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Considerações Finais
Aminha intenção ao longo deste livro foi a de explicar as ações da Coroa portuguesa para resolver os problemas defensivos da capitania do Pará, na primeira metade do século XVIII. A partir das advertências de governadores e militares sobre a impossibilidade de fazer a defesa de extensas áreas sem aparato suficiente de gente, dinheiro e armamentos, essa região parecia implicar em desafios excepcionais para defesa.
Em decorrência disso, tratou-se aqui de mapear e caracterizar os aparatos de que dispunha a Coroa para a defesa da capitania nesse período. A partir disso, verificar e apresentar os principais desafios e, sobretudo, sistematizar as estratégias e as ações para manter as diligências militares. Ou seja, compreender de que maneira procurou-se garantir a vigilância de fronteiras, a guarnição de fortalezas, as expedições de descobrimentos e, principalmente, as guerras contra os índios hostis, além de interromper as investidas de outras nações da Europa na região. Nesta altura, algumas conclusões gerais decorrem desta investigação.
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Em primeiro lugar, modelos explicativos de defesa demarcados e definidos pelas estruturas do militarismo europeu mostram-se limitados para compreender a experiência do sistema defensivo da capitania do Pará, na primeira metade do século XVIII. Chamo de estruturas o enquadramento analítico abalizado pelas três companhias de que se compõem os corpos militares de Portugal: as companhias de Ordenança, Auxiliar e Regular.
Isso decorre, como expliquei ao longo dos capítulos, do fato de termos registro apenas de cinco companhias regulares que se mostravam insuficientes para as ações defensivas pelo quantitativo de gente integrada e pela inoperância, dada a péssima qualidade militar desses sujeitos, feitos soldados, em sua maioria, de forma compulsória. Por outro lado, no Estado do Grão-Pará e Maranhão, a companhia auxiliar se institui somente com a carta régia de 19 de abril de 1766, passada ao governador Fernando da Costa Ataíde Teive, que autorizava o alistamento de gente de cor para formar terços de Auxiliares e Ordenança para defesa das capitanias do Estado.
Dessa última constatação decorre a diferença do sistema de defesa do Pará em relação ao que ocorreu para o Estado do Brasil, ou ao menos em parte dele, onde as companhias auxiliares constituídas de pardos e pretos foram utilizadas desde o século XVII. Portanto, na tentativa de alinhar ou enquadrar essas duas experiências defensivas a partir de um mesmo enfoque, pode-se incorrer no problema de afirmar que a defesa do Pará foi imprecisa e incompleta. Todavia, e como apresentei ao longo dos capítulos deste estudo, esse sistema de defesa foi tão ou mais complexo em relação aos que se constituíram em outras partes da América portuguesa.
A percepção dessa complexidade exige mais esforços das pesquisas no campo da História Militar, pois é necessário deslocar o eixo analítico das estruturas militares consolidadas. Não apenas mudança de enfoque, mas também no que diz respeito às bases documentais que subsidiam os argumentos. Dessa interpretação decorre o principal argumento deste estudo: na capitania do Pará, pela fragilidade da tropa paga e pela ausência de atuação sistemática da tropa auxiliar, na primeira metade do século XVIII, houve a fundamental colaboração, mobilização e presença indígena nas atividades militares; foram os nativos que possibilitaram a envergadura das tropas lusas em ações de guerra e expansão da fronteira colonial.
É nesse aspecto que reside a singularidade do sistema defensivo da capitania. Um desafio, já que as fontes não colaboram para a percepção dos indígenas nessa perspectiva militar. Isso se deve ao caráter das fontes, mas também porque para a Amazônia colonial as pesquisas têm integrado os indígenas ao trabalho e aos aldeamentos, sendo a relação com a militarização quase inexistente. Ora, os indígenas são militares por excelência, conhecem estratégias, dominam a natureza, possuem um arsenal de armas excepcional, organizam-se em coletivo, atuam de forma articulada e conhecem o adversário e sua arte de guerra. Por essa razão, a Coroa reconhecia a importância da presença indígena nas diligências militares, como expressava o rei em carta de 1709, recomendando que se fizesse a defesa também com os “naturais”, pois estes “fazem muita diferença em seus procedimentos”. 770
770 CONSULTA do Conselho Ultramarino para o rei D. João V, sobre a nomeação de pessoas para o posto de capitão-mor do Pará. Anexo: pareceres e bilhete. Lisboa, 29 de agosto de 1709. AHU,
Avulsos do Pará, Cx. 5, D. 436.
Todavia, não se trata de percebê-los de forma isolada. Ao longo deste estudo, em nenhum momento se nega a estrutura militar lusa, afinal, são normativas que orientam a constituição das companhias na colônia. Todavia, é necessário que essa matriz seja entendida não como modelo transplantado. Mas antes como determinações ajustáveis às demandas e especificidades locais. A intenção foi considerar perspectivas que pudessem explicar a defesa no Pará colonial, e as fontes levaram à presença indígena. Portanto, desconsiderar essa força e a sua agência nas atividades militares na capitania é percebê-la de forma incompleta. A Coroa portuguesa buscou equacionar os problemas de defesa da capitania por meio de complexas estratégias para os quais os indígenas foram prontamente requisitados.
Mais que isso, eles foram fundamentais para as operações militares. Não somente do ponto de vista logístico, como guias e remeiros, como já tem tratado a historiografia, mas como força defensiva e estratégica. Por essa razão, no último capítulo, centrei a análise na capacidade combativa desses sujeitos. Se é verdade que ainda não está claro o bastante de que maneira participaram dessas atividades, cumpre destacar que ao conectar para cada evento de guerra ou avanço da fronteira a presença de aliados, como é o caso dos índios da aldeia de Maracanã, das nações Tupinambá, Aroaquizes ou de sujeitos como o Principal Cabacabary, ou os índios Antônio, José, Vicente, Luís, Cipriano, Nazário, Henrique, Felipe e tantos outros, tenho por certo que essa agência existiu e que essa atuação definiu e redesenhou as capacidades militares lusas nas guerras e ações nos sertões.
Por outro lado, torna-se evidente, a partir do percurso de pesquisa, que a defesa da capitania exigiu da Coroa medidas complexas e sistemáticas. Ações que em grande parte foram possibilitadas pela rede de comunicação gerada pela burocracia militar, que levou os problemas relativos à defesa da capitania ao conhecimento do rei. Esse circuito informativo canalizado nas secretarias e conselhos no reino integraram o Pará ao império. A partir desse sistema foi possível, para problemas locais, elaborar soluções globais, verificadas em muitas partes do império. Esse aspecto explica, por exemplo, a mobilidade de militares provenientes de diversas partes do império português. Assim como a associação da política de defesa integrada a ações de degredo e controle social por meio da integração de criminosos, “vadios” e “vagabundos” nas tropas regulares. Além disso, as complexas medidas de mobilização indígena do sertão
através da rede dos aldeamentos, alianças com lideranças e nações amigas, e da colaboração de outras capitanias. Medidas geradas por um problema concreto: a falta de gente e de dinheiro, como destacou o padre Vieira, o que justificava o tipo de atividade militar referida por Fernão Teles e Álvaro de Souza, composta “de todas as nações, e sorte de gente”, como vimos. Em síntese, trata-se de um sistema defensivo adaptável às circunstâncias locais, às limitações de gente e dinheiro, mediado pelos interesses de manutenção do território e expansão da fronteira colonial. Reside nesse aspecto a necessidade de reconectar a militarização ao universo indígena. Ações de defesa que se fazem a partir de gente de perfil heterogêneo, do reino e das conquistas, voluntária e involuntária, degredados, ciganos, “vadios”, “vagabundos”, brancos, pretos, cafuzos, mamelucos e indígenas. Na capitania do Pará, no contexto que analisamos aqui, e por todas as razões apresentadas, esses combatentes são sobretudo indígenas.
Nas considerações finais do livro A “gente de guerra” na Amazônia colonial, argumentei que a Coroa não tinha sido capaz de efetivar, no Pará, uma estrutura militar regular que desse conta de todas as atribuições que ensejavam o domínio sobre sertões e fronteiras tão dilatados.
De fato, se tomada em particular a tropa paga, a sua atuação para defesa mostra-se incapaz e limitada. Naquela altura não tinha considerado o sistema defensivo em sua totalidade, a partir de uma análise do corpo legislativo, das companhias de ordenanças, regulares e auxiliares, das fortalezas, dos soldados, dos oficiais e dos indígenas, como aqui busquei fazer. Estou convencida que ao observar todas essas partes em conexão me aproximo mais do quadro que compõe o sistema defensivo da capitania do Pará, na primeira metade do século XVIII e, também, das estratégias e ações da Coroa em assegurar o domínio dessas extensas áreas coloniais.
Mas além disso, é necessário compreender que esse sistema é formatado também pela agência indígena ao estabelecer as alianças com os portugueses. As motivações dos índios, que busquei caracterizar no último capítulo, são as mais diversas, antigas rivalidades, comércio, acesso a armamentos, pagamento, mercês, prestígio e, sobretudo, pelo ambiente de contato para o qual as alianças e o domínio das armas mostravam-se importantes nas novas relações constituídas nos sertões, como foi o caso dos Aruã do Marajó.
O sistema defensivo, portanto, é luso-indígena, pois agrega elementos do militarismo europeu, mas também da arte de guerra indígena que pelo contato formataram novas técnicas resultantes dessa combinação de conhecimentos. Um aprendizado que decorre da convivência nas tropas e práticas dos sertões. Foram essas características que ressignificaram o conflito e a ação militar na capitania do Pará da primeira metade do século XVIII. • • •
Mas afinal, a quem interessa um estudo sobre militarização na Amazônia do século XVIII?
Em 2017, o secretário-geral da ONU, António Guterres, mostrava que os gastos militares mundiais ultrapassaram 1,7 trilhão de dólares. Esse espantoso valor foi gasto em armas e subsídios a exércitos. De acordo com o secretário, são os “maiores índices desde a queda do Muro de Berlim, 80 vezes mais que o financiamento humanitário básico em todo o planeta”. No Brasil foram US$ 29,3 bilhões de dólares em 2017, 6,3% mais que em 2016.771 Esses dados atestam que as instituições militares, as pesquisas bélicas e a tecnologia de guerra têm retirado boa parcela das receitas dos Estados na contemporaneidade. Além disso, mostram que os Estados são vertiginosamente militarizados. Ora, mas o que isso significa?
Em primeiro lugar, significa que permanece uma conduta bélica nas sociedades contemporâneas, nas quais se associa o poder do Estado à quantidade e poder de armamentos, forças e domínio da ciência bélica. Além da construção retórica de que a militarização fornece segurança aos estados nacionais. Ou que o porte de arma de cidadãos civis os torna mais protegidos, e a sociedade menos violenta. Por outro lado, não raro a influência no cenário internacional é associada ao domínio das armas pelos países hegemônicos.
Essa simbiose entre militarização e poder do Estado é uma chave interpretativa que nos interessa profundamente, e que foi alimentada pelo excesso nos conflitos da I e II guerras mundiais e levada aos extremos no contexto da Guerra Fria, protagonizada por duas potências mundiais que mediam seus poderes pelo domínio dos armamentos. Basta lembrar que escopo principal dos EUA e da antiga URSS era o estudo do outro, por meio da espionagem e
771 ONUBR. Nações Unidas no Brasil. Disponível em: https://nacoesunidas.org/gastos-militares-sao-80-vezes-maiores-que-os-humanitarios-onu-lanca-plano-de-desarmamento/. Acesso em: 5 fev. 2019.
o aprimoramento das forças, a partir do fomento bélico da corrida armamentista. Esse período foi marcado pelo impulso da ciência bélica e a introdução de armamentos no mundo que, para Eric Hobsbawn, explica, em grande parte, o mercado ilegal de armas do século XXI.772 Em outras palavras, o poder do Estado também está associado ao seu poder de destruição ou defesa. No século XXI, verifica-se que a capacidade de militarização ultrapassou o domínio dos Estados nacionais, e mesmo os conflitos apresentam novas características. As fronteiras políticas não definem a ação do ataque, ou seja, os conflitos são internos, basta lembrar o caso Síria por exemplo, ou mesmo os ataques terroristas para os quais essas barreiras nacionais não têm nenhum significado. Essa nova configuração implicou também na ampliação dos estudos de defesa, para os quais se incluem a compreensão do Estado, mas também de outros atores sociais, e da relação entre a militarização e as sociedades.
Atualmente, nos importa ainda a percepção de posicionamentos xenófobos, políticas coercitivas nas fronteiras diante da crise dos refugiados, o enfrentamento coercivo do Estado diante das populações tradicionais e o papel pouco ativo da ONU na resolução desses eventos. Além disso, verifica-se o recrudescimento de posicionamentos nacionalistas e autoritários que têm colocado em evidência o tema da segurança nacional e mundial. Ora, as ameaças recentemente trocadas entre a Coreia do Norte e os EUA, e destes com a Rússia, são evidências que ameaçam acordos internacionais como o Tratado de NãoProliferação de Armas Nucleares (TNT), de 1970, e o Tratado Abrangente de Proibição de Testes Nucleares, adotado em 1996.
Portanto, há uma relação intrínseca entre poder bélico e poder político. Um binômio entre domínio da força repressiva e poder que tem se mantido nas sociedades contemporâneas. Pode ser verificado, por exemplo, na legitimidade do uso da força coercitiva do Estado ou de grupos que impõem seu poder pelas armas; basta lembrar os conflitos pela terra na Amazônia, cenário de inúmeros casos de massacres de trabalhadores rurais, ativistas, ambientalistas e populações tradicionais, como indígenas, quilombolas e ribeirinhos.
772 HOBSBAWM, E. J. Globalização, democracia e terrorismo. Tradução de José Viegas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007.
As forças coercitivas mantêm o poder legítimo da repressão do Estado, a exemplo do uso dos aparatos bélicos de repressão no massacre de Pau d’Arco (2017) e de Eldorado dos Carajás (1996), para citar apenas dois casos de muitos outros que não alcançam notoriedade nas mídias. Além da intervenção militar, que de forma absurda ainda hoje é interpretada como solução e não como problema. Basta lembrar o saldo social que a intervenção no Rio de Janeiro tem trazido, como a morte na periferia, o extermínio de inocentes e dos que contestam, como ocorreu com Marielle Franco em 14 de março de 2018. Um ambiente que se conjuga a um organismo jurídico frágil e subserviente aos interesses políticos. Em uma relação historicamente construída entre a força militar e o poder do Estado.
Aqui a intenção é destacar que a militarização ocupa centralidade nas relações contemporâneas. O poder das armas integra um falso fascínio no mundo. E, no Brasil, foi um aspecto que corroborou para colocar no poder um presidente que abertamente faz apologia à violência e à tortura, ataca os direitos humanos, incita o ódio e reverbera a ignorância. Um conjunto político em que a mediocridade é o tom, da cabeça aos membros, e que foi constituído em meio a posicionamentos conservadores, autoritários e intolerantes em que vozes se levantavam a favor da militarização, da intervenção militar e do regime militar, em uma completa letargia e desconhecimento sobre o passado. Nesta altura, porventura, pondera-se as variáveis da temporalidade histórica e assumem-se os riscos do anacronismo, mas a reflexão é necessária dado o ambiente sombrio e com evidentes retrocessos deste tempo em que escrevo.