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4. Razão das alianças: algumas reflexões

senão poderá conseguir como a experiência tem mostrado”, razão pela qual pedia 100 índios para a empreitada.720

O impacto da presença militarizada de europeus no vale Amazônico e a consequente introdução da arma de fogo implicaram na ressignificação da guerra no período colonial, provocou migrações internas e extermínio de populações indígenas. O estado de alianças e enfrentamentos que caracterizaram o contato com o sistema colonial desenhou um ambiente de guerra significativo pelo volume de conflitos verificados entre os primeiros anos de presença portuguesa na região até 1750, para os quais as alianças com os nativos tornaram-se imprescindíveis para a defesa da capitania. Mas afinal, por que os indígenas se aliavam aos portugueses?

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4. As razões para as alianças: algumas reflexões

Uma das indagações desta pesquisa foi refletir porque alguns grupos indígenas resolveram aliar-se aos portugueses e colaborar com o sistema defensivo com auxílio de gente, arte de guerra, logística, guias, remeiros e informações.

Para essa pergunta não há uma única resposta. E, ainda, não há resposta simples. A natureza dos documentos, pautada pelos registros oficiais, não deixou nenhum escrito das mãos dos próprios índios que explicasse as razões para essas alianças. Por outro lado, esse foco documental nos conquistadores portugueses na expansão das fronteiras coloniais atribui pouca ou nenhuma visibilidade a esses sujeitos. Além disso, essas alianças são resolvidas por um conjunto de relações estabelecidas entre grupos indígenas e com os estrangeiros que parece um emaranhado ainda pouco claro.

Talvez o que se apresente seja resultado de um esforço analítico de indícios que podem apontar reflexões, mas não conclusões. Trata-se de inferências para possíveis respostas por meio da análise da relação de interesse que os índios aliados têm com a guerra, contra outros grupos envolvidos no conflito, ou ainda pelo que resulta da guerra para o grupo que colabora. Isso, é óbvio, não está posto. Primeiro porque as motivações são diversas e segundo porque as fontes não fazem referência sobre as razões das alianças. Todavia,

720 Requerimento de Francisco de Potflis para o Rei solicitando autorização para fazer descobrimento de minas de ouro e o envio de índios e soldados. 12 de fevereiro de 1727. AHU, Avulsos do Pará, Cx. 10; D. 886.

pelas informações disponíveis, é possível lançar mão de algumas possibilidades. Vejamos.

Nas informações presentes nos autos de devassa da guerra contra os Aruã da Ilha de Joanes (Marajó), Francisco Dias Lisboa, soldado da companhia de João Almeida da Mata, que estava na guerra, relatou que, na peleja contra os Aruã, resgataram três índias que estes haviam roubado das aldeias dos Tupinambá.721 A frequência com que foram relatados fatos similares chamou a atenção. Poderia tratar-se de uma rede de tráfico de mulheres indígenas para Caiena mantida pelos Aruã?

Na mesma direção do soldado Francisco Dias, seguem as informações de Estácio Marques, este soldado da companhia do capitão Francisco Rodrigues da Silva, que afirmou que estas índias roubadas dos Tupinambá eram “domésticas” e acrescentou que havia outras mais, que, conforme relataram, “tinham sido vendidas em Caiena aos franceses”. O militar informa ainda a existência de outras cinco índias que haviam sido raptadas “da aldeia do Arapijó da missão dos padres da Piedade”.722

Esses relatos também foram verificados entre os índios. Hilário, índio forro, capitão da aldeia dos Tupinambás, disse que, em 1721, os Aruã haviam “levado furtada por vezes algumas índias das quais segundo sua lembrança foram quinze, e destas conduziram nas suas canoas para seus distritos e domicílios, passando-as por contrato a Caiena da França”; no ano de 1723, encontraram mais três índias, e sabia por informação do índio Alberto da aldeia dos Maruanus que o mesmo gentio Aruã lhe dissera “intentava ir brevemente à aldeia dos Tupinambá a dar-lhe outro assalto”.723

Vicente índio, Principal da aldeia de Arapijó, em 1723, relatou o ataque que sofreu pelos Aruã quando estava com sua mulher e mais alguns índios a colher andiroba para fazer azeite, do que resultou o rapto de sua mulher e mais índios. Explicou ainda “que era certo serem estes mesmos inimigos comuns da sua aldeia”. Pedro, índio forro da aldeia dos Tupinambá, também relatou que os Aruã chegaram ao porto de sua aldeia e na sua ausência levaram sua irmã

721 Boletim de Pesquisa Comissão de Documentação e Estudos da Amazônia – CEDEAM.

Universidade do Amazonas, Manaus, v. 6, n. 10, p. 44-45, jan./jun. 1987. 722 Idem, p. 47. 723 Idem, p. 58.

Alay e uma sobrinha juntamente com outros quinze que foram amarrados e levados nas canoas.724

Nádia Farage destaca esse comércio de mulheres praticado entre os grupos indígenas que habitavam as Guianas, denominados na época colonial de Caribe. Ao tratar do “fato” guerreiro desses índios, Farage ressalta que ao contrário dos Tupi, que “buscavam os inimigos homens como botim de guerra, os Caribe teriam por móvel a captura de mulheres”.725 Os inimigos, portanto, não eram o objetivo das guerras e sim suas mulheres. Se nas relações pré-conquista, para esse grupo, as guerras eram motivadas pela captura de mulheres, esse comércio já estabelecido alargou significativamente o seu alcance após o contato.

Os estudos de Farage trazem informações sobre espanhóis estabelecidos no Orinoco, que faziam “expedições aos rios Barima e Essequibo para comprar mulheres e crianças dos Caribe”. Um comércio mantido pela introdução de terçados, facas e armas, conforme depoimento de um “viajante pela Guiana holandesa a informação de que os prisioneiros homens eram mortos, e as mulheres e crianças eram preservados para troca por quinquilharia manufaturadas”.726

Ao que parece esse pode ter sido o destino das mulheres raptadas das aldeias dos Arapijó e Tubinambá. A movimentação dos Aruã conectava uma extensa região, como aparecem nos registros agiam no Cabo do Norte, Caiena, Gurupá e Xingu. Muito parecido com o que destacou Farage para os Manao do Rio Negro, acusados de manter comércio com os holandeses, “por anos engajados no tráfico de escravos em troca de manufaturados”. Para a autora, eles “não representavam senão um elo na imensa rede comercial que envolvia grupos indígenas do Essequibo ao Negro, através da rota do rio Branco”.727

Para o caso da guerra contra os Aruã (1721-1723), o apoio dos Tupinambá parece ter sido motivado pelo tráfico de mulheres e demais índios de suas aldeias, conforme aparece nos relatos. Os Aruã eram identificados como inimigos, o sentido da vingança motivava a guerra na cultura Tupinambá. Dado

724 Idem, p. 59 e 64. 725 FARAGE, Nádia. “De Guerreiros, Escravos e Súditos: O Tráfico de Escravos Caribe-Holandês no Século XVIII”. p. 177. 726 Idem, p. 178. 727 Idem, p. 175.

aos raptos das mulheres, essa pode ter sido a motivações das alianças como os portugueses no combate a esse grupo.

As alianças também poderiam ser motivadas por antigas rivalidades. Em vários relatos, os índios da nação Tupinambá citam os Aruã como seus inimigos. O comércio de mulheres para Caiena pode ter sido mais um incremento a essas intrigas. Rafael Ale Rocha observa que “alguns grupos (ou lideranças) indígenas buscavam inserir os portugueses nas guerras que travavam contra índios inimigos”. Ale Rocha destaca o caso, por exemplo, dos índios da nação Sacaca que habitavam o Marajó e eram inimigos dos Aruã e aliados dos Karipunas. Conforme dados de sua pesquisa, essa nação teria ido até Belém buscar “auxílio militar contra os Aruã”.728

Por outro lado, o auxílio indígena poderia ser motivado pelo pagamento do serviço prestado. É o caso dos índios da aldeia de Maracanã. Em 1734, como vimos, o governador José da Serra se referia esses índios como “os mais os mais fiéis a V.M.”. Destacava a necessidade de efetuar os pagamentos pelo auxílio por terem sido destacados na tropa de guerra. O governador explicitava sua preocupação, expondo que se retirasse da Fazenda real a “importância destes panos, o que faço por me parecer injusto, que os únicos índios fiéis que V.M. tem, venham de uma Tropa de Guerra doentes e se mandem para a sua terra doentes sem se lhe pagar quatro varas de pano que somente ganharam”.729

Nesse caso, o interesse na aliança é o retorno em varas de panos. Esse também foi o acordo feito pelos Aranhi, como o capitão cabo Manoel da Silva Pereira relatado em 1736, que acertaram que receberiam panos em troca do apoio para a realização de entradas ao sertão, como referido no capítulo anterior.730

A incorporação em tropas lusas poderia significar também excelente ocasião para fugas. Essa parece ter sido a motivação dos índios que auxiliavam a tropa de Belquior Mendes em 1733. Todos fugiram tão logo a incorporação à tropa. Pelos menos por três ocasiões os índios que se arregimentava das aldeias fugiram. Dos 24 índios destacados das aldeias dos padres jesuítas, fugiram

728 ROCHA, Rafael Ale. “Alianças entre os índios e os portugueses na Amazônia colonial”. História:

Debates e Tendências, v. 8, n. 2, p. 378-387, jul./dez. 2008, publ. no 2o sem. 2009, p.380. 729 CARTA do governador José da Serra ao rei. AHU, Avulsos do Pará, Cx. 17, D. 1563. 730 “Carta do ouvidor-geral do Maranhão, José de Sousa Monteiro, ao rei D. João V. 8 de agosto de 1736. AHU, Avulsos do Maranhão, caixa 22, doc. 2304.

12. Dos 17 índios que saíram das missões dos padres da Conceição chegando a Belém, consta terem fugido 9. Conseguira ainda 30 e tantos, e em seguida “fugiram todos”. O militar relatava que em tantos anos de sertão nunca havia presenciado tal desamparo.731

Para esses índios, o auxílio nas tropas significou possibilidades de fuga dos aldeamentos. Tal como aconteceu um caso no Maranhão, em que os índios se aproveitaram da ocasião de saída da tropa para atacar e matar o cabo Manuel do Vale e seus soldados.732 Nesse último caso, a incorporação à tropa significou uma boa ocasião para atacar os portugueses.

Aqui é evidente a insatisfação. Por essa razão destaquei atrás que estar aldeado não significa alinhamento com o projeto colonial luso. A incorporação compulsória de índios nas tropas, devido à prerrogativa dos aldeamentos darem auxílio às empreitadas militares, colocou nas tropas insatisfação e resistência de muitos índios que estavam nas tropas com os militares.

Para o caso do Maranhão e Piauí, analisado por Vanice Siqueira Melo, “as guerras entre índios e portugueses, podem ser compreendidas como resultado dos diversos sentidos que estes grupos davam ao espaço”. Ou seja, “as guerras são conflitos de territorialidades, uma vez que os grupos indígenas e os portugueses possuíam lógicas diferentes de apropriação do espaço”. As alianças, nesse caso, podem estar associadas ao alargamento da ação e poder de alguns grupos sobre os espaços conquistados.733

Por outro lado, há ainda um interesse pelo resultado das alianças: as possibilidades de mercês, prestígio e honrarias para muitos dos índios que participavam das tropas. As patentes conferidas a índios principais ressignificaram as relações de poder e o simbolismo da chefia nos sertões e no mundo colonial. A estratégia em manter aliança com as chefias indígenas proporcionava aos colonizadores o exercício de um poder indireto sobre os indígenas. E, por outro, podemos conjecturar que a aliança dos índios com os colonizadores

731 Carta do secretário do Governo do Estado do Maranhão, Marcos da Costa, para o comissário provincial fr. André do Rosário, sobre a obrigação de conduzir índios à cidade de Belém do Pará, com o objetivo de serem integrados nas tropas de guerra. Belém, 18 de setembro de 1733. AHU,

Avulsos do Pará, Cx. 15, D. 1413. 732 “Sobre o socorro de 400 índios de guerra que se mandam enviar logo do Ceará para se castigarem os índios do Corso por haverem morto o seu cabo Manoel do Valle e aos seus soldados”.

Lisboa 19 de dezembro de 1712. AHU, cartas régias para o Maranhão e Pará, códice 269, f. 4v. 733 MELO, Vanice Siqueira. Cruentas guerras. p. 68.

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