trajetórias definidas que atravessassem uma só fenda, então, o comportamento da partícula ao atravessar a fenda em questão pareceria depender do fato de a outra fenda estar aberta ou fechada! Bohr chamaria essa conclusão “paradoxal” e a evitou por meio da tese de complementaridade57. Mas Einstein não estava 57
Complementaridade, conforme vimos, por meio da tese de que duas quantidades conjugadas são complementares entre si no sentido de que ambas são mutuamente exclusivas, uma vez que a determinação mais precisa do valor de uma delas resulta em maior incerteza com respeito à
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satisfeito com essa posição e, por mais “paradoxal” que fossem as implicações físicas, quis mostrar a possibilidade da abordagem. Em um experimento de pensamento simples, sugeriu que S2 fosse desconectado do suporte rígido para lhe permitir movimento como resultado da colisão da partícula com as fendas. Para as partículas que são registradas por F em pontos não remotos do eixo de simetria do arranjo, um ricocheteio “para cima” por parte de S2 indica que a partícula veio de b e um ricocheteio “para baixo” por parte de S2 indica que a partícula veio de c. Dessa forma, a medição não provocaria nenhum distúrbio na partícula, mas nos daria a informação necessária para determinar por qual fenda ela passou. A interpretação de complementaridade estaria refutada! Geralmente Einstein vinha ao café da manhã no hotel, onde estavam os participantes do congresso, com as suas objeções; no jantar, Bohr comunicava sua resposta. “O pobre Bohr não deve ter prestado muita atenção às secções oficiais durante o dia” (BROWN,1981, p. 61). Em termos simples, Bohr considera S2, apesar do seu tamanho macroscópico, como um objeto quântico, sujeito também às relações de incerteza. A chave de sua resposta era que o anteparo (onde ficam as fendas) deveria estar sujeito ao princípio de incerteza. Se este anteparo fosse suspenso em molas, de forma a que se pudesse medir sua velocidade (para cima ou para baixo) após a passagem do quantum, então, pelo princípio de incerteza, sua posição não seria bem determinada (o princípio de incerteza diz que se a velocidade é bem definida e exata, a posição terá que ser mal definida; ou vice-versa). Ou seja, não se poderia controlar com exatidão a posição das fendas. Mesmo que insistíssemos que um padrão de interferência se formaria, tal padrão se deslocaria (para cima ou para baixo) a cada novo quantum (pois, segundo o princípio da incerteza aplicado ao anteparo, a posição das fendas seria diferente a cada novo quantum). Assim, é como se esses padrões de interferência ficassem tremidos, borrando o resultado final que é visível na tela, após milhares de quanta passarem pelo sistema. quantidade complementar. Na questão da radiação, os aspectos ondulatórios e corpusculares, por exemplo, não são contraditórios e sim complementares. A definição pelo aspecto onda ou partícula dependerá do tipo de experimento levado a cabo pelo observador: se ele optar pela experiência da dupla fenda, evidenciará a natureza ondulatória, entretanto, se a experiência for a do efeito fotoelétrico, a natureza se evidenciará por corpuscular. Para sistemas existentes na escala atômica, não existe um valor predeterminado para as grandezas físicas, são as medições que determinam o que deve aparecer durante eventos de observação, este ou aquele aspecto complementar da realidade.
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Segundo os cálculos relativamente simples de Bohr, a incerteza na posição das fendas seria suficiente para borrar completamente o padrão de interferência. Ou seja, mesmo esta ideia de Einstein, de medir o momento (ou velocidade) do anteparo após a detecção do quantum, acabaria eliminando as franjas de interferência. Saberíamos as trajetórias, mas perderíamos as franjas ondulatórias. Exatamente como requerido pelo princípio de complementaridade do dinamarquês (PESSOA JR., 2007-11, p. 35).
Dessa forma, vê-se que as relações de incerteza fazem parte integral da “conspiração quântica” –, pois, para obter as franjas, a medida de localização não pode ser executada – e reforçam a complementaridade, dando vitória a Bohr nesse debate, o que contribuiu muito para a aceitação da interpretação de Copenhague. O debate Einstein-Bohr ganhou outras proporções no 6º Congresso de Física do Instituto Solvay em 1930. Mais uma vez, Einstein e os representantes da linha de Copenhague se envolveram em discussões sobre os fundamentos da mecânica quântica. Dessa vez, a discussão abrangeu o princípio da incerteza para energia e massa, “em particular, a relação geral entre a energia e a massa, expressa em sua famosa fórmula E = mc2, deveria permitir, através de uma simples pesagem, medir a energia total de qualquer sistema e, com isso, em princípio, controlar a energia transferida para ele em sua interação com um objeto atômico” (BOHR, 1995, p. 65-66). Para a sua tese, Einstein usou da experiência do fóton na caixa. Trata-se de uma experiência de pensamento com a qual Einstein tentou, através da consideração relativística da relação entre a energia e a massa, mostrar como preparar um conjunto de fótons cuja energia e tempo de chegada são simultaneamente fixados. Com um arranjo adequado para esse fim, Einstein propôs o dispositivo [...], composto de uma caixa com uma abertura lateral, que poderia ser aberta ou fechada por um obturador acionado por um relógio no interior da caixa. Se, no começo, a caixa contivesse uma certa quantidade de radiação e o relógio fosse programado para abrir o obturador por um intervalo curtíssimo num instante escolhido, seria possível conseguir que um único fóton fosse liberado pela abertura num instante conhecido com toda a precisão que se desejasse. Além disso, aparentemente também seria
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possível, pesando-se a caixa inteira antes e depois desse evento, medir a energia do fóton com toda a precisão desejada, o que definitivamente entraria em contradição com a indeterminação recíproca do tempo e das quantidades de energia na mecânica quântica (BOHR, 1995, p. 66).
Se o experimento de Einstein for consistente, isso indica que a relação de energia e tempo de Heisenberg é inconsistente! Einstein não esperava, entretanto, que Bohr conseguisse uma resposta para a sua provocação e, dessa vez, utilizando a Teoria da Relatividade Geral do próprio Einstein. Segundo Bohr, “a teoria da relatividade geral de Einstein indica que existe uma indeterminação no instante da produção do fóton no arranjo, que é diretamente ligada à indeterminação na medida de energia. E o produto das indeterminações é consistente com a relação de Heisenberg!” (BROWN,1981, p. 68). Dessa forma, o debate parecia de vez encerrado. Entretanto, a inquietude que sempre acompanhou Einstein quando dos seus enfrentamentos com problemas inerentes à explicação da realidade, fá-lo-ia dar mais uma investida, dessa vez, com a apresentação de um artigo publicado em 1935, juntamente com os seus colegas Boris Podolsky e Nathan Rosen. Com o título A descrição da realidade física fornecida pela mecânica quântica pode ser considerada completa?, o artigo de Einstein, Podolsky e Rosen (conhecido como EPR), publicado na Physical Review (1935), tornou-se bombástico por colocar em dúvida o postulado ortodoxo segundo o qual “quando se conhece a quantidade de movimento de uma partícula, sua coordenada não tem realidade física” (EINSTEIN; PODOLSKY; ROSEN, 1981, p. 92). Segundo Leon Rosenfeld, amigo de Bohr, “este ataque caiu sobre nós como um raio dos céus” (ROSENFELD, 1967 apud WHEELER; ZUREK, 1983, p. 142). Como se sabe, a atitude realista de Einstein, que acreditava na realidade física objetiva do “mundo externo”, e, portanto, na realidade objetiva dos sistemas físicos, independente dos eventos de observação, não permitia a sua aceitação passiva das incertezas da mecânica quântica que, na sua concepção, representavam sintomas de que algo estava errado com a teoria e com a sua interpretação. Segundo Herbert (1989, p. 239-240), Einstein argumentava que “a crença num mundo externo independente da percepção subjetiva é a base de todas as ciências naturais”. Por outro lado, Bohr “respondia comparando Einstein aos críticos da sua própria teoria da relatividade, e ressaltava
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que, graças a Einstein, os físicos tinham conseguido perceber que o tempo e o espaço não são absolutos, e sim relativos, dependentes do estado de movimento do observador” (HERBERT, 1989, p. 241). Cabe-nos ressaltar, entretanto, que, na visão de Einstein, o problema não era com a correção da teoria58, pois está resolvido que o formalismo da mecânica quântica é correto e que as afirmações subjacentes a esse formalismo são coerentes. O que incomodava a Einstein – e isso temos visto desde o debate de 1927 – era a questão da completude da teoria quântica, objeto do questionamento de EPR no artigo em questão. Einstein, Podolsky e Rosen não contestam a competência da teoria quântica para descrever os fenômenos; eles afirmam, contudo, terem demonstrado a existência de certos “elementos de realidade” (nas palavras de Einstein), partes do mundo não observáveis diretamente, que a teoria quântica simplesmente omite (HERBERT, 1989, p. 251).
Para os autores, a condição de completude de uma teoria pressupõe que “todo elemento da realidade física precisa ter um correspondente na teoria física” (EINSTEIN; PODOLSKY; ROSEN, 1981, p. 90). Isto é, deve haver uma correspondência da teoria física com a realidade objetiva para que se possa construir uma imagem completa da realidade em questão. E o critério de realidade afirma que “se, sem de modo algum perturbar um sistema, pudermos prever com certeza (ou seja, com probabilidade igual à unidade) o valor de uma quantidade física, então existe um elemento de realidade física correspondente a essa quantidade física” (EINSTEIN; PODOLSKY; ROSEN, 1981, p. 91). A condição é necessária, mas não é suficiente para determinar a completude de uma teoria física, visto que, por si só, não garante que a teoria seja de fato completa, por exemplo, “dois elementos distintos da realidade poderiam ter a mesma contrapartida em uma teoria física, de forma que a teoria não seria completa, apesar de satisfazer C59. A condição C também permite que a teoria postule entidades inexistentes” (PESSOA JR., 2019, p. 206). A interpretação de Copenhague da mecânica quântica, portanto, seria uma interpretação
58 “A correção de uma teoria é julgada pelo grau de concordância entre suas conclusões e a experiência humana” (EINSTEIN; PODOLSKY; ROSEN, 1891, p. 90). 59 C = completeza, nas palavras de Pessoa Jr.
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correta em seu formalismo, mas incompleta. É isso que o paradoxo EPR tenta demonstrar. O argumento EPR baseia-se na tentativa de negar a completude da mecânica quântica através da noção de sistemas correlacionados. Vimos que na teoria quântica a sobreposição de estados quânticos era tida como real: até que um sistema quântico fosse medido, ele permanecia em estado de sobreposição de todos os estados. Isso aponta para a exigência da correlação entre o sistema quântico e o observador, uma vez que a existência do sistema quântico (a sua saída do limbo) depende do observador que procede ao ato da medição. Na medida em que o observador mede uma partícula, as probabilidades da função de onda de ambas partículas colapsam para consolidar o resultado. A função de onda da segunda partícula colapsa exatamente no mesmo momento que a da outra, não importa quão distantes as partículas estejam. Era esse tipo de concepção que incomodava o realismo de Einstein, que se queixava com asserções do tipo: “Não posso imaginar que um camundongo possa alterar drasticamente o universo, meramente olhando para ele” (EINSTEIN, [s.d.], apud HERBERT, 1989, p. 239). Como se concebe na mecânica quântica, esse colapso da função de onda se dá de modo instantâneo, à distância e de forma não-local. Isso sugere que a informação do que foi medido em A foi transmitida instantaneamente para B. A questão que fica, portanto, é: seria possível esse tipo de ação à distância, que faz com que duas partículas interajam de forma instantânea e não-local, mesmo estando essas partículas a milhares de quilômetros separadas umas das outras? Caso tal “emaranhamento”, na linguagem de Schrödinger, seja possível, cai por terra a noção de que nenhum sinal que carrega informação pode ser enviado de forma mais rápida que a velocidade da luz (300 mil km/s). EPR introduziram uma hipótese de localidade na qual seria impossível que a medição de uma partícula em um ponto A tivesse reflexos instantâneos sobre outra partícula, em outro ponto B, com velocidade maior do que a velocidade da luz. “[...] Como no momento da medição os dois sistemas não mais estão interagindo, não pode ocorrer nenhuma mudança real no segundo sistema como decorrência de qualquer coisa que se faça no primeiro” (EINSTEIN; PODOLSKY; ROSEN, 1981, p. 94). Isto é, caso decidíssemos medir a posição de A, descobriríamos que B tem posição bem definida e se medíssemos a velocidade de A, descobriríamos que B também tem velocidade bem definida.
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Como as partículas estão separadas por grande distância, a medição em A não pode influenciar os valores da posição e da velocidade da partícula B. Ou seja, B deveria ter, em princípio, a posição e a velocidade bem definidas ao mesmo tempo. “As duas partículas no experimento imaginário já devem saber em quais estados estão quando elas se separam, afirmou. Elas carregam esse conhecimento com elas, em vez de mudar de estado simultaneamente em distâncias remotas” (BAKER, 2015, p. 78). Dessa forma, EPR instituiu uma situação paradoxal da existência de duas noções contraditórias: localidade vs. não-localidade – a primeira era admitida pela maioria dos físicos da época e a segunda estava então incrustada no formalismo da mecânica quântica. Com o paradoxo instituído, não foi difícil para EPR apresentar argumentos que concluíssem que, em virtude do que fora demonstrado, a mecânica quântica é incompleta. Repassemos o argumento com um pouco mais de detalhe. Na Terra, posso medir um observável A1, e com isso o estado da partícula nº 2 se reduziria a um auto-estado de A2. Mas na Terra eu também poderia medir um observável B1, incompatível com A1 (ou seja, cujos operadores associados não comutam), e assim na Lua o estado da partícula nº 2 se reduziria a um auto-estado de B2 (que é incompatível com A2). Agora, veja bem: pela hipótese da localidade, nada que eu faça na Terra pode afetar instantaneamente (ou a uma velocidade maior do que a da luz) a realidade na Lua. Mas como eu posso medir tanto A1 quanto B1, na Terra, então tanto um auto-estado de A2 quanto um de B2 têm realidade simultânea na Lua, ao contrário do que diz a Mecânica Quântica (pois A2 e B2 são incompatíveis). Assim, esta não daria conta de todos os detalhes da realidade, ela seria incompleta (PESSOA JR., 2019, p. 205-206).
A conclusão de EPR enuncia um argumento na forma disjuntiva que é de fácil análise60. Trata-se, na verdade, de uma “disjunção exclusiva”, envolvida nas seguintes premissas dos autores: “Anteriormente demonstramos que ou (1) a descrição quântica da realidade, fornecida pela função de onda, não é completa, ou (2) quando os operadores correspondentes a duas quantidades 60 Contrariando o montante de análises lógicas, utilizando-se de análises clássicas (prova de dedução natural) e não-clássicas (lógica modal), que se têm apresentado como “deciframento” do argumento EPR que, muitas das vezes, pelo grau de complexidade no entendimento, é preferível ler o próprio artigo dos autores originais (vide, por exemplo, MCGRATH, 1978).
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físicas não comutam, essas quantidades não podem ter realidades simultâneas” (EINSTEIN; PODOLSKY; ROSEN, 1981, p. 95, grifos nossos). A tabela de verdade de uma disjunção exclusiva envolvendo as premissas (1) e (2) da conclusão de EPR, na lógica proposicional, é a seguinte: 1
2
1∨2
V
V
F
F
V
V
V
F
V
F
F
F
Isso significa que a) Por se tratar de uma disjunção exclusiva, é impossível que (1) e (2) sejam verdadeiras (V) ao mesmo tempo, daí o resultado da operação de disjunção será falso (vide a primeira linha da tabela). Isso quer dizer que, se é verdade (V) que “(1) a descrição quântica da realidade, fornecida pela função de onda, não é completa”, então, a proposição “(2) quando os operadores correspondentes a duas quantidades físicas não comutam, essas quantidades não podem ter realidades simultâneas” não pode ser verdadeira; b) As proposições são mutuamente excludentes. Isso significa que, por serem exclusivas, afirmar uma delas pressupõe negar a outra. Dessa forma, se é verdade (V) que “(1) a descrição quântica da realidade, fornecida pela função de onda, não é completa”, então, é falso (F) que “(2) quando os operadores correspondentes a duas quantidades físicas não comutam, essas quantidades não podem ter realidades simultâneas” ou vice-versa – ou uma coisa ou a outra, mas não as duas –, isso fica evidenciado na segunda e terceira linhas da tabela; c) Por fim, a negação de (1) implica a negação de (2), o que força EPR a afirmar que (1) é verdadeira (V): Partindo da suposição de que a função de onda fornece uma descrição completa da realidade física, chegamos à conclusão de que duas quantidades físicas com operadores não-comutativos podem ter realidades
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simultâneas. Dessa maneira, a negação de (1) implica a negação da única outra alternativa, (2). Somos assim forçados a concluir que a descrição quântica da realidade física através das funções de onda não é completa (EINSTEIN; PODOLSKY; ROSEN, 1981, p. 95-96).
Trata-se de uma formulação lógica interessante e que acaba por revelar o incômodo de Einstein com a inteligibilidade desse tipo de emaranhamento quântico, isto é, com pressuposto tácito de que a medida de uma das partículas pode causar um efeito instantâneo no resultado da outra. Para ele, enquanto um realista convicto, era difícil imaginar o universo envolto em uma teia de conexões quânticas, com números desconhecidos de partículas comunicando com suas gêmeas distantes. Ainda assim, para muitos, EPR teriam errado: segundo alguns, em virtude da defesa do princípio de localidade; de acordo com outros, em razão da defesa que fizeram da posição realista da existência da realidade independente da medição. Depois que o artigo foi publicado, ele [Einstein] recebeu várias cartas de físicos, “dizendo-lhe ansiosamente onde o argumento estava errado. O que divertia Einstein foi que, embora todos os cientistas tivessem certeza de que o argumento estava errado, cada um dava razões diferentes para a sua afirmação!” ( JAMMER, 1974, p. 187).
Apesar dos comentários, críticas e refutações ao paradoxo EPR, nenhuma resposta foi dada logo depois da publicação do trabalho. Todos esperavam uma manifestação do pai da interpretação da Copenhague e isso ocorreu cinco meses depois do artigo EPR, quando Niels Bohr publica a sua resposta ao paradoxo, com o mesmo título do artigo EPR, e na mesma revista onde este foi publicado. Boa parte da resposta de Bohr é uma reiteração daquilo que ele já tinha apresentado como resposta à provocação de Einstein em 1927 – “A linha de argumentação foi, em essência, idêntica à exposta nas páginas anteriores [...]” (BOHR, 1995, p. 73). Assim, não houve surpresas, visto que a estratégia de Bohr era a de questionar o critério de realidade de EPR. Bohr argumenta, portanto, que o critério de realidade de EPR contém uma ambiguidade que o torna inaplicável no caso considerado, visto que uma influência física a partir da medição de uma partícula até a outra partícula é excluída. Segundo o dinamarquês, é impossível que uma entidade quântica tenha uma propriedade
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sem ser medida, ou seja, tal propriedade não existe, não está oculta à espera de um aparelho de medida ou de qualquer interferência do observador. Desse modo, “do nosso ponto de vista, vemos agora que o fraseado do critério de realidade física proposto por Einstein, Podolsky e Rosen, mencionado acima, contém uma ambiguidade no que tange o significado da expressão ‘sem de modo algum perturbar um sistema’” (BOHR, 1981, p. 103). Vimos que a expressão “sem de modo algum perturbar um sistema” havia sido utilizada por EPR (1981, p. 91). Bohr considerou, entretanto, que a escolha de medir A ou B constituía uma influência nas próprias condições que definem o “fenômeno”, já que arranjos experimentais diferentes teriam que ser usados (PESSOA JR., 2019). Algo que já havia sido antecipado por EPR quando afirmam que “de fato, nossa conclusão não seria alcançada se insistíssemos em que duas ou mais quantidades físicas só poderiam ser encaradas como elementos simultâneos de realidade quando pudessem ser simultaneamente medidas ou previstas” (EINSTEIN; PODOLSKY; ROSEN, 1981, p. 96). Segundo Pessoa Jr. (2019), Bohr não teria, de fato, rejeitado o “elemento de realidade” de EPR, mas sim a própria noção de localidade por meio de uma noção de totalidade do fenômeno. Entretanto, ao descartar um “distúrbio mecânico”, Bohr parece aceitar o princípio de localidade LOC, mas logo em seguida ele afirma que a própria “definição” do sistema composto de duas partículas depende da escolha feita pelo experimentador com relação a uma das partículas, o que é uma maneira de reafirmar o caráter não-local da Mecânica Quântica (PESSOA JR., 2019, p. 212).
Certo é que, conforme disse o próprio Bohr, “os debates com Einstein, tema deste artigo, estenderam-se por muitos anos, que assistiram a um grande progresso no campo da física atômica. Quer nossos encontros tenham sido de longa ou curta duração, eles sempre deixaram em minha mente uma impressão profunda e duradoura” (BOHR, 1995, p. 82). O impasse, entretanto, foi quebrado pelos esforços físicos teóricos de John Bell em 1964, mas, para entendermos melhor seus resultados, analisemos primeiramente as contribuições de David Bohm para esse contexto.
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10.2 David Bohm: realismo e não-localidade na mecânica quântica David Bohm (1917-1992) nasceu na Pensilvânia, EUA. Obteve seu título de doutorado em física teórica, em 1943, na Universidade da Califórnia, em Berkeley, sob a orientação de Robert Oppenheimer. Como ele partilhava convicções marxistas e, no início dos anos 1940, havia se ligado ao Partido Comunista norte-americano, foi vítima do Macarthismo, que o forçou a sair dos EUA. Passou quase quatro anos em São Paulo – onde trabalhou na USP – e em Haifa, Israel, mudando-se depois para o Reino Unido, em 1957, onde trabalhou na Universidade de Bristol e no Birbeck College de Londres. No fim da vida, Bohm também trabalhou em cognição e em assuntos sociais, além de física quântica. Em 1951, Bohm publicou o livro Quantum Theory, fruto de seus cursos dessa disciplina na Universidade de Princeton, onde apresentou uma abordagem do paradoxo EPR. Segundo Bohm, EPR levantaram uma crítica séria à validade da interpretação, geralmente aceita na teoria quântica, mas que De fato, as críticas foram injustificadas e baseadas em suposições relativas à natureza da matéria que contradizem implicitamente a teoria quântica desde o início. Não obstante, essas suposições implícitas parecem, à primeira vista, tão naturais e inevitáveis que um estudo cuidadoso dos pontos levantados pelos autores oferece uma visão profunda e penetrante da diferença entre os conceitos clássicos e quânticos da natureza da matéria (BOHM, 1951, p. 611).
Bohm procura apresentar as razões pelas quais tais críticas seriam injustificadas de um ponto de vista interessante, visto da diferente análise que ele faz do mesmo problema nos artigos publicados em 1952 sobre a interpretação causal. Na análise de 1951, Bohm identifica que EPR se comprometeram em definir os critérios para a avaliação de uma teoria física, utilizando-se de dois explícitos, mas sustentados por duas suposições implícitas, que são parte integrante do tratamento dado pelos autores, mas que nunca foram explicitamente declaradas. E quais seriam uns e outros? Quanto aos critérios explícitos, eis aqueles já enunciados por EPR: “(1) Todo elemento de realidade física deve ter uma contrapartida em uma teoria física completa” (BOHM, 1951, p. 612) e “(2) Se, sem de modo algum perturbar
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o sistema, pudermos prever com certeza (i.e., com probabilidade igual à unidade) o valor de uma quantidade física, então existe um elemento de realidade correspondente a esta quantidade física” (BOHM, 1951, p. 612). Conforme vimos, o primeiro desses critérios diz respeito ao critério de completude de EPR e o segundo diz respeito ao critério utilizado para reconhecer um elemento de realidade. Quanto às duas suposições implícitas, Bohm assim as enuncia: (3) O mundo pode ser corretamente analisado em termos de “elementos de realidade” existentes distinta e separadamente. (4) Qualquer um desses elementos deve ser uma contrapartida de uma quantidade matemática definida com precisão, presente em uma teoria completa. (BOHM, 1951, p. 612)
Aqui a suposição (3) trata da separabilidade do universo em termos de elementos de realidade distintos e independentes. Trata-se, portanto, de uma tese realista mais forte do critério de elemento de realidade. E a suposição (4) exige que a contrapartida na condição de completude seja precisa. Mas Bohm sabia que esses critérios não deveriam ser aplicados em um nível quântico de precisão. Considerando que o objetivo de EPR era mostrar que a interpretação corrente da teoria quântica era insuficiente e que a função de onda não continha uma descrição completa da realidade física, Bohm menciona que se seu argumento estivesse correto, haveria a necessidade de se buscar uma teoria mais completa, por meio de variáveis ocultas. “Se a disputa deles pudesse ser provada, seria levado a procurar uma teoria mais completa, talvez contendo algo como variáveis ocultas, em termos das quais a presente teoria quântica seria um caso limitante” (BOHM, 1951, p. 612-613). Para explorar o tema, Bohm começa considerando um observável arbitrário A com um conjunto de autoestado, Ψa, que diz que o sistema está em um estado quântico no qual o observável A tem o valor definido a. Nessa situação, EPR diriam que existe no sistema um elemento de realidade correspondente ao observável A. Mas Bohm considera também um outro observável B, que não comuta com A, de modo que não exista função de onda para a qual A e B tenham valores definidos simultaneamente. Adotando a suposição implícita (4) de que todo elemento da realidade deve ser uma contrapartida de uma
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quantidade matemática definida com precisão que aparece em uma teoria completa, então a suposição usual de que a função de onda fornece uma descrição completa da realidade leva à conclusão de que A e B não podem existir simultaneamente. Isso decorre do fato de que a teoria das ondas, supostamente completa, não contém elementos matemáticos precisamente definidos, correspondentes à existência simultânea de A e B. A consequência é que quando B é medido e se obtém um valor definido, o elemento correspondente ao observável A é destruído (BOHM, 1951). Para Bohm, é natural supor que essa destruição é devida aos quanta transferidos do aparelho de medição para o sistema. Dois temas estão envolvidos, portanto, nas considerações supramencionadas de Bohm, a saber, variáveis ocultas e não-localidade que, por consequência, acabam por envolverem-se com o tema do realismo – pois nessa teoria de variáveis ocultas a propriedade a ser medida é considerada real e está presente no objeto – e do determinismo – uma vez que tal propriedade pode ser determinada com certeza, isto é, todos os eventos são determinados por causas. Vimos que, em 1923, de Broglie, em sua tese de doutorado, havia defendido a ideia de que toda matéria consiste de partículas e onda, oscilando numa frequência bem determinada – ideia esta que lhe daria o prêmio Nobel. Em 1927, no Congresso de Solvay, na Bélgica, de Broglie apresentou uma teoria de variáveis ocultas que mantinha o determinismo e uma interpretação realista na qual seria possível a “visualização” dos átomos e elétrons na descrição da realidade por trás das observações. Tal realidade existiria independentemente do observador, a cada instante e não somente no instante da observação. Sua concepção, além de manter a noção de partícula e onda, ainda concebia a onda contínua que guiava a partícula através do espaço. Tratava-se da onda piloto. Contudo, nesse mesmo Congresso, Wolfgang Pauli (1900-1958) impôs uma série de objeções à teoria realista de de Broglie, o que acabou por fazê-lo desistir de sua tese dualista realista. Dessa forma, acabou vigorando a interpretação de complementaridade de Bohr e a concepção de de Broglie foi engavetada por cerca de um quarto de século. Em 1952, em um artigo intitulado A Suggested Interpretation of the Quantum Theory in Terms of “Hidden Variables”, Bohm ressuscitou a teoria das variáveis ocultas e redescobriu, sem querer – pois ele não tinha conhecimento desses trabalhos –, a ideia não publicada de de Broglie sobre a “onda guia”. O artigo foi dividido em duas partes, sendo que a primeira delas correspondia
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praticamente à teoria de de Broglie. Somente ao enviar a versão preliminar para Pauli é que Bohm ficou sabendo das críticas que foram dirigidas por ele ao trabalho de de Broglie em 1927. A questão da prioridade, entretanto, estava instaurada, pois de Broglie, em comunicado à Academia de Ciências, fez lembrar dos seus antigos trabalhos. Em carta a Pauli, Bohm, segundo Freire Jr. (1999, p. 51), trata da questão da seguinte maneira: Se um homem encontra um diamante, e em seguida abandona-o, porque ele concluiu, erroneamente, que se tratava de uma pedra sem valor, e se esta mesma pedra é encontrada mais tarde por um outro homem que reconhece seu verdadeiro valor, você não diria que a pedra pertence ao segundo homem? Eu penso que o mesmo raciocínio se aplica à interpretação da física quântica.
Mas, a disputa não se fez presente porque, quando os artigos foram publicados, Bohm reconheceu a anterioridade de de Broglie. Tanto as objeções de Pauli à teoria de de Broglie quanto as objeções de von Neumann à existência de objetos comuns e, portanto, ao realismo e ao determinismo, foram resolvidas por Bohm na sua descrição de variáveis ocultas do objeto quântico (nesse caso, a posição e a velocidade das partículas), bem como na descrição das variáveis ocultas do próprio aparelho de medição. O grande avanço de Bohm em relação a de Broglie foi o de ter também levado em consideração as variáveis ocultas do aparelho de medição. Esta consideração das variáveis ocultas no contexto experimental (ou seja, no aparelho ou no ambiente), conhecida como “contextualismo”, permitiu a Bohm escapar da prova de insolubilidade de von Neumann [...]. Bohm deixou claro também o caráter não-local de sua teoria [...] (PESSOA JR., 2019, p. 236).
A teoria de Bohm, sendo determinista, preserva a causa e o efeito; nela a partícula está viajando ao longo de uma trajetória como na física clássica. Assim, ela elimina a necessidade do colapso de função de onda, contudo, não evita a ação à distância, não contornando, dessa forma, o paradoxo EPR. Se se muda um detector, o campo de onda da partícula, instantaneamente, muda também. Em virtude disso, a teoria é considerada não-local.
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O mérito de Bohm foi o de demonstrar que era possível pensar em uma versão da mecânica quântica envolvendo variáveis ocultas. O próximo passo seria testá-la. Essa incumbência ficou a cargo de John Bell.
10.3 As desigualdades de John Bell John Stewart Bell (1928-1990), físico de partícula, trabalhou no Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire (CERN)61. Quando de licença-prêmio, em 1964, resolveu investigar a questão da realidade quântica, algo pelo qual era aficionado desde os tempos de universidade, época em que iniciou suas reflexões acerca dos fundamentos da mecânica quântica estudando as teorias de von Neumann, de Broglie, EPR etc. Começando pela prova de von Neumann, que previa que, se a mecânica quântica fosse correta, não se poderia conceber a existência de objetos comuns que combinam entre si de “maneira razoável” – o que negava o realismo e o determinismo –, Bell concluiu que, ainda assim, essa prova não excluía os objetos que podem alterar os seus atributos reagindo ao ambiente que os cerca, como no caso das variáveis ocultas pertencentes ao aparelho de medição. Era justamente essa brecha deixada por von Neumann que permitia o desenvolvimento de modelos realistas como os de de Broglie (que a essa altura havia tido a sua concepção determinista pisoteada pelas objeções de Pauli e pelo próprio teorema de von Neumann, o que fez com que ele desistisse dessa linha de pesquisa) e David Bohm, que foram construídos com base em objetos comuns. Durante a preparação do artigo sobre a prova de von Neumann, Bell pôs-se a pensar uma prova que pudesse prever a impossibilidade de qualquer realidade que tivesse certas características físicas. Criou, portanto, uma prova com a qual rejeitou todos os modelos de realidade com a propriedade de localidade (HERBERT, 1989). Conforme vimos, a localidade se baseia na noção de que nenhuma informação pode ser transmitida imediatamente e que os efeitos da natureza se propagam à velocidade da luz, portanto, a uma velocidade finita. EPR já haviam se debruçado sobre o problema da localidade e, em virtude do experimento de pensamento, chegaram à conclusão de que a teoria quântica seria incompleta, visto que se demonstrava funcionar de maneira “não-local”, 61 Onde fica o grande colisor de Hádrons, o LHC, na fronteira franco-suíça, perto de Genebra, que conta com financiamento mundial para pesquisas em física de altas energias.
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cujo contraditório foi demonstrado pelos autores. Por outro lado, David Bohm, em 1952, havia desenvolvido uma versão da teoria quântica na qual uma realidade poderia se propagar instantaneamente, isto é, desenvolveu uma versão em que a realidade é não-local. Conforme Bohm sublinhara, sua teoria era contextual e envolvia também variáveis ocultas que eram pertencentes ao aparelho de medição. Era também realista, pois tratava de uma “realidade” física, apesar de possuir variáveis ocultas que não podiam ser observadas diretamente. Diante desse conjunto de informações que lhe precedia, Bell fez a si as seguintes perguntas: será que a não-localidade da teoria de variáveis ocultas seria uma característica de qualquer teoria quântica? E se as coisas existem sem serem observadas, terão elas que estabelecer entre si uma ação imediata à distância? A ideia de Bell era a de que toda teoria física realista, que queira prever tudo o que a física prevê, tem que ser não-local, como a teoria de Bohm. Essa concepção ficou conhecida como teorema de Bell, que declara que nenhum modelo local pode dar suporte aos fatos quânticos, logo a realidade deve ser necessariamente não-local. Mas qual é o verdadeiro mérito do teorema de Bell? O que o teorema diz é que se as variáveis ocultas e o realismo local fossem verdadeiros, qualquer decisão tomada sobre a medição de uma partícula próxima não afetaria a propriedade de outra distante, o que Bell demonstrou não ocorrer. Segue-se daí que se uma teoria física é realista, então, ela é não-local. E como isso é demonstrado pelo teorema? Em resumo, o que postula o teorema é que Há uma certa grandeza cujo valor, para qualquer teoria quântica realista local, é sempre menor ou igual ao número 2 (trata-se, portanto, de uma desigualdade). Já para a teoria quântica usual este valor pode ser maior que 2. A teoria de Bohm é realista não-local, então o valor pode ser maior que 2. A maioria dos físicos da época interpretava a Teoria Quântica de maneira “não realista”, então, para eles, o valor também poderia ser maior do que 2 (PESSOA JR., 2007-11, p. 37).
E o que isso significa? A dedução de Bell envolve a proporção com que fótons correlacionados emitidos por uma única fonte combinam em polarização ao atingir detectores distantes da fonte original62. Sua inequação (desigualdade) descreve a proporção que se espera na correlação dos fótons sob 62 Para detalhes sobre o experimento, vide Herbert (1989, p. 253-270).
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condições bem definidas. As consequências mais interessantes do teorema aconteceriam se um experimento violasse a desigualdade, isto é, se mostrasse que x é maior que dois (x > 2). Nesse caso, teríamos que abrir mão de uma das duas suposições: a) do realismo (as coisas existem independentemente de serem observadas); b) da localidade (o mundo quântico não admite conexões mais rápidas que a luz). Como a polarização de fótons derivados da experiência de EPR viola a desigualdade de Bell, e como EPR insistia na postura realista, fica demonstrado que a noção de realidade em seu paradoxo é não-local. Como a fase é um atributo quântico que pode ser medido, e que está relacionado à polaridade do campo associado ao fóton, pode-se interpretar o resultado de um experimento baseado no teorema de Bell como uma indicação de que durante a interação entre fótons ocorre um emaranhamento de fases. “Talvez nunca venhamos a saber o que é realmente o embaralhamento de fases, mas o teorema de Bell nos diz que esse embaralhamento não é uma ficção matemática sem substância, e sim uma realidade com a qual se pode contar” (HERBERT, 1989, p. 267). E, se há emaranhamento de fases há ação à distância; se há ação à distância, há a não-localidade, isto é, não existem variáveis ocultas compatíveis com a teoria quântica – o que contraria EPR. Segundo Herbert (1989, p. 253), Bell havia lhe confessado que Já faz muito tempo que sou fascinado pela experiência EPR. Ela contém, ou não, um paradoxo? Impressionaram-me profundamente as restrições de Einstein a respeito da teoria quântica e sua opinião de que ela seria uma teoria incompleta. Por razões diversas, aquele era para mim o momento oportuno para atacar de frente o problema. O resultado foi o inverso do que eu pensara. Mas fiquei maravilhado – numa área onde tudo era indefinido e obscuro, eu encontrara algo sólido e claro.
Bell apresentou seu teorema em 1964 em um artigo intitulado On the Einstein-Podolsky-Rosen paradox. O teorema não teve grande repercussão. Ele havia redigido um outro antes que era fundamental para chegar ao resultado, mas, por erro do editor do periódico, acabou publicado somente em 1966. Foi somente na década de 1970 que experimentos confirmaram que o valor da grandeza mencionada poderia ser maior do que 2, ao contrário do que previam as teorias realistas locais. Em 1972, John Clauser e Stuart Freedman,
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na Universidade de Berkeley, conseguiram por meio de experimento violar as desigualdades de Bell, o que apontou para a não-localidade da realidade – ironicamente, Clauser era localista. Entretanto, o experimento seguiu incompreendido e desconsiderado pela comunidade dos físicos por cerca de uma década. Somente com o aperfeiçoamento dos equipamentos de óptica, dentre eles o laser, foi possível um experimento que se tornou um clássico da mecânica quântica. Em 1982, Alain Aspect, em um experimento feito com pares de fótons emaranhados, conseguiu violar as desigualdades de Bell, demonstrando, com isso, o caráter não-local da natureza: os dados mostraram x > 2. Esse experimento foi parte da tese de doutorado de Aspect, de cuja banca Bell participou. Em 2007, por fim, o grupo do físico austríaco Anton Zeilinger verificou a violação das desigualdades usando fótons separados por 144 km. Esse tipo de experimento acaba por inaugurar a área de informação quântica – que envolve a criptografia quântica – e a busca por computadores quânticos ultravelozes. A informação poderá ser enviada e recebida por meio de fótons emaranhados que, submetidos às desigualdades de Bell, caso seja violada, não haverá possibilidade de a mensagem ter sido escrutinada indevidamente. A questão ontológica a ser respondida, entretanto, é: por que a natureza optou por uma “ação fantasmagórica à distância”?
10.4 O gato de Schrödinger Vimos que a interpretação de Copenhague se inspira na sugestão matemática da forma da função de onda para postular que o ato de medição influencia um sistema quântico que o faz adotar características que serão observadas a posteriori. Enquanto não determinado por uma observação a assumir um único estado, é como se os sistemas quânticos, até serem observados, permanecessem num estado de sobreposição, num misto de todos os estados possíveis. Em contrapartida, o caráter descontínuo da função de onda sugere o colapso do sistema físico, caracterizado pelo posicionamento de parâmetros para que o sistema seja medido em um estado específico. A posição realista de EPR, por outro lado, dizia que o sistema físico está sempre posicionado em um estado físico determinado. Dessa forma, não existe superposição real de estados quânticos, muito menos o colapso do sistema em virtude de uma observação. Consequentemente, EPR concluem que a interpretação da mecânica quântica
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é incompleta, pois deixa evidente que a função de onda não fornece toda a informação disponível sobre o sistema, além de se fazer necessário encontrar variáveis ocultas que carregam a informação não disponível. Segundo Holton (1984, p. 56, grifos nossos), antes da complementaridade, “[...] Bohr formulou uma proposta que veio a ser um meio caminho moderadamente bem-sucedido em direção à reconciliação entre a mecânica clássica e a quântica, na concepção que, a partir de 1918, tornou-se conhecida como o princípio da correspondência”. Esse princípio assevera que a descrição quântica da realidade microscópica deve corresponder à descrição clássica da realidade macroscópica. Contudo, sabemos que a incerteza, a indeterminação, o antirrealismo e a não-localidade fazem parte dos sistemas quânticos, que são regidos por leis particulares, das quais os sistemas clássicos não dão conta – apesar de o formalismo matemático da teoria quântica satisfazer ao princípio da correspondência. Mas o que esperar da adequação da realidade quântica com o princípio da correspondência? Foi no exílio em Oxford, em 1935, na redação de um artigo intitulado The Present Situation in Quantum Mechanics, que Schrödinger tentou responder a essa questão, examinando alguns problemas da mecânica quântica, dentre eles o problema das superposições quânticas de estados de emissão e não emissão. Num experimento de pensamento, seguindo a mesma toada de EPR, Schrödinger coloca em xeque a noção de nuvem de probabilidade de Bohr, questionando a natureza contraintuitiva do colapso de função de onda, bem como a da influência do observador. Apesar do sucesso da interpretação de Copenhague entre muitos físicos, Schrödinger e Einstein nunca embarcaram no “entusiasmo injustificado” de grande parte dos seus colegas. A questão que se colocava, portanto, era: qual seria o estado do sistema macroscópico como um todo ao final de um intervalo de tempo? E para demonstrar que as probabilidades quânticas não fazem sentido na escala macroscópica, Schrödinger escolheu algo que fosse capaz de atrair maior empatia, a saber, um gato. Trata-se da imagem de um gato fechado dentro de uma câmara de aço junto a um “dispositivo diabólico” (diabolical device) que incluía um pouco de uma substância radioativa dentro de um vidro, o cianureto de hidrogênio, que seria quebrado por um martelo, caso um átomo radioativo, que estivesse em uma superposição (1 e 2), decaísse. Se o átomo estivesse em 1, a amplificação levaria o martelo a quebrar o vidro, o que mataria o gato. Se o átomo estivesse
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em 2, a amplificação não afetaria o martelo e o gato viveria tranquilamente. O destino do gato, portanto, estaria atrelado à probabilidade de o átomo decair ou não. O que dava a probabilidade ½ de acionar o detector dentro de um intervalo de tempo. “Se alguém deixar o sistema intocado por uma hora, diríamos que o gato ainda estaria vivo caso durante esse tempo nenhum átomo tivesse decaído” (SCHRÖDINGER, 1980, p. 328).
Fonte: https://revistagalileu.globo.com/Ciencia Acesso: 10 out. 2020
“O primeiro decaimento atômico o teria envenenado”(SCHRÖDINGER, 1980, p. 328). Nesse caso, decaimento atômico pressupõe a descida do martelo e a consequente morte do gato. O triste aparato de Schrödinger deixaria o gato com chance de 50% de estar vivo ou morto quando a caixa fosse aberta depois desse tempo.
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Fonte: https://revistagalileu.globo.com/Ciencia Acesso: 10 out. 2020
O evento três está diretamente vinculado a uma visão subjetivista do colapso da onda que estava em voga desde a década de 1930, quando von Neumann chegou à conclusão de que a consciência humana é o local do colapso da função ondulatória, isto é, o colapso só ocorre quando o ser consciente observa o objeto quântico. Até que isso aconteça, o objeto quântico se encontraria em uma situação de superposição de estados. No caso específico do gato, ele se encontraria em uma superposição de gato vivo e morto até que a caixa fosse aberta por alguém.
Fonte: https://revistagalileu.globo.com/Ciencia Acesso: 10 out. 2020
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Dessa forma, o estado quântico só seria plenamente definido com o ato de observação.
Fonte: https://revistagalileu.globo.com/Ciencia Acesso: 10 out. 2020
Mas Schrödinger não estava de acordo com essa concepção. Para ele seria um absurdo transferir a noção de objeto quântico para o nível dos objetos clássicos, visto que, além de não existir superposições no nível clássico – o gato certamente estaria vivo ou morto e não os dois ao mesmo tempo –, o estado macroscópico também não é afetado pela a observação. Implícito no paradoxo de Schrödinger estava a mesma conclusão por EPR: a física quântica é incompleta! Será a hipótese dos estados relativos de Everett aquela a dar um encaminhamento para a situação do paradoxo do gato, pois, segundo essa hipótese, “cada vez que captamos o caráter de um fóton, o Universo se divide em dois. Em um mundo a luz é uma onda; no outro é uma partícula. Em um universo o gato está vivo quando abrimos a caixa; na dimensão complementar o animal foi morto pelo veneno” (BAKER, 2015, p. 74-75).
10.5 Hugh Everett III e a interpretação dos estados relativos Hugh Everett III (1930-1982) foi o criador da “interpretação dos estados relativos” da mecânica quântica. Trata-se de uma visão apresentada em uma tese de doutorado no fim de 1955 e publicada em 1957, e que teve a orientação de John Archibald Wheeler (1911-2008). Everett, Bohm e Bell compõem um
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período importante da quebra da monocracia da interpretação de Copenhague da mecânica quântica quando promoveram o início de um ambiente crítico acerca dos fundamentos da interpretação ortodoxa da teoria quântica, depois das críticas de EPR e Schrödinger, em 1935. Em virtude do caráter heterodoxo do trabalho de Everett, ele foi rejeitado por Bohr e seus partidários. Esse trabalho possui características interessantes que conflitam com a interpretação ortodoxa da mecânica quântica, mas que abrem as portas para um fértil campo de pesquisas a partir de então. Trata-se de uma interpretação que, dentre outras coisas, descarta o postulado da projeção ou da noção de colapso de função de onda, insere o observador num estado de superposição, além de ser determinística e descritivista. A escalada de Everett teve início em 1953, quando ele graduou, com magna cum laude, engenharia química pela Universidade Católica da América, em Washington. De lá, teve a recomendação para ingresso no doutorado em Princeton, cuja aceitação se deu no mesmo ano. Em 1955, Everett já apresenta a Wheeler dois manuscritos: o primeiro deles acerca de como efetuar uma medida quantitativa da correlação entre dois sistemas e o segundo sobre probabilidade em ondas mecânicas – que é uma apresentação da interpretação de Everett, sem utilizar o formalismo matemático. Interessante é que a resposta de Wheeler é que, quanto ao primeiro, este lhe parecia praticamente pronto para publicar, mas quanto ao segundo, ele se sentia “francamente tímido em mostrá-lo a Bohr em sua forma atual” e acrescenta que o seu receio se justificava “por causa de partes sujeitas a más interpretações místicas por muitos leitores não qualificados” (FREITAS, 2007, p. 53-54). Mas por que requerer as bênçãos a Bohr? Qual a justificativa para a preocupação de Wheeler? O que seriam as tais interpretações místicas dos ditos leitores desqualificados? Segundo Freitas (2007), Wheeler devotava um grande apreço e admiração por Bohr, desde muito tempo. Havia passado um período de estudos de pós-doutoramento em Copenhague examinando a estrutura nuclear. Com isso, terminou por se tornar o porta-voz de Bohr nos EUA, nutrindo um grande sentimento de amizade e de admiração desenvolvidos nos tempos de Copenhague. “Dessa forma é possível compreender a necessidade que Wheeler sentia de ver a interpretação do seu pupilo aprovada por Bohr” (FREITAS, 2007, p. 53). A tese de Everett, propriamente dita, saiu no final de 1955 com o título The theory of the universal wave function. Trata-se de um texto que apresenta
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sua interpretação pronta, mas que sofreu posterior redução em virtude da não aceitação das ideias por parte de Bohr e dos seus partidários. Isso “obrigou” Wheeler a tomar frente da reformulação do texto e o reduzir de 137 para somente 36 páginas, apresentando-o, em 1957, com um título bastante neutro e genérico, On the foundations of quantum mechanics. A versão final ganhou uma explicação da interpretação de Everett por parte de Wheeler, intitulada Assessment of Everett’s “Relative State” Formulation of Quantum Theory, que foi enviada para ser publicada juntamente com a tese. Por fim, a tese foi publicada, juntamente com o texto de Wheeler, no Reviews of Modern Physics, um modesto periódico que não permitiria a projeção das ideias de Everett entre os físicos de sua época. Em vez disso, como a publicação se deu nos proceedings de uma conferência sobre cosmologia, pareceu que o artigo era restrito a essa área, não tendo muito impacto no campo da física quântica, pervertendo, assim, o objetivo do ambicioso projeto inicial. Mas o que era a interpretação dos estados relativos de Everett? Costumeiramente, essa interpretação é conhecida como aquela que faz alusão a um conjunto de ideias que tratam de uma infinidade de “universos paralelos” coexistentes. Contudo, essa não é a ideia original de Everett, e se ela ganhou essa conotação, isso se deve ao fato de Bryce DeWitt que, juntamente com o seu aluno Neill Graham, organizaram e editaram, em 1973, uma coletânea dos trabalhos não publicados de Everett e deram o título A Interpretação do MuitosMundos da Mecânica Quântica (DEWITT; GRAHAM, 1973). Entretanto, é importante salientar que existem diferenças fundamentais entre a interpretação dos estados relativos e as interpretações dos muitos-mundos (vide BEN-DOV, 1990) e que Everett nunca utilizou o termo muitos-mundos. Contudo, essa distinção raramente ocorre na literatura. A principal diferença entre a visão de Everett e a de DeWitt é que, segundo Everett, haveria apenas um único universo, de comportamento completamente quântico, enquanto DeWitt acreditava que cada ramo seria um universo clássico diferente. O ponto de partida do trabalho de Everett foram os fundamentos da mecânica quântica, tal como concebida e formalizada no trabalho de von Neumann, os quais se tornaram objetos de análise e crítica no que diz respeito às suas falhas, especialmente o que diz respeito ao postulado de projeção. Sabe-se que um dos grandes problemas da mecânica quântica está no ato da medição, naquilo que diz respeito ao colapso de onda. Trata-se de um problema
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que, em virtude do fato da não observação direta, origina uma série de interpretações sobre o que pode ter ocorrido que justifique tal colapso. No geral, a função de onda evolui linear e deterministicamente, de acordo com a equação de Schrödinger, num estado de superposição de diferentes estados. Contudo, o ato de medição real sempre encontra um sistema físico em um estado definido. Outra possibilidade de o sistema evoluir é passar instantaneamente, quando do processo de medição, de uma superposição de autoestados para um autoestado específico. Se na primeira interpretação problemas não são encontrados, visto que ela está de acordo com o eletromagnetismo de Maxwell, bem como com a física de I. Newton, para o segundo caso, temos um problema em aberto para ser resolvido pela mecânica quântica, a saber: como ocorre o colapso da função de onda? E o que justifica um estado de superposição se colapsar em um autoestado? Esse problema é conhecido como problema da medição e ocupou vários físicos desde os primórdios da física quântica. Em 1932, von Neumann introduziu o postulado que denominou de “postulado de projeção”, anteriormente conhecido como “redução do pacote de onda”. Segundo esse postulado, a equação de Schrödinger não teria validade durante os processos de medição. Dessa forma, teríamos dois processos: o primeiro na ausência de medição, no qual o processo seria regido pela equação de Schrödinger, evoluindo de modo linear, contínuo e determinístico; e o segundo ocorrendo durante a medição, onde o processo evoluiria regido pelo postulado de projeção, sendo não linear, descontínuo e probabilístico. Como a interação de medição, regida por esse postulado, é sempre feita por um observador que é externo ao sistema quântico e não pode ser descrito por esse formalismo (ao menos não enquanto no papel de observador), essa formulação também pode ser chamada de formulação da observação externa (FREITAS, 2007, p. 16).
A formulação convencional da mecânica quântica segundo Everett, portanto, é esta: Consideramos a formulação convencional da Mecânica Quântica, ou “formulação da observação externa”, como sendo essencialmente a seguinte: um sistema físico é completamente descrito por uma função de
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estado, que é um elemento de um espaço de Hilbert, e que ademais dá informação apenas no que tange à especificação das probabilidades dos resultados das várias observações que podem ser feitas sobre o sistema por observadores externos (EVERETT, 2012, p. 175).
Ainda assim, o postulado de projeção, que é responsável por fazer a conexão entre a teoria e a experiência, tem as suas vantagens, a saber: Explicar como se dá a evolução de estado de uma superposição para um valor específico; em conjunto com a regra de Born63, fazer emergir o caráter probabilista da teoria quântica, muito bem corroborado experimentalmente; e, por fim, explica porque sempre obtemos os mesmos resultados quando realizamos medições consecutivas (FREITAS, 2007, p. 16).
Mas se o postulado de projeção oferece tantas vantagens para o problema da medição em mecânica quântica, qual teria sido o problema que Everett encontrou nele? Quanto ao primeiro processo, isto é, na ausência de medição, o processo seria regido pela equação de Schrödinger, evoluindo de modo linear, contínuo e determinístico, para Everett, não há problema algum – não existe evidência experimental que contradiga isso. Entretanto, no segundo processo que ocorre durante a medição, onde o processo evoluiria regido pelo postulado de projeção, sendo não linear, descontínuo e probabilístico, a questão que se impõe é: como imaginar um sistema que evolui da superposição para um autoestado ou estado reduzido? O que causa essa redução? É o aparato experimental? É a consciência do observador como sugeriu von Neumann? São questões como estas que põem em xeque o problema da medição na mecânica quântica e foi objeto de reflexão por parte de Einstein, Schrödinger, Heisenberg e Bohr, por exemplo. No caso de Borh, já sabemos de antemão qual era a sua resposta. Segundo ele, esse fato não representa necessariamente um problema, pois se trata de uma característica inerente ao sistema que, em virtude disso, o torna especial. Entretanto, para Everett, isso institui problemas profundos que sugerem a revisão dos fundamentos da mecânica quântica. Outro argumento do autor é que o postulado de projeção é incompatível com a hipótese de localidade, pois sugere um 63 Trata da probabilidade de um sistema descrito por uma superposição de estados se encontrar em um estado particular quando uma medição for efetuada.
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emaranhamento entre partículas que as faz comunicar de modo instantâneo, ou de forma “fantasmagórica”, como havia sugerido Einstein e criticado EPR. Segundo Freitas (2007), Everett aponta que ainda há mais três problemas para a teoria quântica envolvendo esse tipo de evolução do estado físico do sistema, são eles: a) Aquilo que ficou conhecido como paradoxo do amigo de Wigner, que é um desdobramento do paradoxo do gato de Schrödinger, que emerge quando se tenta tratar da evolução do estado utilizando mais de um observador. Podemos pegar um sistema qualquer S e colocá-lo para evoluir no tempo até uma observação feita por A. Porém, podemos tomar o sistema A+S como constituindo um outro sistema fechado, S’, esse sujeito a observações de B. Então temos a seguinte questão: B possui ou não a função de estado do sistema S’? Se negarmos que B possa usar a mecânica quântica para descrever o sistema S’, então a teoria é incompleta porque não permite que observadores como A, que no fundo não são nada além de um conglomerado (extremamente complexo) de sistemas microscópicos, sejam tratados dentro da teoria. Em especial existe o problema que a teoria não específica o que pode ser tratado quanto-mecanicamente e o que não pode, ou seja, o que é observador e o que é sistema. Porém, se permitimos que B tenha acesso a função de estado de S’ AS+, então enquanto B não interagir com esse sistema, ou seja, não efetuar nenhuma observação sobre ele, o sistema deve evoluir deterministicamente e nenhum tipo de redução de estado pode ocorrer, mesmo que A esteja continuamente efetuando observações sobre o sistema S. Nesse caso, temos que duas opções. A primeira é que A está fazendo uma descrição incorreta do sistema S, pois como a evolução de ambos é determinística, ele não poderia ter observado nenhum tipo de colapso. Mas se de fato A pode observar colapsos da função de onda do sistema S e sua descrição é correta, então temos a outra opção, que B não pode ter acesso à função de onda adequada para descrever S’, pois de acordo com sua descrição nenhum colapso pode ter acontecido e a evolução permaneceu linear e determinística. Assim, ou A ou B podem ter acesso à descrição quântica objetiva do sistema sujeito à observação, mas nunca ambos simultaneamente (FREITAS, 2007, p. 18-19).
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b) Aquele da impossibilidade de descrever medições imperfeitas utilizando-se de operadores de projeção. Nesse caso, o aparato interage com o sistema físico, o que inviabiliza o conhecimento do que é “precisamente o resultado marcado no aparato e qual o estado remanescente do sistema”. Para ser adequada, a teoria deveria especificar ambos, bem como “a probabilidade de cada leitura em particular acontecer, o que ela não faz” (FREITAS, 2007, p. 19). c) Aquele contra a formulação da observação externa da teoria quântica, no que diz respeito à descrição do universo fechado lançando mão da presença de observadores externos. Se o universo é um sistema completamente fechado, então não existem observadores externos para efetuarem a transição de um estado para outro, ou seja, induzir o colapso de função de onda e obter estados específicos e fica em aberto a questão de porque o universo não parece estar em uma superposição (FREITAS, 2007, p. 19).
Em suma, a tese central dos problemas aqui expostos está envolta na questão de como aplicar a teoria quântica aos sistemas isolados dispensando um observador externo. É em virtude destas, e de outras questões, que Everett afirma que [...] a interpretação de Copenhague é irremediavelmente incompleta por causa de sua dependência a priori da física clássica (excluindo por princípio qualquer dedução da física clássica a partir da teoria quântica, ou qualquer investigação adequada do processo de medição), bem como por ser uma monstruosidade filosófica, ao afirmar um conceito de “realidade” para o mundo macroscópico e negá-lo para o microcosmo (EVERETT, 2012, p. 255).
Se assim o é, qual será a saída proposta para Everett? Segundo ele, existem duas maneiras fundamentalmente diferentes em que a função de estado pode mudar:
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Processo 1: A mudança descontínua trazida pela observação de uma quantidade com autoestados, ϕ1, ϕ2, ..., pela qual o estado ψ será alterado para um estado ϕj com probabilidade |(ψ,ϕj)|2. Processo 2: A mudança contínua, determinística, do estado de um sistema isolado ao longo do tempo, de acordo com a equação = Aψ, onde A é um operador linear. (EVERETT, 2012, p. 176)
O que Everett propõe, portanto, é eliminar a postulação do processo 1 e considerar a mecânica ondulatória pura apenas aquela do processo 2, coincidente com o processo ausente de medição, conforme von Neumann, que evolui de modo linear, contínuo e determinístico. Dessa forma, dá para antecipar que Everett acabará por contornar o problema da medição, descartando o processo de colapso pela reformulação da relação entre o aparato de medição e o sistema, de tal forma que uma linha das leis da mecânica quântica seja universal, ou seja, os sistemas quânticos evoluiriam de modo linear e deterministicamente, de acordo com a equação de Schrödinger. O universo como um todo deverá ser descrito por uma única função de onda. E é justamente a noção de “estados relativos” relacionados a sistemas compostos que nos confere a justificativa para a eliminação do processo 1. Segundo Everett (2012, p. 179-180): [...] Não existe algo como um único estado para um subsistema de um sistema composto. Subsistemas não possuem estados que sejam independentes dos estados do resto do sistema, de modo que os estados dos subsistemas são geralmente correlacionados uns com os outros. Pode-se arbitrariamente escolher um estado para um subsistema e assim ser levado para estado relativo do resto. Assim, deparamo-nos com uma fundamental relatividade de estados, que é implicada pelo formalismo de sistemas compostos. É sem sentido nos perguntarmos sobre o estado absoluto de um subsistema – pode-se apenas perguntar qual o estado [de um subsistema] relativamente a um dado estado do resto [do sistema composto].
Estados relativos seriam, portanto, um estado onde o estado do observador é definido em relação ao estado do sistema que ele observa. Essa noção de estados relativos torna-se beligerante com a interpretação ortodoxa quando aplicada a sistemas macroscópicos – algo como o gato de Schrödinger –, envolvendo observadores e aparelhos de medição.
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Será suficiente aos nossos propósitos considerar observadores como detentores de memórias (i. e., partes de uma natureza relativamente permanente cujos estados estão em correspondência com as experiências passadas dos observadores). Com o intuito de fazer deduções sobre as experiências passadas de um observador, é suficiente deduzir os conteúdos presentes da memória, tal qual aparecem dentro de um modelo matemático. Como modelos de observadores, podemos, se assim desejarmos, considerar automaticamente máquinas funcionais, possuidoras de aparatos sensoriais e acopladas a instrumentos de gravação capazes de registrar os dados sensoriais passados e as configurações da máquina [...]. Se considerarmos que os dados sensoriais atuais, assim como as configurações do aparelho, são imediatamente gravados na memória, então as ações da máquina em um dado instante podem ser consideradas como função apenas dos conteúdos da memória, e todas as experiências relevantes da máquina serão contidas na memória (EVERETT, 2012, p. 183).
Se assim o é, na interpretação dos estados relativos, a noção de que o “colapso” ocorre durante as medições é apenas uma ilusão que está ligada à nossa trajetória de configurações de memória, isto é, todas as experiências relevantes da máquina serão contidas na memória. Dessa forma, Everett afirma o realismo determinístico e evita qualquer reviravolta antirrealista do programa ortodoxo da interpretação da mecânica quântica. No caso do estado relativo do observador, este, ao olhar para o resultado do seu experimento, entraria também num estado de superposição quântica, e não haveria mais somente uma versão, e sim duas do mesmo, isto é, dois ramos, cada qual percebendo um resultado diferente para o experimento. Se não há colapso – em experimentos que envolvem as propriedades da luz, por exemplo –, não há porque se falar dele e muito menos sobre incerteza. O que acontece é que em um ramo, um observador numa superposição quântica, irá observá-la como onda e, no outro ramo, como partícula. Chegamos assim ao seguinte panorama: ao longo de toda uma sequência de processos de observação, existe apenas um único sistema físico representando o observador, e, no entanto, não há um único estado singular para o mesmo (o que se segue das representações de sistemas em interação).
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Não obstante, há uma representação em termos de uma superposição, cada elemento da qual contém um estado do observador definido e um correspondente estado do sistema. Assim, com cada observação (ou interação) sucessiva, o estado do observador ramifica-se em um número [qualquer] de diferentes estados. Cada ramo representa um resultado diferente para a medição e o correspondente autoestado para o estado do objeto-sistema. Todos os ramos existem simultaneamente na superposição após qualquer sequência de observações (EVERETT, 2012, p. 188-189).
Cada ramo há de corresponder a um resultado da medição quântica e a memória do observador, em um dos ramos, não teria acesso à memória do outro, em outro ramo. Dessa forma, o observador teria acesso apenas a um dos resultados da medição que foi produzida e, com isso, à consequente sensação da ocorrência de um colapso do estado quântico. Na verdade, ele teria entrado numa superposição macroscópica e nenhum colapso de fato ocorreu, apenas a aparência desse colapso. Como vimos, as consequências da interpretação dos estados relativos de Everett foram profundas: descartou o postulado da projeção e o consequente colapso de função de onda, inseriu o observador num estado de superposição, derrubou a noção de observador externo ao sistema, apresentou uma interpretação realista, determinista, linear e descritivista da mecânica quântica. Se Jammer avalia que a interpretação de Everett não é satisfatória nem em relação à “consistência lógica nem em relação à concordância com a experiência” ( JAMMER, 1974, p. 513), ainda assim, tal interpretação representou mais uma pedra no sapato de Bohr. Em virtude disso, era de se esperar a reação que o físico dinamarquês e seus partidários tiveram diante da interpretação dos estados relativos, rejeitando-a sumariamente e tornando a visita de Everett a Bohr, em Copenhague, um verdadeiro “inferno”. A consequência de tamanha decepção foi Everett abandonar o campo da física e montar a sua própria companhia, a Lambda Corp.114. Depois da visita a Bohr, Everett nunca mais trabalhou com temas de teoria quântica. A sua decepção com todo o processo e com a falta de repercussão de sua teoria inovadora o desanimaram para a pesquisa em física. Ele foi primeiramente trabalhar para o Pentágono na defesa nacional e, posteriormente, continuou prestando serviços ao governo americano através de suas empresas.
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Considerações Finais Objetivou-se com os itens precedentes – tanto no Capítulo IX quanto no Capítulo X – tratar, em termos gerais, de algumas interpretações da teoria quântica. A escolha, entretanto, não foi aleatória, visto os objetivos do presente livro. A princípio, acreditávamos que os primórdios da mecânica quântica (mecânica de matriz e mecânica ondulatória), bem como a interpretação de Copenhague, tinham informações prestimosas para a filosofia da ciência. Noções como as de incerteza, superposição, colapso de onda quântica e complementaridade, ao nosso ver, carregam informações importantes no que diz respeito ao contingente de metafísica com a qual tais noções podem estar envolvidas. E é justamente o caráter heterodoxo da mecânica quântica que propicia que tais teorias desaguem no mar de metafísicas explicativas da natureza da realidade. A indeterminação e a falta do nexo causal (causalidade) comprometem a mecânica quântica a ponto de nos fazer questionar sobre o status ontológico do conteúdo que a envolve. O que se vê, num primeiro momento, conforme Heisenberg havia chamado a atenção, é que a ontologia da física clássica, estruturada no materialismo, no mecanicismo e no determinismo, já não tem qualquer serventia para os fundamentos da mecânica quântica. Esta requer uma nova base ontológica, onde o antirrealismo e formalismo puro aparecem como princípios fundamentais do novo campo que se inicia. No entanto, o realismo sempre encontra suas formas para resistir aos ataques, conforme vimos no presente capítulo. O que nos resta perguntar, contudo, é sobre o limiar que se estabelece entre o formalismo e a estrutura real da natureza. É essa questão que parece ficar “em aberto” quando acessamos os conteúdos referentes à teoria quântica no geral. Por outro lado, interpretações que se propuseram realistas, a exemplo das que apresentamos nesse capítulo, também acabaram por se envolver com termos estranhos e confusos que, parecem-nos, não constituir uma realidade para além de novos formalismos. Dessa forma, noções como as de variáveis ocultas, emaranhamento quântico e estados relativos parecem não nos socorrer quando da necessidade de um porto seguro acerca da realidade íntima da natureza. Resta-nos, portanto, agarrar-nos na genialidade de um Einstein e de um Schrödinger que, mantendo uma visão filosófica acerca da avaliação que faziam dos sucessos da mecânica quântica, não embarcaram no entusiasmo da
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maioria de seus colegas que tinham a interpretação de Copenhague como uma espécie de mantra. A interpretação de Copenhague, conforme vimos, teve o mérito de propiciar um debate fervoroso entre realistas e antirrealista, mas, por outro lado, constituiu também um terreno fértil para o surgimento das mais estranhas e esotéricas interpretações dos fenômenos quânticos que se deram no campo do misticismo e que merecem um capítulo à parte.
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CAPÍTULO XI
O MISTICISMO QUÂNTICO COMO RADICALIZAÇÃO DE COMO OS SERES HUMANOS CRIAM O UNIVERSO EM QUE VIVEM
Introdução
O
receio de Wheeler quanto às possíveis interpretações místicas do trabalho de Everett “por leitores não qualificados”, enfim, consumou-se. Não só o trabalho de Everett, mas várias das interpretações da teoria quântica tornaram-se objetos de especulações e aplicações que se deslocaram do campo da física para o campo do místico. O poder explicativo e a gama de aplicações sedimentaram a legitimidade desse novo campo da ciência, mas também propiciaram que ela se tornasse vítima de várias interpretações que extravasaram o seu campo de aplicação. Em virtude do sucesso da física quântica, ela tem sido usada para os mais diversos fins, tendo em vista a necessidade de dar credibilidade aos argumentos de quem a usa ou assegurar a confiança no que está sendo exposto como uma verdade. Por exemplo, hoje pessoas vendem colchão quântico, travesseiro quântico, panela quântica, calculadora quântica, analgésico quântico, hidratante quântico, terapia quântica vibracional, enfim, uma infinidade de “produtos quânticos”. Na esteira da hipocrisia administrativo-organizacional, vem a “gestão quântica” e até o “coach quântico”. Difícil é entender por que ele elegeu esse nome! Será porque é feito de partículas? Digo isso porque a teoria quântica se aplica a descrever átomos, moléculas, suas interações mútuas e suas interações com diferentes formas de radiação. Qualquer sentido para além do seu restrito campo de aplicação é má-fé e mau uso do termo. O que aqui queremos chamar a atenção é justamente para esse mau uso que as pessoas têm feito do termo “quântico”. E isso não é diferente quando se trata do misticismo quântico.
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11.1 O misticismo quântico Para fins de adiantamento, a fim de não fomentar no leitor posições preconceituosas sobre o autor, gostaria de apressar minha posição acerca de temas relacionados ao místico em geral. Sou de tradição mineira, portanto, cresci numa comunidade onde um templo é muito mais que um edifício. Diante de uma obra arquitetônica como aquela, as pessoas de lá se benzem, pensam em Deus, sem se envergonharem de ter fé. Fui introduzido na religião católica e coagido a passar por todo processo de formação espiritual daquela instituição (batismo, primeira eucaristia e crisma). Tenho, portanto, influências psicológicas marcantes do meu processo de formação religiosa. Entretanto, foi justamente minha formação em filosofia que me fez ter uma visão diferente de mundo. Não mantenho uma posição desafiadora, mas conciliadora com a ciência. Não acredito de forma literal nas diversas histórias da Bíblia e as concebo muito mais por seu sentido figurado. Não acredito, por exemplo, no modelo criacionista, tal como expresso na narrativa de Adão e Eva, bem como na literalidade de outras tantas histórias bíblicas. E por que isso tudo de partida? Para adiantar ao leitor o caráter reticente que assumo diante do que aqui será posto como misticismo quântico, principalmente quando este se apresentar como desafiador da ciência. O misticismo quântico teve o pontapé inicial no movimento hippie, que surgiu na década de 1960 nos Estados Unidos e que se colocava contra os padrões familiares conservadores daquela época. Tratava-se de um movimento de contracultura que, diante de uma sociedade que parecia não dar certo – com suas guerras, ditaduras, polarizações no campo das ideias, consumismo exacerbado –, propôs um modo alternativo de comportamento social. Os hippies repudiavam o capital, o Estado e o individualismo de sua época. Em lugar disso, optavam por uma vida em comunidade e em pleno contato com a natureza. Vestiam roupas coloridas, os homens usavam barbas e cabelos compridos, as mulheres andavam sempre com flores no cabelo, gostavam de músicas acompanhadas por violão e de viverem em acampamentos. Revolucionaram o movimento feminista ao dizer não ao machismo e à imagem de mulher-objeto. Foi também a época da revolução sexual, quando a pílula anticoncepcional tornou-se arma feminista na luta pelo direito ao prazer. Em suma, os hippies recusavam a sociedade de consumo e a família tradicional. Eram admiradores
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da cultura do Oriente e apreciavam a alimentação natural e o uso de alucinógenos. Esse modo alternativo de vida nada mais era do que um recado à sociedade de consumo e aos padrões familiares tradicionais (ROSZAK, 1972). O campo das ciências acabou sendo marcado pela rebeldia daquela época: pela geração paz e amor, pela luta pelos direitos civis, pela posição contrária à guerra do Vietnã, pelo maio de 1968 na França, pelas filosofias orientais, pelas drogas psicodélicas, pela telepatia etc. Dedicar-se à física, naquele contexto de rebeldia, significava dedicar-se aos fundamentos teóricos da heterodoxa – não ortodoxa – mecânica quântica e, para alguns, à possível conexão entre a física e os poderes da mente. Dessa forma, tratar das teorias de EPR, Bell, Bohm, por exemplo, era tratar de temas filosóficos e não físicos. Foi assim que, na década de 1970, surgiu na Califórnia esse novo tipo de físico que mesclava física com misticismo. Tratava-se de jovens formados nas melhores universidades dos Estados Unidos, com os melhores dotes de competência acadêmica, mas com suas vidas ligadas ao psicodelismo e ao misticismo. O austríaco Fritjof Capra foi um dos precursores da relação entre o misticismo oriental e física quando da publicação, em 1975, do seu livro O Tao da física. Ele viveu nos Estados Unidos na década de 1960, onde se envolveu visceralmente com o movimento da contracultura, com o gosto pelo rock, com o uso de drogas e com pesquisas com raios cósmicos. O próprio prefácio à primeira edição da obra conta como foi o start da concepção do livro: sua experiência em estar sentado na praia e “ver” cascatas de energia cósmica serem criadas e destruídas e os átomos dos elementos participarem da dança cósmica, o fez “ouvir” o ritmo e o som dessa energia. Ele confessa, entretanto, que para sentir esse tipo de efeito transcendental, fora “ajudado pelas ‘plantas de poder’ – plantas alucinógenas – que me indicaram a forma pela qual a mente pode fluir livremente, a forma pela qual as percepções espirituais surgem à tona, sem qualquer esforço, emergindo das profundezas da consciência” (CAPRA, 2006, p. 13, acréscimos e grifos nossos). Um rastro de obras semelhantes à de Capra veio a seguir, formando o que hoje é chamado de misticismo quântico, que constitui uma indústria que movimenta milhões em filmes, vídeos, workshops e conferências. Com a crise do petróleo da década de 1970, a rebeldia psicodélica junta-se à recessão econômica. Muitos jovens doutores em física ficaram desempregados e voltaram-se aos estudos dos fundamentos da física quântica,
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bem como dos poderes da mente. Os físicos Elizabeth Rauscher e George Weissmann formaram um grupo de discussão conhecido como Fundamental Fysiks Group (FFG). Esse grupo, da Universidade de Berkeley, reunia-se informalmente para discutir os fundamentos filosóficos da física quântica. Dentre os seus membros, estavam Jack Sarfatti, Fritjof Capra, John Clauser, Philippe Eberhard, Nick Herbert, Saul-Paul Sirag, Henry Stapp e Fred Alan Wolf. Segundo o historiador da ciência David Kaiser, em seu livro How the Hippies Saved Physics (Como os hippies salvaram a física) (2011), teriam sido as ideias desse grupo aquelas que vieram a formar as bases da ciência da informação quântica contemporânea. De fato, havia no grupo um real interesse nos estudos das variáveis ocultas e do emaranhamento quântico. Desde 1969, Clauser juntamente com os colegas Abner Shimony, Richard Holt e Michael Horne estudavam tais fenômenos e haviam, inclusive, publicado um artigo intitulado Proposta de Experimento para Testar Teorias de Variáveis Ocultas. A proposta era a de testar as desigualdades de Bell com fótons, já que esses são mais fáceis de serem gerados. Mas foi somente em 1972 que Clauser, juntamente com Freedman, conseguiu violar as desigualdades de Bell. Utilizando-se de um aparato capaz de polarizar pares de fótons entrelaçados, ele conseguiu medir essas polarizações. Clauser foi, então, convidado a participar da fundação do FFG e ali tentava buscar uma explicação para o significado do seu experimento com um debate que envolvia, segundo Kaiser, discussões sobre a possibilidade de comunicação em velocidades maiores que a da luz, sobre a existência de dimensões além das quatro conhecidas, a respeito da influência da mente sobre a matéria e sobre a relação entre física quântica e paranormalidade. Segundo Elizabeth Rauscher, até um especialista em óvnis foi levado para uma das reuniões do grupo. Mas era a discussão sobre o teorema de Bell e suas consequências a principal pauta de discussão desse grupo e um dos temas principais era sobre a possibilidade de transmissão instantânea de informação através dos pares entrelaçados de objetos quânticos. Nick Herbert, por exemplo, propôs um mecanismo de transmissão capaz de transmissão instantânea de informação a partir da possiblidade de amplificar, sem ruídos, um estado quântico; tese que fora demonstrada impossível por Roy Glauber, já que a amplificação sempre introduz ruídos. Henry Stapp empenhou-se na generalização do teorema de
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Bell para casos que envolviam “mentes emaranhadas”. Jack Sarfatti, por outro lado, defendia a ligação da física quântica com a paranormalidade. Muitos desses físicos acabaram por formar grupos de vieses místicos para vivenciarem as experiências nas quais acreditavam: Herbert fundou o CORE Physics Technologium, onde desenvolvia o Tantra Quântico (fusão do ioga tântrico com o misticismo quântico através da experiência sexual); Sarfatti, juntamente com o místico Michael Murphy, fundou o Grupo de Pesquisa em Consciência Física, cujos encontros aconteciam no Instituto Esalen – localizado nos penhascos de Big Sur – entre os anos de 1976 e 1985. Para workshops de Esalen achegaram-se personalidades importantes da física convencional, como o Prêmio Nobel Richard Feynman. Também se tornou atento aos debates de Esalen físicos famosos como John Wheeler que, mesmo mostrando-se interessado nos assuntos discutidos, dizia que aqueles físicos eram malucos. Grupos como esses passaram a ser financiados por pessoas como o milionário Werner Erhard, fundador do Erhard Seminar Training (EST), que envolvia pessoas em tratamento de choque; ou pelo Noetic Studies, fundado pelo astronauta Edwin Mitchell, que teria tido uma experiência mística na órbita da lua; ou, então, pelo maior financiador atual em questões que envolvam ciência, religiosidade e parapsicologia, que é a Templeton Foundation. Mas havia outro grupo bastante interessado na relação entre a física quântica e os “fenômenos paranormais”, formado por Russell Targ e Hall Puthoff, estudiosos em parapsicologia, que investigavam aqueles que diziam ter o dom paranormal da “visão remota”, isto é, que podiam ver remotamente cenas e situações ausentes. É justamente aqui que aparece o ilusionista israelense Uri Geller. Geller tratava-se de um habilidoso fazedor de dinheiro que fez fortunas “entortando colheres” e “fazendo relógios pararem” usando apenas do poder da mente. Tais habilidades mentais foram desmascaradas pelo também mágico cético-científico James Randi64; o mesmo Randi “que afirmou, por sinal, que os físicos são as piores pessoas para investigar os fenômenos paranormais, pois seriam muito crédulos para perceber os detalhes dos truques e muito arrogantes para admitir seus próprios erros” (PESSOA JR., 2007-11, p. 84). No caso dos estudos de Targ e Puthoff sobre os poderes de Geller, os 64 Quem não se lembra do Randi, no programa “Fantástico”, dando um milhão de dólares para quem provasse ter poderes paranormais, afugentar Thomaz Green Morton, o “homem do Rá” e guru das estrelas, que dizia ter poderes paranormais?!
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resultados foram publicados na revista Nature e receberam uma chuva de críticas. Entretanto, ainda assim, tais estudos atraíram um consórcio de agências de inteligências americanas, dentre elas a CIA e o Exército, que passaram a financiar pesquisas sobre poderes parapsicológicos no sentido de desvendarem os segredos da União Soviética através do artifício da visão remota, tudo isso dentro de um projeto que ficou conhecido como Projeto Stargate. O resultado de tais experimentos chegou a Sarfatti, que entrou em contato com os idealizadores e foi convidado para conhecer o laboratório. Foi ali que ele recebeu o convite para realizar testes na Europa, para onde Geller estava se dirigindo em viagem de negócios. Em 1974, Sarfatti estava num laboratório inglês, ao lado do físico David Bohm, para realizar experimentos de laboratório sobre os poderes Geller. Elizabeth Rauscher também foi contratada por Targ e Puthoff como consultora encarregada de explicar conceitualmente os resultados dos experimentos com paranormalidade, o que acabou por resultar na formação do FFG. De certa forma, a formação do FFG foi influenciada pelos testes feitos com Geller e tudo aquilo era parte de espionagem financiada pelos órgãos de inteligência norte-americanos. Por mais que tais pesquisas se encaminhassem com uma certa normalidade e com um certo grau de histeria que envolvia todo o contexto, a maior parte dos físicos convencionais era hostil ao movimento que se desenrolava naquela época. O FFG durou apenas quatro anos, mas o contingente de obras e a influência mística por ele inspirada continuaram até os dias atuais. Vasta é a literatura sobre a temática que envolve a física quântica e o misticismo e que abarca, principalmente, a relação entre matéria e mente. Algumas das obras mais importantes são: O Tao da física e O ponto de mutação, de F. Capra; The Dancing Wu Li Masters, de Gary Zukav; Mind-reach, de Harold Puthoff e Russell Targ; Espaço-tempo e além, de Fred Wolf; O ser quântico, de Danah Zohar; Mind, matter and quantum mechanics e Mindful universe, de Henry Stapp. Além desses, há uma infinidade de obras que vislumbram relacionar a física quântica aos mais variados campos do conhecimento que não envolvem diretamente a física teórica, nem a produção de tecnologia: psicologia, administração, economia, literatura fantástica, religião, terapias ocupacionais etc. Certo é que o uso inapropriado do termo quântico acaba por conferir legitimidade, destaque e projeção por se fazer acreditar que aquilo
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sobre o qual está sendo anunciado trata-se de uma verdade “cientificamente comprovada”. E, quanto ao uso do termo advindo dos próprios místicos quânticos, como entendê-lo? Apesar do amplo panorama do que pode ser chamado de misticismo quântico, iremos aqui tratar dos argumentos que versam sobre a existência de uma conexão essencial entre física quântica e consciência. Dessa forma, apresentaremos as teses do observador participante, da mente quântica e da comunicação quântica, por sinal, muito bem trabalhadas por Pessoa Jr. (200711; 2011; 2013), que aqui será nossa base de fundamentação. Quanto à tese do observador participante e seus desdobramentos, apesar de dita científica, constitui exatamente aquilo que incomoda o filósofo estudioso da teoria quântica. No geral, o que se espera da ciência ao versar sobre a realidade é que a realidade venha à tona, que os fatos sejam demonstrados de maneira realística, que nenhuma tese científica se envolva com elementos metafísicos intransponíveis e que a ciência possa demonstrar a materialidade – ou os efeitos materialmente dados – do objeto sobre o qual ela trata. Essa é uma espécie de provocação, muitas vezes injustificada, visto que nem sempre o caráter realístico dos termos teóricos pode ser assegurado. Por outro lado, qualquer teoria que tente abarcar os fundamentos últimos da realidade, portanto, sua ontologia, é carregada de conotação metafísica. Tais termos teóricos são importantes porque, ao se desconsiderar a existência de determinada entidade expressa por eles, pode-se colocar em colapso o sistema como um todo. Contudo, nem por isso tais teorias deixam de possuir uma conotação mística pelos elementos nela envolvidos e pela forma como foram pensadas. Muitas vezes soluções teóricas ad hoc são introduzidas a fórceps, o que assegura o caráter confuso da própria teoria. A tese do observador participante, portanto, desdobra-se em quatro vertentes: a) o objeto observado é inseparável do sujeito; b) o observador humano é o responsável pelo colapso da onda quântica; c) o observador escolhe se o fenômeno é onda ou partícula; d) o observador cria a realidade (PESSOA JR., 2011). Por mais que a tese de que “o objeto observado é inseparável do sujeito” possa ser tratada por Pessoa Jr. (2011) como uma tese que não é necessariamente mística e nem idealística, ainda assim, salta-nos aos olhos a estranheza do argumento que lhe sustenta. Segundo o autor, Bohr teria introduzido essa
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tese na teoria quântica quando disse que “uma realidade independente no sentido físico ordinário não pode ser atribuída nem aos fenômenos, nem aos agentes da observação” (BOHR, 1928 apud PESSOA JR., 2011, p. 287). Isto é, se o objeto é um fenômeno observável, então ele é inseparável do sujeito – não existe a “coisa em si”, todo fenômeno só é fenômeno porque é observável. Se assim o é, não existe uma independência da existência da natureza com relação à existência do sujeito? Se para você a natureza existe independentemente do sujeito ou da mente que a observa, então, você adota uma postura realista perante a natureza. Se, ao contrário, a realidade existe somente porque há um sujeito pensante, observador e atribuidor de sentido, então, essa posição é antirrealista, pois condiciona a existência da realidade à existência do observador dotado de racionalidade. Essa foi uma tese antirrealista de Bohr que, como qualquer antirrealismo (ou idealismo), está carregada de metafísica em seu caráter místico, naturalístico e animístico. A segunda tese é a de que “o observador humano é responsável pelo colapso da onda quântica”. Fiquei muito impressionado quando vi a saída de von Neumann para a questão do colapso da função de onda. Duas eram as curiosidades de von Neumann no que diz respeito à teoria quântica: a primeira era encontrar o lugar natural onde a cadeia pudesse interromper, propiciando o colapso da onda quântica; e a segunda era sobre o que era responsável por tal colapso. Para o primeiro problema, conforme vimos, von Neumann descobriu que é possível seccionar a cadeia e incluir o colapso em qualquer ponto que se desejasse, isso porque os resultados não nos fornecem quaisquer indícios sobre onde se localiza a divisão entre o sistema e o instrumento de medição. E para o segundo problema, ele chegou à conclusão de que a consciência humana é o local do colapso da função ondulatória65. O problemático aqui é justamente admitir a concepção de que é a consciência do observador que responde pelo colapso da onda quântica. Trata-se de um dado curioso o fato de que, ao se propagar, o objeto quântico seja uma onda e, quando medido, apresente-se como partícula. No entanto, a explicação para tal fato não pode se reduzir a um artifício ad hoc como esse. Se tomarmos a explicação de von Neumann apenas como representação matemática, para fins de cálculo, a justificativa é plausível. Mas 65 Segundo Pessoa Jr. (2011, p. 287), “esta tese é atribuída a von Neumann, mas quem a apresentou em uma publicação foram Fritz London e Edmond Bauer (1939)”.
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é apenas quando a onda quântica é interpretada de maneira realista e quando a noção de “observação” necessariamente implica a presença de um observador consciente (ou seja, o colapso não poderia ocorrer apenas com a interação do sistema quântico, com um instrumento de medição), que essa interpretação torna-se mais “mística” (PESSOA JR., 2011, p. 287).
Quanto ao fato de que “o observador escolhe se o fenômeno é onda ou partícula”, no processo de medição quântica – inclusive de forma demorada, isto é, após o objeto quântico entrar no aparelho (PESSOA JR., 2007-11, p. 23-26) –, isso é fato passível de se verificar, a saber: se o experimento é encaminhado para exibir franjas de interferência, o processo é ondulatório; se se consegue inferir a trajetória do objeto quântico detectado ou se ele aparece como um ponto, esse fenômeno é corpuscular. O físico quântico, segundo a complementaridade de Bohr, pode escolher medir um ou o outro fenômeno (onda ou partícula). Assim, tal escolha torna-se dependente do caráter subjetivo envolvido na relação sujeito-objeto. Entretanto, “se os fenômenos corpuscular e ondulatório forem interpretados como diferentes estados da realidade, então esta escolha passaria a ser interpretada como um poder de transformar a realidade” (PESSOA JR., 2011, p. 288, grifos nossos). E aqui está o questionamento sobre o tom místico da questão: se é dado ao observador o “poder de transformar a realidade”, poderia a vontade humana controlar o processo de medição? Segundo o experimento de escolha demorada proposto por Carl von Weizsäcker, em 1931, envolvendo duas partículas emaranhadas, a escolha de como montar a aparelhagem afetaria o tipo do fenômeno (onda ou partícula) da partícula localizada a distância, mas a vontade humana não poderia controlar os resultados obtidos nas medições (senão ter-se-ia transmissão instantânea de informação, o que é proibido pela Teoria da Relatividade)” (PESSOA JR., 2011, p. 288).
De qualquer forma, esse tipo enunciado dará sempre a abertura para introdução de interpretações místicas que surgem da divagação proporcionada a partir desse tipo de entendimento do funcionamento da realidade. Por fim, ainda dentro da tese do observador participante, temos a concepção de que “o observador cria a realidade”. Essa tese coaduna com a expectativa
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de que, em ciência, especialmente em física, há um procedimento que é histórico, que é o de “fabricação da realidade”. Essa noção não é nova e aparece em obras que pretendem discutir, ou mesmo combater, a postura idealista de muitas teorias científicas. A física quântica, por seu caráter de indeterminação, descontinuidade e não-localidade é vítima desse tipo de acusação, a exemplo do que fez Pascual Jordan, em 1929, quando a acusou de idealista e subjetivista. Fato notório da acusação de que no misticismo quântico o observador cria a realidade está resumido nas três teses anteriores, quando são colocadas num contexto fenomenalista: todas as teses supramencionadas não podem ser aplicadas aos fenômenos da natureza! O misticismo quântico se torna mais interessante, entretanto, quando estendido para a tese da mente quântica. Essa tese desdobra-se também em quatro direções: a) a consciência é um fenômeno quântico; b) o livre arbítrio é garantido pelo princípio da incerteza; c) no dualismo corpo-alma a interação entre os dois se dá por processos quânticos; d) o holismo quântico se manifesta no cérebro (PESSOA JR., 2011). Quanto à tese de que “a consciência é um fenômeno quântico”, a pergunta que se faz é sobre qual é o papel da teoria quântica nas teorias materialistas da consciência. Na verdade, há uma série de teorias favoráveis à tese de que a física quântica é essencial para a consciência, por exemplo: a de que o cérebro é um computador quântico (o que seria impossível, dado o fato de que o cérebro é muito quente para a ocorrência de uma computação quântica); a de que o cérebro computaria funções não-recursivas através da dita intuição matemática, coisa que o computador não faz – daí deve haver alguma propriedade quântica que seria a responsável por essa nossa grande capacidade intelectual; a de que o cérebro seria regido por leis análogas às da mecânica quântica, dessa forma, as funções cerebrais podem ser descritas por um “campo dendrítico” que obedece à equações da teoria quântica de campos; a de que a liberação de neurotransmissores é um processo probabilístico que só pode ser descrito pela física quântica; a de que é no nível subneuronal, portanto, num nível que só pode ser adequadamente descrito pela física quântica, que ocorre o processamento da informação; por fim, a de que a mecânica quântica explicaria fenômenos de percepção extrassensorial (PESSOA JR., 2007-11, p. 29-30). No entanto, todas essas teses têm como questionamento de fundo, inclusive na neurociência, a necessidade da física quântica para as explicar. O que tem
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de misticismo nessas ideias é a defesa implícita de uma postura naturalista animista, que embasa o princípio da identidade entre as leis da natureza e as leis do indivíduo, que querem justificar teses para sustentar a chamada comunicação quântica. Algo mágico e incrivelmente extraordinário! Sobre a tese mística de que “o livre-arbítrio é garantido pelo princípio da incerteza”, temos em sua defesa Arthur Eddington que, em 1932, deu-lhe respaldo com o princípio de Heisenberg. A ideia geral é: “se o átomo tem uma indeterminação, certamente a mente humana terá uma indeterminação igual; pois dificilmente poderíamos aceitar uma teoria que faz a mente ser mais mecanicista do que o átomo” ( JAMMER, 1966, p. 337 apud PESSOA JR., 2011, p. 289). Segundo Pessoa Jr. (2011), a questão do livre-arbítrio não implica em misticismo. Entretanto, o que se pergunta é: o que tem a ver um princípio que defende a incerteza na medição simultânea da posição e da quantidade de movimento de um objeto quântico com a tese do livre-arbítrio? A sentença “se o átomo tem uma indeterminação, certamente a mente humana terá uma indeterminação igual” não pode ser justificativa para a questão do livre-arbítrio, mesmo sob a hipótese de que a mente não possa ser mais mecanicista que o átomo. Ainda assim, essas noções místicas são inseridas à força na teoria quântica sem qualquer justificativa de sua plausibilidade. Sobre a “interação alma-corpo ocorrendo por processos quânticos”, Pessoa Jr. (2011, p. 290) afirma que “o misticismo quântico é muito próximo de posições dualistas, para as quais a alma não emerge da matéria, mas tem existência autônoma”. Essa noção, contudo, não é nova da história da filosofia e tem Descartes como o seu maior defensor: res cogitans (consciência racional, pensamento) e res extensa (mundo material, extensão) representam instâncias autônomas que se interagem na glândula pineal. No caso do misticismo quântico, “John Eccles é conhecido por defender uma visão dualista e por sugerir que a alma (ou mente) atuaria durante a liberação de neurotransmissores, processo probabilístico regido pela física quântica, alterando levemente essas probabilidades” (PESSOA JR., 2011, p. 290). Em sua perspectiva dualista, essa baixa alteração probabilidade de exocitose (liberação de neurotransmissores) constituiria um mecanismo de ação da mente sobre o cérebro que só poderia ser explicada pela teoria quântica. Restaria, entretanto, que Eccles mostrasse que a mecânica quântica, de fato, é necessária para explicar esse fenômeno e como ele estaria ligado com a emergência da consciência.
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Por fim, dentro da tese da mente quântica, ainda temos a questão do “holismo quântico se manifesta no cérebro”. Essa tese da integração do cérebro (o cérebro é altamente interligado) é uma das consequências da aplicação da noção de emaranhamento quântico proveniente das desigualdades de Bell, dentro do campo do misticismo. “No entanto, o cérebro é um sistema muito grande e quente para que o emaranhamento desempenhe um papel de integração cerebral” (PESSOA JR., 2011, p. 290). Por outro lado, essa pretensa integração do cérebro pode ser compreendida dentro do mundo clássico – dispensando, portanto, a explicação quântica –, onde há um limite para a velocidade da propagação da informação. O emaranhamento quântico, por exemplo, é um fenômeno de não-localidade, portanto, sugere transmissão de informação instantânea, isto é, acima da velocidade da luz. Por mais que Herbert Fröhlich, em 1968, tenha descrito o “condensado biológico” semelhante aos condensados Bose-Einstein, aquele funciona à temperatura ambiente, este somente a baixíssimas temperaturas. Se tal condensado de fato existisse nas membranas neuronais, ter-se-ia um comportamento ordenado de longo alcance (mas não uma não-localidade, no sentido das desigualdades de Bell, já que tais sistemas de condensados têm no máximo apenas pares próximos de partículas emaranhadas), o que excita a imaginação de muitos místicos quânticos (PESSOA JR., 2011, p. 290).
Resta saber, por fim, que a teoria quântica lida com átomos mais ou menos isolados e os processos por ela explicados são quantitativos, isso, por si, exclui também o caráter qualitativo desempenhado pelo cérebro e manifestado nos sentimentos, emoções, percepção, memória etc. Dessa forma, a chave para o entendimento da integração do cérebro não deve estar na noção de emaranhamento quântico, já que esse é um processo altamente quantitativo e não envolve qualidades mentais. A terceira vertente de teses místicas diz respeito à comunicação quântica. Para mim, essa constitui o aprofundamento e a radicalização do misticismo quântico a ponto de perder completamente os possíveis vínculos com a teoria quântica. Os desdobramentos da tese da comunicação quântica, segundo Pessoa Jr. (2011), são: a) mentes quânticas interagem à distância; b) não-localidade
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entre mentes permite transmissão instantânea de pensamentos; c) o observador conseguiria influenciar a estatística de resultados quânticos; d) a mente pode se acoplar ao universo, transformando-o com pensamento positivo; e) há uma física quântica da alma e de Deus. Mais uma vez, as desigualdades de Bell e a questão da não-localidade foram utilizadas para fundamentar a tese mística de que “mentes quânticas interagem à distância”. Dessa vez, mescla-se às desigualdades de Bell a psicologia analítica de Carl Jung que, em um artigo intitulado Sincronicidade: um princípio de conexão acausal, cunhou o termo “sincronicidade” para justificar as relações acausais que estariam por trás das coincidências significativas da vida. O tom da teoria, entretanto, já levanta de imediato suspeitas na mente do materialista, pois, para ele, coincidências são coincidências e nada mais do que isso! Contudo, tal concepção tem sido utilizada para identificar as correlações de sistemas quânticos emaranhados que, segundo dizem, propiciam a comunicação quântica entre mentes emaranhadas que se comunicam à distância de forma imediata (não-localidade). “Dessa maneira, vários fenômenos parapsicológicos, como a alegada capacidade de sentir eventos distantes (tipicamente tragédias com familiares), passaram a ser explicados pelos místicos como sendo uma manifestação da física quântica” (PESSOA JR., 2011, p. 291). Vê-se que essa é mais uma apropriação indevida da teoria quântica que, utilizada dessa maneira, acaba por justificar uma série de “fenômenos” inexistentes, dando-lhes um caráter de “cientificamente comprovado”. Quem nos dera antecipar imediatamente ocorrências de eventos! Se isso fosse possível, o caminho reverso também seria, daí poderíamos comunicar à distância aos nossos familiares sobre o perigo iminente de morte. A tese de que “não-localidade entre mentes permite transmissão instantânea de pensamentos”, por outro lado, é um desdobramento, ou um caso típico, da tese de que mentes quânticas interagem à distância. Essa tese foi divulgada por Amit Goswami em seu livro A Física da Alma (2005), onde ele defende a veracidade de um experimento do mexicano Jacobo Grinberg-Zylberbaum e seus colaboradores que teriam conseguido transmitir instantaneamente pensamentos à distância e que isso teria sido repetido por outros pesquisadores. Como vimos, trata-se de um exemplo de não-localidade quântica que, se fosse verdadeiro, violaria a Teoria da Relatividade Restrita por infringir a lei de que uma transmissão de informação não pode ser feita com uma velocidade acima
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da velocidade da luz, que é tida como a velocidade limite do universo. É justamente por perverter os resultados da ciência ortodoxa que “experimentos” como esses não são levados a sério pela física convencional. Quanto ao fato de o “observador conseguir influenciar a estatística de resultados quânticos”, dois engenheiros da Universidade de Princeton, Robert Jahn e Brenda Dunne, relatam em seu livro Margins of Reality que em seus experimentos conseguiram um efeito micropsicocinético, onde um observador consciente alterou as probabilidades em diferentes processos estocásticos (aqueles cujos estados são indeterminados, com origem em eventos aleatórios). Esses experimentos não foram reproduzidos por cientistas respeitáveis, visto que a ciência ortodoxa nega a possibilidade de a mente afetar um material externo ao corpo. Caso fossem eles aceitos, segundo pretendem os místicos quânticos, teríamos a evidência de que a física quântica explica eventos paranormais. Entretanto, “é desnecessário dizer que tais resultados não são aceitos pela comunidade científica, para quem se trata de um caso de autoengano ou de fraude proposital” (PESSOA JR., 2011, p. 291). Sobre a tese de que “a mente pode se acoplar ao universo, transformando-o com pensamento positivo”, gostaria de indicar ao leitor, mais uma vez, a leitura de Pessoa Jr., o qual vejo ter maior tato e preocupação com esse tipo de tema entre os autores de língua portuguesa. Ele escreveu um excelente texto, intitulado Análise de um Típico Argumento Místico-Quântico (2013), no qual trata da tese mística da “lei da atração”, que não é mais do que aquela que afirma que o pensamento positivo poderia transformar a realidade diretamente e à distância. Não me deterei aqui na análise do texto, minha intenção é somente a de indicá-lo para o leitor. Em resumo, essa tese é apresentada no filme O Segredo e assim pode ser descrita: Ao entrar em contato com outras pessoas ou ambientes, nossa mente pode entrar em um “emaranhamento quântico” com essas outras mentes ou até com objetos. Mesmo após a separação, o estado emaranhado permanece. Podemos então efetuar uma medição quântica e com isso provocar um colapso não-local da onda quântica emaranhada. O resultado disso é a transformação do estado da outra pessoa ou do ambiente. Dado que na física quântica o observador pode escolher se o fenômeno observado será onda ou partícula, podemos também escolher se o colapso quântico será
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associado a uma energia-chi66 positiva ou negativa. Para isso, é preciso treinar as técnicas de pensamento positivo, divulgadas em diversos livros de autoajuda quântica. Uma vez que esse segredo é aprendido, pode-se utilizar o pensamento para alterar diretamente a realidade, mesmo à distância, e assim transformar o mundo de uma maneira positiva para nós (PESSOA JR., 2013, p. 173).
Pela própria forma do argumento e pelos termos centrais que a sustentam (“emaranhamento com outras mentes”, “transformação de estado da outra pessoa”, “energia-chi”, “pensamento positivo”, “autoajuda quântica”, “segredo”, “alteração da realidade”, “transformação do mundo”, por exemplo), vê-se que tal concepção não é digna de confiança científica. Entretanto, para os místicos quânticos, “esse é o segredo, conhecido pelos ricos e famosos de nossa história, e só agora revelado para o grande público!” (PESSOA JR., 2011, p. 291). Por fim, dentro da tese da comunicação quântica, temos a defesa de que “há uma física quântica da alma e de Deus”. Teses como essas foram desenvolvidas, mais uma vez, por Amit Goswami, professor aposentado de física da Universidade de Oregon, escritor de livros de autoajuda (A Física da Alma, Criatividade para o Século 21, O Ativista Quântico) e estudioso de parapsicologia, segundo ele, um campo que propiciava a interseção entre ciência e consciência. No geral, as teses de Goswami – algumas supramencionadas – tendem a conjugar o misticismo quântico com as visões religiosas. Sobre isso, na visão de muitos físicos contemporâneos, nem precisa reforçar que se trata de pseudociência, não merecendo a atenção daqueles que desenvolvem ciência com seriedade. Isso é uma consequência de como a física convencional trata de visões que pretendem ser científicas, mas cujas ambições estão aquém ou além daquilo que é cientificamente admitido. Não se trata de presunção da ciência em alijar do seu campo aquilo que pretensamente não se diz científico. Trata-se de estabelecer um delineamento a respeito daquilo que é passível e não passível de se enquadrar em seu campo metodológico. É certo que a física quântica sempre esteve envolvida com estranhezas que a colocaram sob julgamento. Contudo, o que pode ser entendido ali 66 “Designarei por ‘energia-chi’ a noção mais mística de energia associada às antigas filosofias orientais, especialmente o taoísmo, distinguindo-a do conceito de ‘energia’ usado na física moderna” (PESSOA JR. 2013, p. 173).
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como uma esquisitice insere-se num contexto específico que é orientado não somente pela teoria, mas também por um processo experimental. Ao estudar esse campo, vê-se o comprometimento com a elucidação da estrutura última da realidade a partir de suas bases físicas elementares, sempre com o envolvimento do suporte experimental, onde se identificam as ditas “esquisitices” que são refletidas na teoria. Quando analisamos o misticismo quântico, principalmente aquele que é desafiador da ciência, por outro lado, o que vemos é o conjunto dos que estão com ele envolvidos agindo numa tentativa desenfreada de tornar a realidade em algo mágico; de atribuir poderes aos seres humanos os quais só seriam possíveis no âmbito dos sonhos, da realidade fantástica; de tornar a realidade controlada por poderes, até então, restritos ao divino. É em virtude disso, que alertei desde o início desse capítulo, minha postura reticente a esse tipo de misticismo. Tenho a convicção de que a física quântica ainda há de nos presentear com o que existe de mais evoluído em termos de tecnologia – e ela tem tido grandes avanços nesse sentido. Contudo, não é a conjugando com elementos estranhos à sua identidade que seremos mais realizados.
Considerações Finais Mesmo de que forma bastante estrita, concluímos esse item. Apresentamos aqui, panoramicamente e sem muitos aprofundamentos, algumas versões do misticismo quântico que utiliza a física quântica para defender teses aquém ao próprio escopo da física. As teses aqui apresentadas são as centrais, mas, dado o deslumbre causado pelo mundo quântico, em virtude da sua indeterminação e incerteza e da contraparte tecnológica por ele propiciada, isso tem oportunizado que pessoas utilizem os termos, que são próprios à física quântica, para aplicação em outras áreas, conforme dissemos, com o fito de tornar os seus argumentos cientificamente comprovados e “universalmente” aceitos. Além das teses místicas aqui expostas, ainda poderíamos levantar outras tantas, tais como: a de que “a alma pode viver em universos paralelos e estas contrapartidas podem se encontrar” (que é fundada na interpretação dos muitos mundos de DeWitt); a de que os “atos no presente podem alterar o passado e a observação atualiza o passado” (fundada na noção de John Wheeler de que o passado, associado a um experimento quântico, só se torna concreto após a escolha feita pelo físico experimental no presente); a do “paradigma holográfico onde
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cada parte contém o todo” (fundada na descoberta da holografia, em 1950, em que cada parte do holograma contém a informação de todas as outras partes) (PESSOA JR., 2011, p. 292-293). Resta reiterar, portanto, que os místicos esqueceram somente de combinar com a física quântica sobre a aplicação e veracidade dessas muitas teorias esotéricas. Se há um mérito no trabalho dos místicos quânticos, esse se funda no fato de que foram justamente eles quem expuseram as entranhas do caráter esotérico da própria teoria quântica. E se é possível que uma teoria que foi criada para fins outros que não o do místico, e esta, ainda assim, é usurpada por um campo não afim, completamente “fora da caixinha”, isso é um bom sinal de que tal teoria carece de um filtro que inviabilize que a sua aplicação seja feita para além das suas estritas fronteiras. Contudo, não é isso que acontece com a teoria quântica. Sem desprezar os diversos triunfos conseguidos por ela no campo da tecnologia, ainda assim, vê-se que ela precisa de ajustes, que não sejam ad hoc, a fim de criar um bloqueio ao caráter oculto, imaterial, indeterminado e até místico para o significado de muitos dos seus termos que deveriam se restringir ao campo dessa nova área do conhecimento. Faz-se necessário, portanto, um compromisso científico com critérios como os de clareza, coerência lógica, correção e simplicidade. No mais, não se nega que se trata de um campo de grandes promessas para o desenvolvimento tecnológico que, certamente, melhorará a qualidade de vida dos seres humanos.
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