História da Educação Matemática e Formação de Professores (nova versão)

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HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES: aproximações possíveis


Coleção História da Matemática para professores Conselho Editorial Antonio Miguel – Universidade Estadual de Campinas, Brasil Antonio Vicente Marafioti Garnica – UNESP/Rio Claro; UNESP/Bauru, Brasil Circe Mary Silva da Silva Dynnikov – Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil Cláudia Regina Flores – Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Emmánuel Linzcano Fernandez – Universidad Nacional de Educación a Distância, Madrid/Espanha Eva Maria Siqueira Alves – Universidade Federal de Sergipe, Brasil Fulvia Furinghetti – Universidade de Gênova, Itália Iran Abreu Mendes – Universidade Federal do Pará, Brasil José Manuel Matos – Universidade Nova de Lisboa, Portugal Luis Radford – Universidade Laurentienne, Canadá Maria Célia Leme da Silva – Universidade Federal de São Paulo, Brasil Miguel Chaquiam – Universidade do Estado do Pará, Brasil Sergio Nobre – UNESP/Rio Claro, Brasil Ubiratan D’Ambrosio – Universidade Bandeirante de São Paulo, Brasil Wagner Rodrigues Valente – Universidade Federal de São Paulo, Brasil


Maria Célia Leme da Silva Thiago Pedro Pinto (Organizadores)

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES: aproximações possíveis

2020


Copyright © 2020 Editora Livraria da Física/SBHMat 1ª Edição Direção editorial: José Roberto Marinho Editor assistente: Carlos Aldemir Farias

Coleção História da Matemática para professores Coordenador da coleção Iran Abreu Mendes – Universidade Federal do Rio Grande do Norte Apoio Sociedade Brasileira de História da Matemática

Projeto gráfico e diagramação: Fabrício Ribeiro

Edição revisada segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Dados Internacionais de Catalogação na publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) História da educação matemática e formação de professores: aproximações possíveis / Maria Célia Leme da Silva, Thiago Pedro Pinto, (organizadores). – São Paulo: Livraria da Física, 2020. – (Coleção história da matemática para professores) Vários autores. ISBN 978-65-5563-023-7 1. Educação matemática - História 2. Matemática - Ensino - História 3. Professores - Formação profissional I. Silva, Maria Célia Leme da. II. Pinto, Thiago Pedro. III. Série. 20-43854

CDD-510.7 Índices para catálogo sistemático: 1. Educação matemática 510.7 Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida sejam quais forem os meios empregados sem a permissão da Editora. Aos infratores aplicam-se as sanções previstas nos artigos 102, 104, 106 e 107 da Lei Nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998

Editora Livraria da Física www.livrariadafisica.com.br


Agradecimentos À CAPES e ao CNPq que apoiaram a publicação deste Livro com o financiamento para a realização do IV Encontro Nacional de Pesquisa em História da Educação Matemática, cujos debates e reflexões originaram os textos desta publicação.



DedicatĂłria Dedicamos esta obra a todos aqueles que vieram antes de nĂłs e que tornaram esta empreitada possĂ­vel.



A utopia estรก lรก no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcanรงarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu nรฃo deixe de caminhar. (Eduardo Galeano).



SUMÁRIO Abertura: sob o signo do coletivo de pensamento............................................ 13 Prefácio: História da educação matemática e educação matemática............. 19 1. Renovando las matemáticas escolares por medio de la formación del magisterio............................................................................................................... 53 2. A formação de professores que ensinam matemática – história e perspectivas atuais................................................................................................ 91 3. A história da educação matemática nos cursos de formação de professores............................................................................................................ 125 4. Temas e problematizações: uma leitura das mesas-redondas submetidas ao IV ENAPHEM..................................................................................................... 173 5. Um olhar múltiplo para os trabalhos apresentados nas sessões coordenadas do IV ENAPHEM: uso e mobilização de fontes............................................. 195 6. Sessão memória do IV ENAPHEM: textualização da entrevista com a professora Nilza Eigenheer Bertoni.................................................................. 229 Sobre os Organizadores...................................................................................... 253 Sobre os autores................................................................................................... 255



ABERTURA: sob o signo do coletivo de pensamento Iran Abreu Mendes

A Coleção História da Matemática para Professores teve sua origem no ano de 2009 com a intenção de apostar na publicação de trabalhos sobre História e Epistemologia da Matemática (HEpM), História da Educação Matemática (HEdM) e História para o Ensino da Matemática (HEnM) resultantes de pesquisas realizadas por docentes de instituições de ensino superior, pesquisas desenvolvidas em níveis de pós-graduação (mestrado e doutorado), dentre outros trabalhos que tenham as características de uma produção científica voltada a mostrar informações histórias relativas à matemática e, principalmente, à potencialidade de sua utilização no ensino da Matemática na Educação Básica e no Ensino Superior. Desde a sua criação contou com a chancela de publicação pela Editora Livraria da Física, somada ao apoio da Sociedade Brasileira de História da Matemática. A coleção avançou no objetivo de contribuir à divulgação e à utilização das produções advindas de estudos e pesquisas em História da Matemática, agrupadas em três modalidades de focalizações epistemológicas que culminaram em caracterizações das seguintes linhas de abordagem investigativas (HepM; HEdM; HenM).


A partir de cada uma dessas modalidades epistemológicas são realizadas investigações acerca das histórias dos problemas e conceitos matemáticos, das relações entre Matemática, Ciências Naturais e Técnicas, das biografias de matemáticos e professores de Matemática, análise histórica de fontes literárias matemáticas; história das organizações institucionais e história das disciplinas dos cursos de Matemática, dentre outros enfoques relacionados à pesquisa nesse campo de estudos que tem se ampliado produtivamente no Brasil desde a década de 1990 (cf. MENDES, 2019). De acordo com as significações conceituais atribuídas por Mendes (2015), as pesquisas em História da Educação Matemática (HEdM) são caracterizadas pelas produções que abordam histórias relativas à vida e obra (biografias) de professores de matemática e suas produções e ações docentes, história de instituições científicas e escolares, histórias de disciplinas escolares relacionadas ao campo da matemática escolar, história da cultura matemática escolar, história sobre a formações de professores de matemática, (auto)biografias de professores de matemática, além das contribuições feitas por eles para a formação de professores de matemática e para a melhoria do ensino, bem como outras produções que contribuem à catalogação de fontes documentais e outros documentos que constituem acervos, memórias e o patrimônio da Educação Matemática Brasileira. Com base em meus estudos mais recentes reconheço que, de um modo particular, as pesquisas em história da Educação Matemática, realizadas no Brasil, têm envolvido fortemente conceitos referentes ao que se compreende por coletivo de pensamento, à noção de genealogias em suas conexões com a institucionalização de uma comunidade de pesquisa como na área de História da Educação Matemática e à produção de conhecimento, concernentes à memória da Educação Brasileira em seus aspectos conceituais, didáticos, epistemológicos, socioculturais e políticos, posto que a dinâmica dessa produção de conhecimento leva em consideração o sujeito, o objeto e o estilo de pensamento compartilhado pelo coletivo de pensamento (MENDES, 2018). O estilo de pensamento é o direcionador do modo de pensar e de agir de um grupo de pesquisadores (educadores) de uma determinada área do conhecimento. O coletivo de pensamento compreende uma comunidade de indivíduos que compartilham práticas, concepções, tradições e normas, no qual a maneira própria de ver o objeto do conhecimento (o ver formativo), e 14

História da Educação Matemática e formação de professores: aproximações possíveis


de interagir com o mesmo, determina o estilo de pensamento, conforme nos enfatiza Ludwik Fleck (2010). Na estrutura geral do coletivo de pensamento, Fleck distingue os círculos esotérico e exotérico. O primeiro seria formado pelos especialistas, enquanto o outro representaria os leigos e leigos formados. As pessoas poderiam pertencer a vários coletivos simultaneamente, atuando como veículos na transmissão de ideias entre os coletivos. Entre os círculos exotérico e esotérico estabelecem-se relações dinâmicas que contribuem para a ampliação da área de conhecimento, denominadas de circulação intracoletiva e circulação intercoletiva. Através da circulação intracoletiva de ideias, que ocorre no interior do coletivo de pensamento, o sujeito individual se insere no coletivo de pensamento e precisa aprender e compartilhar os conhecimentos e práticas do estilo de pensamento vigente. Assim, com base na epistemologia de Fleck é possível identificarmos um caráter sócio-histórico-cultural nas pesquisas em História da Educação Matemática de modo que se possa compreender a interação dos coletivos de pesquisadores e professores matemática entre si e com outros grupos socioculturais, em movimento de explicitação do caráter sociológico da produção e disseminação do conhecimento sobre cultura matemática escolar produzido historicamente no interior desses coletivos. Esses estudos históricos manifestam as diversidades de maneiras operacionalizadas na circulação intra e intercoletiva de ideias que possibilitaram e possibilitam caracterizar processos de constituição, disseminação e modificação dos conhecimentos em dinâmicas de institucionalização e objetivação como cultura escolar, bem como acerca do pensamento e das práticas pedagógicas dos professores. Neste sentido, as pesquisas em história da Educação Matemática têm contribuído para se refletir a respeito dos processos coletivos da produção do conhecimento, nos levando a compreender que as maneiras de um professor realizar a sua prática pedagógica estão ligadas ao seu processo de formação, suas ações e trajetória docente. Igualmente, permite identificar as condições para a instauração de um estilo de pensamento ligado à Educação Matemática, que propicia compreender a importância da comunicação intra e intercoletiva no estabelecimento e transformação de um estilo de pensamento. Além disso, estimula compreender as formas de inserção da Matemática nos currículos escolares em todos os seus níveis de ensino, nos mais diversos contextos ABERTURA

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históricos. Igualmente, incita uma reflexão sobre as histórias das práticas pedagógicas de professores que ensinam matemática e contribui para analisarmos impactos das formações dadas aos professores para o ingresso em um estilo de pensamento e da ação docente na constituição da área de Educação Matemática. Portanto, considero importante salientar que os pesquisadores que investigam sobre História da Educação Matemática (HEdM) têm apresentado contribuições importantes para a formação de professores que atuam na Educação Básica e no ensino Superior, com os resultados de pesquisas oferecendo um rol mais diversificado de temas relativos à História da Educação Matemática, tendo em vista o avanço dos estudos nessa área na atualidade. Nessa perspectiva, o livro organizado por Maria Célia Lema da Silva e Thiago Pedro Pinto, intitulado História da Educação Matemática e Formação de Professores: aproximações possíveis inclui-se na coleção História da Matemática para Professores, uma vez que tem como meta contribuir para que os docentes de Matemática possam tomar a diretriz histórica como um elemento problematizador e reflexivo acerca do desenvolvimento de ideias relativas às culturas matemáticas escolares, bem como sobre a complementação de uma compreensão ampliada dos processos estabelecidos históricamente nas aulas de Matemática e nos processos de objetivação de saberes matemáticos nos níveis de ensino. Este livro é resultado de reflexões sobre debates estabelecidos durante e após a realização do IV Encontro Nacional de Pesquisa em História da Educação Matemática ocorrido em 2018 na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e tem como principal finalidade oportunizar à comunidade de pesquisadores e estudiosos desse campo acadêmico mais uma fonte de conhecimento produzido que poderá contribuir em seus estudos futuros. É assim que desejo aos leitores uma ampliação enriquecedora de seus conhecimentos e avanços em seus estudos, em seus projetos de pesquisa, em suas orientações acadêmicas, na formaçao de professores e em suas ações docentes.

Referências FLECK, Ludwik. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Ed. Fabrefactum, 2010. (Coleção Ciência, Tecnologia e Sociedade).

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MENDES, Iran Abreu. História da matemática no Ensino: entre trajetórias profissionais, epistemologias e pesquisas. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2015. MENDES, Iran Abreu. Grupos de Pesquisas em História da Educação Matemática do Brasil: genealogias, conexões e difusões. Relatório de Pesquisa Produtividade CNPq. Universidade Federal do Pará: Instituto de Educação Matemática e Científica, 2018. 269p. MENDES, I. A. História para a educação matemática: apontamentos sobre as pesquisas brasileiras. Revista Exitus, v. 9, p. 26-50, 2019.

ABERTURA

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PREFÁCIO: História da Educação Matemática e Educação Matemática José Manuel Matos1

Aceitando o desafio dos organizadores do livro do ENAPHEM, proponho-me apresentar algumas reflexões suscitadas da leitura dos textos incluídos neste livro. Trata-se essencialmente de aprofundamentos de ideias que já exprimi anteriormente e que, com a interlocução das opiniões dos outros autores, conhecem aqui novos desenvolvimentos. Este texto tem o propósito de aprofundar a relação entre o campo da Educação Matemática (EM) e o da História da Educação Matemática (HEM)2, discutindo os modos como o estudo do passado pode ajudar à compreensão dos problemas do ensino e da aprendizagem da matemática atual. O texto não é, pois, sobre HEM. O leitor não encontrará aqui reflexões epistemológicas, recomendações metodológicas ou revisões dos resultados mais importantes do campo. A HEM tem relevância por si própria, é um campo em plena expansão, 1

Universidade Nova de Lisboa, Universidade Federal de Juiz de Fora – Programa de PósGraduação em Educação Matemática da UFJF. E-mail: jmm@fct.unl.pt.

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Procurando uma simplificação da escrita, utilizarei as abreviaturas EM e HEM para me referir indistintamente quer aos respetivos campos, que deveriam estar em maiúsculas, quer a atividades relacionadas com eles, que deveriam estar em minúsculas. Igualmente utilizarei HM para me referir indistintamente à história da matemática como campo e atividade. Espero que o contexto ajude o leitor a destrinçar entre os dois tipos de significado.


mas não é esse o âmbito deste texto. Como consequência existem muitos trabalhos que, embora relevantes, não serão aqui referidos apenas porque não me parece que contribuam para a discussão sobre o tema que pretendo debater. Este trabalho constitui um olhar simultaneamente do exterior e do interior. Ele é do exterior, pois é de Lisboa que fui acompanhando a expansão da produção na área da História da Educação Matemática no Brasil, e do interior, porque ao longo destes últimos 15 anos estive colocado na situação de colaborador próximo do que foi sendo feito, quer através de projetos comuns, participação em eventos, bancas, etc. quer, em particular, em muitas conversas com os protagonistas. Não posso deixar de registar que num tempo em que a Educação Matemática se expande em múltiplas direções, uma delas seja justamente a da investigação histórica e que neste livro se revela em toda a sua pujança. Antes de mais, de que lugar falo? Uso o termo lugar no sentido de Michel de Certeau (1977), isto é, aquele sistema de referência ou “filosofia implícita” que formata (isto é, dá forma) e..., deforma. Os meus comentários estão enquadrados no que é a minha matriz profissional, a EM, que está no centro da minha prática, quer como professor do ensino secundário, quer como investigador e formador de professores trabalhando no nível de pós-graduação e cujos interesses de pesquisa se iniciaram nas dimensões individuais da aprendizagem da matemática, passando depois para as sociais e culturais, todas elas entremeadas com um interesse na história, na filosofia e na sociologia da matemática. Filio-me, pois, no grupo de pesquisadores que se preocupam com os problemas relacionados com o ensino e a aprendizagem da matemática. É esse o meu lugar ou a minha tradição de investigação no sentido de Alan Bishop (1992) – ou das práticas de investigação referidas por John Mason e Andrew Waywood (1996) – e é a partir daí que abordo os estudos do passado. Poderia haver outras opções legítimas. Por exemplo, se a minha prática se identificasse mais com a dos historiadores em educação ou com a dos historiadores de matemática, naturalmente este meu texto seria diferente e refletiria outras preocupações. Antes de prosseguir, gostaria de clarificar o âmbito dos problemas sobre os quais julgo que se deve debruçar a EM. Penso que a ela pertence o estudo de todos os problemas relacionados com o ensino e a aprendizagem da matemática entendidos de uma forma muito ampla que integra dimensões cognitivas, 20

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afetivas, individuais, sociais e culturais. Rejeito assim a visão de Guy Brousseau, um dos proponentes da Didactique des Mathématiques francófona, segundo o qual boa parte dos problemas do ensino e da aprendizagem da matemática são “irredutivelmente” matemáticos: Existem problemas em educação matemática que são irredutivelmente matemáticos – por exemplo, a escolha de problemas, a organização das atividades matemáticas para fins didáticos, a análise da compreensão em matemática, [e] ... a estruturação do discurso matemático. ... Não existe uma conjunção de disciplinas clássicas que explique o funcionamento desta parte irredutivelmente matemática do ensino. ... Uma abordagem científica [a esta parte] é e será essencialmente o trabalho de um matemático. (BROUSSEAU, apud SIERPINSKA; KILPATRICK, 1998, p. 528, tradução do autor)

Segundo parece concluir-se das suas palavras, algumas das atividades que se costumam considerar como sendo da responsabilidade dos docentes de matemática no ensino primário e secundário deveriam ser “irredutivelmente” atribuídas a matemáticos que explicitariam os conteúdos, a sequência e mesmo os critérios de compreensão dos alunos. Penso, pelo contrário, que compete, em primeiro lugar, aos professores e educadores matemáticos a escolha de problemas, a organização das atividades matemáticas para fins didáticos, a análise da compreensão em matemática, ou a estruturação do discurso matemático. Existem, claro, outros profissionais, como psicólogos, sociólogos, matemáticos profissionais, etc., que podem também contribuir para estes tópicos, mas não lhes compete a responsabilidade primeira, pois não são eles que têm uma visão simultaneamente local e global das problemáticas envolvidas. Mas onde e como deve o educador matemático procurar respostas para as suas questões? O problema foi levantado e debatido devido à iniciativa de Hans Georg Steiner que, entre meados dos anos 1980 até ao início de 1990, liderou um grupo de estudo internacional chamado Theory of Mathematics Education, que realizou cinco conferências e interveio regularmente em conferências internacionais (FURINGHETTI; MATOS; MENGHINI, 2013). O debate conduzido pelo grupo sobre a natureza, as possibilidades, os limites e a legitimidade da EM como campo científico foi ampliando a discussão e envolveu pesquisadores de destaque de vários países. A relação entre EM e outros

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campos do conhecimento (psicologia, educação, sociologia, matemática, etc.), o poder explicativo de paradigmas concorrentes, a (in)viabilidade de teorias caseiras (home-grown theories3), a relação entre teoria e prática e reflexões sobre mudança curricular estavam entre as muitas contribuições deste grupo (STEINER, 1984)4. Todos os campos académicos têm um objeto, que, no caso dos profissionais de EM, constitui o estudo de problemas do ensino e aprendizagem da matemática. A EM é, pois, um campo de reflexão que desenvolve teorias, modelos, paradigmas acerca do seu objeto e que também repousa na combinação dos resultados de outras disciplinas, integrando perspectivas que permitam uma visão conexa dos problemas do ensino e da aprendizagem da matemática. Recorde-se que os campos científicos são cada vez menos estanques e hoje todos experienciam um esbatimento de fronteiras. Frequentemente os crescimentos na compreensão dos fenómenos advêm da aplicação de teorias, métodos, ferramentas de áreas exteriores. Tal como todas as áreas didáticas, a EM requer o atravessar de fronteiras entre disciplinas e depende dos resultados e dos métodos de campos muito diversificados, competindo-lhe sistematizar esse conhecimento em algo que se relacione com o seu objeto: o ensino e a aprendizagem da matemática. Esta reflexão sobre a melhoria das condições de ensino e aprendizagem da matemática necessita, na minha perspectiva, de um confronto com a prática, e a EM é também uma disciplina de ação. Por um lado, é o seu próprio objeto que exige que a reflexão seja interligada com a prática. É uma razão de eficácia. Por outro, a sociedade volta-se para nós, procurando soluções para os problemas de ensino e da aprendizagem. Possui, portanto, também um imperativo ético. Não seria aceitável que a EM se encerrasse em temáticas internamente definidas sem sair para o exterior e enfrentar os problemas do ensino. A pesquisa em EM deve, assim, ter sempre em pano de fundo a realidade escolar e a sua aplicabilidade a alunos, professores, escolas, sistemas educativos reais.

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Steiner acreditava que a EM não deveria desenvolver teorias próprias (home-grown theories) devendo antes apoiar-se em paradigmas desenvolvidos noutras áreas: psicologia, sociologia, etc. A prática veio desmenti-lo pois muitos dos resultados relevantes em EM provêm precisamente de teorias próprias.

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O tema continua a ser discutido. O leitor pode acompanhar os seus desenvolvimentos em Sriraman e English (2010).

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A articulação entre essas duas dimensões levou Bauersfeld a falar, em 1988, sobre “duas culturas” na pesquisa em EM (apud WITTMANN, 1998), por um lado, o conhecimento teórico e, por outro, a intimidade com a prática. Wittmann aproxima mesmo a natureza da EM ao design, característico das engenharias, pela relevância que nela assume a necessidade de aplicação à prática. A metodologia recente de “investigação em baseada em design” aplicada à EM articula precisamente a reflexão e a prática (MATOS; SERRAZINA, 2016). A escolha da temática deste texto, a relação entre HEM e EM, não foi apenas ditada pela minha experiência particular. Nessa escolha pesou a constatação de que a prática de pesquisa em HEM tem sido efetuada em todos os países, predominantemente por pessoas com formação em EM, como apontam Wagner Valente (2008) e Elisabete Búrigo (capítulo 3 deste livro). Imagino que o quotidiano de boa parte dos leitores deste livro também se relaciona com a formação de futuros professores em matemática e o seu ensino. Sintoma disso mesmo é o facto de a problemática da formação de professores ser dominante nos ENAPHEMs. Poder-se-ia argumentar que, de alguma forma, a formação e a prática em EM, com o consequente défice em formação em história, enviesaria uma boa produção historiográfica. O problema coloca-se igualmente, quando os interesses do educador matemático o conduzem para estudos sociológicos, antropológicos, linguísticos, psicológicos, etc. Como já referia Steiner (1984), a pesquisa em EM é atravessada por diversas áreas de especialidade, e a “arte” do educador matemático5 consiste em saber navegar nessa Babel de influências. Tal como no caso da pesquisa nas áreas que mencionei, não creio que o lugar de educador matemático necessariamente restrinja a capacidade de investigar em HEM. Isso apenas aconteceria se o investigador não tivesse refletido sobre uma epistemologia da história ou adulterasse as suas opções metodológicas, não respeitando critérios para um trabalho histórico de qualidade. A experiência de boa parte dos leitores deste livro é a prova de que não existe necessariamente uma incompatibilidade entre essas duas práticas. Necessito de distinguir neste texto os professores de matemática dos educadores matemáticos. Aqui a primeira denominação refere-se ao grupo dos docentes que ensinam matemática, incluindo aos alunos mais novos, 5

Esta “arte” é discutida em Sierpinska e Kilpatrick (1998) ou mais recentemente em Sriraman e English (2010).

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enquanto a segunda abrange os docentes que formam os primeiros e que têm como interesse a realização de investigação sobre os processos de ensino e de aprendizagem da matemática. Embora muitos professores realizem trabalhos de pesquisa e muitos educadores matemáticos também ensinem matemática, existem metodologias de investigação, nomeadamente as colaborativas, que esbatem essa diferença. Neste texto, esta distinção torna-se necessária, porque envolve práticas relacionadas, mas diferentes. Será, então, como educador matemático que colocarei as questões que nortearão este texto: 1) A HEM é relevante para a EM? 2) Como pode a HEM apoiar a reflexão em EM? 3) Como pode a HEM apoiar a ação em EM?

Relevância do olhar Histórico na Educação Matemática Num texto recente, destinado à comunidade de educadores matemáticos, lamentei a pouca importância que alguns deles dão ao conhecimento do passado. Segundo a minha experiência, é comum os educadores matemáticos reagirem aos estudos históricos com um misto de curiosidade e de distanciamento. Para muitos, é muito interessante conhecer os detalhes desta ou daquela reforma, saber como uma corrente de pensamento influenciou formas de ensinar, aprender como eram usados antigos materiais manipuláveis, ou apreciar os modos como uma personalidade moldou de forma decisiva os métodos de ensino, ou escreveu livros inovadores. Mas simultaneamente esses educadores matemáticos não conseguem vislumbrar uma ligação entre esses temas e os seus interesses investigativos contemporâneos. Os estudos históricos aparecem como uma galeria de retratos de antepassados ou objetos de museu, sem dúvida interessantes, mas que não têm relevância para os problemas dos nossos dias. Alguns vão mesmo mais longe, considerando a investigação histórica como um tema a que não se deve dar grande atenção. (MATOS, 2018b, p. 631)

Existem razões para esta atitude. O facto de a investigação em HEM ser muito recente e de apenas agora, com a publicação de textos de síntese, estar em condições de poder passar a figurar como um tema curricular na formação de professores e na formação avançada em EM, deve ser uma delas.

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História da Educação Matemática e formação de professores: aproximações possíveis


A valorização do passado é, pois, muito recente. Nos seus primeiros tempos, a EM centrou-se no relato de experiências curriculares bem sucedidas (FURINGHETTI; MATOS; MENGHINI, 2013) predominando a “tradição pedagógica” focada na divulgação dos bons resultados de experiências curriculares (BISHOP, 1992). As críticas às limitações desta abordagem feitas no final dos anos 1960, bem como o alargamento das problemáticas do interesse dos educadores matemáticos, levaram à criação, em 1976, no International Congress on Mathematics Education de Karlsrühe, de dois grupo de estudo. O primeiro, o International Group for the Psychology of Mathematics Education, tornou dominante nos discursos da EM a “tradição do cientista empírico” assente em conclusões resultantes estudos empíricos teórica e metodologicamente sustentados (BISHOP, 1992). O segundo grupo criado foi o International Study Group for the Relations Between the History and the Pedagogy of Mathematics (HPM), cujo trabalho será relevante para as discussões deste texto. Mais tarde, desde meados dos anos 1980, o campo da EM tem-se vindo a alargar, deslocando o centro gradualmente de estudos de âmbito psicológico sobre o aluno individual para abordagens sociais e culturais quer no domínio da aula (interações em aula, cultura da aula, por exemplo), quer em situações mais amplas (contextos sociais e culturais do ensino e da aprendizagem, etnomatemática, etc.) (FURINGHETTI; MATOS; MENGHINI, 2013). No entanto, essa virada social dos investigadores não foi acompanhada por uma valorização do passado. Até recentemente, mesmo em textos de reflexão sobre EM é muito raro encontrar menções à investigação em HEM e, quando as há, não é claro se os autores se referem à HEM ou à importância da reflexão histórico-epistemológica sobre temas matemáticos (ver, por exemplo, BOERO; SZENDREI, 1998; STEINER, 1984). Note-se que nem mesmo o grupo HPM, que se centrou nos usos da pesquisa em história da matemática na formação matemática, se preocupou com a HEM. Na década de 2010, registra-se uma mudança e assistimos ao que poderíamos denominar de uma virada histórica. É significativo, por exemplo, que a intenção de valorização do passado esteja claramente expressa na introdução ao Third International Handbook of Mathematics Education (CLEMENTS, M. et al., 2013a), que começou a ser escrito em 2010. Nas palavras de Clements:

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Também foi acordado que cada seção [do Handbook] seria estruturada com base em aspectos passados, presentes e futuros. Assim, o primeiro capítulo de cada uma das quatro seções se preocupa com análises de antecedentes históricos (“Como chegamos onde estamos agora?”); os capítulos “intermediários” fornecem análises das principais questões e temas atuais (“Onde estamos agora e que acontecimentos desde 2003 [ano da publicação do Handbook anterior] foram especialmente significativos?”); e o capítulo final de cada seção reflete sobre questões de política (“Para onde estamos indo e o que devemos fazer?”). Até onde sabemos, este Handbook é a primeira publicação importante em educação matemática a adotar, conscientemente, essa estrutura organizacional passado-presente-futuro. (CLEMENTS, 2013, p.vi, tradução do autor)

Tanto quanto sei, Clements tem razão, visto que, pela primeira vez, um texto de grande relevância internacional em EM integra na sua estrutura a necessidade de conhecer o passado para prospetar o futuro. Em rigor, quase 20 anos antes, um relatório escrito para a UNESCO por ele e por Nerida Ellerton (1996) com o título Mathematics Education Research: Past, Present and Future já defende a importância de uma visão histórica para agir sobre o presente. Após questionar a falta de relevância da maioria da investigação em EM para a realidade quotidiana das escolas, o relatório propõe um novo enquadramento epistemológico para a investigação em EM que preste atenção a quatro áreas, valorizando, logo em primeiro lugar, o conhecimento histórico. As áreas destacadas são: (a) as histórias da matemática e da educação matemática; (b) entendimentos e realizações matemáticas em diferentes culturas; (c) influências da cultura na concepção matemática da criança (pré-escolar); e (d) o impacto da escolaridade nas concepções de matemática dos alunos. (CLEMENTS; ELLERTON, 1996, p.184, tradução do autor)

Uma proposta semelhante é incorporada no texto de Erich Wittmann (1998) sobre “Mathematics Education as a ‘Design Science’” que considera que, dada a necessidade da sua aplicabilidade, a EM deveria ter um núcleo (“core”) com profunda integração com a prática. Neste núcleo, Wittmann integra a HEM. Aproximadamente por essa época começa-se também a discutir no 26

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Brasil os modos de introdução da história da matemática nos cursos de formação de professores (para uma cronologia ver, por exemplo, BRITO; MIORIM, 2016). Mas qual é, afinal a relevância da HEM para a EM? A questão também podia ser colocada, como faz Wagner Valente (2013, p. 25), em: “para que serve a HEM?”. Seja qual for a resposta, devemos resistir à tentação de procurar utilidades imediatas. Se há áreas da ciência que estão muito próximas das suas aplicações, a história não é uma delas. A utilidade do conhecimento histórico mede-se no médio e no longo prazo, como a de outras áreas científicas ditas fundamentais, e a utilidade para o presente, que discutirei mais à frente, não deve ser confundida com utilidade imediata. Anteriormente apresentei três tipos de justificações sobre a importância de incluir um olhar histórico na EM (MATOS, 2018b). A primeira justificação argumenta sobre o que penso dever ser a identidade da EM e que articula necessariamente, por um lado uma visão (ou, mais realisticamente, visões) sobre o seu futuro, que lhe permite selecionar direções de pesquisa prioritárias, teorias promissoras, intervenções frutíferas, etc., e deverá, por outro, integrar uma visão do passado do campo académico Educação Matemática: como se esboçou nos inícios do século XX, como foram evoluindo as problemáticas, como, principalmente a partir dos anos 1960, se foi diferenciando, alargando o âmbito, etc. Mas deverá igualmente integrar um conhecimento do passado do ensino e da aprendizagem da matemática, abordando temas como: o que era ensinar e aprender matemática? com que objetivos? quais os métodos de ensino? que conteúdos? quem eram os professores? como se formavam? etc. Só assim será possível ultrapassar quer uma visão que imagina a escola do passado como “os bons velhos tempos” (ou dos “maus velhos tempos”, conforme a perspetiva), como também compreender que muito do que se imagina inovador tem, na verdade, raízes profundas no passado. A segunda justificação refere-se à qualidade da pesquisa. Não é possível conceber que investigadores que se centram sobre problemas humanos (sociais, culturais, cognitivos, afetivos), no caso, os do ensino e da aprendizagem da matemática, prescindam de uma compreensão temporal da sua área. Como aponta Cláudia Alves (2012, p. 210),

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quanto mais conhecemos do passado, melhor conhecemos o presente. Embora nunca penetremos no passado, pois em sua inteireza ele nos é inacessível, os elementos que conseguimos reunir, interpretar, relacionar nos dão pistas de como certas experiências se tornaram possíveis. A intimidade que ganhamos com essas experiências de outros tempos vão treinando nosso olhar para o presente. Começamos a observar aspectos que antes passavam despercebidos, ganham sentido gestos que pareciam desconexos, entendemos resistências e tradições.

As palavras de Alves dirigidas a professores podem, com igual pertinência, ser aplicadas a investigadores. Só conhecimento do passado nos permite compreender como o presente é apenas uma etapa de um longo processo de evolução que já conheceu muitas realidades que antes pareceram tão naturais como a do presente. Wagner Valente argumenta no mesmo sentido. Embora o seu alvo seja também a formação de professores, os seus comentários ajustam-se perfeitamente à importância de uma HEM para a qualidade de uma EM. O trabalho do historiador da educação matemática refere-se à “construção de ultrapassagens de relações ingênuas, míticas, românticas e memorialísticas sobre as práticas do ensino de matemática realizadas noutros tempos” (VALENTE, 2013, p. 28). Para compreender os métodos de ensino, os tópicos de matemática escolar, a organização curricular, as opções de política educacional (finalidades, articulação entre temas e entre subsistemas de ensino, etc.), a profissão de professor e mesmo o próprio uso da tecnologia, apenas para citar algumas problemáticas, os educadores matemáticos devem ter um conhecimento das evidências do passado e de como elas se refletem no presente. Só assim a sua pesquisa consegue ter densidade temporal. A terceira justificação, a intervenção, diz respeito à dimensão de ação que a EM deve conter e entronca muito bem com as propostas de Clements e as de Whitmann. Só com uma boa compreensão do passado podem os educadores matemáticos entender melhor as raízes profundas dos fenómenos que estudam e, portanto, ser capazes de uma intervenção adequada no presente. Como afirmam diversos escritores, entre os quais o próprio Clements, “os que não conhecem o passado estão condenados a repeti-lo”.

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História da Educação Matemática e formação de professores: aproximações possíveis


História da Educação Matemática e reflexão em Educação Matemática Como referi no início, entendo a EM como um campo de reflexão e ação. Mas como se relaciona a HEM com essa reflexão? Posto de outro modo, como podem estudos sobre o passado apoiar o desenvolvimento do conhecimento sobre o ensino e a aprendizagem da matemática e, reciprocamente, como podem as respostas sobre o presente ajudar a compreender o passado do ensino da matemática? O estudo do passado é aceite como natural e mesmo imprescindível em diversas áreas da Educação. Os estudos históricos não estão limitados pelo presente, o que lhe permite alargar horizontes de pesquisa a outras épocas e, portanto, a outras realidades, valores, quadros conceptuais, etc. Este confronto com o que nos é estranho ajuda-nos a compreender melhor a nossa própria realidade. Os estudos recorrendo apenas ao quotidiano têm mais dificuldade em concretizar esse distanciamento. Por exemplo, em teoria de desenvolvimento curricular, apenas a consideração de uma ampla visão temporal possibilita apreciar a evolução dos modelos curriculares, seus valores, finalidades, e articulação. O trabalho de José Pacheco (2001), por exemplo, propicia-nos apreciar o modo de integração da dimensão histórica, quando se pretende estudar diacronicamente os poderes de cada participante no processo de construção curricular (poderes públicos, editoras e autores de manuais, professores, alunos, pais, etc.). Apreciações similares poderiam ser feitas, quando se deseja estudar os sistemas educativos e é necessário considerar um tempo alargado. Os textos de Antonio Vinão Frago (2007) ou de Justino Magalhães (2010) são ilustrativos. Num texto anterior (MATOS, 2018b), procurei apresentar alguns exemplos de estudos em HEM que, simultaneamente, contribuíram para a reflexão em EM e vice-versa. Tentarei agora adiantar uma sistematização dos tipos de abordagem, através das quais isso pode ser concretizado. Devo alertar o leitor para que não pretendo classificar todas as temáticas de trabalhos produzidos em HEM, conforme afirmei no início. Embora, em última análise, todo o conhecimento do passado do ensino e da aprendizagem da matemática contribua para melhorar o nosso conhecimento da EM, apenas estou a considerar aqui as abordagens que podem contribuir explicitamente para o conhecimento

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em EM. Também não pretendo fazer um levantamento de trabalhos efetuados em cada tipo de abordagem, mas tão somente ilustrar as minhas considerações com exemplos que conheço melhor, omitindo necessariamente outros de boa qualidade, mas que não conheço tão bem. Proponho, assim, quatro tipos de abordagem, em que a HEM pode estar diretamente relacionada com a EM: 1) estudo de problemáticas e teoria amplas; 2) estudo de modelos da Educação Matemática; 3) estabelecimento de genealogias; 4) estudos de intervenção.

Esta lista não tem o propósito de ser nem completa, nem composta por categorias estanques e, na sequência do texto, a minha intenção vai ser a de esclarecer as minhas ideias, recorrendo a exemplos. Distinguindo entre estes tipos de abordagem, pretendo contribuir para uma clarificação de objetivos e metodologias que ajude a tomar decisões sobre o conteúdo, a forma de apresentação e organização da análise e das conclusões. Perceber as inter-relações entre os diferentes tipos permite-nos obter novas ideias, expandindo trabalhos já efetuados ou vendo-os sob uma nova luz, estimulando, pois, outros aprofundamentos. Um primeiro tipo de trabalhos em HEM de grande significado para a EM é o estudo de problemáticas amplas. Refiro-me a temas muito abrangentes, para os quais já existem muitos estudos recorrendo a uma grande variedade de paradigmas, metodologias e resultados, mas nos quais a introdução de uma perspectiva histórica permite um olhar diferente. Falo de temas que, por vezes, transcendem a EM, mas que enquadram frequentemente as suas pesquisas como o ensino, a aprendizagem, a formação profissional dos professores e dos educadores matemáticos e o seu saber profissional, a natureza da sua identidade, a relação da matemática ciência com a matemática escolar, o ensino profissional, a reflexão sobre as finalidades da matemática escolar e sua relação com as questões de igualdade e equidade. Nesta categoria coloquei essencialmente os trabalhos que aplicam os enquadramentos teóricos de outros campos – frequentemente sociologia ou história da educação – no estudo do ensino de matemática no passado.

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História da Educação Matemática e formação de professores: aproximações possíveis


Observemos, em particular, o caso dos estudos de tempo longo que analisam as raízes de problemas atuais. A introdução de uma visão sincrónica viabiliza obter novas respostas que não se conseguem através de estudos localizados apenas nos tempos atuais. Um bom exemplo é o texto de Clements e outros (2013b) que, num âmbito internacional, discute a aritmética para todos. A discussão desta problemática atual é enriquecida com a análise da sua génese, das diferentes formas como foi sendo proposta ao longo dos tempos, de como se concretizou (mal) e de como isso tem influência na procura atual de uma matemática para todos. Para referir outro exemplo, apenas um estudo com um âmbito temporal amplo permitiu detectar como o conhecimento pedagógico do conteúdo, conceito proposto por Lee Shulman – um tema que não se restringe à matemática escolar – foi sendo construído no tempo da Matemática Moderna dos anos 1960, quer no caso da Telescola portuguesa (MATOS; ALMEIDA, 2010), quer ao longo de dez anos no seio da comunidade profissional docente de um Liceu de Lisboa (MATOS;MONTEIRO, 2011). Foi possível compreender como essa construção se iniciou através de uma recomposição do conhecimento do conteúdo, passando depois para um processo criativo de inventar e testar conceptualmente a nova linguagem, as sequências, as novas representações, etc. antes de as aplicar na aula e num último período, a quando das aplicações em aula, como ele assume uma forma mais consolidada ligada à prática docente. No Brasil, alguns trabalhos integrando problemáticas amplas, cuja importância não se restringe à matemática escolar, têm sido efetuados centrados em quatro temas fundamentais. O primeiro é o estudo dos saberes profissionais docentes. Existem muitos trabalhos sobre este tema, e Cristina Oliveira (2018), por exemplo, baseada no conceito de profissionalidade docente, faz um levantamento de produções brasileiras sobre o tema para o ensino de Geometria e Desenho no ensino primário. O segundo tema é o de saber como se constituem as disciplinas escolares. Destaco apenas o trabalho de Claudia Frizzarini e Célia Leme da Silva (2018) que analisam a constituição e a transformação, na escola primária, dos Trabalhos Manuais como uma matéria escolar e da segunda autora sobre a objetificação dos saberes (SILVA, 2019) e ainda como a aspiração, quer da Psicologia, quer da Pedagogia a obterem o estatuto de ciências (OLIVEIRA, 2017; PINHEIRO, 2017 respetivamente) impactou as disciplinas escolares. Um terceiro tema é o da elaboração de políticas públicas. PREFÁCIO: História da Educação Matemática e Educação Matemática

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Ana Carolina Pereira e Daniele Pereira (2017), por exemplo, contribuem para sabermos como elas se foram constituindo no caso dos livros didáticos. Finalmente um conjunto amplo de trabalhos enquadrado teórica e metodologicamente no paradigma da História Oral tem contribuído para a HEM brasileira (GARNICA, 2019). Podemos do mesmo modo considerar que a grande diversidade de trabalhos afiliados na história cultural, alguns deles já mencionados, se enquadram também neste tipo de abordagem, pois, em última análise, contribuem para a compreensão do que é ou foi a cultura escolar. Refiro ainda mais dois exemplos mais antigos que ilustram bem como o estudo histórico de problemáticas amplas possibilita adquirir conhecimento sobre temas de EM. Um é o texto de Paul Dowling (1998) que não se assume como uma historiografia. O seu livro expande as abordagens sociológicas de Basil Bernstein e propõe um “espaço teórico” adequado ao estudo de padrões de relacionamento entre indivíduos e grupos e a produção e reprodução desses relacionamentos nas práticas culturais e na ação que aplica depois no “espaço empírico” da coleção de livros de texto de matemática do ensino secundário do School Mathematics Project, uma das propostas mais conhecidas no Reino Unido na época da Matemática Moderna, tornando-o, assim, num trabalho que recorre a um paradigma contemporâneo para estudar o passado. A análise da atividade social incorporada nesses manuais permite-lhe estudar os modos como a matemática escolar é estabelecida como um conjunto de práticas e, especificamente, as divisões e as distribuições dentro da matemática e entre a matemática e outras práticas. Refiro ainda um último exemplo deste tipo de pesquisa, o trabalho percursor de Elisabete Búrigo (1989). Num texto de reflexão posterior (BÚRIGO, 2017), ela indica que, na senda dos estudos curriculares pioneiros de Michael Apple e Henri Giroux, pretendeu estudar o movimento da matemática moderna como um exemplo da intervenção docente numa reforma curricular, o que possibilitaria pensar na construção social do currículo como um processo mais complexo do que a mera expressão das vontades dos governos ou dos legisladores. Neste trabalho é muito clara a necessidade de um olhar sobre o passado para responder a questões de desenvolvimento curricular com consequências para o presente.

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Em todos esses casos, o estudo de problemáticas educacionais, sociológicas ou linguísticas que transcendem a EM foi enriquecido com exemplos obtidos em contextos do passado do ensino e da aprendizagem da matemática que, por sua vez, melhora a nossa compreensão da HEM. O estudo de modelos e teorias amplas da EM constitui um segundo tipo de abordagem que pode se beneficiar de uma abordagem histórica. Refiro-me aqui a teorias, modelos, e conceitos-chave que estimularam trabalhos de investigação por vezes durante décadas. Estão neste caso as teorias APOS, a de van Hiele, a de Vergnaud, o modelo SOLO, o conceito de reificação de Sfard, a transposição didática, a génese instrumental, a mediação semiótica, a etnomatemática, etc. O quadro conceptual desses modelos pode ser usado em documentação histórica com o duplo objetivo de testá-los em contextos para os quais eles usualmente não foram pensados (falsificá-los, portanto, para usar a terminologia de Popper) e simultaneamente de conseguir uma textualização que aprofunde a nossa compreensão do passado. Este tipo de abordagem não é muito comum no panorama brasileiro. Um exemplo recente é o trabalho de Sam Riley (2020) que compara cinco livros didáticos, pretendendo traçar as mudanças no ensino e na compreensão matemática esperados dos logaritmos aplicando a teoria APOS. Um segundo exemplo é uma parte de trabalho de Rui Candeias que envolveu a validação de um modelo atual sobre diferentes significados que as frações podem assumir em contexto escolar, aplicando-o a exemplos recolhidos em livros didáticos do passado (CANDEIAS;MONTEIRO, 2016). Recorrendo a uma análise de conteúdo, foram identificadas as ocorrências de “números racionais” em livros de texto e desenvolvidas categorias sem cuidar de as fazer corresponder com as categorias previstas no modelo. Só então, numa segunda etapa, estas novas categorias foram confrontadas com os seis significados do modelo. Se se tivesse invertido esta sequência, corria-se o risco de adulterar os significados do passado, ao forçá-los numa categorização definida no presente. Podia mesmo acontecer que o investigador se tornasse cego a modelos, processos, argumentações do passado que conduzissem a significados distintos. O terceiro tipo de abordagem envolvendo a HEM que pode contribuir para o aprofundamento do conhecimento sobre o ensino e a aprendizagem é o estabelecimento de genealogias. Refiro-me não ao estabelecimento de genealogias de pessoas, mas à construção de cronologias de tópicos relevantes para PREFÁCIO: História da Educação Matemática e Educação Matemática

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a matemática escolar atual: legislação, métodos, conteúdos, materiais, filosofias, entre outros. Pretende-se aqui explicar as raízes, as modificações, as omissões sofridas por esses tópicos: onde se originaram, como evoluíram, e, nalguns casos, como se extinguiram. É talvez o tipo de trabalho mais comum. Entre muitos exemplos, destaco os trabalhos realizados no Brasil por Wagner Valente, traçando uma primeira história do ensino da matemática (1999) ou sobre a formação do professor do ensino primário (2011) e uma publicação recente a partir da qual é possível compreender a genealogia de diversos temas em HEM (OLIVEIRA; PINTO; VALENTE, 2020). Em Portugal, menciono as produções do grupo de que faço parte na Unidade de Investigação Educação e Desenvolvimento da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa que estabeleceu análises cronológicas de eventos relacionados com a matemática moderna e com programas de matemática e estudou a formação de professores (ALMEIDA; MATOS, 2014; MATOS, 1985; MATOS, 2018a; respetivamente). Outros trabalhos do mesmo tipo têm sido realizados noutros países, o primeiro dos quais talvez tenha sido o elaborado por Brian Griffths e Geoffrey Howson (1974) sobre os programas ingleses. Importa estabelecer aqui uma distinção. Com a intenção de discutir a importância para a educação da pesquisa histórica em matemática, Ivor Grattan-Guiness (2005) distinguiu duas tendências: investigação procurando o património ou a herança (heritage) e pesquisa procurando a história (history). A herança de um determinado assunto matemático N estuda o efeito de N em trabalhos posteriores, durante qualquer período relevante, incluindo o de seu lançamento. Algumas versões modernizadas de N provavelmente serão utilizadas, pois a herança está essencialmente preocupada com a pergunta ‘Como chegamos aqui?’, ou seja, [preocupada] com alguma versão atual do assunto em questão. (GRATTAN-GUINESS, 2005, p.7-8, tradução do autor)

Grattan-Guiness contrasta esta perspectiva com uma outra que designa de história e que consiste: [n]o desenvolvimento de N durante um período específico: o seu lançamento e formas iniciais, o seu impacto e as aplicações dentro e/ou fora da

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matemática, e assim por diante. [Esta perspectiva] aborda a pergunta “O que aconteceu no passado?”, oferecendo descrições. Talvez alguns tipos de explicação também sejam tentados para responder à pergunta complementar “por que isso aconteceu?”. (GRATTAN-GUINESS, 2005, p.7, tradução do autor)

Enquanto na primeira os pesquisadores partem de tópicos matemáticos contemporâneos e tentam recompor a sua origem, na segunda seguem o movimento inverso e tentam compreender a matemática imersa no seu tempo. Enquanto na primeira, as relações matemáticas são fundamentais e as históricas não são tão importantes, a segunda, estudando o desenvolvimento de tópicos matemáticos, procura antes as suas formas primitivas, o seu impacto, as aplicações dentro e fora da matemática. Segundo ele, a primeira tende a ser adotada por matemáticos; e a segunda, por historiadores. Grattan-Guiness argumenta ainda que essas duas correntes não são compatíveis, mas que a história da matemática necessita das duas. Embora Grattan-Guiness se esteja a referir à história da matemática, esta sua distinção tem um valor heurístico para tentarmos fazer um paralelo com o estabelecimento de genealogias em HEM. De facto, uma das primeiras formas de estudar a HEM foi precisamente a de tentar encontrar no passado as raízes do presente, sem grande preocupação com os contextos de produção dos saberes. Procurava-se a herança ou o património. Recorrendo a um exemplo fictício, um educador matemático possuía dois ou três livros antigos de álgebra na sua coleção particular e tenta conjeturar como no passado eram apresentadas as equações do 1.º ou do 2.º grau. Não havia preocupação (nem conhecimento) com os requisitos metodológicos particulares do trabalho histórico, os contextos de uso, a difusão dos livros estudados, os autores, o grau de inovação, nem mesmo sobre os programas. No contexto de iliteracia usual de muitos educadores matemáticos sobre o seu passado, a motivação para tal trabalho seria o efetuar uma descrição crua do passado, ou recolher elementos para usar em aula ou na formação de professores, usualmente encontrando justificação para os seus pré-conceitos. Para estabelecer uma analogia, seria como o “arqueólogo” que descobre umas ruínas e leva consigo um pedaço de cerâmica que achou interessante, sem cuidar de fazer um estudo aturado do contexto em que a peça for achada, registando cuidadosamente a sua posição, escavando ao redor, estabelecendo analogias com peças encontradas noutras

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estações arqueológicas, procurando datações, rotas de comércio, indícios de uso, etc. Contrariamente ao que acontece em história da matemática, em que Grattan-Guiness diz mesmo que este tipo de trabalho é essencial, o estudo tipo património não é muito comum atualmente em HEM e não me parece de todo necessário. Quando refiro o estabelecimento de genealogias tenho antes em mente uma pesquisa histórica informada, cuidadosa e sistemática, respeitando significados, intenções e contextos de produção das fontes. Para mencionar mais um exemplo, o trabalho de Rui Candeias pretende, entre outros objetivos, estabelecer uma genealogia do conceito de número racional no ensino primário português (CANDEIAS; MONTEIRO, 2016). No entanto, o conceito de número racional inserido na sequência naturais -> inteiros -> racionais -> reais -> complexos apenas aparece em meados do século XX como consequência da valorização da unidade da matemática e do uso da linguagem dos conjuntos trazidos pela Matemática Moderna. O termo é anacrónico antes do século XX. Foi, pois, necessário estar atento a outras terminologias que se referissem às coleções de números que hoje designamos como racionais (“quebrados”, “decimais”, “frações”, etc.). Foram assim identificadas as ocorrências em livros de texto desta visão mais ampla de “números racionais”, de outro modo podia mesmo acontecer que o investigador se tornasse cego a modelos, processos, argumentações do passado que conduzissem a significados de “número racional” distintos. Eliana Souza (2004) fez um trabalho semelhante. Em paralelo com a construção de metodologias adequadas à formação de professores, faz um trabalho historiográfico sobre algoritmos na aritmética escolar. O quarto tipo de estudos em que a HEM pode apoiar a reflexão em EM é constituído por estudos de intervenção. Até agora neste texto optei por discutir separadamente a reflexão e a ação, as duas dimensões que argumentei existirem na EM. No entanto, existem abordagens metodológicas que esbatem essa distinção. Penso, em particular na investigação-ação (pesquisa-ação no Brasil), nos estudos colaborativos e nos estudos baseados em design (design based research em inglês). Este último tipo em particular, tem sido objeto de reflexão entre os educadores matemáticos (uma revisão pode ser encontrada em Matos e Serrazina, 2016) por integrar a componente de geração de teoria com a de produção de resultados, exigindo um alto grau de envolvimento aos responsáveis. 36

História da Educação Matemática e formação de professores: aproximações possíveis


Poder-se-ia pensar que os estudos históricos estariam muito afastados deste tipo de pesquisa. E, no entanto, um trabalho recente Using Design Research and History to Tackle a Fundamental Problem with School Algebra da autoria de Sinan Kanbir, Ken Clements e Nerida Ellerton (2018, p.xv, tradução do autor) integra precisamente a história num estudo baseado em design. Como referem os autores: Este livro é incomum, pois inclui uma análise histórica séria da história internacional da álgebra escolar e uma descrição de um estudo baseado em design cujo objetivo era melhorar o ensino e a aprendizagem da álgebra do ensino médio.

Não conheço nenhum outro estudo semelhante, no entanto, a longa defesa da integração de uma dimensão histórica na pesquisa desenvolvida em EM levada a cabo pelo casal Ken Clements e Nerita Ellerton que temos acompanhado neste texto merece que o seu trabalho seja estudado com atenção. Neste momento ele constitui um verdadeiro suporte para aqueles de nós que acreditam que a história é importante para o presente (“history matters”). Receio que, nesta altura, o leitor possa ficar com a impressão de que apenas considero relevante a investigação em HEM que tenha uma relação direta e clara com temas de EM, o que não corresponde à verdade. Recordo que esta secção se dedica a explorar como se relaciona a HEM com a reflexão em EM. Existem muitos trabalhos em HEM (a maioria?) que, embora contribuindo para o conhecimento dos problemas do ensino e da aprendizagem da matemática, não assumem de forma explícita essa relação, nem me parece que o devessem fazer. Se nos exemplos que indiquei essa ligação é por vezes claramente referida, existe muito espaço de questionamento do passado que não necessita de citar a sua afiliação com problemáticas de EM, tal como não necessita de referir as ligações com outros campos disciplinares, como a história da educação, a história da matemática, a sociologia ou a psicologia da educação, etc. Note-se também que naturalmente a HEM pode alargar o seu âmbito ao estudo de um ensino da matemática ocorrendo em ambientes não escolares. Refiro-me aqui a ensino ocorrendo em coletividades populares ou indígenas, organizações profissionais, prisões, etc. Por vezes mesmo em contextos de resistência como os descritos por Rui Canário (2018). PREFÁCIO: História da Educação Matemática e Educação Matemática

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Ocasionalmente ocorrem discussões sobre se a HEM é uma parte da EM ou um campo autónomo. Não gosto de colocar a questão nesses termos. Discutir o problema recorrendo a metáforas ligadas à teoria de conjuntos, recorrendo a diagramas de Venn ou a termos como pertença, inclusão, exclusão, interseção, dentro e fora, não me parece esclarecedor das relações entre esses campos. Hoje, cada vez mais os diferentes campos disciplinares se interpenetram, inseminam e estimulam, e as fronteiras têm um valor mais indicativo do que delimitador. A pluralidade da HEM brasileira que António Garnica destacou no título do livro de reflexão sobre o II ENAPHEM (GARNICA, 2016) espelha precisamente o caldo de cultura que é hoje a HEM. Prefiro discutir essa problemática em pesquisas concretas.

Como pode a História da Educação Matemática apoiar a ação em Educação Matemática São poucos os estudos sobre os modos como os materiais do passado da matemática escolar podem ser usados para promover o ensino e a aprendizagem atuais. E, no entanto, como argumentei na segunda secção, uma das razões para estudar o passado da EM é precisamente apoiar a sua capacidade de intervenção. Esta secção pretende, pois, refletir como o uso de temas do passado da matemática escolar podem ser usados para apoiar o ensino atual. Não se trata agora de realizar investigação histórica, mas sim de estudar meios de aplicação dessa pesquisa. Este problema é importante para a própria HEM, em particular para os estudantes que realizam mestrados e doutoramentos profissionais na área e que deverão desenvolver algum tipo de projeto educativo relacionado com os seus trabalhos investigativos. Esta secção destina-se, portanto, também a contribuir para uma fundamentação desses projetos. Para avançarmos neste tema, podemos encontrar algum apoio em trabalhos sobre a introdução da história da matemática (HM) nas aulas de matemática em que um bom exemplo brasileiro, entre outros, é a sistematização realizada por Iran Mendes e Miguel Chaquiam (2016). Embora quer a HM, quer a HEM, possam ser utilizadas para a melhoria da qualidade da educação matemática, e história e matemática estejam presentes nos dois campos, existem diferenças que deverão ser tidas em conta

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quando se pensa em ações de formação e, em particular, quando tentamos adaptar as propostas de um campo para o outro. Em primeiro lugar, existe uma diferença de práticas. Matemáticos e educadores matemáticos constituem duas comunidades de prática que visam objetivos diferentes, tanto no campo da pesquisa quanto no da ação pedagógica, e que são condicionadas pela realização de práticas sociais distintas. Embora matemáticos e professores de matemática ensinem, para os primeiros é uma atividade secundária, enquanto para os segundos é o cerne de sua identidade (BELHOSTE, 1998). Note-se, no entanto, que, quando nos confrontamos com documentação concreta, por vezes é difícil estabelecer a separação entre a ciência matemática e o seu ensino. Um livro usado numa Academia de Marinha, por exemplo, que é estudado por historiadores da matemática, procurando as inovações em conceitos, definições, articulação lógica, etc., pode bem ser objeto de outro estudo focado na sua abordagem pedagógica, apreciando sequências, representações, exemplos, exercícios, etc., tudo temas do âmbito de uma história escolar. Para o mesmo documento, a HEM pode valorizar elementos de um ponto de vista didático que são pouco significativos do ponto de vista da HM. Esta proximidade revela-se também em intervenções escolares. Por outro lado, alguns textos considerados “matemáticos” podem ser também considerados textos didáticos (MATOS, 2006). Noutros materiais, no entanto, as diferenças são palpáveis. Muitos textos de matemática visam participar numa comunidade de colegas pesquisadores, enquanto os livros escolares de matemática visam as práticas de alunos e professores e apresentam o conhecimento de uma maneira “ensinável”, estabelecendo a sua sequência, articulando representações, exemplos e exercícios. Em segundo lugar, precisamente por estarmos a falar de práticas diferentes, a ação em EM decorre junto de um conjunto mais amplo de atores do que os interessados diretamente em HM. Alunos, professores, outros educadores matemáticos, responsáveis educativos (nos diferentes níveis da administração pública incluindo escolas, em sociedades científicas, etc.), e a sociedade em geral são interlocutores diretos dos educadores matemáticos. A intervenção recorrendo à HEM deve, pois, ser mais diversificada tomando em conta os vários atores. Em terceiro lugar, há uma corrente entre os investigadores em história da matemática (denominada de herança por Grattan-Guiness, 2005 e que já PREFÁCIO: História da Educação Matemática e Educação Matemática

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referi) que tende a ver a evolução das ideias matemáticas como cumulativa, isto é, construindo a sua narrativa histórica através do estabelecimento de genealogias de conceitos, processos ou resultados atuais como vimos atrás. Para eles, os conceitos atuais são essencialmente aperfeiçoamentos de alguns conceitos do passado, e o conhecimento matemático resulta essencialmente de acumulações. Não existe perspectiva semelhante nos estudos históricos de materiais educacionais, já que dificilmente podemos falar de uma acumulação de conhecimento didático. É possível, por exemplo, contrastar as abordagens euclidianas com as da geometria das transformações, mas, em nenhum sentido, as últimas podem ser consideradas uma acumulação de conhecimento. São perspectivas distintas, refletindo visões diferentes da organização geral e das finalidades do currículo de matemática, enraizadas em fundamentos psicológicos diferentes e ocorrendo em momentos distintos, mas onde não ocorre acumulação. Em quarto lugar, existe uma diferença de âmbito. A HM pode estar preocupada com documentação que não tem uma relação direta com a matemática, especialmente se ela toma a forma de história, usando a terminologia de Grattan-Guiness (2005). Essa perspectiva vê nesse material a possibilidade de iluminar contextos da produção de conhecimento matemático, mas ele fica normalmente na periferia da pesquisa. No entanto, em HEM, precisamente porque se preocupa com as metodologias de ensino e as suas consequências, essa documentação, por exemplo, textos sobre métodos de ensino, exames, cadernos escolares, etc., pode constituir mesmo o objeto de pesquisa. Estas diferenças reforçam a ideia de que para fazer uma história das disciplinas escolares deveríamos assumir a sua autonomia (CHERVEL, 1988), entendida esta quer em relação às disciplinas científicas (no nosso caso a matemática), quer em relação às historiografias gerais da educação. Essa autonomia sustenta mesmo a afirmação de que na formação de professores se deveria recorrer essencialmente a exemplos históricos de matemática escolar, porque é esse o passado da matemática que os futuros educadores deverão ensinar: “o professor de matemática do século XXI não se constitui como herdeiro dos matemáticos, mas dos professores de matemática do século XX” (VALENTE, 2010, p. 133). Tomando em conta estas diferenças, e usando heuristicamente trabalhos de autores preocupados com a introdução da HM em aulas de matemática, 40

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procurarei sistematizar algumas ideias sobre o recurso à HEM para apoiar a ação em EM. Recorrerei em primeiro lugar à reflexão pioneira de Antonio Miguel em As potencialidades pedagógicas da história da matemática em questão (1997), que identifica e discute 12 argumentos para a utilização da história na formação em matemática e que menciona ocasionalmente problemáticas relacionadas com o passado do ensino da matemática. Uma segunda fonte decorre das publicações do movimento History and Pedagogy of Mathematics (HPM), fundado em 1976, no ICME de Karsruhe, que nas últimas décadas questionou os modos como a História da Matemática pode ser incorporada na aula. Membros deste grupo desenvolveram material educativo, efetuaram pesquisa empírica, que conduziu à produção e à aplicação de esquemas metodológicos (um relato cronológico da pesquisa em HPM pode ser encontrado em Jankvist, 2014). O trabalho deste grupo foi apresentado num ICMI Study, coordenado por John Fauvel e Jan van Maanen (2002). Para além de alguma reflexão teórica, o livro contém diversos exemplos de aula. Trabalhos posteriores (JANKVIST, 2009; TZANAKIS; THOMAIDIS, 2011, por exemplo) sistematizaram argumentos apresentados nesse Study para integrar a história da matemática no ensino de matemática (os porquês) e formas de realizar essa tarefa (os comos). Recorrerei, essencialmente, à sistematização de Jankvist. Tomando então como ponto de partida os trabalhos de Miguel e Jankvist, quais podem então ser as razões para utilizar a HEM no ensino de matemática? Uma primeira razão prende-se com (A) a melhoria da aprendizagem da matemática. Espera-se que o confronto com exemplos de matemática escolar do passado, em particular nos livros de texto, livros de exercícios ou nos cadernos dos alunos, permita desvendar conceitos, métodos, teorias, etc., encontrando abordagens facilitadoras e apoiando mesmo uma visão crítica da matemática. No caso da formação docente, este estudo de conceitos, métodos, teorias propicia enriquecer o seu repertório didático, aumentando a sua capacidade de explicar, abordar, entender partes específicas da matemática. Quer Miguel (argumentos 3, 4, 7, 10 e 11) quer Jankvist (tópico a) referem razões semelhantes. Penso, no entanto, que o uso de temas e materiais da matemática escolar pode ter vantagem relativamente ao de materiais históricos de matemática. Existe, por exemplo, uma diferença importante no que diz respeito aos conceitos matemáticos elementares, como o são todos os relevantes para a PREFÁCIO: História da Educação Matemática e Educação Matemática

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matemática escolar. Tomemos a aritmética elementar como exemplo. Se pretendemos recorrer a textos matemáticos apenas, podemos utilizar documentos com alguns milhares de anos. No entanto, existem múltiplos documentos de matemática escolar sobre o mesmo tópico muito mais próximos de nós. Tomemos um segundo exemplo para ilustrar o mesmo problema. Enquanto as dificuldades encontradas por Descartes ou Fermat com coordenadas negativas está explicitada em documentos do século XVII que, para uma utilização em aula, necessitam ser duplamente traduzidos, em primeiro lugar para português e, em segundo, explicando a terminologia e os conceitos adotados por cada um deles, a mesma dificuldade com coordenadas negativas pode ser detectada em livros de texto do final do século XIX ou de princípios do século XX numa linguagem facilmente acessível aos alunos de hoje. A matemática escolar do passado permite uma maior proximidade e, portanto, é de maior simplicidade didática. Uma segunda razão tem uma relação próxima com a primeira, mas incide, não sobre tópicos curriculares específicos, mas sobre a matemática como um todo. Pretende-se aqui (B) uma melhor apreciação da natureza da matemática e da atividade matemática escolar, olhando de um ponto de vista diferente conceitos, representações, conjecturas, provas e sequências. Os materiais do passado, incluindo modos diferentes de observar os objetos matemáticos bem como outras lógicas de encadeamento, possibilitam-nos estudar variações no conhecimento matemático que, por sua vez, autorizam alternativas ao conhecimento escolar válido. De forma semelhante, Miguel aborda a importância da “desmistificação da matemática” (p. 82, argumento 5; ver também o seu argumento 6), bem como Jankvist (tópico b). Tal como na razão anterior, o estudo de materiais didáticos do passado proporciona o estudo de variações da matemática escolar sem necessitar de um grande investimento na compreensão de terminologias muito distintas das atuais. Quando o público- alvo são docentes, este questionamento é vital e está no cerne da sua função profissional. O confronto com abordagens idiossincráticas da matemática permite aumentar a sua tolerância em relação a processos matemáticos não convencionais, tornando mais clara a dimensão social e cultural da matemática. Uma terceira razão é (C) motivar para a aprendizagem da matemática, despertando o interesse e vinculando o conhecimento atual e o processo de aprendizagem ao conhecimento e problemas do passado. Este é o primeiro 42

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argumento apresentado por Miguel que também o inclui na formulação do seu argumento 4. Jankvist, do mesmo modo, lhe dá destaque (tópico d). Recordo que se está aqui a falar de motivação, que, em última análise, depende da forma como for organizada a aula. Uma quarta razão consiste na possibilidade de, através do aprofundamento histórico, levar à (D) apreciação do papel cultural da matemática. Pretende-se que a matemática escolar seja vista como estando integrada nas culturas e nas histórias locais e geral da humanidade. Os argumentos 4 e 12 de Miguel apoiam esta razão que também é um tópico (e) de Jankvist. Note-se que alguns tipos de materiais do passado parecem ser uma boa fonte para apoiar esta quarta razão, em especial edições locais de textos didáticos, cadernos de alunos, artigos em jornais. Por vezes estes documentos permitem uma aproximação à cultura local que é obscurecida nos livros de grande circulação. O estudo de materiais provenientes dos grandes reformas curriculares (propostas de Klein, matemática moderna, etc.) viabilizam uma ligação com os grandes movimentos sociais em que elas estão inseridas. Para apreciar o papel cultural da matemática, devemos também extravasar os muros da escola e incluir aqui objetos, temas, processos que apenas são matemáticos para a cultura escolar, mas não o são nas comunidades de origem. Falo do recurso a conceitos, processos, ou materiais utilizados em comunidades minoritárias, muitas vezes alternativos à matemática escolar oficial e que, como no caso dos povos indígenas, já fazem parte do seu património cultural há muito tempo. Neste tema, a HEM aproxima-se da Etnomatemática, e o desenho da intervenção pode acompanhar as “atividades” propostas por Alan Bishop (1988) que estariam na base da nossa matemática atual (contar, localizar, medir, desenhar, jogar, explicar) e que são comuns a todos os grupos humanos. Já o conceito de matemática escondida ou congelada, sugerido por Paulus Gerdes (1988), não me parece adequado, pois é muito difícil distingui-la de uma visão platónica da matemática que contraria o próprio propósito emancipatório da sua teoria. Estas quatro razões adequam-se a intervenções no âmbito de todos os atores que estiverem em formação: alunos e professores. No caso destes últimos, bem como no da formação de educadores matemáticos, existem, no entanto, mais duas razões que se relacionam com as suas responsabilidades como formadores de matemática e do seu ensino e que permitem “imprimir PREFÁCIO: História da Educação Matemática e Educação Matemática

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historicidade” à sua atuação profissional, na feliz formulação de António Miguel e Arlete Brito (1996, p. 49). A primeira é de âmbito formal e consiste no (E) conhecimento histórico da matemática escolar, como tópico que regularmente deveria fazer parte da formação profissional docente. Considerar o trabalho do professor de matemática numa dimensão histórica permite uma compreensão diferente do sentido das ações realizadas nas salas de aula hoje. Ter ciência de contextos de outros tempos do ensino de matemática possibilita o entendimento do que são novidades e continuidades, na tarefa cotidiana de ensinar matemática a crianças, jovens e adultos. (VALENTE, 2008, p. 11)

Estuda-se a HEM por si própria. Quais os movimentos de reforma curricular? Quais as suas intenções? Como evoluiu a visão do que constitui aprender e ensinar matemática e qual a relação com visões mais gerais do ato educativo? Cabe também neste tópico o estudo da história do campo académico EM. Este tema tem sido intensamente discutido no Brasil e referirei aqui apenas algumas das principais problemáticas abordadas. Uma delas é a perspectiva epistemológica abordada por Wagner Valente (2013), considerando impossível de separar as dimensões pedagógicas das mais ligadas aos temas matemáticos e mostrando como isso está no cerne da constituição da disciplina escolar de matemática, temática acompanhada por Cristina Oliveira (2017). Arlete Brito e Ângela Miorim (2016), que traçam um quadro global dos modos como o tema vem sendo integrado na formação de professores. Também num livro recente de reflexão sobre os ENAPHEMs (DASSIE;COSTA, 2018), podemos encontrar textos de aprofundamento e, para este tema, apenas destaco o capítulo de Iran Mendes, Cristina Oliveira, Elisabete Búrigo e David Costa (2018), que adianta alguns elementos sobre a integração da pesquisa em HEM na formação de professores. Neste livro, em particular, o leitor encontrará no texto escrito por Elisabete Búrigo (capítulo 3) um conjunto de conselhos sobre como este conhecimento pode ser ensinado, e uma visão atualizada de como esta formação se está a processar no Brasil no trabalho de Maria Laura Gomes (também no capítulo 3).

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Uma última razão consiste na (F) apreciação de modos distintos de ensino de temas matemáticos, nomeadamente identificando motivações para as sequências curriculares, as definições (implícitas ou explícitas), as representações, os exemplos, os exercícios, etc., eventualmente encontrando métodos que se revelem adequados para situações particulares. Permitem também identificar as dificuldades e os obstáculos e os modos como eles foram contornados. Espera-se que os docentes tomem consciência do processo criativo do “fazer matemática”, decifrando abordagens não convencionais da matemática. Embora exista uma relação próxima com discussão sobre a natureza da matemática (razão B), aqui o foco está nas alternativas didáticas. Quer Miguel (razão 3) quer Jankvist (tópico c) referem a importância da história na formação de professores em moldes semelhantes. Miguel, em particular, discute exemplos de produções de matemáticos especificamente elaboradas com uma intenção pedagógica em mente: os casos de Alexis Clairault e de Felix Klein. Existem, no entanto, dois motivos para alguma cautela no uso de materiais provenientes da HM. Em primeiro lugar, analisando a sua experiência em cursos de licenciatura em matemática, Miguel e Miorim (2004) alertam-nos para a possibilidade de os formandos perderem o foco e se cativarem por um estudo “muito mais associado aos novos conhecimentos obtidos através do estudo da própria história da Matemática do que com a percepção da relevância pedagógica de um tal estudo para o exercício da profissão docente” (MIGUEL; MIORIM, 2004 , p. 153). Eventualmente, o uso de materiais de HEM permitiria obviar a esse problema. Em segundo lugar, Wagner Valente (2013) coloca o problema de saber se a formação em HM usual nos cursos de formação de professores tende a reforçar a ideia que a matemática escolar atual tem as suas raízes próximas na ciência matemática e não na própria matemática escolar do passado. Esse problema assume uma dimensão ainda mais preocupante se se optar por usar o paradigma da transposição didática (que discuto na primeira secção) como modelo para a constituição dos saberes escolares, negando a especificidade e a autonomia à matemática escolar. Antonio Miguel e Jankvist sistematizam ainda outros argumentos para a inclusão da HM nas aulas de matemática, que não incluí porque, em geral, eles

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se referem a objetivos de apreciação da matemática como ciência, que não é o tema deste texto. Também não incluí aqui como razão para a inclusão de temas de HEM em cursos de formação de professores o despertar o interesse de futuros professores para a pesquisa em HEM. Penso que, para os que demonstrarem interesse pela área, haverá tempo de a aprofundarem mais tarde, quer através de projetos de colaboração com instituições de ensino superior, quer de uma formação em mestrados ou doutoramentos. A inclusão da HEM em cursos de formação de professores deveria antes centrar-se em “imprimir historicidade”. Notemos que a EM tem múltiplos interlocutores e, junto de cada um deles, a intervenção pode assumir diferentes formas: aulas ou atividades extra-aula (com alunos), cursos de formação mais ou menos formais (com professores e educadores matemáticos), elaboração de relatórios, informando as políticas públicas, ou preparação de brochuras, realização de conferências ou exposições ou atividades museológicas (destinadas à sociedade em geral). O leitor pode procurar mais esclarecimentos no texto de Luzia Souza, Diogo Rios e Heloísa Silva (2018).

E os comos? Após ter abordado as razões para a introdução de materiais do passado do ensino da matemática nas aulas atuais, faltaria agora discutir comos, isto é, os métodos para o fazer. Caberá, no entanto, a outros autores aprofundar no futuro o tema de como implementar uma HEM em contextos de ensino e aprendizagem da matemática, eventualmente seguindo o caminho proposto por Clements e Ellerton.

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Agradecimento: Cabe aqui um agradecimento especial à Maria Cristina Oliveira pelos comentários que efetuou a uma versão preliminar do texto.

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Renovando las matemáticas escolares por medio de la formación del magisterio Dolores Carrillo Gallego6

INTRODUCCIÓN El título y el objeto de este capítulo es destacar que, cuando se ha querido cambiar la escuela y, en particular, las matemáticas escolares, se ha utilizado como medio la formación de los maestros, provocando cambios en los sistemas de formación de los mismos. En este trabajo se presentan dos momentos de la Historia de la Educación en España en los que se ha constatado que se quiso cambiar la enseñanza primaria y, dentro de ella, la enseñanza de las matemáticas, y para ello se veía necesario modificar el sistema de formación de maestros. Esos dos momentos fueron la introducción de un sistema público de enseñanza (1838) y la ampliación del currículo de la escuela primaria que se produjo en 1901, ligado a un cambio administrativo de las escuelas primarias. 6

Facultad de Educación, Universidad de Murcia, ES. E-mail: carrillo@um.es.

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“El maestro es, o hace, la escuela; esto es, buena o mala”, dijo Pablo Montesino (1841, p. 38) y Manuel Bartolomé Cossío (2007, p. 218), en 1912, “La escuela no son los ladrillos, ni los mapas, sino el maestro”. Son frases de dos personas influyentes en los momentos que vamos a comentar: Pablo Montesino y Manuel Bartolomé Cossío. Las dos ponen el acento en que lo importante para cambiar la escuela y tener una buena enseñanza es que los maestros sean buenos, que estén bien formados. En este trabajo, las dos primeras partes están dedicadas a las dos etapas históricas que se consideran, comentando, en cada una de ellas, algunas de las condiciones sociales y políticas que influyeron en los cambios legislativos sobre la enseñanza primaria y la formación de maestros; se presentan esos cambios legislativos y se particularizan al ámbito de la enseñanza de las matemáticas. Por último, se considera la evolución de la formación de los maestros para enseñar matemáticas en las escuelas primarias y el carácter de una nueva asignatura, definida en el Plan de 1931, la Metodología de las Matemáticas.

EL NACIMIENTO DEL ESTADO LIBERAL EN ESPAÑA Acontecimientos políticos En España, en la primera mitad del siglo XIX, se vivió un tenso proceso de paso del Antiguo Régimen a un Estado liberal. La invasión napoleónica de 1808 provocó la guerra de la independencia (1808-1814). Pero también la afirmación de la soberanía nacional pues, ante la ausencia del Rey, se convocó a las Cortes que, reunidas en la ciudad de Cádiz, elaboraron una Constitución (1812) que limitaba las prerrogativas reales y eliminaba instituciones del Antiguo Régimen, como la Inquisición. El Conde de Toreno, miembro de las Cortes de Cádiz, afirma: Acompañó al sentimiento unánime de resistir al extranjero otro no menos importante de mejora y reforma. [...] apenas hubo proclama, instrucción o manifiesto de las Juntas en que, lamentándose de las máximas que habían regido anteriormente, no se diese indicio de querer tomar un rumbo opuesto, anunciando para lo futuro o la convocación de Cortes, o el establecimiento de antiguos fueros, o el desagravio de pasadas ofensas. (PUELLES BENITEZ, 1980, p. 52)

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Puelles Benitez (1980, p. 52) considera que “de esta guerra surge el sentimiento nacional moderno y, en consecuencia, la quiebra absoluta de las antiguas instituciones”.. El regreso del rey Fernando VII en 1814 supuso la derogación de la Constitución de Cádiz y vuelta al Absolutismo hasta el fallecimiento del rey en 1833, con un paréntesis liberal entre 1820 y 1822 (el Trienio Constitucional), tras el cual un gran número de políticos e intelectuales tuvieron que exiliarse. A la muerte de Fernando VII, la Reina Regente pactó con los liberales y se inició un periodo constitucional.

La educación en la legislación La Constitución de 1812 sustituía la sociedad estamental de vasallos por una sociedad de ciudadanos bajo el imperio de la ley. Para este cambio, tanto la Constitución como las posteriores leyes liberales destacaban la importancia de la educación, como ha señalado Puelles Benitez (1980, p. 55), “como sucesores de nuestros ilustrados comparten con ellos la fe en la instrucción pública como principal instrumento de renovación y de reforma”. Acorde con esa importancia, el artículo 25 establece la necesidad de saber leer, escribir y contar para poder ejercer los derechos ciudadanos, se dedica el título IX a la Instrucción pública y, según el artículo 366, “En todos los pueblos de la Monarquía se establecerán escuelas de primeras letras, en las que se enseñará a los niños a leer, escribir y contar, y el catecismo de la religión católica, que comprenderá también una breve exposición de las obligaciones civiles”, y encarga a las Cortes la legislación educativa (artículo 370). Sobre esta base, se elaboraron leyes y reglamentos que definieron algo muy novedoso: el sistema educativo liberal. Los primeros documentos que desarrollaron los principios constitucionales fueron el Informe Quintana (1814), influido por el Rapport sur l’instruction publique de Condorcet, pero también por las Bases para la formación de un plan general de Instrucción Pública de Jovellanos (PUELLES BENITEZ, 1980, p. 61-62), en el que se basó el “Reglamento de instrucción pública” de 1821, aprobado por las Cortes durante el Trienio liberal, pero que no pudo entrar en vigor. En estos documentos se divide la enseñanza pública en primera, segunda y tercera, se afirma que la enseñanza pública debe ser universal, gratuita y uniforme y, en lo que se refiere a la enseñanza primaria, la obligatoriedad de establecer escuelas en todos los pueblos de más de 100 vecinos. Renovando las matemáticas escolares por medio de la formación del magisterio

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En 1834, tras la muerte de Fernando VII, las Cortes crearon una comisión para elaborar un Plan general de instrucción primaria. En esta comisión estuvo Pablo Montesino, a quien se atribuye “la mayor parte de los trabajos que se hicieron en tan importante assunto” (GIL DE ZÁRATE, 1855, p. 248). Pablo Montesino se exilió en Inglaterra en 1822, donde observó su sistema educativo y reflexionó sobre la mejor forma de extender la educación pues consideraba que la educación es “el remedio único de los males que estamos padecendo” (MONTESINO, 1842, p. 11). Fue uno de los promotores de la “Sociedad encargada de propagar y mejorar la educación del pueblo”, que creó las primeras escuelas de párvulos de España; para esas escuelas, Montesino escribió el “Manual para los maestros de las escuelas de párvulos” (MONTESINO, 1850). Además, Montesino fue el primer director de la Escuela Normal Central (1938). En los trabajos de esta comisión de 1834 se apoya el Plan y Reglamento de instrucción primaria de 1838. El Plan es un documento legislativo moderado, que elimina la gratuidad de la enseñanza primaria, la divide en elemental y superior, siendo la enseñanza primaria elemental la única que había que extender a todos los niños. Contempla dos títulos de maestro, elemental y superior, de acuerdo con la clasificación de las escuelas, y un título de maestra. Para la formación de los maestros, establece que haya Escuelas Normales (EENN) en todas las provincias y una Escuela Normal Central en Madrid, para formar a los profesores del resto de las EENN. Los tipos de escuela que diferencia son: escuela primaria elemental completa; escuela primaria superior; escuela primaria elemental incompleta, para poblaciones con falta de recursos, y las escuelas de niñas, elementales y superiores, para aquellas poblaciones en las que haya recursos suficientes. Los tipos de escuela se diferencian por los contenidos que se imparten en cada una de ellas; por ejemplo, en el artículo 4.º se especifican los contenidos de la escuela primaria elemental, y en el 5.º los de la primaria superior: Artículo 4.º La instrucción primaria pública elemental ha de comprender para ser completa: 1.º Principios de religión y de moral. 2.º Lectura.

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3.º Escritura. 4.º Principios de aritmética, ó sea, las cuatro reglas de contar con números abstractos y denominados. 5.º Elementos de gramática castellana, dando la posible extensión á la ortografía. Artículo 5.º La instrucción primaria superior comprenderá además: 1.º Mayores nociones de aritmética. 2.º Principios de geometría y sus aplicaciones más usuales. 3.º Dibujo lineal. 4.º Nociones generales de física y de historia natural, acomodadas á las necesidades más comunes de la vida. 5.º Elementos de geografía y de historia, particularmente la geografía y la historia de España. (PLAN DE 1938, 1856, p. 4)

Una novedad del Plan de 1838 es la mayor organización de los contenidos de la enseñanza y su carácter prescriptivo, diferenciándolos en materias escolares, lo que supone un cambio de estatus con respecto a las formulaciones menos específicas de la legislación anterior. La Ley de Instrucción Pública de 1857 (Ley Moyano), que estuvo vigente hasta el final del siglo XIX, incorporó casi todo el Plan de 1838. En lo que se refiere a los contenidos hubo pocos cambios; uno de ellos fue la incorporación del aprendizaje del sistema métrico decimal, y otro la especificación de los contenidos en las escuelas de niñas. Para que las escuelas primarias se adaptaran al Plan de 1838, era necesario que los maestros tuvieran una formación adecuada, y la opinión de los legisladores era que eso no ocurría. Así Pablo Montesino (1845, p. 532) decía: “entre los grandes obstáculos que se presentan para fomentar la instrucción y mejorar la educación de la gran masa del pueblo, uno, el mayor sin duda, es la falta de maestros que puedan cooperar á esta grande obra” . Por ello se publicó un Reglamento de instrucción primaria cuya redacción se debe a Pablo Montesino. El Reglamento se refiere, exclusivamente, a las escuelas primarias elementales, que son las que “se establecen para la masa general del pueblo, y tienen por objeto desarrollar las facultades mentales del hombre, suministrando los Renovando las matemáticas escolares por medio de la formación del magisterio

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conocimientos necesarios á todas las clases sin distinción” (REGLAMENTO DE 1838, 1979, p. 157). En el Preámbulo se justifica la necesidad de este documento por “establecer algunas prácticas poco conocidas por el mayor número de los maestros que han de adoptarlas” (REGLAMENTO DE 1838, 1979, p. 155); pues la mayor parte de los maestros estaban “faltos de la conveniente instrucción y de medios de adquirirla” (REGLAMENTO DE 1838, 1979, p. 155). Por tanto se detallaba la organización de la escuela, el material necesario, el empleo del tiempo, la enseñanza de cada una de las materias etc., pues el redactor consideraba “preciso no solo expresar las cosas que deben hacerse, sino la manera de hacerlas y la razón en que se fundan, por mas obvias que parezcan” (REGLAMENTO DE 1838, 1979, p.155). Ante esta situación, se defiende la necesidad de la creación de las escuelas normales.

Matemáticas en la escuela primaria según las leyes En este apartado se recogen, sintéticamente, las indicaciones legislativas sobre los contenidos matemáticos que se esperaba que los niños aprendieran en la escuela primaria. Constitución de 1812 se establecerán escuelas de primeras letras, en las que se enseñará a (CONSTITUCIÓN los niños a leer, escribir y contar POLÍTICA, 1820, p. 103) Proyecto de decreto de 1814 (PROYECTO las reglas elementales de la aritmética DE 1814, 1979, p. 383)

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Plan de instrucción primaria de 1838 (PLAN DE 1838, 1856, p. 4, 11)

Escuela primaria elemental: Principios de aritmética, ó sea, las cuatro reglas de contar con números abstractos y denominados. Escuela primaria superior: 1º Mayores nociones de aritmética. 2.º Principios de geometría y sus aplicaciones más usuales. 3.º Dibujo lineal. Escuelas primarias de niñas: la enseñanza de estas escuelas á las correspondientes elementales y superiores de niños, con las modificaciones sin embargo que exige la diferencia de sexo. Aunque haya menos concreción en los contenidos, el Plan de 1838 supuso un cambio importante en las escuelas de niñas que las acercaba a las correspondientes de niños; en esos momentos, las escuelas de niñas se centraban en el aprendizaje de las labores y menos en la lectura y escritura.

Ley Moyano (1857) (LEY DE 1857, 1979, 244-245)

Recoge el Plan de 1838 con los siguientes cambios: En la enseñanza elemental, estudio del sistema legal de medidas, pesas y monedas. Se especifican las materias de enseñanza de las escuelas de niñas. En la primaria elemental, los contenidos matemáticos son iguales a los de los niños; no es así en la superior, con solo una materia matemática: Elementos de dibujo aplicado a las mismas labores.

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¿Qué se quería renovar en la enseñanza primaria? La cuestión primera que está en el origen de los cambios legislativos en lo que se refiere a la enseñanza primaria es el precepto constitucional que establece la extensión de la educación a toda la población. Dada la falta de escuelas y la falta de maestros, ¿cómo hacerlo? Las sucesivas leyes y reglamentos propusieron cambios en la organización de las escuelas, cambios en la organización de las enseñanzas y cambios en las materias escolares. Durante el reinado de Fernando VII, la Constitución y los documentos basados en ella, solo establecen que tenía que haber escuelas y que los maestros tenían que estar examinados. Pero la realidad es que había pocos maestros y no estaban bien formados. Y, sobre todo, el sistema de enseñanza que se utilizaba en las escuelas era poco eficiente, pues se usaba el sistema individual, que suponía mucha pérdida de tiempo para los alumnos. Buscando una mayor eficacia, a lo largo de estos años se fue formulando el problema del método, lo que suponía un cambio en la organización de las escuelas; se quería eliminar el sistema individual y sustituirlo por el sistema mutuo o el simultáneo, para conseguir una organización del aula más eficiente y poder atender a un mayor número de alumnos: la extensión de la educación necesitaba un cambio en los métodos de organización y de enseñanza en las escuelas. Esa necesidad se sentía más allá del precepto constitucional; en 1818, en un momento absolutista, comenzaron ensayos del método de enseñanza mutua. En las obras sobre este método se destacan las pocas exigencias que requería a los maestros: Como en estas escuelas primarias solo se enseña á leer y escribir, la aritmética y la costura, no se requiere mas de los maestros y maestras sino que tengan un conocimiento perfecto en estos ramos de instrucción; y tales son las grandes ventajas de este sistema, que con pocos conocimientos que tenga el maestro ó maestra, poseyendo las cualidades susodichas, puede muy bien dirigir una escuela, siempre que siga al pie de la letra lo prescrito para la organización de ella. (ANÓNIMO, 1820, p. 101)

El maestro dirigía, pero los encargados de la enseñanza eran los propios niños, los instructores de clase. En el caso de la aritmética, prácticamente, podía enseñar cualquiera pues “este ramo de la instrucción está tan simplificado, que Renovando las matemáticas escolares por medio de la formación del magisterio

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un niño que solo sepa leer puede enseñar las cuatro primeras reglas simples y compuestas, aun cuando él mismo las ignore” (ANÓNIMO, 1820, p. 67). Lancaster insiste en la misma idea: Es indudable que un muchacho que supiese una de las cuatro reglas, y fuese llamado a ejecutarla a mi presencia, no haría mas que repetir las operaciones expresadas en la clave; y si por otra parte tuviese yo que enseñar esta misma regla a un discípulo que no tuviese todavía conocimiento alguno de ella, la clave contiene también en sustancia lo que yo podía explicarle. Este medio de las claves puede sustituir en alguna manera al maestro. [...] Los muchachos son por lo general excelentes agentes para todo lo que no está fuera de su comprensión, y en este caso, no quedando nada abandonado a su solo discernimiento, no pueden errar a no ser que se duerman, o lo hagan de intento. (LANCASTER, 1818, p. 61-62)

También cambió la organización de las enseñanzas; en esos momentos, en la escuela primero se aprendía a leer, después a escribir y, por último, a contar, y el precio que pagaban los padres iba aumentando al ir pasando de clase. En el Reglamento de 1838, la organización del tiempo escolar es diferente pues se estudiaban todas las materias escolares y había que organizar el tiempo dedicado a cada una mediante un horario. Estos cambios organizativos requirieron una mayor delimitación y ampliación de las materias de enseñanza. Hubo una progresiva toma de conciencia de la necesidad de cambiar la formación de los maestros: antes de 1834, la legislación no aborda esa cuestión pues se creía que el método era eficaz por sí mismo. Sin embargo, en 1838, para Montesino era algo prioritario y así lo escribe en el Preámbulo del Reglamento de 1838 (p.169): “Sabido es que la habilidad del maestro es el gran resorte de un método, cualquiera que sea; y que no hay buen método para un mal maestro”, opinión que era compartida, por otras personas relacionadas con la educación primaria, como la Comisión provincial de instrucción pública de Guadalajara: La mayor parte de los maestros que hay en el día no solo no se hallan en disposición de plantear en sus escuelas un sistema regular de enseñanza, sino que ni aun entender pueden por falta de principios ninguna obra que trate de la materia. (CPIP GUADALAJARA, 1841, p. 26) 60

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Y para mejorar la formación del Magisterio, para pasar de un sistema gremial de formación a un sistema más profesional, el Plan de 1838 obliga a crear las Escuelas Normales en todas las capitales de provincia. De esa forma el control del acceso a la profesión de maestro pasa de las asociaciones profesionales de maestros a centros educativos controlados por el Estado; las revistas profesionales registraron enfrentamientos entre las academias de profesores (gremiales) y las Escuelas Normales. Pues, en el fondo, hay una cuestión de control por parte del estado de la formación y el reclutamiento de maestros. De esa forma se creó un colectivo de maestros que debía su título al gobierno y que se había examinado con nuevas normas que debían poner en valor; las EENN permitieron un mayor control de la enseñanza primaria por el gobierno.

La formación del Magisterio en las Escuelas Normales En 1839 comenzó a funcionar la Escuela Normal Central, dirigida por Pablo Montesino, con la finalidad de formar a los profesores de las EENN de provincia. La primera promoción acabó en 1841 y, a partir de ese momento, fueron creándose Escuelas Normales por toda España. Se trataba de centros masculinos, los únicos que citaba el Plan de 1838; las Escuelas Normales femeninas se fueron creando con el modelo de las masculinas, pero sin una reglamentación propia hasta la Ley de Instrucción Pública de 1857 (Ley Moyano). La estructura de los estudios que se realizaban en las EENN fue cambiando durante estos años. El Reglamento de 1843 fijaba la duración de los estudios en dos años y daba acceso al título de maestro superior, tras un examen. El Reglamento de 1849 establecía dos niveles de estudios: maestro elemental, con una duración de dos años y maestro superior, con duración de tres años. La Ley Moyano (1857) diferenciaba tres títulos de maestro: maestro elemental, con una duración de dos años; maestro superior, un año más, y maestro normal, un año más. En cuanto a los estudios en las Escuelas Normales femeninas, no fijaba su duración. En 1858 se publicó un Programa general de estudios de las escuelas normales de primera enseñanza, que concretaba la Ley Moyano y que continuó vigente, esencialmente, hasta 1914. En las Escuelas Normales se estudiaban las materias escolares y alguna asignatura pedagógica. En la figura 1 se recogen los contenidos matemáticos

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que aparecen en las diferentes leyes y reglamentos; solo se refieren a las EENN masculinas pues no se detallaron los contenidos de las femeninas.

Fuente: Carrillo Gallego, 2005, p. 205 62

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Para determinar las matemáticas que se estudiaban hay que tener en cuenta el nivel que se asignaba a estos estudios y los libros de texto utilizados. Según el Plan de instrucción primaria de 1838 y el Reglamento de EENN de 1843, las escuelas normales son escuelas primarias superiores y a ellas pueden asistir alumnos de enseñanza primaria superior. Como estos estudios habilitaban para ser maestro de escuela superior, resulta que la preparación matemática que recibían era exactamente la misma que tendrían que impartir. Pero la falta de preparación de los aspirantes al título de maestro impedía que, en los dos años de estudio previstos, los alumnos alcanzaran ese nivel. Por ello, según el Reglamento de 1849, tras dos años de estudio, lo que se podía obtener era el título de maestro elemental, y el nivel de los estudios era el de la enseñanza primaria elemental; para obtener el título superior era necesario estudiar otro curso cuyo nivel se consideraba de enseñanza primaria superior. La inclusión de Nociones de álgebra en estos estudios sobrepasa los contenidos de la escuela primaria superior y constituye un primer acercamiento a la enseñanza secundaria. La Ley Moyano (1857) era una Ley general de educación que afectaba a todo el sistema educativo. En ella, los estudios de magisterio están incluidos entre las enseñanzas profesionales, aunque con menor nivel. El efecto de esta ley fue acercar los estudios de maestro a los de enseñanza secundaria, aunque continuó teniendo menos prestigio: menor prestigio de los profesores de EENN con respecto a los de instituto de educación secundaria y, correlativamente, había menor exigencia en el examen de ingreso en estos centros (CARRILLO GALLEGO, 2005, p. 188). Los libros de texto que se recomendaron para el estudio de las matemáticas en las EENN son acordes con el nivel que se asignaba a estos estudios. En principio, se usarían los libros aprobados para escuelas primarias; también hay referencias al uso de apuntes del profesor. En 1852 y 1856 se aprobaron listas de libros para las EENN. Uno de ellos era el Compendio de Matemáticas de José Mariano Vallejo (1835), obra utilizada en el nivel de la enseñanza secundaria; también estaba una Aritmética de Joaquín Avendaño (1852), escrita para las EENN; el resto son obras para la enseñanza primaria. De acuerdo con la Ley Moyano, el Gobierno podía aprobar, cada tres años, hasta tres obras para Matemáticas en las EENN (sin diferenciar asignaturas). Las obras aprobadas fueron similares a las de secundaria y otros estudios Renovando las matemáticas escolares por medio de la formación del magisterio

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profesionales. En la primera lista (1861) estaba el Compendio de Vallejo (1835). En todas estuvieron los libros de Cortazar (1846) y de Picatoste Rodríguez (1860); Fernández Vallín Bustillo (1855) sustituyó a Vallejo en los listados de 1864 y 1867 (CARRILLO GALLEGO, 2005, p. 376). Además, hubo profesores de EENN que continuaron utilizando sus propios textos, a pesar de no estar autorizados. El nivel de estas obras era el de la enseñanza primaria.

Materias pedagógicas y metodología de las matemáticas Lo específico de estos estudios, lo que diferenciaba a los aspirantes a maestro de los alumnos de enseñanza primaria superior, era el estudio de las materias pedagógicas. El Director de la Escuela Normal de Almería, en un Informe al Rector acerca de las reformas más urgentes de que son susceptibles las Escuelas Normales de 30 de Enero de 1866 lo justificaba porque no sólo deben adquirirse los conocimientos que abraza la enseñanza marcada por la Ley, sino también la manera de trasmitirlos, imprimiéndoles esta condición un sello espacial que los diferencia notablemente de los demás centros de instrucción. (BALLARIN DOMINGO, 1987, p. 254)

En la figura 2 se han recogido los títulos de estas materias tal como aparecen en las leyes y los reglamentos.

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Fuente: Carrillo Gallego, 2005, p. 239

El primer profesor en impartir estas materias fue Pablo Montesino, como Director de la Escuela Normal Central. En sus clases aprendieron los profesores de las EENN de provincias. El título de la asignatura era Principios generales de educacion moral, intelectual y física, con instrucciones especiales acerca de los medios mas conducentes para conservar la salud de los niños y robustecerlos; ó sea el modo de combinar los ejercicios gimnásticos ó corporales con los juegos y ocupaciones ordinarias de la niñez. Al elaborarla, Montesino se enfrenta a una situación nueva para él, para el sistema educativo y para la sociedad; y en el largo título hace explícitos los principios en los que se basa. Con esta formación, se pretendía preparar profesionalmente a los maestros en una triple dirección:

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En primer lugar, preparándolos no solo para instruir, sino para educar, al estudiar nociones de educación. Montesino le dio su impronta como médico, preocupado por la salud de los niños, Nosotros entendemos por educación la aplicación de aquellos medios con que procuramos criar hombres sanos, inteligentes y morales. El conservar la salud y robustecer la constitución física del individuo, aumentar su capacidad intelectual y formar su carácter moral, viene a ser el triple objeto, inmediato, de la educación. Su objeto final, es o debe ser, proporcionar la felicidad temporal y perpetua a las personas. (MONTESINO, 1988, p. 83)

Otro objetivo era proporcionar conocimiento de nuevas formas de organización de las escuelas, más eficaces, y que permitieran atender a un mayor número de niños. Los conocimientos teóricos sobre esta materia se completaban con la observación y las prácticas en escuelas primarias. Por último, se procuraba el conocimiento de métodos de enseñanza de las distintas materias escolares, entre ellas las relacionadas con las matemáticas. En los Reglamentos de EENN de 1849 y 1850, las Nociones de Educación se reservaron para el título de maestro superior, mientras que en los cursos correspondientes al título elemental la asignatura era Sistemas y métodos de enseñanza. El libro de texto aceptado como referencia desde 1850, fue el Curso elemental de Pedagogía de Joaquín Avendaño y Mariano Carderera (1850), declarado de texto desde 1852. Estos antiguos alumnos de Montesino recogen sus enseñanzas y, en lo que se refiere a la metodología de la aritmética, también Montesino es su referencia fundamental, pero con menor extensión (CARRILLO GALLEGO, 2005). Aunque la geometría era una materia de la enseñanza primaria superior, no se recogen indicaciones metodológicas sobre la misma.

Algunas luces y sombras de las EENN La creación de las EENN, tanto femeninas como masculinas, supuso la existencia de un marco común a nivel del Estado tanto en lo que se refiere a la formación del Magisterio como al acceso a la profesión. El nuevo sistema requería dominar las materias escolares y la inclusión de asignaturas

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pedagógicas supuso un mejor conocimiento de la organización de la escuela, los sistemas de enseñanza y de algunas características de la infancia, es decir, una mejor preparación profesional. Pero el desarrollo de las EENN a lo largo de estos años, no fue sencillo y no se alcanzaron los resultados que se esperaba de ellas. Como hemos señalado, sufrieron ataques por parte de asociaciones del Magisterio, pero sus mayores problemas provenían de su funcionamiento. Quizás el más importante era la falta de formación en las personas que ingresaban en las EENN, lo que hacía que el tiempo de estudios en la escuela normal tuviera que dedicarse, fundamentalmente, a la formación en las materias escolares que tendrían que haber conocido previamente. En esas circunstancias, muchos maestros no alcanzaban la formación prevista en los reglamentos. La dificultad en el reclutamiento es una queja constante de los profesores de las EENN durante todo el siglo XIX. Pablo Montesino, en 1842, consideraba que la mayoría de los maestros, carecen de los recursos necesarios para emprender y continuar estudio alguno; pues a no carecer de ellos se dedicarían a otra carrera menos laboriosa y mejor retribuida que la profesión de maestro de escuela primaria. Esto es tan obvio que no necesita de pruebas; y llega a tal punto que gran parte de los maestros, casi todos los que ejercitan su magisterio en los pueblos pequeños, atendido el miserable estipendio que se les da por su trabajo, han debido ser tan pobres en su juventud que ni aun han podido aprender algún arte u oficio mecánico de mayor comodidad y provecho que la escuela. (MONTESINO, 1842, p.13-14)

Esta opinión fue repetida, por diversas personas a lo largo del siglo XIX e, incluso, en el siglo XX. La profesión de maestro no estaba bien considerada: los sueldos eran bajos, había retraso en el pago y una fuerte dependencia de las autoridades locales: no merecía la pena ser maestro.

LA EDAD DE PLATA DE LA CULTURA ESPAÑOLA Contexto político Después de la Ley Moyano (1857), se acentuó el carácter conservador de los Gobiernos (cuestiones universitarias, limitaciones a la libertad de

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expresión); fue una época de menor atención a la enseñanza primaria y a las EENN. Tras el derrocamiento de la reina Isabel II y el sexenio revolucionario (1868-1874) se produjo la Restauración monárquica, con un sistema de gobierno pactado en el que se alternaban conservadores y liberales. En lo que se refiere a la educación, esto supuso un estancamiento: era un tejer y destejer; se producían pequeños cambios que revertían con el cambio de gobierno. Continuaba la vigencia de la Ley Moyano, tanto en lo que se refiere a la enseñanza primaria como a las EENN. Esto suponía que unos contenidos y una organización de la enseñanza primaria, que en la primera mitad del siglo XIX supusieron un avance con respecto a las escuelas del Antiguo Régimen, se habían quedado obsoletos. Y la situación de los maestros, pagados por los ayuntamientos (municipios), era penosa, con retrasos generalizados en el cobro de los sueldos. En las EENN, había una parálisis general: no se convocaban oposiciones para ocupar las plazas de profesores; se contrataba, de forma interina, a dedo, y el nivel de los estudios no progresaba, sino que descendía. El desastre de 1898, con la pérdida de las colonias (Cuba, Puerto Rico, Filipinas), produjo una reacción entre los intelectuales (la denominada generación del 98) que favorecía la introducción de cambios, en particular en la escuela. Se trataba de modernizar España, de abrirla al mundo, de acercarla a Europa. Para este objetivo, fueron fundamentales las propuestas que se realizaron desde la Institución Libre de Enseñanza (la ILE), creada en 1876 por Giner de los Ríos, junto con un grupo de intelectuales, a raíz de su expulsión de la Universidad por la llamada “cuestión universitaria”, relacionada con las limitaciones que se pusieron desde el Gobierno a la libertad de cátedra.

La Institución Libre de Enseñanza y la renovación educativa en España La importancia de la ILE en esos momentos ha sido destacada por el profesor Antonio Viñao, quien señala que, entre 1876 y 1936, “solo existió un modelo coherente de reforma del sistema educativo en su conjunto, que, por tratarse de un proceso de reforma a largo plazo, mereciera tal nombre: el de la Institución” (VIÑAO FRAGO, 2013, p. 434).

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La ILE fundaba sus esperanzas de reforma social en la educación y, por ello, en la educación centró sus esfuerzos. El mismo Viñao, en el trabajo citado anteriomente, destaca, como uno de los rasgos de la ILE su reformismo gradual, y con ello, la necesidad de una introducción gradual de las reformas, de acuerdo con la identificación de los profesores con ellas. Además, los hombres de la ILE trataron de influir en las políticas educativas y culturales del partido liberal y algunos de sus miembros, y de lo que se llamó “la institución difusa”, tuvieron cargos de responsabilidad política y pudieron poner en marcha proyectos acordes con las propuestas institucionalistas. Entre las acciones e instituciones en las que se reconoce la influencia de la ILE están la organización del Congreso Pedagógico de 1882, que fue un momento de encuentro y discusión entre profesorado, administradores y personas interesadas en la educación, Otra fue el Museo Pedagógico Nacional (1882), orientado fundamentalmente a la formación de los maestros y cuyo director fue Manuel Bartolomé Cossío. Una institución muy influyente fue la Junta para la Ampliación de Estudios e Investigaciones Científicas (JAE), creada en 1907, presidida por el Premio Nobel Santiago Ramón y Cajal y cuyo secretario fue José Castillejo. La JAE propició el conocimiento de instituciones, y experiencias científicas, culturales y educativas mediante becas para estancias en el extranjero de profesores e investigadores; estas estancias permitían el conocimiento de otras experiencias educativas y es una actuación acorde con el reformismo gradual que propugnaba la ILE. Se considera que la JAE fue la agencia de renovación pedagógica y científica más importante de España en esos momentos (VIÑAO FRAGO, 2010). Otra característica de la ILE eran sus propuestas de introducir las innovaciones educativas por medio de instituciones de ensayo y reforma, mejor que mediante decretos legislativos. Dependientes de la JAE se crearon algunas instituciones de este tipo como la Residencia de estudiantes (1910), la Residencia de señoritas (1915), los diversos laboratorios científicos o el Instituto-escuela (1918); y relacionado con la formación del magisterio, la Escuela de Estudios Superiores del Magisterio (1909).

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Las leyes educativas a comienzos del siglo XX. Las matemáticas en la enseñanza primaria El Real Decreto de 26 de octubre de 1901 es conocido por incluir el pago de los sueldos a los maestros en los Presupuestos generales del Estado, dignificando así la profesión de maestro, que dejaba de estar supeditada a los municipios y a la arbitrariedad de sus alcaldes. Aunque este era el motivo fundamental y urgente, el Ministro considera que era necesaria “una completa reorganización de la primera enseñanza” (REAL DECRETO, 1901, p. 497) y redefinió la estructura y los contenidos de la misma. De esta forma, el Real Decreto supuso un cambio significativo en la enseñanza primaria con respecto al Plan Someruelos (1838) y la Ley Moyano (1857); y lo hizo en tres artículos. Art. 2.º La primera enseñanza es privada o pública, dividiéndose esta última en tres grados: de párvulos, elemental y superior. Art. 3.º La primera enseñanza pública comprende las materias siguientes: Primero. Doctrina Cristiana y Nociones de Historia Sagrada, Segundo. Lengua Castellana. Lectura. Escritura. Gramática. Tercero. Aritmética, Cuarto. Geografía e Historia, Quinto. Rudimentos de Derecho, Sexto. Nociones de Geometría, Séptimo. Idem de Ciencias físicas, químicas y naturales, Octavo. Idem de Higiene y de Fisiología humana, Noveno. Dibujo, Décimo. Canto. Undécimo. Trabajos manuales, Duodécimo. Ejercicios corporales. Art. 4.º Cada uno de los tres grados en que queda dividida esta enseñanza, abrazará todas las materias indicadas, distinguiéndose únicamente por la amplitud del programa y por el carácter pedagógico y duración de sus ejercicios; y se aplicará, con las modificaciones necesarias, a la organización de las

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Escuelas Públicas y a los establecimientos de naturaleza análoga.La distribución y extensión de las materias, dentro de cada uno de estos grados, así como la distribución y duración de las clases, serán las que fijen los reglamentos. (REAL DECRETO, 1901, p. 498)

El Real Decreto, por tanto, amplía el currículo de la enseñanza primaria, a la que divide en párvulos, elemental y superior y considera que deben estudiarse las mismas materias en todos los grados, aunque con diferente profundidad. En este Real Decreto, elaborado por un Ministro liberal, se advierte la influencia de la ILE por establecer una Escuela única, dividida en tres grados, de los cuales los dos últimos tienen que ser cursados por todos los niños y niñas, pues se amplía la obligatoriedad de la enseñanza hasta los doce años y se incluye la enseñanza primaria superior en ese tramo de edad; la enseñanza cíclica, pues los contenidos de cada grado son los mismos y hay que profundizar en ellos. Además, con la inclusión de las nuevas materias se pretende la instrucción integral de la persona: científica, física, estética, moral (REAL DECRETO, 1901, p. 497). Los contenidos de matemáticas son Aritmética y Nociones de Geometría. No se especifica más, pero supuso, además de cierta unificación de los grados elemental y superior, incluir la geometría en todos los niveles. El problema era la preparación de los maestros para planificar las enseñanza de este currículo ampliado, algo para lo que no habían sido preparados en las EENN, cuyos Programas databan de 1858. Este Plan de Estudios de la enseñanza primaria estuvo en vigor hasta 1945.

La formación de maestros (1900-1936) Una de las prioridades de la ILE era la mejora de la enseñanza primaria y de la formación del magisterio, pieza clave en la renovación de la educación primaria: “Dadme el maestro y o abandono la organización, el local, los medios materiales; cuantos factores, en suma, contribuyen a auxiliar su misión. Él se dará arte para suplir la insuficiencia o los vicios de cada uno de ellos” dijo Giner de los Ríos (1880) en la apertura del curso de la ILE. Esta frase destaca la importancia que, en la ILE, se le daba a los maestros y a su formación. Sin embargo, en el último tercio del siglo XIX, hay testimonios de

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que la formación que se recibía en las EENN era deficiente. Estos testimonios y las opiniones a favor de un cambio en el sistema de enseñanza del magisterio no fueron suficientes y, a pesar de la existencia de un nuevo currículo en la educación primaria (Real Decreto de 1901) los cambios en la formación del magisterio se retrasaron, pues un sector social opinaba que, dado el abandono y descrédito en que estaba la profesión de maestro, no se podía exigir mayor nivel académico a los aspirantes a esta profesión. Los cambios en la formación del magisterio se produjeron en dos fases y, al igual que en 1839, se creó primero (en 1909) una institución para la formación de los profesores de EENN, la Escuela Superior del Magisterio (ESM) para, posteriormente, en 1914, acometer la reforma de los Planes de estudio de las EENN. Estas dos fases y el Plan de estudios de Magisterio del tiempo de la República van a ser comentadas en este apartado.

1. La Escuela de Estudios Superiores del Magisterio Uno de los problemas de las EENN, tanto masculinas como femeninas, era la inestabilidad de su profesorado pues no se habían convocado oposiciones durante muchos años, y el profesorado era interino, seleccionado sin criterios adecuados. La Escuela Superior del Magisterio (ESM) posibilitó la renovación y estabilización de la plantilla de profesores de las EENN y de la inspección de primera enseñanza. La ESM estuvo en funcionamiento entre 1909 y 1932. Fue una de las instituciones dependientes de la JAE con influencia del pensamiento de la ILE; los estudiantes estaban en régimen de internado y, al acabar los estudios, podían optar a plazas de profesorado de EENN o de la Inspección de enseñanza primaria. María del Mar del Pozo (1989) ha estudiado el tipo de actividades formativas que se realizaban en la ESM destacando su variedad y su carácter innovador. Este tipo de formación influyó en que la ESM fuera una caja de resonancia de las propuestas de la Escuela Nueva. María de Maetzu, directora de la Residencia de Señoritas, dijo en relación con la ESM: Durante muchos años nutrió de elementos jóvenes y muy valiosos el profesorado de nuestras Normales. Toda la renovación que se ha hecho en la enseñanza en los últimos veinticinco años se debía a la inteligencia y el brío de

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aquellos alumnos, que llevaron a todas las provincias de España las enseñanzas de sus ilustres maestros. (MAETZU WHITNEY, 1936, p. 122)

Y es que, más que los Planes de estudio, los artífices de las reformas en las EENN fueron los antiguos alumnos de la ESM, los cuales crearon una asociación profesional, la Asociación del Profesorado de Escuelas Normales, crearon y dirigieron revistas profesionales de gran influencia como la Revista de Escuelas Normales, publicada por la Asociación del Profesorado de Escuelas Normales o la Revista de Pedagogía, dirigida por Lorenzo Luzuriaga y que fue el órgano de difusión en España de la Liga Internacional de la Educación Nueva; también difundieron en España las ideas y realizaciones de la Escuela Nueva, a través de traducciones, libros y artículos. Antiguos alumnos de la ESM fueron algunos políticos del periodo de la Segunda República, entre los que destaca Rodolfo Llopis, que fue Director General de Primera Enseñanza entre 1931 y 1933. En los veintitrés años de funcionamiento de la ESM la denominación de la institución experimentó algunos cambios y se sucedieron siete Planes de estudio (1909, 1911, 1913, 1914, 1919, 1921 y 1931); en todos ellos, para la especialidad de Ciencias hubo dos asignaturas matemáticas cuya denominación fue variando; algunos de los títulos fueron Aritmética y Álgebra; Geometría y Trigonometría; Metodología de las Ciencias Matemáticas; Complementos de Matemáticas o, simplemente, Matemáticas (SÁNCHEZ JIMÉNEZ, 2015, p. 137-138). El profesorado que impartió esas asignaturas era de nivel universitario pero, como señala la profesora Encarna Sánchez Jiménez (2015, p. 141), Observamos que los profesores encargados de las asignaturas de matemáticas tienen formación matemática muy elevada y méritos demostrados, y que algunos habían obtenido y ocupado cátedras de institutos de segunda enseñanza. Sin embargo, no se les conoce ningún trabajo ni actuación que ponga de manifiesto su interés por la metodología de las matemáticas.

De hecho, entre los trabajos realizados por estudiantes que consigna María del Mar del Pozo Andrés (1989) solo hay uno sobre matemáticas.

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Profesores de EENN que fueron alumnos de la ESM y estaban interesados en la enseñanza de las matemáticas, como José María Eyaralar o Felipe Sáiz Salvat, se lamentaron de que, aunque la formación matemática recibida era buena, faltaba formación en los aspectos didácticos, tanto dirigidos a las escuelas primarias como a la formación de maestros (SÁNCHEZ-JIMÉNEZ, 2015). En 1932 se creó la sección de Pedagogía de la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Madrid y se suprimió la ESM por considerar que ya no era necesaria. Sin embargo, los estudios de Pedagogía no cubrían las finalidades de la ESM y, en particular, no abordaban la formación en metodología de las matemáticas que necesitaba un profesor de EENN.

2. El Plan Bergamín (1914) En 1914, cuando habían salido tres promociones de la ESM, se publicó el Real Decreto de 30 de agosto que reformaba los estudios en las EENN. A este Plan de estudios se le conoce como Plan Bergamín, por el Ministro de Instrucción Pública que lo firmó. En este Plan se consideraba un único título de magisterio, desapareciendo la división en maestros elementales y superiores. En consecuencia, también se unifican las EENN que pasan a ser de un único tipo. Los años de estudio aumentan a cuatro. En el artículo 15 y 16 están las materias a estudiar: se incorporan asignaturas acordes con el Real Decreto de 1901 que había reformado la enseñanza primaria. En lo que se refiere a las matemáticas, las asignaturas son similares a las que se estudiaban en los Planes anteriores: Nociones y ejercicios de Aritmética y Geometría en primer curso; Aritmética y Geometría en segundo, y Álgebra en tercer curso. En cuanto a las asignaturas pedagógicas, también eran similares, aunque se añadió una Historia de la Pedagogía en cuarto curso. Se hicieron más explícitas las condiciones de las Prácticas de enseñanza, que se hacían en los dos últimos cursos. Una novedad importante es el artículo 19, dedicado a la metodología de las enseñanzas en las EENN; en él se establece que “todos los Profesores deberán enseñar a sus alumnos la Metodología de sus respectivas asignaturas aplicada a la Escuela Primaria”. 74

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La principal dificultad que se reconocía a la aplicación de este Plan fue el nivel de entrada de los alumnos a estos estudios, pues la profesión de maestro, aunque había mejorado en sus condiciones económicas con respecto a la situación en el siglo XIX, continuaba siendo poco valorada y a ella aspiraban aquellas personas que no podían realizar otro tipo de estudios. Los nuevos profesores de las EENN, formados en la Escuela de Estudios Superiores del Magisterio, fueron especialmente conscientes de estas deficiencias, y así lo manifestaron en repetidas ocasiones (SÁNCHEZ JIMÉNEZ, 2015). El bajo nivel de entrada de los alumnos hacía que hubiera que dedicar el tiempo de la formación al estudio de las materias escolares, a nivel de la enseñanza primaria, en detrimento de la formación en las metodologías específicas. Parecía que a lo más que podían aspirar las enseñanzas en las EENN era a acercarse a los estudios de la educación secundaria, olvidando los aspectos específicos de esta institución: el estudio de la metodología de los contenidos de la enseñanza primaria, tal como establecía el artículo 19 del Plan Bergamín. Los libros de texto de matemáticas para las EENN que escribieron algunos de estos profesores tampoco prestaron atención a las cuestiones de metodología de las matemáticas, pues eran obras que también se recomendaban para la enseñanza secundaria. Hubo algunas excepciones como José María Eyaralar o Felipe Sáiz Salvat, que sí incluyeron esas cuestiones en sus obras. Y en sus publicaciones en revistas profesionales, estos autores insistieron en la defensa del carácter profesional específico de las EENN. Saiz Salvat alertaba del peligro de olvidarlo: La totalidad de los Profesores de Normal y a pesar de lo indicado en el Real Decreto de 30 de agosto de 1914, hacemos todo lo posible para que la enseñanza de nuestros centros apenas se distinga de la enseñanza secundaria, con lo cual justificamos la absorción suicida. (SÁIZ SALVAT, 1925, p. 95)

Y, en otro escrito, recordaba la responsabilidad del profesorado en la aplicación de la legislación sobre los estudios en las EENN: “El Estado no es culpable de que la Normal de hoy no sea todo lo profesional que debe ser” (SÁIZ SALVAT, 1924b, p. 205). La “Asociación del Profesorado de Escuelas Normales” realizó propuestas de reforma de los estudios de Magisterio en las que se pedía elevar el nivel de Renovando las matemáticas escolares por medio de la formación del magisterio

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entrada a los estudios de Magisterio, acercándolos a los universitarios, reforzar el carácter de enseñanza profesional de esos estudios y prestar mayor atención a las metodologías específicas. Estas aspiraciones se consiguieron durante la Segunda República, cuando Rodolfo Llopis fue nombrado Director General de Primera Enseñanza, siendo Ministro de Instrucción Pública un maestro, Marcelino Domingo.

3. El Plan de estudios de la República (1931) El 29 de septiembre de 1931, cinco meses después de ser proclamada la Segunda República en España, el Ministerio de Instrucción Pública y Bellas Artes publicó un Decreto por el que se reorganizaban los estudios en las EENN, recogiendo, en buena parte, las propuestas de la “Asociación del Profesorado de Escuelas Normales”. El Decreto conservaba la duración de los estudios en cuatro años, dedicando el último a prácticas en escuelas primarias, prácticas que eran remuneradas. Pero elevaba el nivel de entrada en los estudios de Magisterio pues exigía el título de Bachiller. El Decreto consideraba tres periodos en la formación del Magisterio (artículo 1): uno de cultura general, que se realizaba en los institutos de segunda enseñanza y que culminaba con la obtención del título de Bachiller; un segundo periodo de formación profesional, que tenía lugar en las EENN; y un tercero de práctica docente en las escuelas primarias. Se unificaban las Escuelas Normales masculinas y femeninas, pasándose a un régimen de coeducación. Había un número de plazas limitado y se ingresaba según los resultados de un examen de acceso. Este Plan de estudios es conocido como el Plan Profesional; ya no se estudiaba en las EENN las materias de la educación primaria, aspecto que era fundamental en los Planes anteriores, sino que las asignaturas se referían a las metodologías correspondientes, además de haber prácticas de enseñanza ligadas a esas asignaturas metodológicas. Hay que tener en cuenta que la Metodología de las Matemáticas tuvo un peso reducido, en relación con otras asignaturas metodológicas, pues solo se estudiaba durante un curso y no se diferenció entre la metodología de la aritmética y la de la geometría, por ejemplo, mientras que sí se hizo en otras materias, como Geografía e Historia que se dividieron en dos asignaturas. 76

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Ese Plan Profesional suponía un cambio muy importante en los estudios de Magisterio, pues cambiaba la orientación de las asignaturas. Era lo que habían propuesto grupos de profesores, ligados a la Asociación del Profesorado de Escuelas Normales y que solían publicar en la Revista de Escuelas Normales; estos profesores habían reflexionado sobre la situación de las EENN y los posibles medios para mejorarlas, pero sus propuestas eran parciales, no se habían planteado la organización de una asignatura. Y otros muchos profesores reconocían que les faltaba preparación para planificar e impartir una asignatura de este tipo. En la configuración de las asignaturas de Metodología se dio un proceso interesante; en julio de 1932, el Director General de Primera Enseñanza convocó unos Cursillos de información sobre cada una de estas asignaturas. A esos cursillos asistieron profesores que las habían impartido el curso anterior junto con profesores universitarios y otros expertos en las diferentes materias; en el caso de la Metodología de las Matemáticas asistieron investigadores del Instituto Matemático, dependiente de la JAE. En la reunión se comentaron las experiencias con esa nueva asignatura y se elaboraron Cuestionarios para cada una de ellas. Los Cuestionarios eran orientativos y, según el Reglamento de Escuelas Normales de 1933, “Los profesores redactarán sus programas en armonía con los cuestionarios oficiales, que se revisarán periódicamente por la Dirección General de Primera Enseñanza, oyendo al profesorado de Escuelas Normales”. Los aspectos que, según los asistentes a los Cursillos, debían tratarse en la asignatura de Metodología de las Matemáticas eran variados. Sanchez Jiménez (2015, p. 320) los resume así: el conocimiento de los problemas actuales de la disciplina, el “concepto de la ciencia” y la psicología infantil, para elaborar una didáctica asimismo específica (métodos de enseñanza, procedimientos, material...), [...] pautas u orientaciones para elaborar los programas escolares de primaria. [El alumno] debía tener, por un lado, una perspectiva de la matemática actual y de sus aplicaciones, y también un conocimiento de los métodos de la propia ciencia matemática; por otro lado, conocimientos psicológicos, pedagógicos y específicos de la didáctica de la matemática, lo que engloba técnicas didácticas, así como dispositivos materiales, y elaboración de programas.

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Al ser la Metodología de las Matemáticas una disciplina nueva, la interpretación que los profesores dieron a estos aspectos fue diferente, como se advierte en los libros de texto que algunos de ellos elaboraron para la asignatura. Alguno de los textos, los más completos, tuvieron en cuenta tanto la experiencia previa de sus autores como profesores de Matemáticas en las EENN y, en particular, de la asignatura de Metodología de las Matemáticas, como las indicaciones de los Cuestionarios; son las obras de José María Eyaralar Almazán (1933), Felipe Sáiz Salvat (1931) y Luis Paunero Ruiz (1935). Otros profesores publicaron obras en las que se trataban aspectos parciales como en las de Francisco Romero Carrasco (1933) y Manuel Xiberta Roqueta (1934); otras eran más divulgativas, como las de Margarita Comas CAMPS. (1932a) o Aurelio Rodríguez Charenton (1930)7. La formación recibida en la ESM había preparado al profesorado de EENN para dar importancia a los principios de la Escuela Nueva, a la intuición y la experimentación, y habían visto, en algunas asignaturas, cómo se podía llevar a la práctica estas propuestas en las escuelas primarias. Algunos profesores comentaron sus ideas y experiencias en artículos de revistas, como Margarita Comas Camps (1934), José María Eyaralar Almazán (1924, 1925a, 1925b, 1926a, 1926b, 1926c, 1927, 1928a, 1928b, 1930), Luis Paunero Ruiz (1932, 1933) o Felipe Sáiz Salvat (1924a, 1924b, 1025); estas publicaciones constituyen otro índice de la formación en Metodología de las Matemáticas que recibía el alumnado de las EENN. También publicaron algunos profesores de EENN libros de matemáticas dirigidos a las escuelas primarias y a sus maestros, y en ellos se encuentran indicaciones metodológicas de distinto tipo. Los libros de este tipo más innovadores fueron los de Margarita Comas Camps (1928, 1932b) y los de Aurelio Rodríguez Charentón (193?a, 193?b); esos libros se difundieron también entre el profesorado de las EENN y pudieron servir de referencia en la planificación de la asignatura de Metodología de las Matemáticas y, por ello, también son indicativos de los contenidos que se impartieron en las EENN. El Plan Profesional recibió críticas por parte del profesorado de las EENN, incluso de aquellos que lo defendían. La ampliación de los años de estudio y la exigencia del título de Bachiller hizo que, en muchas EENN, no se cubrieran 7

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. Un análisis de estos textos se encuentra en Sánchez Jiménez (2015, p. 313-359).

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las plazas ofertadas: el grupo social que había nutrido estas instituciones no tenía el nivel suficiente; y tampoco estaban claras las ventajas de esta profesión. Por ello, personas relacionadas con el Magisterio, opinaban que la formación de cultura general debería volver a las EENN, ampliando el tiempo de permanencia en las mismas (SÁNCHEZ JIMÉNEZ, 2015). Otro tipo de dificultad fue la falta de preparación de un sector del profesorado de EENN que no sabía cómo plantear una asignatura metodológica. En la asignatura de Metodología de las Matemáticas el problema aumentaba por el escaso número de horas previsto en los Planes de estudio. Estas dificultades se podrían considerar normales en unos estudios y unas asignaturas tan novedosas y el profesorado expresaba su confianza en que se pondría remedio a las mismas. Pero la Guerra Civil de 1936 puso fin a la República y a estos Planes de estudio, cuando solo habían terminado las dos primeras promociones de estudiantes.

Las Matemáticas y la profesión docente En este trabajo se han presentado dos momentos de la historia de España en los que se ha cambiado el currículo y la organización de la enseñanza primaria con el objetivo de mejorarla. En ambas situaciones, se han ligado estas innovaciones con una reforma del sistema de formación de maestros. Y esa reforma comenzó, en los dos casos analizados, con la creación de instituciones para formar a los profesores de EENN (la Escuela Normal Central y la Escuela Superior del Magisterio, respectivamente). Las propuestas para los planes de estudio nuevos suponían cambios en el currículo de esos centros que indican la evolución que han seguido los estudios de Magisterio en España entre 1838 y 1936.

Los saberes de la profesión docente Para el análisis de la evolución de los estudios de Magisterio, o de cualquier otra profesión docente, hay que determinar qué saberes se consideraban necesarios para la formación en esa profesión. Los trabajos de Shulman (1987), que pusieron de relieve la existencia de siete categorías de conocimientos necesarios para la profesión docente y, entre ellas, la importancia del conocimiento

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pedagógico del contenido (Pedagogical Content Knowlwdge- PCK) han abierto una línea de investigación sobre la que se puede encontrar un resumen en el capítulo introductorio del libro de Hofstetter y Schneuwly (2007), “Savoirs en (trans)formation. Au coeur des professions de l’enseignement et de la formation”. Particularizado al ámbito de las matemáticas se encuentran las aportaciones de Ball, Thames y Phelps (2008) que introducen la noción de conocimiento matemático para la enseñanza (Mathematical Knowledge for Teaching, MKT), es decir, los conocimientos matemáticos necesarios para la enseñanza de las matemáticas; Ball, Thames y Phelps han establecido cuatro dominios dentro del MKT: el conocimiento común del contenido (common content knowledge, CCK); el conocimiento especializado del contenido (specialized content knowledge, SCK); el conocimiento del contenido y de los estudiantes (knowledge of content and students, KCS); y el conocimiento del contenido y la enseñanza (knowledge of content and teaching, KCT). Desde la Teoría Antropológica de lo Didáctico se ha trabajado a partir de la tesis de Cirade (2006), que diferencia entre entre Matemáticas a enseñar, es decir las matemáticas que figuran en el currículum oficial; Matemáticas para el enseñante, que son las que un profesor debe conocer para poder comprender los contenidos del programa de estudios; y Matemáticas para la enseñanza, las que construye el profesor cuando se cuestiona las razones de ser de un conocimiento del currículo escolar. Por su parte, Valente (2018) afirma que los saberes profesionales han sido construidos, históricamente, en el seno de la profesión y, por tanto, el interés de conocer los procesos y las dinámicas mediante las cuales se han construido los saberes específicos de la profesión de enseñante. En particular, a partir de los trabajos de Hofstetter y Schneuwly (2007, p. 198), destaca el proceso de constitución de la matemática a enseñar y de la matemática para enseñar y su articulación en la formación de profesores que enseñan matemáticas: la matemática a enseñar y la matemática para enseñar son categorías históricas. Para estructurar este apartado del trabajo se han utilizado estas ideas. También se ha tenido en cuenta que, en una institución de formación de profesores, viven, en ausencia, otras instituciones educativas, aquellas en las que van a realizar su actividad profesional como es la escuela en el caso de los maestros: su currículum y organización sirve de referente. De acuerdo con Hofstetter y Schneuwly (2007) se ha considerado que el saber a enseñar es el que deberán enseñar en la escuela. En 80

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cuanto al saber para enseñar, se han utilizado las categorías de Baumert y Kunert (2016, citado en HOFSTETTER; SCHNEUWLY, 2007), quienes consideran que la tipología de Shulman puede ser reducida a un esquema triádico: saberes de las ciencias disciplinares; saberes de las didácticas disciplinares; saberes pedagógicos. Se consideran, por tanto, las siguientes categorías: 1) saber a enseñar: es decir, “los saberes que son objeto de su trabajo” (HOFSTETTER, SCHNEUWLY, 2007, p. 17-18); están determinados por las leyes, los planes de estudio, las indicaciones oficiales, los libros de texto de la enseñanza primaria, los materiales complementarios. 2) saber para enseñar: los saberes que son “las herramientas de su trabajo”. Se han diferenciado tres tipos:

2a) saberes de las ciencias disciplinares: matemáticas para enseñar: profundización en los contenidos de la enseñanza primaria; razones de ser de los conocimientos; técnicas alternativas y su justificación;

2b) saberes de las didácticas disciplinares: metodología de las matemáticas;

2c) saberes pedagógicos: teoría e historia de la educación; organización escolar; psicología infantil; psicología del aprendizaje; prácticas de enseñanza (HOFSTETTER, SCHNEUWLY, 2007, p. 18).

Esta caracterización va a permitir detectar las líneas de desarrollo, en España, de los saberes ligados a la profesión de maestro, en tanto que enseña matemáticas en la escuela primaria, a partir de lo legislado para su formación inicial. Es el objeto del siguiente apartado.

La formación del maestro para enseñar matemáticas en España Los saberes que, en España, se han considerado necesarios para ejercer la profesión de maestro y, en particular, para enseñar matemáticas en las escuelas primarias, han ido evolucionando desde el siglo XVIII. En el siglo XVIII, los exámenes de maestro se referían, exclusivamente, a los contenidos de la enseñanza primaria, es decir, al saber a enseñar (CARRILLO GALLEGO, 2005).

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A partir de 1838, los Planes de estudio de las EENN indican que se consideraba que los maestros debían conocer, además de los contenidos de la enseñanza primaria (el saber a enseñar), otros saberes profesionales que, por primera vez, forman parte de su formación inicial. Y así, aparecen nuevas asignaturas cuyo título en los primeros Planes fue “Principios de educación, sistemas y métodos de enseñanza”. El contenido es estas asignaturas se refería a tres aspectos: a) Principios de pedagogía; b) Organización escolar y c) Métodos de enseñanza (p.e., metodología de la aritmética). Las cuestiones relativas a la metodología de las matemáticas, aparecen en el Curso de Educación de Montesino (1988) y se recogen, con igual o menor extensión en los libros que se editaron posteriormente para las asignaturas pedagógicas de las EENN. Estas cuestiones eran: a) consideraciones sobre el interés de la enseñanza de las matemáticas; b) distribución de los contenidos aritméticos en los sistemas simultáneo y mutuo; c) la iniciación en la aritmética, según Pestalozzi; d) descripción de una técnica de cada algoritmo de las operaciones. Pero sin justificación. Ni en las asignaturas matemáticas ni en las pedagógicas se abordaban aspectos relacionados con las matemáticas para enseñar, pues no se estudiaban las razones de ser de los contenidos matemáticos de la escuela primaria y las técnicas que se comentaban (por ejemplo, los algoritmos de las operaciones aritméticas) se presentaban como la única forma posible de realizar esa tarea, sin presentar técnicas alternativas ni estudiar la justificación de la técnica propuesta. En el Programa general de estudios de las EENN, de 1858, que adapta los estudios de estos centros a la Ley de Instrucción Pública de 1857, se consolida una cierta ampliación de los contenidos de la enseñanza primaria con la inclusión de contenidos de Álgebra, lo que unido al tipo de libros de texto que se aprobaron, supuso un acercamiento a la enseñanza secundaria. Pero no había un estudio de la matemática para enseñar en la escuela primaria, pues no se profundizaba en los contenidos matemáticos de ese nivel; siguen estudiándose técnicas sin justificarlas ni ver posibles alternativas. En cuanto a los saberes profesionales no hubo cambios con respecto a 1838. En el Plan de estudios de 1914, las asignaturas matemáticas son similares a las de Planes anteriores; sus contenidos son los correspondientes a las materias de la enseñanza primaria con un agregado de Álgebra; son el saber 82

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a enseñar. Pero las leyes introducen, como apéndice de cada asignatura matemática, consideraciones metodológicas sobre la planificación de la enseñanza correspondiente en la escuela primaria. Se amplían, por tanto, las cuestiones relativas al saber para enseñar, aunque, en la práctica, esa parte del programa no se implementase. Algunos libros de texto de Matemáticas, escritos por profesores de EENN que impartían estas asignaturas, inician un cambio en la orientación de la formación matemática de los futuros maestros, en el saber para enseñar que se podía estudiar en las EENN. Por ejemplo, Eyaralar Almazán (1922, 1932; SÁNCHEZ JIMÉNEZ; CARRILLO GALLEGO, 2018) incluye consideraciones sobre la metodología de las matemáticas en las escuelas primarias, tal como establece el Plan de estudios de 1914; interesa destacar que apoya estas indicaciones en reflexiones sobre los contenidos, sobre las razones de ser de los mismos; presenta técnicas alternativas de los algoritmos y justificaciones de las técnicas; es decir, se plantea el estudio de cuestiones relativas a la matemática para enseñar como base para las consideraciones metodológicas. Según el Plan Profesional de 1931, no se estudiaba en las EENN las materias de la enseñanza primaria, el saber a enseñar, pues se suponía conocido. Los estudios en las EENN están centrados en el saber para enseñar en sus diversas dimensiones. Por un lado, aumentan las asignaturas de contenido psicopedagógico, y, por otro, se introduce una asignatura específica sobre Metodología de las Matemáticas; esta asignatura tiene objetivos muy diversos, pues en ella se quería realizar una reflexión sobre los contenidos matemáticos de la enseñanza primaria (razones de ser, análisis de las técnicas utilizadas), dar indicaciones sobre la planificación de la enseñanza de las matemáticas en la enseñanza primaria, y contrastar lo aprendido con actividades prácticas realizadas en las escuelas primarias. En resumen, en el periodo que consideramos (1838-1936) los saberes profesionales de los maestros como enseñantes de matemáticas en las escuelas primarias sufrieron una evolución. En lo que se refiere al saber a enseñar, se dio una progresiva exigencia de profundización en los contenidos matemáticos de la enseñanza primaria, acercándolos a los de la enseñanza secundaria y proporcionando, así, mayor prestigio a la profesión de maestro. A partir de 1931, el saber a enseñar no es

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un objetivo en las EENN, se da por supuesto, pues se debía haber adquiridos en los institutos de educación secundaria. El estudio del saber para enseñar, ausente en los exámenes de maestro del Antiguo Régimen, fue una de las características propias de las EENN. A lo largo del periodo, estos saberes evolucionaron en sus tres componentes (matemáticas para enseñar, metodología de las matemáticas, saberes pedagógicos). La evolución fue más evidente en las dos primeras componentes, desde que el Plan de 1914 incorporó aspectos metodológicos a las asignaturas matemáticas, propiciando que, algunos profesores de EENN, plantearan cuestiones relativas a las matemáticas para enseñar, hasta el Plan Profesional de 1931, en el que se configuró la Metodología de las Matemáticas como asignatura autónoma. De todas formas, al finalizar la vigencia del Plan de 1931 por la Guerra Civil, la incorporación en los estudios de Magisterio de la matemática para enseñar o de la metodología de las matemáticas era un proceso incipiente, no extendido a la generalidad del profesorado de EENN.

El proceso de construcción de un campo disciplinar; la Didáctica de las Matemáticas Antonio Viñao Frago (2006, p. 267) considera que “el elemento clave, que configura, organiza y ordena una disciplina es el código disciplinar”, que controla la formación, la selección y el trabajo de los profesionales asociados a dicha disciplina. En el código disciplinar se pueden diferenciar tres componentes: “un cuerpo de contenidos (saberes, conocimientos, destrezas, técnicas, habilidades), un discurso o argumentos sobre el valor formativo y la utilidad de los mismos, y unas prácticas profesionales” (VIÑAO FRAGO, 2006). El proceso seguido por el saber para enseñar matemáticas en los estudios de Magisterio, entre 1838 y 1931 en España, evoca el subtítulo de la obra de Burke (2017), Cómo la información dispersa se ha transformado en saber consolidado a lo largo de la historia pues la acumulación de conocimiento y prácticas relacionadas con la enseñanza de las matemáticas en las escuelas primarias y en la formación del magisterio, cristalizó en una nueva asignatura en los estudios de las EENN, la Metodología de las Matemáticas. Podría ser un proceso de constitución de una nueva disciplina (BURKE, 2017), con ese título o con el, más actual, de Didáctica de las Matemáticas, y las acciones de 84

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preparación y formulación de la asignatura por medio de discusiones entre los profesores, elaboración de libros de texto y publicaciones en revistas, haber dado lugar a un proceso de profesionalización (BURKE, 2017) de profesores que enseñan matemáticas a los maestros. Pero no se dieron las condiciones suficientes. El final abrupto del Plan de estudios y su corta duración impidió el acuerdo del profesorado sobre los contenidos del campo disciplinar en sus diferentes dimensiones y sobre las prácticas docentes. Tampoco se había planteado las características de los profesionales y su selección. Antonio Viñao Frago (2006, p. 263) comenta que Ivor F. Goodson, distingue entre asignaturas o materias y disciplinas para indicar cómo la conversión de las primeras en las segundas constituye el rasgo fundamental del proceso de academización, formalización y abstracción que, junto con la formación de comunidades disciplinares, caracteriza la formación de las disciplinas escolares.

La evolución del saber a enseñar, comentada en este trabajo, tuvo como resultado, no la formación de una disciplina escolar, sino de una asignatura, una protodisciplina, en palabras de Antonio Viñao Frago.

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A formação de professores que ensinam Matemática – História e perspectivas atuais Adair Mendes Nacarato8 Luzia Aparecida de Souza9 Maria Célia Leme da Silva10

CONSIDERAÇÕES INICIAIS O presente capítulo tem por objetivo sintetizar a proposta de discussão apresentada e debatida na mesa-redonda intitulada “A formação de professores que ensinam matemática – história e perspectivas atuais”, durante o IV Enaphem. A ideia de retomar os temas – formação de professores que ensinam matemática e história da educação matemática – já presentes no III Enaphem11 8

Universidade São Francisco. Programa de Pós-Graduação em Educação. E-mail: ada. nacarato@gmail.com.

9

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática. Email: luapso@gmail.com.

10

Universidade Federal de São Paulo. Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência. E-mail: celia.leme@unifesp.br

11 O III ENAPHEM – Encontro Nacional de Pesquisas em História da Educação Matemática, realizado em 2016 com a temática “História da educação matemática e formação de

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indica a complexidade em interlaçar estudos sobre as duas temáticas, consideradas ambas áreas de investigação num processo crescente de produção nas últimas décadas, em particular, a partir do século XXI. Para a quarta edição do evento, destacam-se o convite e a presença da professora Adair Mendes Nacarato, especialista em formação de professores que ensinam matemática e participante de projetos de âmbito nacional acerca da temática desenvolvidos pelo Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Formação de Professores − GEPFM, para dialogar mais proximamente com as pesquisas em história da educação matemática. Do mesmo modo, considera-se relevante a participação da professora Luzia Aparecida de Souza como integrante do Grupo de Pesquisa História Oral e Educação Matemática − GHOEM, que desenvolve projeto nacional sobre o mapeamento da formação e a atuação de professores que ensinam matemática e coordenadora do Grupo HEMEP, atuando especificamente no Mato Grosso do Sul. A contribuição da terceira autora foi como mediadora da mesa, no propósito de ampliar o debate. O capítulo está organizado pela ordem das respectivas falas, seguido do debate desencadeado pela coordenação da mesa e, finalmente, algumas reflexões.

DISSERTAÇÕES E TESES SOBRE A FORMAÇÃO DO PROFESSOR QUE ENSINA MATEMÁTICA NO BRASIL (1978 – 2012) A pesquisa no campo da formação de professores que ensinam matemática vem crescendo de forma significativa nas últimas décadas. Os participantes do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Formação de Professores – GEPFPM/ FE/Unicamp12 já realizaram dois grandes mapeamentos dos trabalhos de dissertações e teses que têm como foco o professor que ensina matemática. No primeiro mapeamento relativo ao período de 1978 a 2001, havia 112 trabalhos; no segundo, de 2001 a 2012 foram identificados 858 trabalhos, o que professores”, título do livro organizado por Bruno Alves Dassie e David Antonio da Costa e publicado em 2018. 12

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Grupo interinstitucional, com sede na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE/Unicamp), que congrega pesquisadores de cinco universidades paulistas: Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); Universidade Estadual Paulista (Unesp/Rio Claro); Universidade Federal de São Carlos (UFSCar); Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas); Universidade São Francisco (USF).

História da Educação Matemática e formação de professores: aproximações possíveis


evidencia o crescimento expressivo das pesquisas. De 2012 para cá, com certeza, esse número é muito maior, dadas as seguintes hipóteses: aumento significativo no número de programas de pós-graduação na área de Educação e de Ensino; a maioria dos programas tem a linha de pesquisa voltada à formação docente; e nos últimos anos programas como o Programa de Incentivo a Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) e o Observatório da Educação (Obeduc) têm gerado muitas pesquisas no campo da formação. Por pesquisas de mapeamento entendemos processo sistemático de levantamento e descrição de informações acerca das pesquisas produzidas sobre um campo específico de estudo, abrangendo um determinado espaço (lugar) e período de tempo. Essas informações dizem respeito aos aspectos físicos dessa produção (descrevendo onde, quando e quantos estudos foram produzidos ao longo do período e quem foram os autores e participantes dessa produção), bem como aos seus aspectos teórico-metodológicos e temáticos. (FIORENTINI et al.,2016, p. 18)

Esses mapeamentos têm possibilitado compreender: como esse campo de inquérito vem se constituindo; quais são as tendências dominantes; quais os focos de investigação; quais os principais referenciais teóricos e metodológicos; e quais os resultados apontados que poderiam contribuir para os programas de formação inicial e continuada e as políticas públicas. Eles também possibilitam compreender as lacunas existentes e as fragilidades metodológicas, alinhando-se a uma literatura mundial (ANDRÉ, 2011; ROLDÃO, 2007) que aponta as dificuldades para um consenso sobre o objeto de pesquisa quando se trata da formação docente. Podemos destacar as dificuldades desse tipo de pesquisa: como fazer a consulta no banco de dados; quais descritores utilizar; nem sempre os trabalhos estão disponíveis na íntegra, exigindo que se acesse a página de cada programa; a simples leitura do resumo não é suficiente para determinar se o texto fará ou não parte do escopo da pesquisa. Outro limitador de pesquisas de mapeamento que tomam as dissertações e as teses como corpus de investigação acaba deixando de lado outras modalidades de pesquisa, principalmente aquelas realizadas em grupos de pesquisa e que são divulgadas em capítulos de livro ou artigos em periódicos.

A formação de professores que ensinam Matemática – História e perspectivas atuais

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No entanto, acabamos nos limitando a dissertações e a teses por serem textos mais completos, visto que capítulos ou livros sempre têm um espaço reduzido para produção, o que não possibilita uma descrição mais detalhada dos trabalhos considerados no corpus de investigação. Finalmente, é sempre possível que trabalhos produzidos no período delimitado na pesquisa fiquem fora do corpus por não terem sido localizados. As reflexões aqui apresentadas são decorrentes dos dois mapeamentos realizados pelo GEPFPM. Com relação ao primeiro mapeamento (FIORENTINI et al., 2002), o Quadro 1 traz uma síntese do total de trabalhos identificados por décadas. Quadro 1 – Trabalhos sobre formação de professores (1978-2001) Década

Total de trabalhos

1970

7

1980

22

1990

62

2000

21

Fonte: Fiorentini et al. (2002)

Os primeiros estudos tiveram início em 1978, e os 12 primeiros foram produzidos no programa temporário (vigorou de 1975 a 1984) de Mestrado em Ensino de Ciências e Matemática, realizado no IMECC/UNICAMP, em convênio com o MEC-PREMEM-OEA13. Foram estudos que relataram e analisaram experiências e inovações na formação de professores, sendo cinco na formação inicial e sete na continuada. Predominava nessa época a concepção de cursos de treinamento de professores. Importante destacar que, nesse período, ainda não existia a consolidação de linhas e grupos de pesquisas, como se configuram atualmente, e as pesquisas ainda estavam atreladas a modelos

13

94

MEC/PREMEM-OEA: Ministério da Educação e Cultura/Programa de Expansão e Melhoria do ensino e Organização dos Estados Americanos. “Fiorentini (1994) afirma que o mestrado em Ensino de Ciências e matemática foi um ‘divisor de águas’ para a Educação Matemática. Apesar de ter sido temporário, formando quatro turmas, resultou na defesa de 28 dissertações, contribuindo para a expansão e o fortalecimento da área” (CECCO et al., 2017, p. 751 , grifo do autor).

História da Educação Matemática e formação de professores: aproximações possíveis


positivistas, muitas delas ainda de abordagem quantitativa, com estudos de pré e pós-teste. No entanto, à medida que as décadas avançam, é possível identificar um aumento significativo no número de pesquisas, provavelmente decorrente de dois fatores: aumento do número de programas e pós-graduação e reconhecimento do professor como elemento central nos projetos de reforma educacional. As pesquisas passam a ter abordagem qualitativa, articuladas com o campo educacional. Isto é, as tendências que marcavam as pesquisas na formação docente em geral eram apropriadas pelas pesquisas em educação matemática. Nesse período (1978-2001), havia um predomínio das dissertações de mestrado; quanto às teses, as instituições de destaque foram: Unicamp, USP, Unesp/Rio Claro e PUC-SP, todas no estado de São Paulo. Tanto na formação inicial quanto na continuada, o maior foco foi na análise de projetos, programas e cursos. Na formação inicial, o segundo maior destaque foi o Estágio Supervisionado; poucas pesquisas centradas em outras disciplinas da formação inicial foram produzidas; e houve quase ausência de pesquisas voltadas aos professores dos anos iniciais (apenas quatro). Na formação continuada, a segunda maior ênfase foi nas pesquisas em grupos colaborativos. Sem dúvida, isso foi um reflexo das discussões a partir da segunda metade da década de 1990, quando as ideias de grupos colaborativos emergiram e ganharam força no País. No caso específico do GEPFPM, os pesquisadores foram influenciados por trabalhos como os do Grupo de Trabalho de Investigação − GTI, de Portugal14, além das publicações de Andy Hargreaves e colaboradores. Coelho (2017) sistematiza algumas pesquisas que foram desenvolvidas no período de 2002-2012 com foco em grupos colaborativos. Uma evidência da força dos grupos colaborativos está na constituição do Simpósio Nacional de Grupos Colaborativos e de Aprendizagem do Professor que ensina Matemática, cuja quarta edição ocorreu em 2018, em Vitória da Conquista, Bahia.

14 O texto de Ana Maria Boavida e João Pedro da Ponte, “Investigação colaborativa: potencialidades e problemas”, publicado em Reflectir e investigar sobre a prática profissional. Organização GTI – Grupo de Trabalho de Investigação. Lisboa: Associação de Professores de Matemática, 2002, p. 43-55 foi referência para alguns trabalhos publicados no início da década de 2000.

A formação de professores que ensinam Matemática – História e perspectivas atuais

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As principais sínteses desse mapeamento (1978-2001), no que diz respeito à formação inicial (FIORENTINI et al., 2002) foram: • Desarticulação entre teoria e prática, entre formação específica e pedagógica e entre formação e realidade escolar. • Menor prestígio da licenciatura em relação ao bacharelado. • Ausência de estudos histórico-filosóficos e epistemológicos do saber matemático. • Predominância de uma abordagem técnico-formal das disciplinas específicas. • Falta de formação teórico-prática em Educação Matemática dos formadores de professores.

Quanto à formação continuada, os resultados sinalizaram para: • Os trabalhos nas décadas de 1970 e 80 se baseavam em terminologias como: treinamento, reciclagem e até “adestramento”. • Forte influência da psicologia comportamentalista ou cognitivista. • Uso de técnicas para a formação, como: uso de materiais concretos, recursos audiovisuais, videoteipes, resolução de problemas. • Preocupação em validar processos tidos como científicos, com estudos experimentais, pré-testes e pós-testes, tratamento estatístico. • Formação baseada no paradigma da racionalidade técnica.

As pesquisas desse primeiro período também possibilitaram a identificação da virada paradigmática nos anos 1990, com a emergência de conceitos como: professor reflexivo, professor pesquisador, pensamento do professor. Foi uma virada epistemológica e também em relação aos modos de produção de conhecimentos para a prática pedagógica. Os professores das escolas passaram a ser vistos como produtores de conhecimentos, detentores de saberes experienciais. Já se anunciava a perspectiva de virada de pesquisas para professores para pesquisas com professores. Em sua conclusão, o mapeamento de (1978-2001) apontou: Esses estudos nos mostram que o campo de pesquisa ligado à formação continuada do professor a partir da prática profissional – o qual envolve saberes,

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História da Educação Matemática e formação de professores: aproximações possíveis


habilidades, competências, pensamento e práticas – é um terreno ainda praticamente inexplorado, pois a maioria dos saberes didático-pedagógicos veiculados pela Educação Matemática são saberes oriundos das ciências educativas, produzidos quase exclusivamente sob o paradigma da racionalidade técnica. A sistematização de conhecimentos produzidos a partir da prática profissional pode trazer contribuições relevantes para a formação inicial mais articulada com as realidades escolares. (FIORENTINI et al., 2002, p. 158-9)

Para realização do segundo mapeamento, o GEPFPM coordenou um projeto na linha de financiamento Universal/CNPq, intitulado “Mapeamento e estado da arte da pesquisa brasileira sobre o professor que ensina Matemática (2001–2012)”. O projeto teve por objetivo “mapear, descrever e sistematizar as pesquisas brasileiras que têm como foco de estudo o Professor que Ensina Matemática (PEM)”. Este projeto foi desenvolvido no período de 2013 a 2016, tendo contado com a colaboração de 32 pesquisadores, envolvendo todas as regiões do Brasil. O corpus de análise foi constituído de 858 estudos de dissertação/tese de mestrado/doutorado produzidos em programas de pós-graduação stricto sensu das áreas de Educação e Ensino, da Capes. Esse segundo mapeamento, ao recortar o período 2001-2012, acabou provocando a sobreposição de alguns trabalhos pertencente ao primeiro mapeamento, mas o grupo considerou que seria mais prudente ter essa sobreposição do que deixar trabalhos fora do corpus, pois como então era a equipe maior, isso poderia ampliar as possibilidades de encontrar mais trabalhos produzidos. Os trabalhos foram organizados em quatro eixos temáticos: formação inicial, formação continuada, formação inicial e continuada e outros contextos. A Figura 1 ilustra como os eixos foram organizados.

A formação de professores que ensinam Matemática – História e perspectivas atuais

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Figura 1: PEM (Professores que ensinam matemática) como campo de estudo Formação inicial (FI), formação continuada (FC), formação inicial e continuada (FIC) e outros contextos e aspectos e seus possíveis focos de estudo.

Fonte: Fiorentini et al., 2016, p. 27

A distribuição geográfica dos 858 trabalhos selecionados para compor o corpus do mapeamento é apresentada no Quadro 2. Quadro 2– Trabalhos distribuídos por Região Região

Total de trabalhos

São Paulo

349

Sul

131

Nordeste

110

Centro-Oeste

86

Rio de Janeiro/Espírito Santo

71

Minas Gerais

60

Norte

51

Total

858

Fonte: Fiorentini et al., 2016

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Esse total de trabalhos foi produzido em 85 diferentes instituições brasileiras, nas seguintes modalidades: • 96 dissertações de mestrado profissional; • 584 dissertações de mestrado em programas de mestrado acadêmico; • 178 teses de doutorado.

Na síntese final do mapeamento, Nacarato et al. (2016) destacaram os principais resultados da pesquisa, sintetizados a seguir. O mapeamento identificou que 32% dos trabalhos se referiam à formação inicial; 26% à continuada; 4% à formação inicial e continuada articuladas (aqui entram as pesquisas relacionadas a grupos colaborativos, envolvendo alunos da graduação e professores em exercício ou pesquisas relacionadas ao PIBID); e 38% foram pesquisas desenvolvidas em diferentes contextos. O que chama a atenção na distribuição desses trabalhos é o número de orientadores dessas investigações: total de 375. Isso nos dá um indicativo de que nos diferentes programas de pós-graduação em educação ou em ensino há orientadores que não são educadores matemáticos, mas orientam pesquisas sobre o professor que ensina matemática. Vale destacar que 90% dos estudos adotaram a abordagem qualitativa de pesquisa; outros 2%, a abordagem quantitativa; e 6,5% a quali-quantitativa. Houve um predomínio de pesquisas de natureza empírica ou de campo (82%), além de pesquisas que combinaram estudos documentais com pesquisa de campo, ou apenas a pesquisa documental, ou pesquisa bibliográfica – identificamos confusões dos autores entre pesquisa bibliográfica e revisão bibliográfica para a produção da pesquisa. Também questionamos o entendimento de pesquisas do tipo quali-quantitativa, pois, muitas vezes, o simples fato de haver uma contagem dos dados e organização de tabelas ou gráficos induz o pesquisador a qualificar sua pesquisa nessa abordagem. Muitos trabalhos também não trazem a tipificação da pesquisa, o que pode gerar vieses interpretativos dos pesquisadores responsáveis pelo mapeamento. Isso suscita reflexões sobre as limitações a serem consideradas nessa modalidade de pesquisa. Uma tendência que se mostrava crescente no primeiro mapeamento (1978-2001) não se concretizou nesse segundo (2001-2012), ou seja: pesquisa

A formação de professores que ensinam Matemática – História e perspectivas atuais

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em grupos colaborativos (apenas 6% do total, com predominância na região Sul e São Paulo) e pesquisas sobre a própria prática (apenas 2%). Esse último dado nos surpreendeu, pois esse não deveria ser o foco das pesquisas em mestrado profissional? A maioria das pesquisas está intitulada como estudo de caso – o que requer investigação mais ampla; e apenas o estado de São Paulo registrou pesquisas do tipo mapeamento ou estado da arte. A entrevista foi o instrumento mais utilizado para a produção de dados, embora o questionário ainda seja bastante utilizado e, às vezes, como único instrumento. Outros instrumentos: uso de áudio e de videogravação de aulas e diário de campo do pesquisador. No entanto, muitos pesquisadores não justificaram o uso do instrumento com o seu objeto de investigação. No que diz respeito à formação inicial, há uma discrepância nos percentuais por região: Norte (60%), Minas Gerais (50%), Sul (47%) – nas demais regiões esse percentual situa-se entre 23% e 34%. Quanto à formação continuada, o maior número de produção se localiza no estado de São Paulo, com 106 trabalhos (43% do total de 246 trabalhos), seguido da Região Sul, com 61 trabalhos (25% do total). Constatamos a ênfase no professor, em sua aprendizagem e em seu desenvolvimento profissional, a partir de 2009/2010, reforçando a tendência já apontada por André (2011, p.30) de que houve uma mudança de foco nas pesquisas na formação inicial, deslocando-se do curso para o sujeito professor. No entanto, a autora nos alerta para alguns cuidados com a pesquisa quando o foco é o professor e não o contexto da formação e/ou as condições de trabalho. Segundo ela, Não há dúvida que o professor tem um papel fundamental na educação escolar, mas há outros igualmente importantes como as condições de trabalho, o clima institucional, a atuação dos gestores escolares, as formas de organização do trabalho na escola, os recursos materiais e humanos disponíveis, a participação dos pais, as políticas educativas. A pesquisa deve ajudar a superar as crenças e a visão do senso comum, não pode submeter-se a eles.

No eixo que envolve formação inicial e continuada, havia expectativa de um número maior de trabalhos, mas se conclui que, provavelmente, as 100

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pesquisas envolvendo PIBID e Obeduc estariam fora do recorte temporal, por serem programas mais recentes. Um dado que nos chamou a atenção foi o representativo número de pesquisas com foco em atitudes, crenças e representações e saberes e competências. Essas temáticas também predominaram no eixo “Outros Contextos”. Questionamo-nos se essas pesquisas envolveram graduandos e professores em processos formativos ou apenas sujeitos respondentes de questionários, entrevistas e protocolos. Roldão (2007) denomina pesquisas com essas temáticas como sendo aquelas de conceitos adjacentes da formação docente, ou seja, embora não estejam no núcleo da formação, estão diretamente relacionadas a ele, como: as culturas da escola, as culturas escolares, o currículo, a didática, o pensamento e as concepções dos professores, a identidade profissional e os percursos profissionais. Para a autora, há que se elegerem, no campo da formação docente, os “conceitos estruturantes”, ou seja, aqueles relacionados aos processos de aprendizagem e desenvolvimento profissional: “como” aprender e/ou desenvolver; o “ser professor”; o “saber ser professor”. Esses conceitos se fazem presentes nas pesquisas brasileiras, visto que em torno de 50% das pesquisas têm como foco a formação, aprendizagem, desenvolvimento profissional e saberes e competências do professor. Há que se destacar, também, os estudos que analisam pesquisas públicas. Elas são imprescindíveis para se avaliar a eficácia dessas políticas, bem como seus limites. No caso deste mapeamento, os cursos e/ou programa analisados foram: Gestar, Mestrado Profissional, PDE (Programa de Desenvolvimento da Escola), Pró-letramento, Teia do Saber, entre outros. Uma síntese do mapeamento nos possibilitou a identificação de algumas tendências: • Predominância dos focos: saberes e competências; atitudes, crenças, concepções e representações; e formação, aprendizagem e desenvolvimento profissional. • Focos mais reduzidos: identidade e profissionalidade docente do PEM; características e condições de trabalho docente, inclusive saúde e estresse do docente; histórias de professores que ensinam matemática; e história da formação do professor que ensina matemática.

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• Apenas 5% do total de trabalhos tem como sujeito o professor formador.

Todo mapeamento tem os seus limites e problemas. Os principais identificados neste trabalho foram: de ordem técnica, decorrente do próprio formulário de fichamento elaborado pela equipe; dificuldades de acesso aos trabalhos na íntegra; e definição do recorte temporal, pois, ao término de uma pesquisa de três anos, o corpus já está desatualizado. O segundo mapeamento trouxe indícios de avanços na pesquisa no campo da formação docente. A virada paradigmática dos anos 1990 foi se consolidando nos anos 2000, com algumas constatações: redução do número de pesquisas quantitativas; quase inexistência de pesquisas experimentais com pré-teste e pós-teste; foco maior no professor, sua constituição e seus saberes; um maior equilíbrio entre pesquisas na formação inicial e continuada. No que se refere à apresentação dos relatórios de pesquisa, alguns problemas permanecem, como: resumos incompletos que não possibilitam a visualização do conteúdo do relatório; processos metodológicos pouco descritivos, não possibilitando a identificação de elementos necessários a um relatório de pesquisa: problemática, questão de investigação, objetivos, descrição dos procedimentos de produção de dados, descrição do processo analítico e síntese dos resultados. Pode-se dizer que ainda temos muitos problemas para definição do objeto de investigação desse campo de inquérito. Muitas pesquisas se qualificam como de formação docente, mas o professor é apenas um sujeito da pesquisa; inexiste clareza de que o foco precisa centrar-se nos processos formativos. Toda pesquisa no campo da Educação Matemática traz contribuições para a formação de professores, mas isso não significa que seja uma pesquisa sobre formação. Outra fragilidade das pesquisas continua no processo analítico; muitos trabalhos se restringem, principalmente quando atuam em projetos ou grupos de formação, a descrever como foi a prática de formação e não os processos formativos adotados no grupo e seus indícios para aprendizagem docente, desenvolvimento profissional etc. Apesar dos limites e das lacunas, esse mapeamento deixa pistas para novos pesquisadores, bem como incita a realização de ampliações desse trabalho. No

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entanto, a pesquisa também apontou alguns pontos que merecem reflexão, tanto no que diz respeito às abordagens metodológicas, que ainda apresentam fragilidades, quanto à própria construção do objeto de investigação e do referencial teórico a ser adotado. Nesse sentido, concordamos com o questionamento posto por André (2011, p.31): Em termos gerais, os dados referentes aos autores mais citados e à tendência teórica mais acentuada sugerem certo modismo, com influência de propostas de autores estrangeiros, o que provoca alguns questionamentos: será que as nossas pesquisas sobre formação de professores têm levado em conta a especificidade de nossos contextos? Será que os pesquisadores têm procurado adaptar propostas gestadas em outros países à nossa realidade?

Reconhecemos que toda pesquisa traz incompletudes e o viés interpretativo do pesquisador. Por isso, a temática encontra-se em aberto, além da necessidade de continuidade. Na segunda fase do projeto, grupos de pesquisadores selecionaram temáticas que eram de seu interesse e os artigos foram submetidos à Zetetiké e, os aprovados compuseram uma edição temática em 2017. Nesse volume, destaca-se o trabalho de Nacarato, Oliveira e Fernandes (2017) que analisou dois focos temáticos presentes na pesquisa de mapeamento: “História da formação do professor que ensina Matemática” e “História do professor que ensina Matemática”. Contando com um corpus de 45 pesquisas, as autoras identificaram as abordagens metodológicas e os referenciais teóricos utilizados, a partir de dois campos teórico-metodológicos: a história oral e o método biográfico. Segundo elas: os dois focos geraram pesquisas com a presença dessa metodologia: a história oral é tomada como um dos modos de produzir, intencionalmente, fontes com fins e propósitos diversos. As narrativas orais, tornadas escritas, configuram-se como fontes historiográficas. São memórias registradas que se transformam em objetos de investigação, possibilitando compreender os sentidos do que foi vivido à luz das preocupações do tempo presente. É através do trabalho da subjetividade contida nas narrativas orais que os indivíduos constroem e atribuem significado à própria experiência e à própria identidade. (NACARATO; OLIVEIRA; FERNANDES, 2017, p. 66) A formação de professores que ensinam Matemática – História e perspectivas atuais 103


As autoras concluem que o principal ponto de convergência entre esses dois focos é colocar o professor no centro do processo formativo, dando visibilidade à sua formação, considerando os cenários que lhe constituem, a partir da voz desse sujeito e dos relatos das experiências por ele vividas.

A SUBJETIVIDADE NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES QUE ENSINAM MATEMÁTICA O momento político em que vivemos traz consigo a necessidade de discussão acerca de uma perda de diferentes sensibilidades, e da necessidade de novos modos de pensar. Walter Mignolo (2010) defende que, mais do que uma visão de mundo, é fundamental falar em sensibilidades de mundo. Apresentam-se, assim, alguns exemplos do que pode aparecer (e sua potência!) quando interrogamos narrativas de docentes/discentes/gestores/analfabetos a partir de interesses em afetos, quando se pensa de modo articulado a História da formação do professor que ensina Matemática e a História do professor que ensina Matemática. Com roteiro de Luis Buñuel e Salvador Dali, o filme O cão andaluz (1928) é considerado uma produção surrealista que rompe com a linearidade narrativa trazendo múltiplas entradas sem necessária conexão. Ainda que esta obra se apresente como uma quebra ao fluxo narrativo naturalizado, tentativas de leitura do filme colocam-se na busca por uma articulação, por uma conexão, por uma linha que na ação ou na intenção deveria amarrar as imagens apresentadas em branco e preto. O filme provoca, pois, distintos movimentos, muitos deles ligados a uma tentativa de racionalizar eventos e a sequência em que estes são apresentados. O trecho que segue é a primeira cena deste filme, sua inserção não é feita, contudo, com o intuito de racionalizar seu conteúdo e, sim, como um apelo de que o leitor se atente a seu próprio corpo, aos movimentos que ele faz durante a cena que se apresenta. Sugere-se ainda que não se apresse em encontrar uma palavra para descrever esse movimento. Segue a cena15:

15 Para acessar o QR Code é necessário baixar em seu celular um Leitor de código QR. Também pode acessar este trecho do filme em https://www.youtube.com/ watch?v=KYTUDztLvbI. Último acesso em: 02 out. 2019.

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Sinto, logo existo. Há diversos autores que tratam da importância não somente de novos modos de pensar (MIGNOLO, 2010; QUIJANO, 1992), mas de se considerar, nesse processo, o sensível, os afetos. Tratam da importância de buscar outros modos de se conectar com o outro (LARROSA, 1996), consigo mesmo e, ao inventar outros modos de existir, cuidar de elaborar outros modos, múltiplos, de pensar. Aníbal Quijano (1992) denuncia uma colonialidade que sobrevive ao “término” das administrações coloniais. Assim, temos o fim do colonialismo, mas a colonialidade continua a operar em diferentes instâncias. O autor trata da colonialidade do poder, do saber, do ser e da natureza. A colonialidade do poder controla a subjetividade de povos colonizados, destruindo seu imaginário a partir de um processo de ocidentalização e implementando uma estrutura global de poder. A colonialidade do saber opera, como as outras, em diferentes âmbitos; tanto na afirmação de uma perspectiva eurocêntrica de conhecimento como global (por meio da negação da capacidade inventiva de outros povos), quanto na própria prática de uma colonialidade naturalizada socialmente como quando se toma o conhecimento produzido nas universidades como superior a outras formas de conhecimento. A colonialidade do ser trata de um processo de apagamento do outro a partir de seu convencimento de sua condição menor, de alguém em processo de humanização ou civilização o que, portanto, justifica sua condição de dominado. A colonialidade da natureza afirma o binarismo cultura/natureza e reforça um papel central ao homem como aquele que tem o domínio entre plantas, minérios e animais. O discurso humano versus selvagem sustenta essa narrativa que será questionada por movimentos anticoloniais e pós-humanistas (a partir do questionamento dos binarismos que estruturam nossa sociedade, da linearidade atribuída ao tempo e do papel central atribuído ao humano, especialmente o branco europeu). A formação de professores que ensinam Matemática – História e perspectivas atuais 105


Ainda que por meio desse rápido esboço, é possível perceber que toda forma de colonialidade se estabelece em processos de negação ou “invisibilização” do outro. Diante disso, Mignolo (2010) sinaliza para a necessidade de uma desobediência epistêmica que leve à fuga da racionalidade moderna, à negação de processos de inferiorização de outras formas de produzir conhecimento, de outras sensibilidades de mundo. Se opor à colonialidade é, pois, um movimento político de afirmação da diferença, e este movimento tem sido chamado de decolonialidade. A partir de Kafka, Safatle (2016, p. 15) afirma: compreender o poder é uma questão de compreender seus modos de construção de corpos políticos, seus circuitos de afetos com regimes extensivos de implicação, assim como compreender o modelo de individualização que tais corpos produzem, a forma como ele nos implica. Se quisermos mudá-lo, será necessário estar disposto a ser individualizado de outra maneira, a forçar a produção de outros circuitos.

É impossível compreender esses modos de construção de corpos políticos presos a um tipo de pensamento racional que é excludente do sensível, das contradições. Se, principalmente na realização de pesquisas acadêmicas, temos nos movimentado entre conceitos e funções criados pela Filosofia e pela Ciência, podemos dizer que, em muitos casos, há uma certa negligência à potência das Artes na produção de afetos, na compreensão do sensível. As pesquisas acadêmicas não podem ser tomadas somente como uma forma de dar respostas a um problema, até porque os problemas que buscamos resolver parecem, quase sempre, ser da mesma ordem. É importante que as pesquisas acadêmicas sejam tomadas como um modo de problematizar, de organizar o pensamento, como um enfrentamento à colonialidade e ao seu projeto de apagamento do outro, das diferenças. Nessa direção, podem ser vistas as iniciativas de reconhecimento dos professores das escolas como produtores de conhecimentos e a própria virada, sinalizada anteriormente neste texto, de “pesquisas para professores para pesquisas com professores”. O que pode ser produzido diante de um exercício de escuta? Este texto remete-se ao cenário político atual (em que uma narrativa perigosa sobre a Educação e sobre a Universidade pública começa a delinear a figura da docência

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como potencialmente danosa ao Estado) e sua produção foi orientada por um percurso outro, pelo som de uma música a qual muitos têm feito referência nesse momento histórico: “Admirável Gado Novo”, de Zé Ramalho. Em clara referência ao livro Admirável Mundo Novo,de Aldous Huxley, o cantor e compositor retrata o conformismo que, no livro, é ofertado por uma droga chamada “soma” que trata do esgotamento mental como impulso de raciocinar e que impõe a obediência tranquila cumprindo as funções do Cristianismo e do Álcool sem nenhum de seus efeitos colaterais. Se a comparação com o gado vem da Música, na Literatura pode-se ficcionalizar um outro lugar de fala: em “Conversa de Bois”, João Guimarães Rosa explora o que seria uma conversa entre Bois-de-carro. Nós somos bois… Bois-de-carro… Os outros, que vêm em manadas, para ficarem um tempo-das-águas pastando na invernada, sem trabalhar, só vivendo e pastando, e vão-se embora para deixar lugar aos novos que chegam magros, esses todos não são como nós… [...] — Os bois soltos não pensam como o homem. Só nós, bois-de-carro, sabemos pensar como o homem!… Mas Realejo, pendulando devagar fronte e chifres, entre os canzis de madeira esculpida, que lhe comprimem o pescoço como um colarinho duro, resmunga: — Podemos pensar como o homem e como os bois. Mas é melhor não pensar como o homem… — É porque temos de viver perto do homem, temos de trabalhar… Como os homens… Por que é que tivemos de aprender a pensar?… — É engraçado: podemos espiar os homens, os bois outros… — Pior, pior… Começamos a olhar o medo… o medo grande… e a pressa… O medo é uma pressa que vem de todos os lados, uma pressa sem caminho… (ROSA, 1984, p. 311)

Entre a aproximação por um modo de vida e a negação dessa aproximação forçada, surge a caracterização do homem por meio do medo.

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A sociedade é, em seu modo mais fundamental, um circuito de afetos. Assim define Vladimir Safatle (2016, p.17), ao afirmar que o medo organiza a vida política, enfatiza “[...] o medo como afeto político central é indissociável da compreensão do indivíduo, com seus sistemas de interesses e suas fronteiras a serem continuamente defendidas, como fundamento para os processos de reconhecimento”.

NARRATIVAS DE AFETOS EM PESQUISAS NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA O Grupo História da Educação Matemática em Pesquisa − HEMEP16, ao investigar histórias de formação de professores de Matemática no estado de Mato Grosso do Sul, constrói inúmeras narrativas nas quais, neste momento, são rastreados alguns atravessamentos que modelam ações por meio do medo. Partamos do discurso de José Rangel17, defendido na Conferência Interestadual de Ensino Primário que ocorreu em 192118. Como representante do estado de Minas Gerais, Rangel enfatiza que a formação deveria ser limitada à função docente, não excedendo

16 Grupo cadastrado na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e certificado pelo CNPQ em 2011. Liderado pelos docentes Luzia Aparecida de Souza e Thiago Pedro Pinto, esse grupo reúne pesquisadores e alunos do estado de Mato Grosso do Sul que investigam História e Filosofia da Educação Matemática (www.hemep.org). 17

Citado nos documentos dessa Conferência como Professor José Rangel e, a partir desta, como membro da Comissão de Ensino Normal, junto com Azevedo Sodré, Americo de Moura, Victor Vianna e Corrêa de Britto.

18 Essa conferência foi organizada a partir do trabalho de diferentes grupos que sinalizavam o alto índice de analfabetismo no país, assim como a “desnacionalização da infância nos Estados do Sul, onde inúmeras crianças brasileiras frequentam escolas, em que o ensino é ministrado exclusivamente em idiomas exóticos, rendendo-se assim ã alheia pátria o culto devido à nossa” (BRASIL, 1946, p.9); a necessidade de intervenção ou auxílio da União, a necessidade de uniformização dos métodos de ensino, entre outros. A Conferência Interestadual de Ensino Primário teve início em 12 de outubro de 1921 com uma programação que envolvia: “a) Difusão do ensino primário. Fórmula para a União auxiliar a difusão desse ensino. Obrigatoriedade relativa do ensino primário; suas condições; b) Escolas rurais e urbanas. Estágio nas escolas rurais e urbanas. Simplificação dos respectivos programas; c) Organização e uniformização do ensino normal do país. Formação, deveres e garantias de um professorado primário nacional; d) Criação do “Património do Ensino Primário Nacional”, sob ação comum entre os Municípios, Estados e a União. Fonte de recursos financeiros; c) Nacionalização do ensino primário. Escolas primárias nos municípios de origem estrangeira. Escolas estrangeiras, sua fiscalização; f) Conselho de Educação Nacional: sua organização e fins” (BRASIL, 1946, p.9 -10).

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ás exigencias da sua funcção, pois, de outra fórma, com mais amplas aptidões, a outros misteres mais remuneradores se dedicarão os mestres, abandonando a carreira, em busca de collocações vantajosas, no commercio, nas industrias ou em outros cargos, no seio do proprio funccionalismo publico. (CONFERÊNCIA INTERESTADUAL DE ENSINO PRIMÁRIO, 1922, p. 187)

Se uma visão linear de tempo nos coloca muito distante dessa perspectiva, ações políticas educacionais atuais nos mostram que não. Em diversas narrativas produzidas com professores de Mato Grosso do Sul (em situações de ensino, pesquisa e/ou extensão), informações sobre o plano de carreira emergem. Considerando a tabela de salários desse estado para professores, vigente a partir de dezembro de 2018, tem-se, para o caso de 20 horas semanais, o que segue: Quadro 03: Níveis, Classes e Salários de Professores da rede estadual de ensino de Mato Grosso do Sul

Fonte: Site da Federação dos Trabalhadores em Educação de Mato Grosso do Sul19

Há, portanto, oito classes nas quais se transita por tempo de serviço e quatro níveis de formação: I- Habilitação específica de nível médio, II- Habilitação específica de ensino superior, III- Habilitação específica de pós-graduação, obtida por curso com mais de 360 horas, e IV- Habilitação específica, obtida em curso de mestrado. A progressão na carreira é tomada como a passagem de um nível para outro dentro de uma mesma classe, e a promoção é considerada a mudança de classe. O curso de Doutorado é mencionado somente nos casos de aceleração da promoção como quando, após o Estágio Probatório, aquele que possui diploma de Doutorado pode migrar da Classe A para a C; 19

Disponível em: (https://www.fetems.org.br/Informacoes/mocoes/menu:3/submenu:11/)

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ou da Classe B para a C pela apresentação do diploma de Doutorado independente da data-base. Cabe ressaltar que esse tipo de aceleração após o Estágio Probatório também acontece da Classe A para a B no caso do diploma de Mestrado. Percebe-se, portanto, que o curso de Doutorado, para além dos casos de aceleração de promoção, não é previsto dentro dos níveis considerados para a progressão na carreira docente. O que persiste quando observamos esses dois eventos históricos? Poderia ser chamado de medo esse “cuidado” que se tem para não estimular a continuidade da formação docente qualificada? Por que essa certeza de que, com esta formação, o docente consideraria a possibilidade de mudar de profissão ou instituição não é suficiente para fomentar um necessário debate sobre políticas públicas voltadas às condições de trabalho nas escolas? Se esse tipo de cuidado ou medo orienta a construção de políticas de acesso à pós-graduação, delineia planos de carreira, a quais outros ele se articula? Qual mecanismo se tenta preservar? Quando considerados os estudos realizados pelo HEMEP sobre a criação e a consolidação de cursos de formação de professores que ensinam Matemática no estado de Mato Grosso do Sul, percebem-se muitas instabilidades construídas sobre um afeto similar. Em entrevista, Antônio Canuto Brandini que trabalhou como professor do curso de Ciências com habilitação em Matemática da UEMS de Cassilândia-MS, afirma: É, ela falava: “Gente, mais tem que trocar, essa Matemática tá antiga, vamos tirar isso daí, vamos levar essa Matemática pra Campo Grande e a gente traz outro curso semelhante ao de Letras”. Aí, a turma da Matemática ameaçava: “Oh, se fizer isso nós não vamos trabalhar mais, nós vamos embora, por que nós temos que mudar daqui pra Campo Grande? Não dá certo!” Porque se falasse que o curso vinha pra Paranaíba não era problema. Um dia eu sugeri: “Leva Matemática pra Paranaíba”, aí eles falaram: “Mas Brandini, lá é Direito, não tem nada a ver!” Falei: “Manda o Direito pra Cassilândia, porque o prefeito está louco por esse curso!” Aí, eles: “Ah, mas aí vamos contrariar o prefeito de Paranaíba!” O prefeito de Paranaíba sempre deu verba pra eles, e o da Cassilândia não dava nada. (GUEDES, 2018, p. 130)

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Investigar a criação de cursos de formação de professores de Matemática20 passa por um olhar para esta instabilidade política e para todas as tensões que esta gera naqueles que percebem que a organização de sua vida privada passa sempre pelas mãos daqueles que autorizam ou retiram a autorização para a implantação de um curso. Pode-se, ainda, citar narrativas de professores que buscaram por projetos de formação estabelecidos em regime de carência e urgência (GARNICA, 2013, 2018), como o caso dos cursos modulares. Ana Maria Almeida (2017) estudou o curso modular de Matemática da UCDB – Universidade Católica Dom Bosco (atuante no período de 1999 a 2005) que foi responsável pela formação de centenas de professores, inúmeros deles já em atuação antes da formação. Este curso funcionava no período de férias escolares, portanto, nos meses de janeiro (referente às disciplinas do primeiro semestre letivo) e julho (referente às disciplinas do segundo semestre). Os professores que buscavam e pagavam por esse curso, em geral o faziam movidos pelo medo de perder seu emprego, já que a LDB de 1996 previa a formação em nível superior, mas também buscavam por uma formação que nunca tiveram, por algo que lhes ajudasse a exercer a função docente. Elvézios Campini Junior, que trabalhou como professor nesse curso, fala desse movimento outro que surgia em meio à busca por certificação exigida por lei. Quanto à minha expectativa sobre essa formação, eu acho que foi até mais positiva do que eu imaginava: quando eu falei que muitos vieram extremamente motivados para aprender. Tomávamos como ponto de partida o nosso próprio desgaste, vínhamos trabalhando o ano inteiro e ainda trabalhávamos em julho e janeiro. Tínhamos ressalvas, muito medo nesse sentido, se seria uma formação boa, uma formação ideal, se estaríamos bem para poder dar essas aulas. (ALMEIDA, 2017, p. 81)

A busca, pois, por cursos emergenciais era orientada por necessidades diferentes: a certificação e a qualidade da formação. A oferta desses cursos, entretanto, parece ser pensada em nome do medo de perder o emprego como 20 Ação que atravessa os projetos de “Mapeamento da Formação e Atuação de Professores que ensinam/ensinavam Matemática no Brasil” junto ao GHOEM e “Formação e Atuação de Professores que ensinam/ensinavam Matemática: do sul de Mato Grosso a Mato Grosso do Sul” junto ao HEMEP.

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professor e, embora essas narrativas evidenciem demasiados esforços dos corpos docente e discente na busca por uma qualidade de formação, há que se considerar o foco de uma formação que condensa disciplinas semestrais em dois dias ou uma semana. Segundo a pesquisadora Ana Maria de Almeida, o discurso de um dos professores no dia de sua formatura garantia aos formandos que, a partir daquele momento, ao pegar aquele diploma, nada mais os diferenciava daqueles formados em um curso não emergencial. Aquele diploma simbolizava, ao menos naquele momento, a morte da diferença. Ainda com relação às questões articuladoras da função docente como plano de carreira, criação dos cursos para sua formação, o movimento sindical se coloca como uma parceria fundamental de luta pela/na profissão. No ano de 2015, em Mato Grosso do Sul, especificamente em Campo Grande, movimentos grevistas operaram nos três segmentos da educação: municipal, estadual e federal. O trecho da narrativa que trago a seguir foi produzido naquele momento por estudantes do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) do curso de Licenciatura em Matemática da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul de Campo Grande. Trata-se da entrevista com Suely Veiga Melo, naquele momento vice-presidente da Federação dos Trabalhadores em Educação de Mato Grosso do Sul (FETEMS). Precisa reformular o plano de carreira pra atender às necessidades, mas a gente por enquanto não tá com muita vontade de mexer nele não, apesar de ter que acrescentar algumas coisas, porque o nosso plano, é um plano bom e a gente tem, inclusive, medo de tentar mexer, e os governos, invés de a gente melhorar, a gente piorar. (Entrevista com Sueli Veiga Melo, 08 jun.2015).

Aqui o plano de carreira entra em questão, mas quem está à frente desses movimentos de luta tem que pensar com quem estão negociando, qual o perfil do governo com o qual precisa dialogar para decidir se uma luta que se entende como necessária vale ou não a pena tendo em vista o que se pode perder. As necessidades ou os direitos em si mesmos não são suficientes para uma mobilização coletiva em Educação, esta é moldada, também, pelo medo do retrocesso. Quando o assunto é o ingresso nas escolas como docente, a tese em andamento de Ana Carolina de Siqueira Ribas dos Reis aponta inúmeros afetos: 112

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o professor Cravo, para citar um dos casos dos inúmeros apresentados pelos entrevistados, afirma a existência de uma estrutura hierárquica nas escolas, que começam com os cargos de gestão, passa pelos professores concursados, secretaria e, somente então, os contratados. Cravo narra diferenças explícitas no tratamento dado a cada um e problematiza a inexistência de autoridade do professor contratado para tomar as próprias decisões pedagógicas, tendo em vista que este já entende como parte do jogo não reprovar alunos para garantir sua contratação no ano seguinte. Professor que reprova, segundo essa “lógica”, contribui para diminuir os índices da escola. Entendendo essa “lógica” e se sentindo forçado a trabalhar com a mesma com medo de perder seu emprego como contratado, o professor Cravo relata uma mudança completa de postura quanto este é aprovado no concurso público para professor na rede municipal de Campo Grande/MS. Mudança diante da comunidade escolar, mudança de postura quanto às suas decisões didático-pedagógicas. O fato de ter sido professor contratado antes de se efetivar no cargo, torna-o sensível às causas desse grupo de docentes; a ponto de se colocar como aquele que implementa o posicionamento do outro. Também tem a questão do conselho de classe. Se eu tenho que procurar reter um aluno ou dar uma nota baixa eu já falo para os colegas convocados “Eu vou colocar tal aluno, se vocês quiserem aproveitem e coloquem”. Eu falo “Tem algum aluno que você queira colocar? Se precisar eu ponho, sem problema”. Nesse sentido, eu fico um pouco do lado dos convocados. [... e quando uma professora contratada teve sua imagem exposta na rede social por um aluno e sentiu medo em falar com a direção, Cravo se coloca novamente] “Não! Pode deixar que eu falo, então!”. Como fui eu quem falou, tomaram providências, mas tive que ir lá e falar. Expliquei para a professora “Não, não vou deixar você desamparada. Você está no seu direito, por que você tem que ficar quieta? Se precisar de alguma coisa pode me dizer que eu falo”. Eu disse “Agora eu não tenho o que temer”, pois eu já era concursado. (REIS, 2019)

Sentimentos de angústia também atravessam experiências formativas em cursos de Licenciatura em Matemática. O trabalho de Adriana Barbosa A formação de professores que ensinam Matemática – História e perspectivas atuais 113


de Oliveira (2018) reúne diversas narrativas de licenciandos em Matemática de diferentes Universidades públicas nas regiões Centro-Oeste, Norte, Sul e Sudeste do País e, ao fazê-lo, imprime um misto de afetos na História da Educação Matemática. Discursos excludentes e opressores disseminados nas práticas de docentes formadores de professores emergem cotidianamente, evidenciando uma educação não libertadora. Considerando as entrevistas realizadas com alunos da Licenciatura em Matemática da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul em Campo Grande, cito dois trechos, o primeiro da fala de Leonardo e o segundo de Gleysson: Essa é a questão, eu não critico ela como aula, só como tratamento das pessoas no meio da aula. Pelo tratamento das pessoas que a turma ia se esvaziando e também por ser uma matéria difícil, meio complicada, os alunos vinham com dificuldade e lá no momento ela nem sempre sanava essa dificuldade e ainda dizia: “se você não sabe essa dificuldade, que bom, seu lugar não é aqui”. (OLIVEIRA, 2018, p. 146) É que foi assim, a gente estava tendo Prática V na época, aquilo foi muito novo, todo mundo estava gostando da aula, realmente era uma Prática de Ensino que a gente estava aprendendo muito. Daí a gente queria aplicar isso no Estágio, aplicar o que estava aprendendo, a gente estava montando um plano de aula diferente, construtivista como ele estava falando, tentamos escrever isso, montamos, revisamos bastante, aí a gente entregou para a professora e ela não aceitou, acho que ela mal leu, a gente estava com ela na sala, acho que ela leu uma linha, a gente foi acompanhando com ela, aí ela falava: “aqui não faz sentido”, e a gente tentava explicar pra ela o que a gente queria propor, mas mesmo assim ela não aceitava e ela descartou completamente a ideia que a gente teve e falou pra gente remontar o plano de aula. A gente estava tipo em uma reunião, quase brigando, aí ela soltou uma frase assim: “Se fizer do jeito que eu quero vocês vão passar, então...” A gente ficou quieto e foi lá fazer o plano de aula do jeito que ela queria e esse foi o Estágio que a gente teve. (OLIVEIRA, 2018, p.161)

Práticas docentes que podem ser consideradas excludentes também são encontradas nas narrativas de pessoas que não passaram por processo de

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alfabetização, como a dona Quitéria e a dona Silvéria, ambas entrevistadas por Endrika Leal Soares durante sua pesquisa de mestrado. Meu nome é Quitéria Senhorinha da Silva, nascida no dia 7 de junho de 1948, em Custódia, Pernambuco. Pra falar a verdade, eu frequentei essa escola aqui, Arlindo Sampaio, acho que uns 2 mês. [...] Eu ia à noite, era tranquilo, eu trabalhava durante o dia. A professora não se interessou muito pelo meu causo e eu fui me estressando com aquilo lá. Ela não ia me ensinar nada pra mim, ela queria que eu copiasse dessa minha amiga, aí eu peguei, fui me estressando, peguei e larguei mão! (SOARES, 2019, p. 78) Eu sou de 29 de dezembro de 1942, tenho 75 anos e me chamo Silvéria Carvalho Custódio. [...] A minha mãe, uma vez, entregou eu pra uma professora, eu tinha uns 12 ano de certo. Ela deixou eu com essa professora pra eu trabalhar, ela não precisava me pagar, mas era pra ela me ensinar a ler, escrever, fazer ao menos meu nome. Eu trabalhei dois anos com essa dona, eu cuidava de uma criança pra ela e ela nunca pegou um caderno pra falar pra mim fazer meu nome pra ela ver, ela nunca me ensinou. Trabalhei tudo tempo com ela, mas eu num consegui nada porque ela nunca me ensinou. (SOARES, 2019, p. 86; 87-88)

O que se está querendo, ao chamar a atenção para esses sintomas, para todas essas subjetividades que trazem afetos que afloram cotidianamente quando se está fazendo/estudando/pesquisando formação de professores? Falar da importância de, em algum momento, tirar o foco das intenções desses cursos de formação de professores e focar nas tensões que lá acontecem. Tensões que são produtoras de subjetividades, de medos e de outros afetos. Tensões que aparecem nas fontes das mais diferentes pesquisas, mas que quase nunca são exploradas. Vladimir Safatle (2016) afirma que a organização política da sociedade se centra em dois tipos de afetos: o medo, que é a expectativa de que algo ruim aconteça; e a esperança, que é a expectativa de que algo bom aconteça. Esses afetos organizam um corpo político que pode ser um corpo crente em

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uma providência prometida, ou um corpo depressivo, doente por uma providência perdida ou nunca obtida, por se encontrar em situação de desamparo. Essa situação sempre é lida como um momento a ser superado, ao que Safatle (2016, p. 21) alerta: Faz-se necessário adotar outra estratégia e se perguntar qual corporeidade social pode ser produzida por um circuito de afetos baseado no desamparo. Pois o desamparo cria vínculos não apenas através da transformação de toda abertura ao outro em demandas de amparo.

Segundo este autor, há, então, “[...] momentos em que os corpos precisam se quebrar, se decompor, ser despossuídos para que novos circuitos de afetos apareçam” (SAFATLE, 2016, p.36). O desamparo não seria, assim, algo a ser evitado. É importante nos abrirmos a um outro que nos desestabilize e conviver com a desestabilização, sem cair num movimento de buscar rapidamente por uma situação que te faça novamente se sentir “seguro”, que te afaste de um medo que de um modo ou outro está sempre presente. Nesse sentido, há alguns desafios a serem pensados. Ao observar a perspectiva aqui apresentada a partir de Vladimir Safatle, é importante pensar em um abandono da noção de autonomia na docência e na formação de professores, pois pensar em autonomia, no sentido de autogoverno, é falar de alguém que opera no governo de si sem pensar que, para isso, essa pessoa já internalizou as normas e questões disciplinares. O autor propõe pensar em termos de heteronomia, no sentido de uma abertura ao outro, ao que nos desconcerta, nos despossui e nos faz reconstruir nossa própria ideia sobre nossos desejos e afetos. Nesse momento político em que é possível assistir à construção de uma narrativa deturpada e perigosa sobre a Educação, a Docência e a Universidade Pública, faz-se extremamente necessário trabalhar com/sobre/na formação de professores, procurando abraçar o desamparo e fugindo de movimentos que buscam invisibilizar o outro. É importante compreender que essa ação se faz fundamental ou na formação ou na atuação de professores, em que o silêncio opera como sinônimo de respeito ao professor, seja na pesquisa que, muitas vezes, produz invisibilidade, ao desconsiderar certos tipos de fontes, narrativas pessoais, subjetividades na academia. 116

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Por fim, é importante nos mobilizarmos na direção de desconstruir essa narrativa do medo que tem sido alinhavada no momento político atual acerca das práticas educativas. É do escritor Mia Couto (2011) o posicionamento que segue e do qual se compartilha. Há nesse mundo mais medo de coisas más, do que coisas más propriamente ditas. Para fabricar armas, é preciso fabricar inimigos e para fabricar inimigos é imperioso sustentar fantasmas. Não há hoje no mundo um muro que separe os que têm medo dos que não têm. Citando Eduardo Galeano, os que trabalham tem medo de perder o trabalho, os que não trabalham tem medo de nunca encontrarem um trabalho. Quando não tem medo da fome, tem medo da comida. Eu acrescento: há quem tem medo que o medo acabe. (COUTO, 2011)

Reforça-se: “há quem tem medo que o medo acabe(!)”, na esperança de que este texto possa ecoar.

PROBLEMATIZANDO A SUBJETIVIDADE COM PROCESSOS DE OBJETIVAÇÃO As falas das professoras convidadas Adair e Luzia indicam similaridades ao apontarem tendências nos estudos sobre a formação de professores que ensinam matemática cujo foco é ressaltar, valorizar, enfatizar a participação dos professores nas pesquisas, com destaque para a análise e a compreensão de suas atitudes, crenças, representações, saberes, competências, medos etc., elementos caracterizados pela subjetividade dos sujeitos. Com o intuito de problematizar o conceito de subjetividade tratado nas duas abordagens, seja na presença expressiva de número de estudos que evocam essa vertente, como nos exemplos de estudos desenvolvidos pelo grupo HEMEP de Mato Grosso do Sul, a coordenadora da mesa, professora Célia traz para o debate ponto de vista distinto – estudo que discute processos de objetivação, em particular, o editorial publicado na Revista Amazônia: Bem mais recentemente, outras bases têm sido mobilizadas visando estudos sobre os saberes profissionais. Esses recentíssimos estudos vêm destacando A formação de professores que ensinam Matemática – História e perspectivas atuais 117


que, se a admissão de que o saber docente tem caráter subjetivo, ao que parece, com o passar do tempo, muitas dessas pesquisas realizadas nas últimas décadas demonstram a necessidade da objetivação de saberes que possam ser sistematizados e que devem, com isso, fazer parte da nova formação de professores. Em síntese, caberia a transformação dos conhecimentos dos sujeitos em saberes objetivados. Tais pesquisas apontam para a longa duração para a objetivação de saberes e sua institucionalização na formação de professores, o que demanda melhor conhecer os processos históricos aí envolvidos. (VALENTE; MENDES, 2018, p. 1-2)

Na verdade, o contraponto do foco na objetividade pode ser mais bem compreendido no artigo “Saber objetivado e formação de professores: reflexões pedagógico-epistemológicas” (VALENTE, 2019), em que o autor propõe dois tipos de saberes: saberes da ação e saberes objetivados, argumentando na relevância de bases teórico-metodológicas que tornem inteligíveis processos e dinâmicas de produção dos saberes profissionais, problematizando os saberes pedagógicos em termos de processos de objetivação, de modo a compreender como, ao longo do tempo, se constituem os saberes objetivados em sua articulação com saberes da ação. Ainda, de acordo com Valente (2019, p. 17): a constituição de saberes objetivados envolve tempo relativamente longo, situações de decantação, de estabilização, de consensos sobre determinados saberes que vão ganhando formas sistematizadas para se tornarem referência à formação de professores, em termos da constituição de matérias de ensino, de disciplinas escolares e científicas.

Não se trata de desconsiderar a subjetividade, própria dos saberes da ação e, sim, em “captar o movimento de sistematização de saberes da ação, em processo histórico, de modo a que se tenha, para uma dada época escolar, a constituição de saberes objetivados em matérias e disciplinas escolares é o desafio que pesquisas recentes têm enfrentado” (VALENTE, 2019, p. 18).

CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise do mapeamento das dissertações e teses entre 1978 e 2012 aponta mudanças significativas, entre elas a virada paradigmática das investigações

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expressa pelo movimento de pesquisas anteriormente com foco em estudos sobre o professor e, portanto, reforçando a colonização e o poder do formador, ditando modelos para as práticas de sala de aula, para o sentido de pesquisas que destacam o sujeito professor, investigações com o professor, nas quais as suas subjetividades, incluindo medos, crenças, saberes da ação passam a ser considerados. No entanto, as narrativas e os estudos citados nas pesquisas desenvolvidas pelo Grupo HEMEP no Mato Grosso do Sul evidenciam narrativas de práticas colonizadoras de formadores, de poderes atribuídos a gestão escolar, de medos diversos, entre eles a instabilidade profissional, sem, contudo, indicar a virada paradigmática. Parece importante pontuar as duas dimensões abordadas durante o debate, a primeira, trazida por Adair, expõe resultado de pesquisa macro, ou seja, levantamento amplo e numeroso de pesquisas em todo o Brasil, enquanto a segunda dimensão, explorada por Luzia, exibe falas de professores, seja do passado, com o trecho do professor José Rangel de 1921, como as narrativas de professores atuais no Mato Grosso do Sul. Neste sentido, uma visão não exclui a outra, visto que os resultados de pesquisas acadêmicas (dissertações e teses) não indicam obrigatoriamente mudança na realidade educacional, as práticas pedagógicas incorporadas, em particular, na formação de professores que ensinam matemática. A aproximação dos dois contextos discutidos pelas convidadas está na relevância de destacar, valorizar, focar o sujeito professor nas práticas pedagógicas, como participante do processo investigativo e, assim sendo, incorporando nos processos de ações formativas seu contexto mais amplo, suas subjetividades, crenças, atitudes, medos etc. Assim sendo, no âmbito de pesquisas acadêmicas, ambas abordagens remetem para a necessidade de atenção à voz e ao espaço praticado pelo sujeito professor. Colocar-se à escuta do professor e possibilitar práticas de (auto)formação têm sido objetivos de investigação de pesquisadores que vêm adotando pesquisas (com) narrativas. Essas pesquisas visam compreender os modelos de formação docente e de práticas de ensino de matemática a partir das vozes daqueles que vivenciam o cotidiano escolar. Identifica-se um número crescente de produção nesse campo de inquérito, com a publicação de dossiês em periódicos e a identificação de grupos de pesquisa que a ele tem se dedicado. No último desses dossiês, publicado em 2019, na Revista Brasileira de Pesquisa A formação de professores que ensinam Matemática – História e perspectivas atuais 119


(Auto)Biográfica, o texto de Nacarato, Moreira e Custódio (2019) apresenta esses dossiês e as autoras realizam uma revisão sistemática dos trabalhos publicados de 2010 a 2018, tomando como referência os Anais do Congresso Internacional de Pesquisa (Auto)Biográfica (CIPA) e do GT 19 Educação Matemática no âmbito das reuniões nacionais da Associação Nacional da Pesquisa em Educação (Anped), além de periódicos qualificados na área, nos quais foram identificados produções com tal temática21. Ao buscar uma sistematização da produção, as autoras concluem que se trata de um campo de investigação em construção, marcado por uma polissemia de termos e a busca dos pesquisadores pela compreensão dos processos metodológicos dessa modalidade de pesquisa. Segundo as autoras, as narrativas, quando tomadas como objetivo de problematização e reflexão, podem contribuir para o rompimento de práticas e crenças tradicionais do ensino da matemática, permitindo ao (futuro) professor (re)significar suas aprendizagens e construir um repertório de saberes que subsidiam a sua atuação em outra perspectiva, diferente daquelas que vivenciaram. Além disso, tais narrativas trazem os sentidos que cada sujeito atribui ao vivido, como também a história de um contexto específico, as ideias de uma coletividade profissional. Seu compartilhamento – entre os pares ou com o próprio pesquisador – se constitui em prática de formação que precisa ser valorizada. (NACARATO; MOREIRA; CUSTÓDIO, 2019, p. 35)

Elas alertam para o compromisso ético do pesquisador para com os depoentes da pesquisa, exigindo esclarecimentos quanto ao processo analítico e às devidas devolutivas do trabalho, visto que as histórias narradas passam pelo viés interpretativo do pesquisador e a interpretação é subjetiva, parcial e situada. O contraponto ao final, problematizado por Célia, sinaliza a perspectiva de novos estudos, recentíssimos22, que apontam para um movimento de 21 Os periódicos foram: Boletim de Educação Matemática (Bolema – Unesp/Rio Claro), Zetetiké (FE/Unicamp), Revista Eletrônica de Educação (Reveduc – UFSCar), Perspectivas em Educação Matemática (UFMS), Revista Educação PUC-Campinas; Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica (RBPAB); e Educar em Revista (UFPR). 22

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Como exemplo, cita-se o Projeto de Pesquisa “A Matemática na formação de professores e no ensino: processos e dinâmicas de produção de um saber profissional, 1890-1990”, coordenado por Valente. Projeto temático na área da Educação Matemática, financiado pela FAPESP.

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estudos de processos de objetivação de saberes profissionais dos professores investigados do ponto de vista histórico. Mas, como já dito, trata-se de perspectivas muito recentes e que será preciso aguardar os resultados de pesquisas que caminhem nesta direção. Outro aspecto ora identificado no debate diz respeito a pouca originalidade de referenciais teórico-metodológico que valorizem a especificidade de nosso país, ou ainda, a diversidade de nossas regiões, visto a dimensão do Brasil. Por mais que tenhamos consciência dos problemas decorrentes de transferências culturais, de “modelos teóricos” importados, a circulação de ideias, propostas pedagógicas é uma prática de muito tempo e não somente do Brasil, as missões pedagógicas internacionais (viagens de estudo ao estrangeiro para conhecer sistemas educacionais) do século XIX constituem papel relevante na construção dos sistemas escolares modernos do século XIX, tanto na França como em países ocidentais (MATASCI, 2015)23, assim como as Exposições Internacionais. A ideia de conhecer “o outro” para melhor compreender “o nosso” é uma aposta de longo tempo, não no sentido de importar ou copiar modelos prontos, mas sim, de melhor compreender a nossa cultura, a partir do contato, das trocas e das aprendizagens com outras culturas. O painel de discussão do PME 23, ocorrido em julho de 2019, teve como tema: What is proven to work (according to international comparative studies) in successful countries should be implemented in other countries?24 Por fim, poderíamos ainda ampliar as reflexões em debate no sentido de questionar se tais resultados sobre pesquisas de formação de professores que ensinam matemática se configuram como particularidades de sujeitos que ensinam matemática ou comungam juntos com outras áreas de ensino, ou ainda com desafios e estudos similares sobre formação de professores em geral. Esse movimento pode contribuir para a construção de uma agenda política à Educação, mas é importante cuidar para que não se torne um modo de generalizar, de esconder as diferenças e os processos de diferenciação que precisam ser compreendidos e problematizados.

23

A tese de Conceição (2019) analisa os saberes geométricos para a formação do professor presentes nos relatórios produzidos por três professores primários brasileiros que partiram em missões pedagógicas para a Europa no final do século XIX.

24

O que é comprovado em pesquisas (em acordo com estudos internacionais comparativos) de países de sucesso deve ser implementado em outros países?

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3

A história da Educação Matemática nos cursos de formação de professores Bruno Alves Dassie25 Elisabete Zardo Búrigo26 Maria Laura Magalhães Gomes27

Uma apresentação Os textos que seguem “História da Educação Matemática e Formação de Professores: reflexões, indagações, desafios”, de Maria Laura Magalhães Gomes, e “Interrogações sobre o passado e o presente: aprendendo com a História da Educação Matemática”, de Elisabete Zardo Búrigo, são frutos da mesa-redonda “A História da Educação Matemática nos cursos de formação de professores”, realizada no IV Enaphem em 2018. Como podemos contextualizar esses textos 25 Universidade Federal Fluminense. Programa Pós-graduação em Educação. E-mail: badassie@gmail.com 26 Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-Graduação em Ensino de Matemática. E-mail: elisabete.burigo@ufrgs.br 27 Universidade Federal de Minas Gerais. Programa de Pós-graduação em Educação. E-mail: laura@mat.ufmg.br

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no debate sobre a temática da Mesa? Nessa pequena apresentação eu exponho minhas interpretações sobre esse processo, a partir de considerações sobre a inserção de questões historiográficas no curso de formação de professores. *** A inclusão de temas e questões históricas na formação de professores de Matemática no Brasil não é uma temática recente. Observa-se desde a criação dos primeiros cursos de licenciatura a existência uma disciplina destinada à apresentação de tópicos relacionados à História da Matemática. Por exemplo, na Universidade do Distrito Federal, criada em 1935, encontrava-se, na grade curricular do curso de licenciatura, a disciplina História e Filosofia da Matemática, como pode ser visto em Dassie (2009); e na Universidade de São Paulo, a disciplina História das Matemáticas, citada por Gomes (2016b). Nesses trabalhos, não há detalhes sobre os cursos devido à ausência de fontes e, por consequência, não há evidências de quais foram os argumentos em prol da criação dessas disciplinas e quais eram seus objetivos. Em ambos os casos, pode-se perceber a valorização desse conteúdo na formação do professor, mas em uma perspectiva da História da Ciência, sem reflexões para fins pedagógicos. Com a emergência do campo da Educação Matemática, a relação entre História da Matemática e formação do professor apresenta-se com outros contornos. Segundo Miguel e Brito (1996, p.48), no texto denominado “A história da matemática na formação de professores”, Na década de 1980, com o refluxo [...] [do Movimento da Matemática Moderna], assiste-se também um reavivamento do interesse pela história e à tentativa de tornar explícitas as suas potencialidades pedagógicas. De fato, nos vários congressos internacionais de educação matemática ocorridos a partir da década de 1980, as discussões relativas às potencialidades pedagógicas da história da matemática começaram a ganhar espaço. [...] Em nosso país essa discussão é mais recente. Em alguns eventos voltados para o ensino de matemática essa problemática tem sido levantada. Por exemplo, no I Encontro Paulista de Educação Matemática, realizado em outubro de 1989 na cidade de Campinas, ocorreu uma atividade coordenada

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denominada “Aspectos Históricos no Processo de Ensino-aprendizagem da Matemática”, na qual foi levantado o problema referente à função do estudo da história da matemática na formação do professor de matemática. Nessa ocasião, os participantes dessa atividade destacaram a “lamentável ausência da disciplina História da Matemática, quer na quase totalidade dos currículos da Licenciatura, quer na totalidade dos cursos de Magistério”.

A partir desses marcos apontados por Miguel e Brito, observa-se no Brasil um crescimento em relação à implementação da disciplina História da Matemática nos cursos de Licenciatura. Por exemplo, Stamato (2003, p. 38-39) apresenta um levantamento acerca da implementação dessa disciplina em 43 instituições do ensino superior e o que se pode observar é que cerca de 84% dessas IES instituíram a disciplina entre 1990 e 2005. Os argumentos apresentados pelos responsáveis dos cursos e citados por Stamato (2003) são de diversas naturezas e se pode considerar que se enquadram na síntese apresentada por Miguel (1997) em relação às “potencialidades pedagógicas da história da matemática”28. Para Miguel (1997), os “argumentos reforçadores” em defesa da História e suas relações com a Educação Matemática são: a história é uma fonte de motivação para o ensino e aprendizagem da matemática; a história constitui-se numa fonte de objetivos para o ensino da matemática; a história constitui-se numa fonte de métodos adequados de ensino da matemática; a história é uma fonte para a seleção de problemas práticos, curiosos, informativos e recreativos a serem incorporados nas aulas de matemática; a história é um instrumento que possibilita a desmistificação da matemática e a desalienação de seu ensino; a história constitui-se num instrumento de formalização de conceitos matemáticos; a história é um instrumento de promoção do pensamento independente e crítico; a história é um instrumento unificador dos vários campos da matemática; a história é um instrumento promotor de atitude e valores; a história constitui-se num instrumento de conscientização epistemológica; a 28

Miguel (1997, p. 74) faz um levantamento “[...] a partir da leitura e análise de uma documentação básica construída de artigos publicados em revistas nacionais e internacionais de Educação Matemática, súmulas contidas em Anais e Encontros nacionais e internacionais de Educação Matemática, capítulos de livros e referências esparsas contidas nas obras de matemáticos, historiadores de matemática e educadores matemáticos”. Cabe citar que este trabalho é uma síntese de parte da tese de doutorado desse pesquisador (MIGUEL, 1993).

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história é um instrumento que pode promover a aprendizagem significativa e compreensiva da matemática; a história é um instrumento que possibilita o resgate da identidade cultural. Além dos argumentos apontados por Miguel (1997), oriundos da produção do campo de pesquisa, pode-se citar que a criação da disciplina História da Matemática nos cursos de Licenciatura foi potencializada também pela criação de linhas de pesquisa e de grupos que passaram a se dedicar a investigações dessa natureza, da Sociedade Brasileira de História da Matemática, em 1999, e pela incorporação do debate sobre as relações entre História e Educação Matemática em documentos oficiais. Em relação a esse último aspecto, por exemplo, os Parâmetros Curriculares Nacionais, dos anos finais do ensino fundamental (BRASIL, 1998, p.42-43), consideram a História da Matemática como um “caminho para ‘fazer Matemática’ em sala de aula” e as Diretrizes Curriculares para os cursos de Matemática, em particular o Parecer CNE/CES 1302/2001, indicam que, na parte comum a todos os cursos de Licenciatura, deve-se incluir “conteúdos da Ciência da Educação, da História e Filosofia das Ciências e da Matemática” (BRASIL, 2002). É interessante notar que ao longo do processo de implementação de uma disciplina, a partir de argumentos baseados nas “potencialidades pedagógicas” da História, já é possível observar, em menor escala, a problematização em relação ao tipo de “participação” de reflexões historiográficas na licenciatura. Sobre esse aspecto, Miguel e Brito (1996, p.48) retomam os Anais do I Epem e destacam que a inclusão de tal disciplina nos cursos de formação de professores, por si só, não garantiria que a mesma se revertesse em um instrumento de apoio à prática docente. Haveria necessidade de aprofundamento da discussão relativa aos objetivos que uma disciplina dessa natureza viria a se cumprir na formação do professor. (ANAIS I Epem, 1989, p. 241 apud MIGUEL; BRITO, 1996, p.48)

Assim, dentre os objetivos da reflexão de Miguel e Brito (1996, p. 49), eles apontam que, naquele momento, desejam “destacar elementos que possam, eventualmente, contribuir com a reflexão acerca da participação da história da matemática na construção do conhecimento matemática do futuro professor”. Além disso, eles afirmam: 128

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Não vamos [...] defender o ponto de vista de que a história da matemática deve se constituir apenas em mais uma disciplina isolada das demais na formação do professor de matemática, o que viria a reforçar entre os futuros professores a indesejável separação radical entre matemática e história da matemática e a oposição entre o lógico e o histórico. Ao contrário, defenderemos a tese de uma participação orgânica da história da matemática nessa formação, o que significa, primeiramente, a tentativa de se imprimir historicidade às disciplinas de conteúdo específico.

A proposta de uma “participação orgânica”, como relatada posteriormente por Miguel e Miorim (2004, p.153-154), também se relaciona com uma proposta de “conexão entre domínios”, a saber, o da História da Matemática e o da História da Educação Matemática. Na análise de Gomes (2010, p.xvi-xvii), esses professores da Unicamp se posicionam em favor de um trabalho de formação do licenciando que não substitua o estudo da História da Matemática pelo da História da Educação Matemática, mas que integre ambos no interior de sua concepção de problematização da educação matemática escolar.

Um exemplo dessa articulação foi relatado em 1999 no III Seminário Nacional de História da Matemática por Brito e Miorim (1999), no texto denominado “A história na formação de professores de matemática: reflexões sobre uma experiência”. Esse relato se baseia em uma experiência na disciplina denominada Fundamentos da Metodologia do Ensino da Matemática, cujos objetivos eram: 1. Conhecer/analisar as principais transformações ocorridas no ensino de matemática em nível médio no Brasil, relacionando-as com os respectivos momentos históricos; 2. Perceber as diversas alterações no modo de apresentação matemática em livros didáticos e propostas curriculares de diferentes épocas, analisando as implicações pedagógicas de cada uma dessas formas de apresentação; 3. Discutir/analisar alterações no modo de apresentação da matemática e de ensino e aprendizagem da matemática, na prática pedagógica do ensino de matemática (relação professor-aluno-conhecimento); 4. Repensar os fundamentos de conceitos matemáticos, normalmente

A história da Educação Matemática nos cursos de formação de professores

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trabalhados em nível médio de ensino, a partir de aspectos históricos, filosóficos, psico-sociológicos e didáticos desses conceitos; 5. Perceber, a partir das histórias da matemática e do ensino da matemática, modos alternativos de se encadear os tópicos de matemática tradicionalmente trabalhados na escola e refletir sobre as implicações pedagógicas de cada um desses modos. (BRITO; MIORIM, 1999, p.256-257)

E para atingir esses objetivos, essas professoras elencaram os seguintes temas: 1. Habilidades matemáticas para o século XXI ou para hoje?; 2. História da Educação Matemática; 3. Fundamentos histórico-filosóficos e psico-sociológicos dos seguintes temas: 3.1. Funções ou Álgebra no ensino médio; 3.2. Logaritmos; 3.3. Trigonometria; 3.4. Geometria Espacial; 3.5. Geometria Analítica; 3.6. Análise Combinatória; 3.7. Probabilidade e Estatística (BRITO; MIORIM, 1999, p.257-258). Um bom exemplo desta concepção encontra-se no texto “Os logaritmos na cultura escolar brasileira”, de Miorim e Miguel (2002). Em paralelo a esse movimento de articulação proposto pelo grupo de professores da Unicamp, observa-se outro ponto de vista sobre a inserção de questões históricas na formação de professores de matemática. Trata-se da proposta apontada por Valente (2002), considerando a emergência do campo da História da Educação Matemática. Gomes (2010, p.xv) sintetiza as reflexões de Valente (2002) da seguinte maneira: Wagner Valente (2002), por exemplo, ao analisar a participação da História da Matemática na formação inicial de professores, explicita sua visão de que, da maneira como tem estado presente nas licenciaturas, a disciplina tende a reforçar a ideia de que o saber que o professor utiliza diretamente em sua prática é o “saber científico”, no caso o “saber dos matemáticos”, estando esse tipo de inserção da História da Matemática na formação docente integrado a tendências há muito ultrapassadas pelas pesquisas em Educação Matemática. [...] Os modos de constituição da História da Matemática como disciplina nos cursos de licenciatura seriam, segundo Valente, inadequados à formação de um educador matemático. Em contraposição a eles, Valente defende que a história da matemática que contribuiria de fato para formar um educador matemático seria a história da matemática ensinada pelo futuro professor, ou seja, a matemática escolar.

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História da Educação Matemática e formação de professores: aproximações possíveis


Esse posicionamento também pode ser visto no texto de Valente (2010), denominado “História da educação matemática: considerações sobre suas potencialidades na formação do professor de matemática”. Nesse artigo, Valente reafirma que as reflexões historiográficas na formação do professor devem ser tratadas na perspectiva da História da Educação Matemática e amplia seus argumentos apresentando os porquês e as potencialidades desse saber na licenciatura a partir de elementos relacionados ao processo de profissionalização. Para ele, a dimensão formativa da história da educação matemática parece ser de outra natureza àquela da História da Matemática. Ela aponta para a formação profissional do professor, para a sua necessidade de compreender que heranças reelaboradas o seu ofício traz de outros tempos e que estão presentes na sua prática pedagógica cotidiana. Além disso, o professor de matemática do século XXI não se constitui como herdeiro dos matemáticos, mas dos professores de matemática do século XX, quando isso se analisa numa determinada escala. (VALENTE, 2010, p.133)

Nesse debate, podemos retomar Gomes (2010), que nos apresenta o texto de Garnica (2006), sobre as “potencialidades de uma vertente mais específica da História da Educação Matemática”, a saber, “a interface da História Oral e Educação Matemática”. Para Gomes (2010), Garnica argumenta a favor de uma “participação da História na formação dos professores”, mas “não se detém em uma discussão, como Valente e Miguel e Miorim o fazem, sobre uma oposição ou integração entre História da Matemática e História da Educação Matemática” (GOMES, 2010, p. xvii). Segundo essa pesquisadora, Para o autor [Garnica (2006)], a compreensão histórica de diversos aspectos ligados à formação e à atuação docentes, ou ainda, o conhecimento, a partir de concepções passadas e presentes, da constituição da Educação Matemática, seriam prioritários para a formação dos professores.

Cabe destacar que Garnica (2006) não defende a introdução de uma disciplina específica no curso de licenciatura em Matemática. Para ele,

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Concebendo como elementos de abstração as teorias pedagógicas, os métodos didáticos, os aspectos filosóficos, políticos e axiológicos da Educação e da Educação Matemática, as atividades em História Oral e Educação Matemática poderão articular, por exemplo, as disciplinas classicamente conhecidas como “disciplinas pedagógicas” às situações concretas, visando a buscar, ao longo da formação inicial, a tão decantada articulação teoria-prática. (GARNICA, 2006, p.159)

Mesmo sem constituir um inventário, ou estado da arte, do debate na Educação Matemática sobre a inserção de questões históricas na formação do professor, é possível perceber que a emergência do campo da História da Educação Matemática potencializou outras reflexões sobre as formas de introdução desses saberes na formação do docente. As temáticas sobre a matemática escolar tornam-se centrais no debate a partir de alguns pesquisadores, novamente sendo defendida uma disciplina ou uma participação orgânica, por exemplo, em espaços não disciplinares. Esse debate favoreceu, a partir dos anos 2000, a realização de experiências envolvendo a inserção da História da Educação Matemática na formação de professores, nas diferentes perspectivas citadas acima. E é nesse contexto que se situam, por sua vez, as discussões ocorridas nas duas últimas edições do Enaphem (2016 e 2018), por meio de mesas-redondas que encerraram os eventos. Os textos a seguir se destacam por não apresentar as diferentes perspectivas que vêm sendo praticadas, institucionalizadas e consolidadas, sob a ótica da polarização – como ocorrido no III Enaphem em 2016 –, mas possuem um eixo comum que vem enriquecer o debate em tempos atuais: revisitar nossas práticas de modo que possamos caminhar para a constituição de uma agenda centrada na contribuição da História da Educação Matemática na formação de professores como espaço de resistência.

História da Educação Matemática e formação de professores: reflexões, indagações, desafios O tema das relações da História da Educação Matemática com a formação de professores vem sendo discutido intensamente desde a segunda (Bauru, São Paulo, 2014) e a terceira (São Mateus, Espírito Santo, 2016) edições do

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História da Educação Matemática e formação de professores: aproximações possíveis


Encontro Nacional de Pesquisa em História da Educação Matemática, em 2014 e 2016. No II Enaphem, na mesa de abertura do evento, intitulada “O Enaphem e a História da Educação Matemática no Brasil”, proposta como discussão do movimento de constituição do campo em relação ao encontro cuja quarta edição se realizou em 2018, em Campo Grande, no campus da UFMS, um dos eixos de minha participação29 foi o da problematização referida ao evento. Naquele momento de 2014, abordar a problematização significou contemplar a questão da contribuição possível da História da Educação Matemática nas “práticas educativas mobilizadoras de cultura matemática” (MIGUEL, 2014b, p. 29), sobretudo naquelas voltadas para a formação de professores. Tal contribuição era pouco visível, ao que me parecia, nas produções registradas nos anais do I Enaphem, realizado em Vitória da Conquista, na Bahia, em 2012. Ficou-me a impressão de que discutir essa questão ultrapassou em muito o que eu imaginava ao elaborar aquela fala, que completa cinco anos no momento em que redijo o presente texto. Essa impressão se acentuou quando fixei a atenção em alguns aspectos das propostas para a terceira e a quarta edições do Enaphem. De fato, no site do III Enaphem, entre as primeiras palavras sobre o evento estão as seguintes: “O tema em destaque do 3.º Enaphem é História da educação matemática e formação de professores. Espera-se que haja uma quantidade significativa de propostas sobre o papel da história da educação matemática na formação de professores”. Não é difícil constatar que a programação do evento de 2016 investiu de fato nesse tema, tanto na Conferência de Abertura, denominada “História da Educação na Formação de Professores”, proferida pelo professor Décio Gatti Júnior, quanto na proposição da mesa-redonda “História da educação matemática na formação de professores”, da qual participaram os professores Iran Abreu Mendes (coordenador) e as professoras Maria Cristina de Araújo Oliveira e Heloisa da Silva. O livro relativo ao terceiro Enaphem (DASSIE; COSTA, 2018) recebeu o título do tema em destaque e contém o texto da conferência de abertura e dois capítulos específicos direcionados ao tema da História da Educação Matemática na formação de professores. São eles: “A disciplina História da 29 A fala que então proferi foi publicada como um capítulo (GOMES, 2016) do livro alusivo ao evento, que foi organizado por Garnica (2016).

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Educação Matemática na formação de professores: experiências praticadas ou em andamento”30 e “O que pode a História da Educação Matemática em espaços não disciplinares?”31. Essas observações evidenciam que a contribuição da pesquisa em História da Educação Matemática para a formação de professores foi, efetivamente, tema proeminente no III Enaphem. O histórico apresentado no site do IV Enaphem, construído em 2018, voltou a focalizar o tema, informando que “a temática foi tão instigante e potente que houve, por parte dos participantes, a solicitação que o tema fosse mantido para a quarta edição do Enaphem”32. Explicou-se, ademais, que “as drásticas mudanças que ocorreram no cenário político e educacional brasileiro nos últimos anos”, relacionadas a cortes de recursos financeiros para diversos programas de formação inicial e continuada de professores e para pesquisas, “muitas relacionadas à formação de professores, seja para a educação básica ou superior” justificavam plenamente uma nova abordagem da temática no evento de 2018. Com a formulação “Formação de Professores: história, cultura e política”, nossa comunidade, representada pela organização do IV Enaphem, buscou dar continuidade e ampliar as discussões que entrelaçam a História da Educação Matemática e a formação de professores. Certamente, após a escrita desse texto do site do IV Enaphem, os acontecimentos políticos, que incluíram a eleição, em outubro de 2018, e a posse, em janeiro de 2019, de um governo federal de extrema direita, confirmaram o agravamento do quadro do País, trazendo muitas preocupações para o futuro geral da educação e, particularmente, para a pesquisa em Educação e Educação Matemática, assim como para a formação de professores. Desse modo, e considerando também que a formação de professores de Matemática, como bem escreveu o professor Pitombeira (CARVALHO, 1991), é o problema mais importante da Educação Matemática no Brasil tanto por sua relevância social como pelo seu potencial de integrar todas as tendências do campo, pensar e discutir a respeito das relações da História da Educação Matemática com a formação de professores representou um ato mais do que oportuno no evento 30

Texto assinado por Iran Abreu Mendes, Maria Cristina Araújo de Oliveira, Elisabete Zardo Búrigo e David Antônio da Costa.

31

O capítulo foi escrito por Luzia Aparecida de Souza, Diogo Franco Rios e Heloisa da Silva.

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Disponível em: https://enaphem.wordpress.com/historico/. Acesso em: 03 out. 2019.

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História da Educação Matemática e formação de professores: aproximações possíveis


e continua a ser pertinente depois, no ensejo da produção do livro referente ao IV Enaphem. Se o problema para o qual chamei a atenção em 2014 adquiriu tanto destaque, considero interessante fazer algumas considerações acerca da pertinência de acreditarmos que a História da Educação Matemática representa uma contribuição potencialmente muito relevante na formação de professores.

Por que História da Educação Matemática na formação de professores? No texto que escrevi para a abertura do II Enaphem, lancei mão de um trabalho da professora Cláudia Alves, denominado “O educador e sua relação com o passado” (ALVES, 2012), no qual ela discute três aspectos da relação entre educador e passado da educação: as sobrevivências do passado no presente, as diversas temporalidades que habitam um mesmo tempo e as múltiplas formas de subjetivação do tempo. Busco, a seguir, sintetizar as conclusões da autora no sentido da importância do conhecimento da história da educação. Quanto ao primeiro aspecto, conhecer as formas do passado no que diz respeito a concepções, práticas, valores, preconceitos, estar consciente do que permaneceu e do que mudou conduziria o professor a uma maior possibilidade de avaliação crítica daquilo que frequentemente se apresenta como novo e à compreensão do enraizamento, na escola, na família e na sociedade em geral, de dimensões que impedem que caminhemos adiante ou que, se o possibilitam em certos momentos, logo são alvo das reações. Podemos refletir sobre isso, levando em conta os diversos tipos de discriminação que se manifestam no âmbito geral da escola e do ensino da Matemática em particular. Talvez seja ocioso enumerar tais discriminações, mas pode ser profícuo para as nossas reflexões mencionar, por exemplo, a discriminação racial e a de gênero, bem como avaliar formas como repercutem, ao longo do tempo, na educação matemática. Em relação às diversas temporalidades que habitam um mesmo tempo, olhar com maior densidade de conhecimento histórico para os muitos passados que se manifestam no presente por meio de seus traços persistentes pode significar um aporte à identidade e à atuação profissional do educador, especialmente, no que nos interessa, do professor que ensina Matemática (aqui A história da Educação Matemática nos cursos de formação de professores

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incluo tanto aquele que não tem uma habilitação específica para isso quanto o que passa ou passou por uma formação acadêmica nessa direção). É oportuno lembrar a advertência de Viñao (2012) sobre concepções gerais dos professores quanto à história da educação, que seguramente se aproximam das dos professores (e futuros professores) que ensinam Matemática. Ele afirma que os docentes tendem a considerar (a) que a história da educação começa com sua experiência – memória – pessoal e profissional dessa educação e que antes dessa experiência só existe um magma mais ou menos confuso e invariável; (b) que tal história está centrada ou gira em torno de seu campo disciplinar e do nível educacional a que pertencem; e (c) que qualquer tempo passado – em especial aquele em que fizeram seus estudos ou outro tempo mítico não concretizado – foi melhor que o atual naquilo que se refere à educação. (VIÑAO, 2012, p. 105-106)

O autor espanhol continua e diz que é raro que os professores (e podemos dizer também os futuros docentes) sejam conscientes de que a configuração atual de seu nível ou modalidade de ensino e seu campo disciplinar, aquele que lhes proporciona sua identidade como professores, é o resultado de um longo processo de construção social e cultural cuja duração excede sua experiência pessoal, temporal e profissionalmente limitada. (VIÑAO, 2012, p. 106)

Voltando ao trabalho de Alves (2012), retomemos suas considerações acerca das múltiplas formas de subjetivação do tempo. A autora alerta para os tempos consolidados e internalizados na relação com a cultura escolar e as novas formas de relação com o tempo, aceleradas intensamente pelas tecnologias da informação e comunicação. Não se trata de simplesmente modificar as práticas procurando aproveitar o potencial dessas tecnologias, sem qualquer reflexão de natureza crítica. Essas tecnologias trouxeram uma relação com o tempo marcada pela fragmentação, que são apropriadas pelo individualismo, pelo consumismo acrítico e pela possibilidade de moldar comportamentos. Conhecer a história da educação e da educação matemática não teria o objetivo de disponibilizar as lições do passado, já que hoje essa concepção talvez não seja valorizada como o foi em outros momentos. A ideia principal estaria 136

História da Educação Matemática e formação de professores: aproximações possíveis


em oferecer aos professores ferramentas para aguçar sua percepção do presente e auxiliar nas reflexões sobre o futuro. Toda essa argumentação, dirigida para a relação do educador com o passado da educação, vale indubitavelmente para a formação do professor que ensina Matemática e deve ser relacionada a uma característica própria da Matemática como disciplina escolar: a de “ferramenta de segregação intelectual que se utiliza como o mecanismo de seleção tanto dentro do âmbito escolar quanto nos setores produtivos” (FARFÁN MÁRQUEZ; SIMÓN RAMOS, 2018). Nossa disciplina, priorizada historicamente nos planos de educação escolar, nunca deixou de ser filtro para seleção, classificação e eliminação das pessoas. Mais: considera-se que a Matemática tem o poder de revelar e avaliar o mérito individual e evidencia-se essa faceta quando se procura justificar politicamente seu papel de destaque nos currículos. Mais recentemente, tem sido posto em destaque o suposto caráter não doutrinário ou não ideológico da Matemática atribuído à disciplina por alguns segmentos da sociedade brasileira, de forma que, na conjuntura atual, tende a crescer a já antiga proeminência. Todavia, uma expectativa realista é que também serão privilegiadas as abordagens “antigas” centradas no conteúdo, e pouco serão considerados os resultados das pesquisas do campo da Educação Matemática desenvolvidas nos últimos 30 anos. Como escreve Miguel (2018, p. 309-310), em referência à recente reforma brasileira do Ensino Médio, a matriz do liberalismo meritocrático – e vale a pena lembrar a constituição conjunta de processos de escolarização, meritocracia e Matemática estudada por Silva (2013) – tem agora um formato neoliberal, que “não é senão um catecismo cientificista, mercadológico, produtivista, concorrencial, predatório, neocolonizador, racista e excludente, orientado para a realização de uma avassaladora doutrinação de massas”. Ainda conforme Miguel (2018, p. 310), a religião imperialista, fundamentalista, secular e belicista do neoliberalismo afirma-se como neutra, imparcial, apartidária, laica e irreligiosa, e é fácil notar que essas características estão muito próximas das atribuídas usualmente à Matemática tanto como disciplina escolar quanto como campo científico. Nesse contexto, situa-se, também, a proposição do projeto Escola Sem Partido, “um movimento conservador que busca mobilizar princípios religiosos, a defesa da família em moldes tradicionais e a oposição a partidos de A história da Educação Matemática nos cursos de formação de professores

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esquerda e de origem popular” (MACEDO, 2017, p. 509). A mesma autora estuda as articulações desse projeto defendido por grupos religiosos conservadores, principalmente igrejas neopentecostais e o movimento católico de renovação carismática, com o neoliberalismo (MACEDO, 2018). Argumenta que a ideia de uniformizar currículos escolares faz parte de uma reação racista, sexista, discriminatória dos grupos sociais minoritários às poucas conquistas desses grupos nos últimos anos. A incorporação da Escola Sem Partido à educação brasileira configura-se como um retrocesso inaceitável quando levamos em consideração as diretrizes e as legislações estabelecidas no final do século XX e nos últimos anos do presente século, que conduziram a mudanças e avanços nem tão grandes assim. No momento da escrita deste texto, apesar de ter sido considerado inconstitucional, esse projeto continuava a ser discutido nos órgãos legislativos de estados e municípios brasileiros, atestando a existência de muitos adeptos de uma proposta completamente antidemocrática33. Ademais, a educação escolar continua a ser objeto de outras propostas que ameaçam a democracia, tais como a educação domiciliar34. É oportuna a reflexão de Cury (2019, p. 6, grifo do autor): A escolaridade traz consigo o campo da convivência. Convivência que reabre uma nova tensão: os diferentes se encontram em um espaço comum a fim de conhecerem e praticarem “as regras do jogo”. Os diferentes se encontram para que haja um reconhecimento recíproco da igualdade, da igualdade essencial entre todos os seres humanos. Os diferentes se encontram para, em base de igualdade, reconhecer e respeitar as diferenças. É nesse ir e vir de conhecimento comum, de aprendizado das regras do jogo, da consciência da igualdade e do reconhecimento do outro como igual e diferente que se efetiva a “dignidade da pessoa humana”, princípio de nossa Constituição.

33 “O movimento Escola sem Partido defende que apenas a família e a religião podem educar, e os professores devem se restringir a instruir os alunos com o único objetivo de qualificá-los para o trabalho. Tal assertiva qualifica o projeto como uma iniciativa que busca destruir o caráter educacional da escola e da sala de aula como espaço de debate e aprendizado para a vida” (PENNA, 2018, p. 111). 34

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Em abril de 2019, o poder executivo encaminhou à Câmara dos Deputados, via Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, o projeto n. 2401/2019, que se fundamenta no direito de os pais escolherem o ensino pela família ou pela oferta escolar pública ou privada (CURY, 2019).

História da Educação Matemática e formação de professores: aproximações possíveis


Nesse cenário, discutimos a defesa da presença, na formação docente, da História da Educação Matemática, que não oferece “receitas, respostas e soluções práticas de aplicação imediata aos problemas cotidianos do professor na sala de aula”, mas pode contribuir com “propostas e abordagens que obrigam a refletir, a pensar, que minam os alicerces do saber-poder em que se baseia o trabalho docente em uma área ou campo determinados” (VIÑAO, 2012, p. 106), e pode oferecer, ainda, uma compreensão crítica da história da profissão docente ao professor de Matemática. Nesse contexto de retrocesso obscurantista, cabe, porém, situarmo-nos quanto aos esforços recentes no sentido de incorporar a História da Educação Matemática à formação de professores, especialmente nos cursos de licenciatura. Procuramos, portanto, problematizar as possibilidades de inserção das propostas e produções do campo na formação de professores que ensinam Matemática e focalizamos algumas realizações da comunidade de pesquisadores brasileiros no sentido de incorporar a História da Educação Matemática à formação de professores.

Como a HEM tem sido inserida na formação de professores? Ao refletir sobre discussões ocorridas após a mesa-redonda “História da educação matemática na formação de professores”, realizada no III Enaphem, Garnica (2017, p. 28) considerou que, embora naquele evento a criação de uma disciplina específica de História da Educação Matemática tenha sido “majoritariamente defendida como opção para consolidar, de forma mais nítida, esse campo de pesquisa”, ele próprio não entendia que esse seria o único modo para se trabalhar o campo na formação de professores. Assim, realçou que existem outras possibilidades e que, mesmo que a implantação da disciplina seja possível e desejável em algumas circunstâncias institucionais, “apenas se tomados alguns cuidados, ela pode operar significativamente para a consolidação e divulgação do campo” (GARNICA, 2017, p. 29). Essas ideias, que compartilho com o autor, chamam a atenção para a possibilidade de se dissolverem as potencialidades da História da Educação Matemática na formação de professores se alguns pressupostos não forem garantidos.

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Entre eles, é fundamental que, no caso de ser efetivamente institucionalizada curricularmente, a disciplina seja regida pela diversidade e pela pluralidade, precisamente porque, no campo da História da Educação Matemática, existe uma enorme variedade de temas, referenciais, metodologias e estilos de elaboração textual. Além da diversificação quanto a muitos aspectos, seria importante “promover um contato mais ativo do aluno com as questões da história, ou seja, usar, na disciplina, metodologias e formas de avaliação também diferenciadas e plurais” (GARNICA, 2017, p. 31). Essas considerações nortearam os comentários apresentados a seguir em relação aos dois capítulos do livro História da Educação Matemática e Formação de Professores (DASSIE; COSTA, 2018), referente ao III Enaphem. Um deles, “A disciplina História da Educação Matemática na Formação de Professores: experiências praticadas ou em andamento” (MENDES; OLIVEIRA; BÚRIGO; COSTA, 2018), traz uma síntese de trabalhos concluídos ou em andamento relacionados a uma abordagem disciplinar da História da Educação Matemática nos cursos de licenciatura das universidades federais de Juiz de Fora (UFJF), de Santa Catarina (UFSC), do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Rio Grande do Norte (UFRN). Nessas instituições, percebemos padrões diferentes de institucionalização disciplinar da História da Educação Matemática. Na UFRN, o texto comenta “a implantação e o desenvolvimento de uma disciplina sobre história da educação matemática” (MENDES et al., 2018, p. 88) a partir da reformulação do projeto pedagógico do curso de licenciatura da universidade realizada no início dos anos 2000. Esse projeto registra, na matriz curricular do curso, a presença, também, de uma disciplina de História da Matemática, o que atesta uma separação entre os dois campos. A lista de 10 temas investigados na disciplina História da Educação Matemática apresentada em Mendes et al. (2018, p. 89) é composta por seis tópicos gerais e quatro relativos ao Brasil. No curso da UFJF, a disciplina História da Matemática, que já existia desde a década de 1980, passou a ter uma configuração distinta da referente à “trajetória histórica da construção da Matemática como um campo científico” (Idem, p. 92), com uma separação em dois momentos: no primeiro, a caracterização é a anterior, reservando-se ao segundo tópicos referentes ao percurso da matemática escolar, sobretudo no Brasil. Assim, a história da educação matemática passou a

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História da Educação Matemática e formação de professores: aproximações possíveis


integrar o curso de licenciatura da UFJF por meio de uma inserção no interior da disciplina mais antiga, a História da Matemática. Na UFSC e na UFRGS, como na UFRN, já vem tendo lugar a oferta de uma disciplina específica denominada História da Educação Matemática. No caso dos dois estados do sul, as seções correspondentes do texto que comentamos descrevem brevemente reformulações curriculares dos cursos que acabaram levando à criação da disciplina. Observa-se que, para a licenciatura do Rio Grande do Sul, o texto acentua sua entrada na matriz curricular como uma possibilidade entre outras inovações a serem incorporadas na reforma do currículo e como um prolongamento de experiências anteriores desenvolvidas no âmbito do mestrado profissional em Ensino de Matemática oferecido pela instituição a partir de 2014. O texto salienta que a criação da disciplina não foi antecedida por um amplo debate acerca de suas finalidades e evidencia que sua implantação, muito recente (desde o primeiro semestre de 2017), está diretamente relacionada à presença de três professoras pesquisadoras do campo no corpo docente da licenciatura e a experiências desenvolvidas no Mestrado Profissional em Ensino de Matemática da UFRGS. É importante frisar que foram, sobretudo, os subsídios oferecidos pela pós-graduação que conduziram à aprovação da proposta da disciplina no grupo maior de docentes que se responsabilizou pela mudança curricular na licenciatura. A disciplina História da Educação Matemática na licenciatura da UFRGS que, no momento da escrita deste texto registra seu quarto oferecimento, é discutida detalhadamente mais adiante, neste texto, com algumas referências ao contexto político brasileiro a partir de 2015. Em Santa Catarina, a situação é diferente, no sentido de a seção do capítulo dedicada à experiência da UFSC assinalar que a proposta de implementação de uma disciplina presencial optativa com carga de 72 horas-aula foi precedida de muitos debates pelo Núcleo Docente Estruturante (NDE) dos cursos de licenciatura e bacharelado em Matemática. A primeira oferta da disciplina também ocorreu no primeiro semestre de 2017. Não me deterei na apresentação de uma síntese das atividades realizadas na disciplina História da Educação Matemática nas quatro licenciaturas abordadas, tendo em vista a necessidade de contemplar também outros aspectos35. 35

Os leitores interessados poderão conhecer detalhes acerca dos conteúdos e metodologias que vêm sendo usados em Mendes, Oliveira, Búrigo e Costa (2018).

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O que salta aos olhos é a diversidade de abordagens, bibliografias e natureza, nas quatro universidades, das atividades da disciplina, que ora parecem mais próximas, ora se afiguram como mais distanciadas da perspectiva de uma história pedagogicamente vetorizada, conforme a proposição de Miguel e Miorim (2004), fortalecida pelas considerações de Garnica (2017). Essa visão decorre, evidentemente, da leitura que faço dos relatos referentes ao enfoque disciplinar da história da educação matemática na UFJF, na UFRN, na UFRGS e na UFSC. Ao contemplar essa primeira forma de inserção da História da Educação Matemática na formação de professores, particularmente nas licenciaturas, creio que é oportuno estabelecer relações entre os casos em que ela ocorre, independentemente de pensarmos nas especificidades das quatro instituições recém-focalizadas, e uma das importantes considerações de Viñao (2012) acerca da presença da história das disciplinas na formação de professores. O autor chama a atenção para a formação docente como um campo em que necessariamente têm que trabalhar e colaborar pesquisadores e formadores originários de campos disciplinares já constituídos, “cujos colegas veem a história das disciplinas como um novo campo competidor na hora de ocupar o espaço acadêmico, necessariamente limitado, da formação de professores” (VIÑAO, 2012, p. 109). Seguramente podemos pensar sobre isso no que concerne aos cursos de licenciatura em Matemática no Brasil, que têm corpos docentes extremamente diversificados. Estão usualmente presentes nesses conjuntos de professores: matemáticos de diferentes áreas de pesquisa, docentes da área de Educação também dedicados à investigação de campos variados, e pesquisadores em Educação Matemática, cujos trabalhos vêm se fragmentando em um espectro de tendências que parece crescer cada vez mais. Não há qualquer dúvida de que as diferentes proporções com que cada categoria se distribui nas instituições formadoras estão ligadas à presença mais forte ou mais fraca ou mesmo à ausência de determinada frente de investigação e atuação em Educação Matemática entre os membros de cada corpo docente. Diversos exemplos parecem corroborar que a presença da História da Educação Matemática como disciplina nos cursos de licenciatura, assim como de outras disciplinas baseadas em outros focos da Educação ou da Educação Matemática, “depende da existência ou não, em uma determinada instituição formadora, de uma pessoa ou grupo de pessoas que investiguem nesse campo, bem como de seu peso ou grau de influência na instituição” (VIÑAO, 2012, p. 142

História da Educação Matemática e formação de professores: aproximações possíveis


109). Esse primeiro tipo de inserção da História da Educação Matemática está, também, indubitavelmente atrelado ao percurso de cada instituição ao longo do tempo, a uma maior ou menor proeminência da pesquisa em Matemática nela; às relações estabelecidas acadêmica e administrativamente entre as modalidades de licenciatura e bacharelado em Matemática, quando existe a segunda dessas modalidades; às relações entre os docentes de diferentes áreas; às interlocuções entre os professores da Educação e os inseridos na Matemática ou na Educação Matemática, entre muitos outros fatores que interferem nas disputas em torno da necessariamente limitada matriz curricular dos cursos. Voltemos o olhar agora para a segunda possibilidade de participação da História da Educação Matemática na formação inicial de professores, representada pelo capítulo 4 do livro referente ao III Enaphem. O cerne desse capítulo é constituído pela descrição e pela análise de quatro casos, apresentados por Luzia Aparecida de Souza, Diogo Franco Rios e Heloisa da Silva, que atuam, respectivamente na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), na Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e na Universidade Estadual Paulista (Unesp) – campus de Rio Claro, como práticas não disciplinares ligadas à História da Educação Matemática. Essas práticas são, segundo os autores, caracterizadas por ter como objetivo o desenvolvimento da historicidade dos participantes, esta última vista como o caráter do histórico, que implica “a necessidade de compreender algo, o outro e a si mesmo como produtores de histórias/produções históricas, ou seja, algo impossível de ser compreendido sem considerar as condições que possibilitam sua própria produção” (SOUZA; RIOS; SILVA, 2018, p. 148). Dos quatro casos estudados, três se relacionam a práticas desenvolvidas entre estudantes de cursos de licenciatura em Matemática no âmbito do Programa Pibid-Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência, do Ministério da Educação, que envolve conjuntamente professores universitários, docentes da Educação Básica e estudantes de licenciatura. O capítulo relata detalhadamente atividades dos bolsistas que se sintonizam com o despertar de uma sensibilidade histórica entre os diversos participantes, destacando-se, entre essas atividades, o trabalho desenvolvido em comunidades escolares específicas, como a Escola Estadual Professor Marciano de Toledo Piza, em Rio Claro, no estado de São Paulo, e o Colégio Municipal Pelotense e o Instituto Estadual de Educação Assis Brasil em Pelotas, no Rio Grande do A história da Educação Matemática nos cursos de formação de professores

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Sul. Nessas duas situações, a coleta e a organização de documentos de diversos tipos, constituintes da memória das instituições, que poderão ser usados em muitas investigações futuras em História da Educação Matemática, são apenas um dos aspectos que contribuem/contribuíram para a formação dos futuros professores no que diz respeito à conscientização da historicidade pessoal dos sujeitos e da historicidade das instituições, mobilizando e problematizando a história em processos formativos. Em que pesem instabilidades verificadas mais recentemente na oferta e na gestão de bolsas do Pibid e dificuldades em alcançar objetivos formulados inicialmente, nota-se que há um balanço positivo do que se fez. Um dos resultados foi despertar o interesse dos estudantes pela pesquisa em História da Educação Matemática, inclusive na pós-graduação stricto sensu. Além disso, os coordenadores dessas propostas incorporaram resultados das experiências a suas produções acadêmicas, o que, sem dúvida, é outro aspecto positivo. Ainda que apresentem diversidade em seu desenvolvimento, advindas das condições locais e institucionais, das preferências e das circunstâncias pessoais dos professores responsáveis, as práticas não disciplinares comentadas no trabalho de Souza, Rios e Silva (2018) mostram um ponto comum: a realização de propostas pedagogicamente vetorizadas, na linguagem de Miguel e Miorim (2004), ou de uma abordagem ativa, conforme a expressão de Garnica (2017), que me parecem avançar em uma direção mais relevante do que a de simplesmente investir na formação de futuros pesquisadores. Como sublinha Garnica (2017), a maior parte dos licenciandos não prosseguirá na pesquisa nesse campo específico, de modo que as tramas da pesquisa não devem ser protagonistas na participação da História da Educação Matemática na formação de professores, em práticas disciplinares ou não disciplinares. Antes de prosseguir, creio que vale a pena comentar que a conquista de um espaço como o Pibid para a realização de práticas não disciplinares de História da Educação Matemática, bem como de outros espaços em que tais práticas podem se efetivar, depende também da presença, da disponibilidade e do peso de pesquisadores nos corpos docentes das instituições. Cabe lembrar que todos os espaços são disputados pelos professores dos cursos, não somente as disciplinas. Ao terminar esta parte, devo reforçar que minha posição não é absoluta em relação a um ou outro tipo de inserção da História da Educação Matemática 144

História da Educação Matemática e formação de professores: aproximações possíveis


na formação de professores, pois avalio que ambas podem oferecer contribuições positivas. Assim, ao comentar os dois capítulos do livro, minha intenção foi apresentar ao leitor uma amostra do que tem sido realizado por pesquisadores de nossa comunidade e enfatizar o meu convite especial à leitura desses textos. Penso que eles oferecem subsídios fundamentais para a efetivação da presença do nosso campo na formação docente. Para terminar, discorro sobre algumas ideias quanto a possíveis avanços nas contribuições da História da Educação Matemática na formação de professores que ensinam Matemática, tomando como ponto de partida a conscientização geral quanto ao retrocesso educacional indesejado que vivenciamos de maneira destacada na atualidade. Podemos avançar no sentido de a HEM contribuir para a formação de professores? Nas pesquisas em que tenho investido e nos trabalhos de meus orientandos, uma temática em relação ao passado da educação matemática escolar que tem me chamado a atenção é a dos processos de exclusão e de inclusão de diversos grupos sociais. Estou certa que já há pesquisas em relação a esses processos, mas penso que um investimento maior em temas circunscritos ao tema e claramente relacionados com o preconceito e a discriminação poderia representar uma contribuição do nosso campo a ser usada de modo proveitoso na formação de professores, em práticas disciplinares ou não disciplinares. Assim, faço referência, por exemplo, à perspectiva de gênero, lembrando que há um estereótipo que enxerga a Matemática como uma área de domínio masculino que interfere consideravelmente nas carreiras e nos destinos das meninas (FARFÁN MÁRQUEZ; SIMÓN RAMOS, 2018) e que esse estereótipo é apenas um resultado de construções histórico-culturais. Apesar de as mulheres representarem uma minoria nas carreiras científicas das ciências exatas, sabemos que o magistério em Matemática se tornou um domínio feminino e não apenas em nosso país. Muitos estudos em História da Educação se voltam para o tema da profissão de professora, e podem contribuir significativamente para que nos debrucemos sobre esse tema quanto ao ensino da Matemática. Louro (1994, 1995) se refere à emergência do conceito de gênero para indicar a construção social e histórica de sujeitos femininos e masculinos, “buscando acentuar o caráter social das distinções baseadas no sexo” (LOURO, 1995, p. 103). O conceito é uma ferramenta teórica potencialmente fértil particularmente para a educação e a história da educação, que não apenas pode A história da Educação Matemática nos cursos de formação de professores

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provocar novas questões, mas produzir novas respostas para antigas questões, “além de colocar como ativos e visíveis sujeitos que usualmente têm estado escondidos nas análises mais tradicionais” (LOURO, 1994, p. 33). Existem aspectos especialmente adequados às investigações históricas sobre mulheres e educação matemática, vendo-se o gênero como uma categoria dinâmica, em construção e passível de transformação, e considerando-se que ele tem história, isto é, que o feminino e o masculino se transformam histórica e socialmente. Um elemento fundamental a ser levado em conta quando se quer trabalhar na perspectiva de gênero está na proposta de Scott (1995) comentada por Louro (1995): a historiadora estadunidense se posiciona em direção oposta à de destacar a história das mulheres, defendendo o trabalho com o conceito de gênero no sentido de observar as relações entre homens e mulheres, em vez de se buscar construir um novo gueto. Nas palavras de Scott (1995, p. 75), “o termo ‘gênero’ é também utilizado para sugerir que qualquer informação sobre as mulheres é necessariamente informação sobre os homens, que um implica o estudo do outro”. Outras categorias, como classe socioeconômica e etnia, também me parecem raramente contempladas nas investigações do campo da História da Educação Matemática, e precisam ser focalizadas de forma articulada com o gênero para a construção de conhecimentos diversos que possam participar da formação de professores que ensinam Matemática. A vertente geral dos processos de inclusão ou exclusão referidos à educação matemática escolar abrange um campo que vem crescendo entre nós – o focalizado no GT-13 da SBEM-Sociedade Brasileira de Educação Matemática, Diferença, Inclusão e Educação Matemática, instituído em 2013, que apresentou um número grande de trabalhos no Seminário Internacional de Pesquisa em Educação Matemática realizado em 2018. Mais estudos históricos nessa vertente seriam muito bem-vindos e representariam um aporte importante para o campo da História da Educação Matemática a ser incorporado à formação docente, em espaços a serem conquistados, espaços de resistência e mobilização a serem alimentados de forma especialmente consistente e articulada nos dias atuais.

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História da Educação Matemática e formação de professores: aproximações possíveis


Interrogações sobre o passado e o presente: aprendendo com a História da Educação Matemática As contribuições da História da Educação Matemática para a formação de professores têm sido tema recorrente dos Encontros Nacionais de Pesquisa em História da Educação Matemática (Enaphem). Para que estudar História da Educação Matemática? Os pesquisadores da área convergem no reconhecimento de que o estudo do passado só faz sentido se articulado com a reflexão sobre o presente (GARNICA, 2014; MATOS, 2018; VALENTE, 2013, 2014). Mas, quais são as possibilidades de essas articulações serem construídas por ou com estudantes em vias de se constituírem como professores? Desde o III Enaphem, realizado em São Mateus, em 2016, explicitaram-se visões diferentes acerca da oportunidade da institucionalização da História da Educação Matemática pela criação de uma disciplina, nos cursos de Licenciatura em Matemática. A discussão foi retomada em mesa-redonda no IV Enaphem e em outros eventos, como o XIII Seminário Nacional de História da Matemática, realizado em abril de 2019, em Fortaleza. No livro resultante do III Enaphem, dois capítulos foram dedicados à reflexão sobre a contribuição da História da Educação Matemática para a formação de licenciandos a partir de experiências disciplinares e não disciplinares, relacionadas a projetos de pesquisa, extensão ou ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) (MENDES; OLIVEIRA; BÚRIGO; COSTA, 2018; SOUZA; RIOS; SILVA, 2018). Ainda em 2017, foi publicado na revista Cadernos de História da Educação, da Universidade Federal de Uberlândia, um dossiê de artigos, organizado por Wagner Valente, tratando de experiências de ensino da História da Educação Matemática em cursos de Licenciatura. Neste texto, dando prosseguimento à minha participação em mesa-redonda do IV Enaphem, discuto algumas dessas possibilidades a partir de registros de aulas e atividades realizadas na disciplina de História da Educação Matemática, do curso de Licenciatura em Matemática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), instituída por reforma curricular aprovada em 2016 e implementada desde 2017. Práticas curriculares, como argumentam Alves e Oliveira (2002), são necessariamente complexas, contraditórias e densas em imprevisibilidades. O A história da Educação Matemática nos cursos de formação de professores

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texto que segue apresenta, inicialmente, o contexto de institucionalização da disciplina na UFRGS e as linhas gerais segundo as quais foi construído o plano de curso. A dinâmica das aulas é organizada em torno de exercícios de estudo de documentos do passado e de registros de memória, articulados à leitura e à discussão de textos produzidos pela historiografia. A discussão aqui proposta, contudo, não está centrada no planejamento, mas em fragmentos do cotidiano das aulas da disciplina, quando as reflexões tomaram, frequentemente, rumos inesperados pela professora. O contexto de produção deste texto é de ameaça à autonomia das universidades e de pressão para a padronização dos cursos de Licenciatura, em adequação à Base Nacional Curricular Comum (BNCC). Nesse quadro, estão em risco não apenas as inovações curriculares introduzidas desde 2016, mas duas décadas de experimentações e avanços na construção de currículos dos cursos de formação de professores, nas universidades, desde a aprovação da Lei n.º 9.394/96. Essa instabilidade acentua a importância de aprendermos com as experimentações em curso, não para tomar este ou aquele caso como modelo a ser seguido nas demais instituições, mas para construirmos repertórios de relatos e de avaliações de inovações curriculares que possam inspirar outras tantas.

História da Educação Matemática como uma necessidade da Educação Matemática A História da Educação Matemática é tratada, por alguns pesquisadores, como um ramo da História da Matemática. Essa visão se explica, sobretudo, pela trajetória de configuração do campo: eventos e publicações de História da Matemática foram os espaços que alguns pioneiros da temática, nos anos 1990, encontraram para divulgar e discutir seus trabalhos; disciplinas de História da Matemática, nos cursos de Licenciatura, também têm se constituído em espaços de debate e formação em História da Educação Matemática. Valente (2014) participa de uma vertente que considera a produção de um conhecimento histórico sobre a educação matemática como uma especificidade da História e, em especial, da História da Educação. Entretanto, são os educadores matemáticos que se interessam pelo estudo histórico da educação

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matemática. Daí a necessidade de os educadores matemáticos aprenderem com os historiadores o ofício de produzir história. Matos (2018, p. 14) argumenta que a História da Educação Matemática é, sobretudo, uma necessidade do campo da Educação Matemática, constituído a partir dos anos 1960: “a identidade do campo educação matemática está incompleta sem o conhecimento dos problemas do ensino e da aprendizagem no passado”. E completa: “um saber filiado nas ciências sociais não pode deixar de estabelecer pontos de contacto com as suas origens, tornando mais sustentadas as visões do presente. Apenas com esse conhecimento podemos vislumbrar como as coisas são e porque são assim e não de outra forma”. Sem necessariamente aderir a um dos pontos de vista elencados, podemos reconhecer que a História da Educação Matemática tem se constituído como prática de investigação empreendida por educadores matemáticos. São os educadores matemáticos que se interessam pela história da disciplina e que formulam perguntas e conjecturas, buscam e constituem fontes, interrogam e confrontam documentos. Como advogam Matos (2018) e Valente (2008, 2013), a compreensão dos processos de constituição da matemática escolar é um componente da identidade dos educadores matemáticos. Do mesmo modo, considero que, quando propomos a inclusão da História da Educação Matemática nos currículos das Licenciaturas, o fazemos como educadores matemáticos ou como formadores de professores que ensinam Matemática. Assim se deu no caso da UFRGS quando, em 2016, em meio a um processo mais amplo de reformulação curricular, o grupo de professores engajado na discussão do currículo optou por constituir uma sequência de disciplinas de iniciação às leituras e às discussões no campo da Educação Matemática, substituindo e ampliando aquelas ofertadas até então. As novas disciplinas Educação Matemática e Docência I e II, bem como a disciplina de História de Educação Matemática, foram atribuídas aos docentes do Departamento de Matemática Pura e Aplicada (DMPA), no Instituto de Matemática e Estatística, enquanto a disciplina de Educação Matemática e Docência III foi assumida como encargo dos docentes do Departamento de Ensino e Currículo (DEC), na Faculdade de Educação. A alteração decidida em 2016 inscreve-se em um movimento de longa duração, desencadeado a partir dos anos 1990, de construção de um currículo de Licenciatura com identidade própria, orientado desde o início para a A história da Educação Matemática nos cursos de formação de professores

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formação do professor que ensina Matemática na Educação Básica. Em reformas anteriores, foram criadas disciplinas de formação matemática exclusivas da Licenciatura, possibilitando o tratamento de tópicos da Matemática Elementar em uma perspectiva mais avançada, mas assemelhada àquela desejável para o Ensino Fundamental e o Ensino Médio; disciplinas de Laboratório de EnsinoAprendizagem foram incluídas, permitindo a vivência do planejamento, da implementação e da prática de ensino desde o terceiro semestre de curso, e preparando os estágios; disciplina de Pesquisa em Educação Matemática foi instituída em 2004, como preparação e referência para a produção do Trabalho de Conclusão do Curso, culminância e cruzamento de diversas aprendizagens. Nesse percurso, foi decisiva a colaboração entre professores do DMPA e do DEC identificados com o campo da Educação Matemática; dessa colaboração, e com apoio de outros colegas, surgiu também o Mestrado em Ensino de Matemática, iniciado em 2005. As reformas foram construídas também em acordo com os demais cursos de Licenciatura da Universidade, congregados pela Coordenação das Licenciaturas; dentre as disciplinas compartilhadas com as licenciaturas de Biologia, Geografia, História e muitas outras, estão a Organização da Educação no Brasil e a História da Educação, que compõem o primeiro semestre do curso de Licenciatura em Matemática. Enfim, como argumentamos em trabalho anterior, a institucionalização da História da Educação Matemática na UFRGS compõe uma tendência à valorização da Educação Matemática e da dimensão reflexiva da constituição do professor de Matemática na formação inicial (BÚRIGO; DALCIN; FISCHER, 2017). Esse processo de reconfiguração curricular, carregado de peculiaridades, não pode ser compreendido se não considerarmos o contexto de fortalecimento do movimento da Educação Matemática no Brasil, desde os anos 1980, a autonomia didática conferida às universidades pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n.º 9.394/96), que extinguiu os currículos mínimos (JUNQUEIRA; MANRIQUE, 2015), e as Diretrizes Nacionais Curriculares emanadas pelo Conselho Nacional de Educação em 2002 (Resolução CNE/ CP n.º 1/2002), que incorporaram proposições dos formadores de professores e, inclusive, dos educadores matemáticos representados pela Sociedade Brasileira de Educação Matemática (SBEM) (BÚRIGO, 2019). Nesse cenário, foram possíveis, nas universidades do país – e mais tarde também nos 150

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Institutos Federais –, constituições de currículos de Licenciatura que valorizam a formação do professor que ensina Matemática, associada à pesquisa em Educação Matemática. Pensando em uma perspectiva ampliada, podemos pensar que o próprio movimento da História da Educação Matemática e pela sua institucionalização emerge em um contexto de fortalecimento da pesquisa e da comunidade de educadores matemáticos.

Tanto a estudar: primeiras escolhas Se, até os anos 1980, a História da Educação pouco se interessava pelas disciplinas escolares, a virada da História Cultural, com seu interesse pelas práticas e pelas variações, abre um caudal de possibilidades de constituição de fontes e de objetos de estudo. O movimento da História da Educação Matemática, que emerge ao final dos anos 1990 no Brasil, com a constituição de grupos de pesquisa, sessões em eventos e eventos próprios, de âmbito nacional e internacional, tem sido responsável por variada, continuada e crescente produção acadêmica (GOMES, 2016a; MIGUEL, 2014a; VALENTE, 2014, 2016). Em meio a esse amplo leque de temas, enfoques e publicações a serem tomados como referências, que escolhas fundamentaram a organização da disciplina de História da Educação Matemática na UFRGS? Considerando que se trata de uma disciplina obrigatória para todos os licenciandos, não seria o caso de incluir os estudantes em um determinado projeto de pesquisa ou de extensão, mas de promover uma iniciação ao campo da História da Educação Matemática. Em consonância com o fio condutor do curso de Licenciatura, a opção foi a de enfocar a educação matemática escolar. A súmula da disciplina foi definida em 2016 como: “Problemas, procedimentos e fontes da pesquisa em História da Educação Matemática. Finalidades, práticas e movimentos de inovação da Matemática Escolar. A profissionalização dos professores de Matemática no Brasil”. O detalhamento dos objetivos e do conteúdo programático foi atribuído às professoras do DMPA engajadas em pesquisa na área: Elisabete Zardo Búrigo e Maria Cecília Bueno Fischer. Os objetivos foram definidos, inicialmente, como: Debater sobre as políticas curriculares e as práticas historicamente construídas relacionadas ao ensino de matemática escolar, articulando passado e presente.

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Estudar o processo de profissionalização dos professores que ensinam Matemática e a constituição do campo da Educação Matemática. Apresentar e discutir o campo de investigação História da Educação Matemática, debatendo as interfaces com os campos da História da Educação, da História das Disciplinas Escolares e da Educação Matemática. Reconhecer a História da Educação Matemática como campo de investigação e estudar o processo de constituição de fontes históricas a partir de documentos escritos, oralidade e imagens. (UFRGS, 2017)

Os recortes temporal e de abrangência espacial, geográfica ou política foram definidos a partir dessas escolhas iniciais. O primeiro marco temporal foi definido como a segunda metade do século XIX, considerando que, no Rio Grande do Sul e, mais particularmente, na região de Porto Alegre, onde está situada a UFRGS, é nesse período que se multiplicam as aulas de primeiras letras e são instaladas a Escola Normal de Porto Alegre e as primeiras escolas secundárias (SCHNEIDER, 1993). Também é esse o marco temporal mais antigo tomado por trabalhos que estudam a matemática escolar na região (HAWAT; GIL, 2015; SILVA, 2016). Na outra direção, o recorte temporal se estende até o tempo presente, marcado, de um lado, pelas demandas de implementação da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), pelas avaliações em larga escala e pelo descompromisso governamental com as metas estabelecidas pelo Plano Nacional de Educação; e, de outro lado, pela multiplicação de eventos, pesquisas e iniciativas diversas, por parte de professores e educadores matemáticos, que experimentam e debatem modos e sentidos diversos de ensinar e aprender matemática na escola. Quanto à abrangência geográfica e política, a escolha tem sido a de priorizar o olhar sobre a legislação e as práticas locais de ensinar e estudar Aritmética e Geometria e, mais tarde, Matemática, na escola elementar ou primária, e no ensino secundário. Entretanto, não é possível compreender as prescrições, as práticas, nem mesmo a produção e a circulação local de livros didáticos e de revistas pedagógicas, sem um olhar mais estendido a outras regiões do país e a conexões variadas. Daí, temos a necessidade de variar as escalas, considerando movimentações de âmbito nacional e mesmo internacional, como no caso do método intuitivo ou da Matemática Moderna. Mas, como dar conta de todas

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História da Educação Matemática e formação de professores: aproximações possíveis


essas dimensões, em apenas um semestre letivo, e em uma disciplina de introdução à História da Educação Matemática? O caminho empreendido nos quatro primeiros semestres de oferta do curso (2017/1, 2018/2, 2019/1 e 2019/2) tem sido o de entremear o estudo de documentos produzidos no passado – passíveis de serem tomados como fontes – com a discussão de interpretações e narrativas produzidas pelos historiadores. Comentários são registrados na plataforma Moodle e compartilhados em seminários semanais. A abordagem dos temas segue, aproximadamente, a ordem da cronologia dos eventos e documentos (UFRGS, 2017). A professora atua como mediadora dos seminários e, eventualmente, apresenta breves exposições de introdução a um determinado tema. Ao final da disciplina, cada estudante produz um texto mais elaborado, com um dentre os seguintes formatos: um portfolio, trazendo reflexões sobre algumas atividades e sobre o conjunto da disciplina; ou um artigo, consistindo em exercício de iniciação à pesquisa historiográfica, envolvendo a escolha de um tema, a construção de questões, a constituição e a interpretação de fontes. Os textos de estudantes aqui citados foram extraídos dos portfolios.

Minerando fontes O exame de programas, manuais escolares, livros didáticos, provas, cadernos escolares, bem como a escuta de depoimentos registrados em textos, áudio e/ou vídeos, podem ser disparadores de provocações. O que diz o documento ou o depoimento? Por quem e como foi produzido? Para quem? Para quê? Por que foi guardado ou registrado? Os documentos tomados como fontes são buscados em diferentes coleções. A Biblioteca do Instituto de Matemática e Estatística da UFRGS tem um amplo acervo de livros didáticos, publicados desde os anos 1940, herdados da antiga Faculdade de Filosofia, muitos deles com uma dedicatória em primeira página, ou rabiscos dispersos, anotados pelos doadores, antigos professores ou alunos do curso de Matemática. Passear entre as estantes, observar livros de diferentes tamanhos, encadernações, tipos de impressão, folhear as páginas, observando a disposição dos textos, fórmulas, ilustrações e exercícios, sentindo a porosidade do papel, cheirando as marcas do tempo, é um preâmbulo interessante à análise de trechos ou capítulos, diferente das buscas na A história da Educação Matemática nos cursos de formação de professores

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internet às quais os estudantes estão habituados. Revistas impressas, dedicadas ao ensino de matemática, acondicionadas em caixas recortadas, ou anais de eventos encadernados, doados pelos professores que deles participaram, em tempos passados, são outros exemplos de materiais que podem ser encontrados e consultados na Biblioteca, próxima da sala de aula. A coleção intitulada História da Educação Matemática, do Repositório Institucional da Universidade Federal de Santa Catarina36, também contém variado acervo de digitalizações de programas, livros, manuais, revistas, cadernos e provas escolares, de diferentes níveis de ensino, épocas e regiões do país. Convencidos do valor da coleção, permanentemente enriquecida, os estudantes contribuem para a recolha e a digitalização de materiais. Um terceiro repositório de fontes é constituído por vídeos, áudios e documentos disponibilizados pelo Grupo de Pesquisa de História da Educação Matemática (GHEMAT-Sp) no Brasil, na página do Grupo37 e em coleções de DVDs. Ainda, temos os depoimentos orais coletados pelos próprios estudantes, sobre memórias de alunos e professores, a partir de roteiro de entrevista construído em sala de aula. Perceber a variedade de fontes possíveis é uma das aprendizagens esperadas na disciplina. Nas palavras de um estudante, ao final do semestre letivo: Após algumas atividades de mineração e pesquisa na biblioteca avançamos entre “eras” da educação matemática. [...] Acredito que essa disciplina nos ensinou a pesquisar, “minerar” por diamantes e perceber que todas as fontes históricas podem ser ótimas fontes desde que sejam bem exploradas. (M., 2019/1)

Refletir sobre a autoria dos textos, as intenções com que foram produzidos, a importância que a eles foi atribuída na época de sua produção e circulação, também é um objetivo do estudo da História da Educação Matemática. O distanciamento em relação ao passado permite aos licenciandos perceber, com mais nitidez, que a educação escolar é um espaço marcado por conflitos 36 Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/1769 . Acesso em: 10 out. 2019. 37

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Disponível em: http://www.ghemat.com.br/paginas/about_ghemat.htm . Acesso em: 10 out. 2019.

História da Educação Matemática e formação de professores: aproximações possíveis


e por desigualdades. Nos documentos de maior circulação, encontramos as vozes das autoridades e dos especialistas; nos documentos de circulação restrita, como diários de classe, provas e cadernos, encontramos a autoria de professores e alunos. As próximas subseções reúnem comentários sobre os modos como as vozes e os silêncios dos diferentes sujeitos da educação matemática escolar do passado são interpretados pelos estudantes.

As vozes eloquentes das autoridades e dos especialistas São muitos os caminhos possíveis para nos aproximarmos da educação escolar do passado. Das aulas nas escolas isoladas de Porto Alegre, no início do século XX, temos pistas por meio de atas de exames e de distribuição de livros didáticos, analisadas por Hawat (2015). Por meio delas, sabemos da solenidade dos exames finais; da prioridade atribuída ao ensino de Aritmética; da participação do poder público na seleção e na circulação dos manuais. Sabemos, também, que a maioria dos alunos não participava dos exames finais, porque não eram considerados aptos; não progrediam para além da primeira classe do ensino elementar, em que aprendiam a contar, somar e subtrair, com a ajuda de tabuadas. Os programas vigentes na República Velha, redigidos com a participação de Souza Lobo, catedrático da Escola Normal de Porto Alegre, recomendam o método intuitivo (RIO GRANDE DO SUL, 1897; 1899; 1910). Entretanto a Segunda Aritmética, publicada por Souza Lobo desde 1870 e distribuída aos alunos da segunda e terceira classe do ensino elementar, apresenta apenas regras a serem aplicadas na resolução de longas listas de exercícios. A partir de 1902, as escolas recebem também as Aritméticas de Antonio Trajano38. Pelo confronto entre exemplares dos dois livros, disponíveis na Biblioteca e no Repositório da UFSC, e pela leitura de textos como os de Oliveira e Mesquita (2015), os estudantes percebem que, já no início do século XX, circulam diferentes abordagens da Aritmética. Muitas interrogações surgem sobre a produção, a chancela governamental, e os usos de livros; leituras acerca do ensino secundário suscitam a conjectura de que o livro de Souza Lobo, muitas vezes reeditado, era organizado segundo a lógica de preparação para os exames: 38 Hawat (2015) esclarece que, durante sua pesquisa, não localizou uma referência direta sobre o título do livro de Trajano, distribuído às escolas isoladas de Porto Alegre. Poderia ter sido a Aritmetica Elementar Illustrada.

A história da Educação Matemática nos cursos de formação de professores

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Era um “status” positivo para um livro ter muitos exercícios, abaixo dos nomes de alguns dos livros minerados havia em destaque quantos exercícios continham. Percebemos que, para um ensino focado nos exames e em decorar, livros deveriam dar destaque para aquilo que deve ser decorado e ter uma grande quantidade de exercícios de fixação de cada algoritmo apresentado. (M., 2019/1)

Nos anos 1930, os programas do ensino primário, no Rio Grande do Sul, são reformulados em consonância com os preceitos escolanovistas dos métodos ativos, da valorização dos interesses e das vivências das crianças (RIO GRANDE DO SUL, 1957). O exame de livros didáticos publicados por autores riograndenses, nos anos 1950, mostra que coexistem traços das novas orientações, com provocações à reflexão e à descoberta por parte dos alunos, e persistências de um outro modelo, baseado na memorização e na aplicação de regras. A escola dos anos 1940 e 1950 era mais inclusiva do que aquela do início do século? Sim, se pensarmos na expansão do ensino seriado, com a multiplicação de grupos escolares, o aumento da frequência e da escolaridade média da população; ou se pensarmos na preocupação enunciada com as aprendizagens dos alunos. Entretanto, textos como os de Búrigo (2015) e Quadros (2006) e apontam que a seletividade era um componente da dinâmica de funcionamento da escola primária riograndense, sendo os alunos avaliados, ao final de cada ano, por provas padronizadas, elaboradas pelos ditos especialistas, ou técnicos do Centro de Pesquisas e Orientação Educacionais (CPOE). Ler, a partir dos documentos oficiais da época, que a Matemática era responsável pela maioria das reprovações, não surpreende os licenciandos; mas saber que, a partir dessas provas, as turmas eram organizadas segundo a classificação dos alunos em “fortes, médios e fracos”, provoca a indignação de muitos e fornece algumas pistas explicativas para a ideia ainda hoje disseminada de que há alunos mais ou menos dotados para a Matemática. Nos anos 2000, a Matemática já não é, do mesmo modo como no passado, responsável por decidir sobre a duração dos percursos de escolarização, e o acesso ao ensino médio. Entretanto, a lógica da classificação persiste por meio dos sistemas de avaliação em larga escala. O exame de itens da Prova Brasil e da prova de letramento matemático do Programme for International

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Student Assessment (PISA) é um suporte para a reflexão sobre os modos como o cotidiano escolar não é considerado nessas avaliações. O tempo presente impõe, enfim, a discussão sobre a Base Nacional Curricular Comum (BNCC), sua produção e implementação. Conforme o relato de um licenciando: Diferente do que aconteceu na elaboração da BNCC, foi possível realizar uma discussão em conjunto sobre o que se poderia esperar da educação brasileira no futuro. De forma geral, a turma pareceu simpatizar com os pontos levantados por Bigode (2019) e também se mostrou bem aflita sobre a BNCC. Não é de se admirar a preocupação existente na turma, pois como futuros profissionais de educação, é o seu futuro que está sendo discutido, e as projeções não são muito entusiasmantes. Embora as perspectivas não sejam muito animadoras, poder discutir essas medidas é uma tarefa importante de ser feita para poder se preparar para o que pode vir pela. Frente. (L., 2019/1)

No trecho que segue, o mesmo estudante apresenta um comentário sobre a BNCC em que estão presentes reflexões construídas ao longo do curso de Licenciatura: Uma conversa comum que se tem ao conversar com colegas, com professores ou com qualquer pessoa envolvida no planejamento da aula é que, ao se usar alguma tecnologia durante a aula, não se deve usá-la sem nenhum sentido ou objetivo em mente, apenas com o fim de poder dizer que se está “fazendo algo diferente”. [...] No entanto, a BNCC não dá orientações sobre o uso de tecnologias em sala de aula. Ela é extremamente limitada no que diz respeito a esse quesito, de modo que, como destacado no texto, a ideia que fica é que a BNCC orienta a usar tecnologias apenas pelo propósito de poder dizer que as está usando, sem nenhum objetivo final em vista. (L., 2019/1)

As vozes e os gestos imaginados dos professores Nos registros do passado, encontramos, aqui e ali, a autoria dos professores.

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Nos diários de classe, recolhidos e analisados por Alvarez (2004) e por Heidt (2019), encontramos indícios sobre os conteúdos ensinados em duas escolas diferentes, respectivamente ao tempo da Reforma Francisco Campos, decretada em 1931, e do movimento da Matemática Moderna, transcorrido nos anos 1960 e 1970. Identificando-se, parcialmente, com os professores que preencheram aqueles diários, os licenciandos observam que os registros poderiam corresponder aos programas e aos planos vigentes, sem necessariamente refletir as práticas de sala de aula. Mecanismos de controle como o “caderno comprovante”, mencionado em memórias dos anos 1950, podem ser considerados, mesmo, indicativos de uma reiterada suspeição das autoridades em relação à ação docente dos professores (BÚRIGO, 2015). Nas provas do curso complementar do Instituto Júlio de Castilhos, recolhidas por Esperança (2012), encontramos questões que demandam intrincados malabarismos algébricos ou a reprodução de extensas demonstrações. Por esses documentos, e pelos resultados da aplicação das provas, vemos que aqueles professores, muitos deles, também professores da Escola de Engenharia de Porto Alegre, participaram da configuração da seletividade do curso secundário. Nas palavras de um licenciando: É possível observar a importância que é dada para o cálculo diferencial, que aparece em todas provas. Sei que para o curso de Farmácia tal assunto é importante e necessário, mas me pergunto sobre relevância para os futuros alunos dos cursos de Medicina e Odontologia, tendo em vista que hoje não é necessário que aprendam Cálculo para entrar no ensino superior. Sobre as notas, nenhum aluno gabarita alguma das provas e apenas na última não há alunos com notas abaixo de 30, lembrando que as notas são de 0 a 100. Portanto, não eram fáceis, parece que os professores montavam as provas querendo que os alunos fossem mal e tinham prazer com isso. (J., 2019/1)

Nos documentos mais solenes, os professores são frequentemente invisíveis. Brilham as autoridades, os especialistas. Nesses casos, frequentemente os licenciandos fazem referência aos professores imaginados, atribuindo-lhes um lugar na cena. Assim, por exemplo, ao se referir ao texto de Hawat e Gil (2015) sobre as avaliações nas escolas isoladas de Porto Alegre, nos primeiros anos do século XX, uma estudante comenta:

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Nos chamou atenção como as avaliações tinham objetivo de tornar públicas as rotinas escolares, incentivando a vigilância do governo e da população em relação às práticas da escola. [...] Podemos refletir aqui que essas avaliações eram usadas não apenas para avaliar os alunos, mas também a professora. (V., 2019/1)

Nos cadernos escolares, marcas de correção evocam o papel do professor. Um caderno preenchido a caneta tinteiro, quase sem rasuras, contendo definições e demonstrações de teoremas, também suscita a questão sobre o papel do professor e dos alunos na sala de aula. Os textos teriam sido elaborados pelo professor ou copiados de um livro e reproduzidos no quadro-negro? E os exercícios, teriam sido resolvidos em um caderno de rascunho ou as soluções foram dadas pelo professor e então copiadas? Ao confrontar cadernos escolares do curso ginasial com as Portarias n.º 966 e n.º 1.045/1951 do Ministério da Educação e Cultura, os estudantes podem perceber que, em muitas escolas, o programa elaborado pela Congregação do Colégio Pedro II – “mínimo”, mas obrigatório – era apenas parcialmente cumprido, sendo comum a prática de postergar o estudo da Geometria para o final do ano letivo ou, ainda, o uso de cadernos separados para a Álgebra e Geometria, configurando um estudo compartimentado das duas disciplinas, diferente do que previa a legislação. Mas os cadernos não indicam só ausências – também podem surpreender pela presença, por exemplo, do estudo de funções na quarta série ginasial, um tópico não previsto pelo programa vigente (Figura 1).

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Figura 1 – Exercício de traçado de gráfico de função

Fonte: Zardo (1953, p. 13)

Prescrições e práticas escolares não coincidem, mesmo em tempos de padronização do ensino. Por outro lado, também podemos observar, nos cadernos, os modos pelos quais os professores interpretam os programas vigentes. Nos anos 1940 e 1950, o programa de ensino do curso primário determinava que os problemas aritméticos fossem elaborados em sala de aula, pelos professores ou pelos próprios alunos. Pretendia-se abolir a prática, ainda comum, de copiar dos livros existentes – como o de Souza Lobo, ainda reeditado – longas listas de problemas assemelhados. No caderno de Juvenal Nunes (1954), coletado por um estudante da disciplina, encontramos exemplos de aplicação dessa orientação (ROSA; SILVA; BÚRIGO, 2017). Os enunciados dos problemas, com referências variadas ao uniforme escolar, às festas juninas ou ao cultivo de frutíferas e hortaliças, em uma escola primária da área rural, evocam a autoria da professora e suscitam interrogações sobre suas possíveis fontes de inspiração – as aprendizagens do Curso Normal, os livros, as revistas pedagógicas. O professor, ainda que anônimo, se faz presente no caderno escolar, pela escolha dos conteúdos e de sua ordenação, pelo vocabulário e pelas representações adotadas, e até mesmo pelos seus eventuais erros: 160

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Outra parte do caderno que destaco é uma tentativa de demonstração da igualdade entre ângulos opostos pelo vértice. [...] concluímos que ele estava incorreto. Além disso, discutimos as possíveis causas de o registro ter sido feito dessa maneira e entre elas a hipótese que acreditamos ser a mais possível é acerca da formação e da trajetória da professora. (I., 2018/2)

A comparação entre as abordagens propostas pelos livros didáticos também pode ensejar reflexões sobre o lugar atribuído ao professor: No livro Aritmética e Geometria nota-se um cuidado em definir soma e parcela e explicar a regra da adição. Em contrapartida, no segundo livro [Curso Moderno de Matemática para a Escola Elementar] não há explicações ou definições, apenas exercícios com imagens em formas geométricas. Há também diversos exercícios de completar lacunas e descobrir regras. O objetivo consiste em proporcionar que o aluno seja um generalizador e descobrir de ideias. Com esse livro os professores teriam um material para adaptar à realidade de suas classes. (K., 2019/1)

Ao escutarem depoimentos de professores engajados no movimento da Matemática Moderna, e ao cruzarem essa escuta com a leitura de livros didáticos e de anais de eventos realizados à época, os estudantes também percebem a possibilidade do protagonismo dos professores na proposição de mudanças. No primeiro semestre de 2019, a professora Esther Pillar Grossi, presidente do GEEMPA (originalmente Grupo de Estudos de Ensino de Matemática de Porto Alegre), participou de uma roda de conversa com os estudantes. Pelo depoimento, souberam que, na avaliação do GEEMPA, os alunos não aprendiam mais com a Matemática Moderna. A consternação de alguns foi reparada pelo testemunho de Esther sobre a continuidade das pesquisas sobre aprendizagem, em que ela segue engajada, e pelo convite que ela formulou a que os estudantes também se engajassem. O protagonismo dos professores e a possibilidade de se construirem caminhos para a educação matemática escolar pela pesquisa e pelo debate também foram temas de exercício de exame dos anais do I Encontro Nacional de Educação Matemática (I ENEM), realizado em 1987, precedendo a criação da Sociedade Brasileira de Educação Matemática (SBEM).

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As escolas de nossos avós e bisavós Imaginar aulas em espaços improvisados, em que não há quadro negro, nem carteiras, em que alunos de diferentes idades realizam tarefas variadas, rabiscando em pedaços de papel amassado ou numa pedra de ardósia, ou recitam a tabuada sob o comando do professor, é um desafio para os licenciandos. Também causa estranhamento, entre estudantes nascidos no século XXI, a brevidade do percurso escolar mais comum até os anos 1960. Analisar provas do exame de admissão ao Ginásio Estadual de São Paulo39, aplicadas em diferentes épocas, é um exercício que aproxima os licenciandos daqueles alunos que tentavam prosseguir estudos. Nos idos de 1931, encontramos a seguinte questão: “De uma peça de fazenda, 2/5 foram inutilizados num incêndio; venderam-se os 4/11 da peça, e ficaram 6,30 mts. Qual era o comprimento da peça?”. Logo de início, os estudantes percebem que a resolução não é imediata: é preciso observar que 6,30 metros de fazenda correspondem a 1 – 2/5 – 4/11 = 13/55 da peça. A partir daí, sugerem uma resolução utilizando a regra de três. Mas essa não é a solução do único aluno que acertou a questão: usando o método da redução à unidade, ele divide 6,30 por 13 e obtém o comprimento de 1/55 da peça; depois, multiplica por 55 e obtém o resultado da peça inteira. Os erros cometidos pelos demais atestam que, mesmo sendo um problema assemelhado a muitos outros, constantes em livros didáticos como a já mencionada Segunda Aritmética, de Souza Lobo, sua resolução não era trivial para alunos que mal haviam concluído a escola primária. A discussão de resoluções como essa põe em destaque o contraste entre as finalidades e as práticas da escola primária, centrada na resolução de problemas considerados do cotidiano, usando apenas estratégias da Aritmética, e a elitizada escola secundária, na qual o estudante seria iniciado à Álgebra. Na turma de 2019/2, a discussão também suscitou a questão sobre as motivações dos alunos para fazerem o exame de admissão, e sua preparação para as provas. Entrevistar pessoas que frequentaram a escola até os anos 1960 – tempo em que a escolaridade inicial consistia no curso primário e no curso ginasial, de acesso regulado por um exame de admissão – é um dos exercícios propostos aos licenciandos. No primeiro semestre de 2019, os roteiros de entrevistas 39 Coleção de CDs “Os Exames de Admissão ao Ginásio 1931 A 1969”, produzida pelo GHEMAT-SP, pela digitalização de documentos do Arquivo da Escola Estadual de São Paulo.

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foram construídos coletivamente, a partir de questões formuladas por cada estudante e de leituras sobre História Oral. A proposta era não entrevistar professores de Matemática, evitando que memórias da docência se confundissem com as reminiscências de alunos; apenas um estudante optou por entrevistar um professor do Instituto de Matemática e Estatística (SIBEMBERG; BÚRIGO, 2019). A maioria optou por entrevistar seus familiares – avós, pais, tios – ou pessoas conhecidas de suas famílias. Caminhar quilômetros para chegar à escola, sem a companhia de um adulto, improvisar cadernos com papel de embrulho, abandonar os estudos para trabalhar, cuidar dos filhos ou dos irmãos, ou porque não havia curso ginasial nas proximidades, foram traços comuns a vários depoimentos. Alguns também registraram castigos físicos, como “dar de régua” ou beliscões. Uma das entrevistadas relatou que ia para a escola com fome, em um tempo em que não havia merenda escolar; outra, registrando a precariedade dos materiais escolares, enfatizou que “não faltava comida em casa”. O compartilhamento dos relatos foi tocante, possibilitando que os licenciandos percebessem que a precariedade da escola primária e o elitismo do secundário marcaram as trajetórias de familiares e pessoas muito próximas. As operações aritméticas, com seus intrincados algoritmos e o recurso frequente à tabuada da multiplicação, foram o conteúdo mais lembrado pelos entrevistados. Alguns lembraram-se das frações. O sentido dessas aprendizagens é lembrado de modos diversos: Ele relata que ia para o colégio “porque tinha que estudar” [...], que não viam muita aplicabilidade naqueles conteúdos, mas como todos iam, eles entendiam que tinham que ir também e iam sem questionar. (V., 2019/1) Pude perceber que naquela época a matemática se baseava praticamente nas quatro operações fundamentais, entretanto era de muita utilidade para os alunos no futuro, pois era o que usariam no dia a dia, como o caso da minha avó que conseguiu administrar seu armazém. (R., 2019/1)

Poucos, dentre os entrevistados, cursaram o ginásio. Uma das entrevistadas lembra-se de um “quadro cheio de equações”. É interessante a reflexão da

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licencianda, futura professora, sobre a representação de uma escola que, na voz da entrevistada, teria sido mais séria e eficaz: [...] em vários momentos da nossa conversa ela fala que naquela época os alunos realmente aprendiam a matéria. Isso me faz pensar se ela acredita que atualmente os alunos não aprendem de fato os conteúdos vistos na escola, e isso é um pensamento muito comum hoje em dia, as pessoas acreditam mesmo que o ensino de anos atrás era melhor que o de hoje. E acredito que as pessoas tenham essa impressão justamente porque o formato do ensino mudou desde os anos 1960 e as pessoas já não sabem mais verdadeiramente como é a escola dos dias de hoje. [...] Para ela o professor era sério e solene, hoje em dia os professores também são sérios, mas sem dúvida existe uma maior preocupação com o aluno de fato. (P., 2019/1)

Ao final do semestre, todos destacaram a realização da entrevista como uma das tarefas mais importantes que haviam realizado no semestre, sem deixar de registrar a ocorrência de imprecisões e até mesmo incoerências nos depoimentos, pois “a memória se mistura e se confunde com outras memórias do passado” (N., 2019/1).

Iniciação à pesquisa Valente (2008, 2010) argumenta que o estudo do passado é necessário para identificarmos, nas práticas correntes da educação matemática escolar, as heranças dos nossos antepassados, como a ênfase nos exercícios a serem realizados pelos alunos, ou as preocupações de articular o ensino com a vida cotidiana. Matos (2018) observa que o estudo do passado nos ajuda não apenas a identificar as permanências, mas também a valorizar as mudanças. Interrogar representações que glorificam ou menosprezam as práticas do passado, depreciando ou mistificando as realizações do presente, é uma segunda motivação para o estudo da História da Educação Matemática, em torno da qual convergem diferentes autores. Valente (2013, p. 28) argumenta que a apropriação da história permite ao professor “se relacionar de modo menos fantasioso e mais científico com esse passado”. Uma terceira motivação para o estudo da História da Educação Matemática seria a de construirmos uma memória coletiva da escola e da 164

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matemática escolar, impregnada, mas não soterrada pelas nossas reminiscências pessoais, como propõe Nóvoa (2012). Articulada a essa motivação, estaria também a preocupação em sensibilizar sujeitos que atuam nas escolas e futuros professores para a importância de constituição e preservação de acervos escolares. Gomes (2016a, p. 100), citando a historiadora Claudia Alves, argumenta ainda que “a história contribui para que escapemos das certezas fáceis e nos apropriemos do direito à incerteza”. Em que medida é possível contemplar cada uma dessas finalidades em um semestre letivo de iniciação à História da Educação Matemática? A produção de interrogações, como propõe Gomes (2016a), é, certamente, crucial em cursos de Licenciatura: mais do que eventuais lições que possamos aprender com o estudo de usos, produções, eventos e movimentações de outros tempos, a produção de estranhamentos, dúvidas, questões de investigação é constitutiva da formação do professor como pesquisador da Educação Matemática e de sua própria prática. Como mencionamos anteriormente, o caminho construído para a introdução à História da Educação Matemática, no caso da Licenciatura em Matemática da UFRGS, tem sido o de articular a leitura de textos com exercícios de constituição e análise de fontes. A leitura e a discussão de resultados de pesquisa são relevantes para a sensibilização dos estudantes em relação à complexidade do fazer historiográfico, à relevância das questões que são formuladas pelo historiador, à necessidade de compreender os contextos, de criticar e de cruzar documentos. A seleção de textos para leitura implica necessariamente priorizar uma ou algumas narrativas em detrimento de outras. Mas o texto historiográfico não é tomado como a palavra final sobre o tema abordado: outras leituras são recomendadas, e a referência textual é sempre complementada pelo exercício de crítica às fontes, em alguns casos incluindo as próprias fontes discutidas no texto lido. O exercício contribui para que o olhar seja refinado, e vice-versa: os estudantes frequentemente percebem nuances que não foram comentadas pelo historiador. Ao dialogarem com os colegas ou com o texto já publicado, os estudantes percebem também que uma pesquisa, mesmo quando é empreendida por um pesquisador experiente, não esgota as possibilidades de leitura de um conjunto de fontes. A história da Educação Matemática nos cursos de formação de professores

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Desenvolver criticidade em relação aos documentos tratados como fontes para a história da educação matemática escolar, considerando que são produzidos, difundidos e preservados ou não por diferentes sujeitos, em diferentes contextos e com intenções nem sempre explicitadas, tem sido um dos caminhos pelos quais tentamos contribuir para a construção de novos olhares sobre o presente e sobre os discursos que apresentam índices e receitas para as mazelas da educação escolar. Perceber que ideias circulam de modos diversos em diferentes documentos, livros, revistas pedagógicas, e a importância de estudar as práticas, suas variações, singularidades, retratadas em cadernos, provas, memórias de professores e alunos, também é importante para que os estudantes reconheçam que o estudo de um tema ou de um período não se esgota pelo estudo desse ou daquele conjunto de documentos. Identificar contradições, imprecisões, visões distintas nos textos historiográficos, também ajuda a compreender que as narrativas já produzidas são, sempre, construções, a serem nuançadas, aprofundadas, revisadas. Enfim, o objetivo principal proposto para o estudo da História da Educação Matemática não é tomar contato com esta ou aquela visão definitiva sobre o que aconteceu e como, mas perceber a riqueza de possibilidades de investigação sobre a educação escolar dos tempos passados. Entendemos que estamos caminhando nessa direção quando os estudantes registram que foram surpreendidos ao confrontarem textos e fontes. Quando, sensibilizados pela importância de guardar e compartilhar documentos escolares, os estudantes recolhem cadernos de familiares que enriquecerão o repertório de fontes à disposição das próximas turmas. Quando, ao final da disciplina, comentam que gostariam de estudar outros livros didáticos, escutar outras memórias da escola, ou debater mais sobre a BNCC. Quando propõem a organização de um curso de extensão, para que os debates sobre a história da educação matemática escolar transbordem a Universidade, alcançando as escolas de educação básica. Quando escolhem tomar, como objeto de seu Trabalho de Conclusão de Curso, a história de sua própria escola ou de seus professores. E assim por diante...

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Resistindo ao esquecimento Neste final de 2019, em que se completam três anos de vigência da Emenda Constitucional n. 95/2016, que suspende a aplicação dos percentuais mínimos de gastos com a educação pública, comprometendo o funcionamento das instituições federais de ensino, e na iminência da aprovação de diretrizes curriculares que uniformizam a formação de professores, em adequação à Base Nacional Curricular Comum (BNCC), assistimos ao estrangulamento das possibilidades de preservação da autonomia e da diversidade curricular conquistadas nos anos 1990. Seguirmos estudando a História da Educação Matemática em um curso de Licenciatura, neste cenário, é de certo modo um gesto de resistência aos recrudescimentos autoritários e homogeneizadores. Aqueles que estudam o passado sabem que esquecimentos são produzidos. Documentar a experiência também é um gesto de resistência contra o esquecimento. Agradeço aos organizadores do IV Enaphem e aos editores do livro por essa possibilidade. Agradeço ainda aos alunos das turmas de História da Educação Matemática pelos bons momentos de estudo e debate e, especialmente, aos estudantes Ísis Sieverdt Arce, João Vitor Garcez Ferreira, Juliana Paim Rocha, Lucas Vieira Lima, Marco Rodrigues Vargas, Maurício de Oliveira Maciel Junior, Paloma Both Silva, Rodrigo Miliszewski Mette e Victoria Correa Alves, que autorizaram transcrições de excertos de suas escritas.

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Temas e problematizações: uma leitura das mesasredondas submetidas ao IV ENAPHEM Antonio Vicente Marafioti Garnica40

São dois os tipos de mesas-redondas que ocorrem nos Encontros Nacionais de Pesquisa em História da Educação Matemática. As “mesas-redondas convidadas” são formadas por pesquisadores que, chamados pela organização do evento, têm a função de debater aspectos relacionados diretamente ao tema geral que guia o encontro. Já as “mesas- redondas submetidas” são formadas por três pesquisadores que se reúnem e propõem à organização do evento conduzir uma discussão acerca de um tema específico. Os três textos que compõem as mesas dessa modalidade têm, por certo, uma unidade, e tanto a qualidade desses textos, separadamente, quanto essa unidade entre eles, são os parâmetros para a avaliação da submissão. Essas mesas submetidas têm se tornado usual nos Enaphems desde sua segunda edição, a de Bauru (SP), realizada no ano de 2011, e uma análise de cada uma das edições do Encontro, desde então, mostra a importância dessa estratégia que não só distribui mais 40

Universidade Estadual Paulista. Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática. UNESP. E-mail: vicente.garnica@unesp.br

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democraticamente o protagonismo de pesquisadores – via de regra concentrado nas atividades desenvolvidas por convidados – como realça a vitalidade de múltiplos olhares, vindos tanto de pesquisadores consagrados quanto de pesquisadores com carreiras mais recentes, nos estudos realizados no campo da História da Educação Matemática no Brasil. Comprovam claramente que o conhecimento é, sempre, uma construção coletiva e em perspectiva, efetivada por olhares que, mesmo sendo múltiplos e distintos, convergem na homogeneidade da tarefa que é compreender aspectos do movimento de ensinar e aprender Matemática no correr dos tempos. Tendo uma duração estendida em relação, por exemplo, às sessões orais de comunicação de pesquisa, as mesas submetidas possibilitam também uma discussão mais aprofundada de seu tema e, em seu conjunto, dão um panorama de alguns objetos e abordagens que têm marcado ou frequentado a produção mais recente dos pesquisadores ou são, digamos, inaugurais, isto é, foram recentemente introduzidos em algumas práticas de pesquisa. Na quarta edição do Enaphem, realizada em Campo Grande (MS), no ano de 2018, foram aprovadas sete “mesas-redondas submetidas”, envolvendo diretamente, portanto, 21 pesquisadores, e nelas foram apresentados temas variados de pesquisa que vão desde o ensino de Matemática em cursos técnicos e as atividades escolares específicas marcadas pelo saber fazer – os Trabalhos Manuais – em sua vinculação com o ensino e a aprendizagem de Geometria, passando por questões de fundo metodológico – como é o caso da História Oral praticada na pesquisa em História da Educação Matemática –, até uma abordagem teórica e procedimental sobre os repositórios digitais e acervos escolares, discussão essencial, pois vinculada à disponibilização de fontes historiográficas. Conceitos que mais recentemente começaram a circular nos trabalhos brasileiros inscritos no campo da História da Educação Matemática – como é o caso dos “saberes” e das ideias de expert e expertise – também transitaram pelo espaço dessas mesas submetidas. Os textos integrais que compuseram cada uma dessas atividades estão disponíveis nos Anais do evento, mas um breve comentário – que é assumidamente interpretativo, pois realizado pelo autor deste capítulo a partir da releitura dos textos e de seus

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resumos – sobre cada uma delas pode ser feito, complementando o material disponível nos Anais41.

A Educação Industrial no espaço da formação técnica A Comissão Brasileiro-Americana de Educação Industrial (CBAI) foi efetivamente implantada no ano de 1947, no Governo Gaspar Dutra, como resultado de uma parceria entre os governos brasileiro e americano que visava a promover a formação de mão de obra especializada rumo à intensificação da industrialização do País, vista como a principal – se não única – forma de ultrapassar o nível de subdesenvolvimento nacional. Ideais dessa natureza, buscando defender a necessidade de um mercado interno integrado e regulado por um Estado intervencionista, se impõem e se espalham já na Era Vargas (1930-1945), tendo o modelo estadunidense como guia. Segundo Amorim (2007, p. 155): A queda do Estado Novo não veio alterar tal situação. Se num primeiro momento o governo Gaspar Dutra rompia com a concepção varguista de nacionalismo econômico e intervencionismo, adotando o liberalismo econômico, logo tal política foi refutada, devido ao esgotamento das reservas a ao crescimento da dívida externa. Já a partir de 1947, adota-se um maior controle cambial e das importações, privilegiando-se alguns setores tais como a maquinaria, o que acabou beneficiando o setor industrial. [...] Ao mesmo tempo, redefinem-se as condições da dependência brasileira em relação aos E.U.A. Com o final da Segunda Grande Guerra e o advento da Guerra Fria, verifica-se uma mudança no processo de construção da hegemonia estadunidense junto aos países latino-americanos. O novo governo identificava-se com a defesa dos “valores ocidentais”, colocando-se claramente ao lado dos E.U.A. na polarização que se desenhava no mundo pós-guerra..

41 Os Anais do IV Enaphem podem ser integralmente acessados em https://periodicos. ufms.br/index.php/ENAPHEM/issue/view/498. Nas sessões de apresentação oral de trabalhos, por exemplo, há registros dos comentários de um pesquisador-organizador sobre o conjunto de trabalhos apresentados em cada sala, o que não ocorre em relação às mesas-redondas submetidas. No caso dessas mesas, estão disponíveis as íntegras dos três textos que as compuseram, e de cada um desses textos há um resumo. Não há, porém, um resumo unificado ou comentário para cada uma das sete mesas.

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O CBAI, eixo central em torno do qual transitam as três apresentações da mesa-redonda, cujo título é “Matemática no Ensino Industrial em tempos de CBAI”, foi responsável por capacitar profissionais, produzir materiais didáticos e organizar toda uma estrutura de ensino técnico, e os responsáveis por essa atividade do IV Enaphem discutem a centralidade da política educacional, promovida pela Comissão, particularmente, na Escola Industrial, de Florianópolis (SC), e na Escola Técnica, de Curitiba (PR). O CBAI é, sem dúvida, um episódio significativo no panorama da criação do ensino industrial que, por sua vez, se inscreve no campo dos estudos sobre o ensino técnico brasileiro. A escola técnica, com suas inúmeras modalidades, sofre a influência de distintos movimentos e segue apoiada em concepções das mais variadas, tendo, em decorrência, histórias diversas sobre sua criação e seu desenvolvimento, bem como sobre as influências estrangeiras que atuaram nesse cenário, elementos que certamente contaminam o ensino de Matemática praticado nessas instituições. Estudar o CBAI e essas duas escolas industriais é, por certo, parte essencial para a exploração dessa modalidade de formação – o ensino técnico – que só recentemente vem ocupando com maior ênfase os pesquisadores brasileiros que operam para o registro de histórias acerca do ensino no País. Até bem recentemente eram raros os estudos historiográficos sobre a formação técnica e as práticas de ensino de Matemática nessas instituições. Penso que dentre os primeiros estudos sobre esse tema, elaborados entre 2006 e 2007, está um ensaio relacionado ao estado do Espírito Santo42, seguido de um estudo sobre as escolas técnicas agrícolas no estado de São Paulo. Hoje esse universo é bem mais amplo, e temos investigações como essas, vinculadas à presença do CBAI, bem como, entre outras, pesquisas sobre as Faculdades de Tecnologia de São Paulo (as FATEC) e o Colégio Técnico da UFMG (o COLTEC-UFMG)43. A mesa-redonda submetida, portanto, marca a presença de um tema que até recentemente era pouco explorado, mas que já mostra vitalidade bem distinta da de um estágio embrionário, quando os ensaios e as abordagens são ainda muito frágeis, descontínuos e tímidos.

42

Cf., p.e., Martins-Salandim (2007) e Pinto (2006)..

43

Cf. p.e., Melillo (2018) e Prado (2018).

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Arquivos, Acervos, Repositórios: vivos, mortos e agonizantes Se os estudos históricos sobre o ensino técnico têm sido mais explorados recentemente – o que ocorre não só no campo da História da Educação Matemática, mas também no campo da História da Educação, campo este cuja anterioridade cronológica em relação àquele é óbvia – o mesmo não se dá quando vêm à cena os estudos sobre os acervos. Talvez uma atualização dessa discussão ocorra como nítido sinal dos tempos, já que, até um passado ainda recente, poderíamos apenas potencialmente (e não como experiência posta, “real”, cotidiana) falar sobre informação digital ou sobre uma “era das Humanidades Digitais”44, como fazem os pesquisadores, cujos textos compõem os registros da mesa-redonda submetida sob o título “Repositório de Conteúdo Digital (RCD): possibilidades, limites e desafios para as pesquisas em História da Educação Matemática”. Ainda assim, com ou sem as informatizações que são partes essenciais do debate proposto por essa mesa, é ainda bastante pertinente e atual a tematização dos acervos escolares ou pessoais – foco da mesa-redonda submetida cujo título é “Arquivos Escolares e Pessoais: desafios e possibilidades para a História da Educação Matemática”. Não é gratuitamente, portanto, que em ambas as atividades sejam discutidos “desafios e possibilidades” de forma tão marcante que esses mesmos dois vocábulos se repetem, inclusive, nos títulos de ambas as mesas. Não parece ser equivocado afirmar que desde muito se sabe que os acervos em que se encontram fontes para os estudos historiográficos são, em nosso país, com algumas raríssimas exceções, ou escassos e/ou malcuidados e/ou de acesso restrito/restritivo. Mais grave é ainda a situação dos acervos necessários aos estudos voltados ao mundo da Educação. Há artigos e livros em quantidade suficiente para não ser polêmica a afirmação de que os acervos escolares são criados sob a marca da precariedade e da urgência, bem como são 44 Usando a caracterização dessa expressão atribuída a Brett Bobley (da National Endowment for the Humanities, organização americana) e mobilizada na apresentação de Valente, na mesa-redonda relativa a este tema, as Humanidades Digitais definem a pesquisa que “incorpora a tecnologia computacional a estudos em humanidades, mas também aquela que usa as humanidades para estudar a tecnologia digital e sua influência na sociedade e na cultura. [...] Não se trata, segundo Bobley, de uma nova área do conhecimento, mas de uma gama de atividades que pode abranger o uso de fotografias aéreas por arqueólogos para escanear sítios, o desenvolvimento de técnicas de análise de dados que ajudam linguistas a estudar jornais antigos, o estudo da ética da tecnologia por filósofo, entre outros exemplos”.

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comuns os relatos sobre a extinção proposital ou o desmantelamento contínuo e incessante de conjuntos de fontes institucionais sobre o universo escolar45. As dificuldades relatadas, formal e/ou informalmente, tanto por pesquisadores iniciantes quanto por pesquisadores experientes sobre as vias-crucis para acessar fontes para suas pesquisas reforçam nossa compreensão sobre esse estado de coisas. O relato dos próprios pesquisadores que compuseram essas duas mesas- redondas – todos eles próximos a exemplos bem-sucedidos de criação e preservação de arquivos, mas nem por isso insensíveis aos desmandos de diretores e secretários que promovem insistentemente o descaso com a História – reforça nosso incômodo. Se, por exemplo, os relatos acerca do acervo físico do laboratório de Matemática do Instituto de Educação General Flores da Cunha, de Porto Alegre (RS) e do acervo pessoal Euclides Roxo (APER), bem como os relatos acerca dos Repositórios Digitais, todos eles disponíveis nos textos que compuseram as duas mesas-redondas submetidas das quais estamos tratando, nos dão certo alento – posto serem iniciativas bem-sucedidas que geraram e ainda geram trabalhos significativos para o campo da História da Educação Matemática – eles não deixam menos nítidos os entraves e as dificuldades impostos a esses empreendimentos que ainda constituem uma situação de exceção, sendo capitaneados por indivíduos ou grupos com pouco ou nenhum apoio contínuo das agências de fomento e mesmo das instituições que os acolhem. No que diz respeito aos acervos escolares, talvez alguns dos nossos problemas em relação ao acesso às fontes poderiam ser evitados ou minimizados se conseguíssemos, em retribuição, auxiliar os funcionários das escolas, discutindo com eles formas mais eficientes e atualizadas para organizar seus arquivos ativos a partir da nossa experiência com os arquivos escolares inativos. O compromisso do historiador com o espaço e os atores sobre os quais ele pesquisa não me parece, ainda, estar devidamente compreendido ou ser efetivamente exercitado por um número significativo de pesquisadores. Enquanto 45 São vários os relatos sobre a destruição de acervos pelas próprias instituições responsáveis por preservá-los. Ressalto, aqui, uma obra, em especial, que de modo muito claro dá conta de refletir sobre a extinção de arquivos e a proposta (em muitos casos decorrente do desejo de extinção) de criar imensos acervos virtuais, similares à biblioteca de Borges: trata-se da obra de Robert Darnton (DARNTON, 2010). O conhecido diálogo entre Umberto Eco e Carriere (ECO; CARRIERE, 2010) é também, segundo penso, excelente referência sobre esse tema. Esses dois trabalhos mostrarão que a problematização relacionada aos acervos é atualíssima, mesmo que, nesses casos, seus autores tratem de arquivos americanos e europeus.

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não firmarmos, massivamente, esse compromisso social com nossas escolas, mantém-se a conversa de surdos entre nós, pesquisadores, e elas, as escolas. Elas a conversarem com os vivos, em seus arquivos ativos, nós a tentarmos conversar com o que se tem chamado inconvenientemente de arquivo morto. Nisso certamente a digitalização dos acervos e as técnicas que vêm tanto do arquivismo quanto das tecnologias digitais têm papel preponderante a desempenhar, ainda mais se pensarmos que ações dessa natureza podem envolver não só funcionários, mas alunos e professores, dada a atualidade dessas práticas, o fascínio que elas exercem (ou poderiam exercer) e a pluralidade de meios técnicos hoje disponíveis. Tanto Valente quanto Costa (Enaphem, 2018), tratando das Humanidades Digitais, trazem como exemplo o Repositório de Conteúdo Digital da UFSC, criado e mantido pelo Grupo de Pesquisa de História da Educação Matemática no Brasil, atualmente GHEMAT-Brasil. Além de disponibilizar uma quantidade enorme de livros didáticos digitalizados, o acervo incorpora acervos pessoais, que Costa lista mais detalhadamente: “Reunidos em mais de 700 itens como cartas, certificados, programas de ensino, recortes de jornal, rascunhos de livros didáticos, o APER – Arquivo Pessoal Euclides Roxo foi um dos primeiros arquivos pessoais sistematizados pelo GHEMAT”, havendo também materiais de outros acervos pessoais, como o de Ubiratan D’Ambrosio, o de Scipione Di Perro Netto, o de Oswaldo Sangiorgi e, mais recentemente, o de Lucília Bechara Sanchez. Devem ser incluídas aqui, como exemplos, também aquelas iniciativas discutidas na mesa-redonda submetida, cujo tema são os arquivos escolares e pessoais, posto que todos os integrantes dessas duas mesas- redondas – à exceção de um pesquisador – são membros de um mesmo grupo de pesquisa. Esses exemplos mostram que o Repositório é um acervo do qual não se pode questionar a importância, seja pela iniciativa de preservação, seja pela possibilidade que abre para inúmeras pesquisas. Entretanto, nessas exposições todas, que ressaltam a importância da existência do acervo e da incorporação desses acervos ao mundo digitalizado (que sem dúvida amplia significativamente as perspectivas e as potencialidades de estudos e pesquisas) escapam duas discussões que considero vitais: a possibilidade de se implementar projetos conjuntos com repositórios e acervos disponíveis – já que o Repositório que nos chega como exemplo não é a única empreitada nesse sentido, no País, posto que todos os grupos de pesquisa Temas e problematizações: uma leitura das mesas-redondas submetidas...

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brasileiros no campo da História da Educação Matemática contam com acervos open access, embora em diferentes graus e estados de conservação, organização e informatização –; e as questões técnicas, tão comezinhas quanto vitais e usualmente impeditivas – para a criação e para manutenção desses acervos. O artigo de Dassie, que também compõe a mesa-redonda relativa aos Repositórios Institucionais, aborda questões de natureza, poderíamos dizer, mais amplas, pois relacionadas, por exemplo, à importância dos acervos para a criação e a consolidação da identidade de grupos de pesquisa, envolvendo na discussão outros grupos de pesquisa além do GHEMAT, já citado, e incorporando à problemática, inclusive, os periódicos de pesquisa, atualmente sujeitos às mais distintas formas de gerenciamento e controle, ainda que todas essas formas tenham tornado obrigatória a divulgação digital – não necessariamente em sistema de acesso aberto – de suas revistas. A diversidade de documentos abordada nos seis textos que compõem essas mesas-redondas, entretanto, ainda não escapa muito aos livros e outros textos escritos, sendo que, por exemplo, as fontes orais e iconográficas – cujas criação, disponibilização e manutenção exigem ações muito distintas –, à exceção de uma breve menção em um dos textos46, não são minimamente exploradas nessa discussão. A importância da preservação de materiais escolares – como carteiras, armários, mapas, quadros, apoios instrucionais vários (como sólidos geométricos, exames práticos de escolas industriais e de aulas de artes manuais) e antigos materiais de escritório – é, também, apenas incidentalmente trazida 46 Além das referências – incidentais e naturais – a fontes de naturezas diversas que compõem os Acervos Pessoais exemplificados, em seu texto Valente aponta a importância dessa variedade, vinculando-a aos estudos em História da Educação Matemática: “A pesquisa em história da educação matemática, desde os anos 1990, quando mais incisivamente surgiram estudos que se propuseram a trazer reflexões sobre o passado do ensino de matemática ao recente campo da Educação Matemática, pautaram-se por apropriações dos campos da História da Matemática, da História da Educação, da Filosofia da Educação, dentre outras searas disciplinares. Pouco a pouco, tais estudos foram alinhando-se aos estudos históricos em termos dos referenciais utilizados, marcadamente dando destaque à História Cultural. Sob essa rubrica generalizadora, as pesquisas em história da educação matemática privilegiaram tratamentos considerados qualitativos na interpretação dos documentos utilizados como fontes de pesquisa. Não raro, sejam esses documentos tidos como fontes orais ou como documentação textual, fotográfica etc. a abrangência e extensão dos dados de pesquisa mostraram-se restritas: um conjunto diminuto de depoentes; um, dois, três ou coleção de obras didáticas de um dado autor etc. Nesse contexto de investigação, os resultados obtidos tenderam a ligar-se diretamente à restrição dada pelas fontes e à sua quantidade, o que é algo evidente de se esperar. No mais, caberia a novos estudos definir outros contextos e grupos de novas fontes a serem exploradas para, em momento futuro, haver possibilidade de diálogo entre esses diferentes contextos sobre o tema tratado em cada monografia realizada”.

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à cena. Como preservá-los senão em parceria com iniciativas, por exemplo, da História da Educação que já conta com acervos relativos à cultura material escolar? Como tornar esses materiais, de algum modo, virtuais, de modo a incluí-los em projetos de digitalização? A rápida alteração dos suportes digitais, softwares e mesmo hardwares47, a problematização quanto às leis brasileiras que regem os direitos autorais, além das formas – mais e menos sofisticadas e dispendiosas – de higienização, organização e disponibilização desses tantos materiais de diferentes materialidades, também não foram um ponto central nas discussões. Certamente os pesquisadores enfrentaram questões relativas a esses temas e, de algum modo, as ultrapassaram. Há mesmo, em outros eventos e textos, referências a isso. Sabe-se, por exemplo, por algumas publicações, de um manual de preservação de acervos escritos que torna o cuidado com documentos antigos bastante exequível e barato (BAEZA, 2003). Tal manual é disponibilizado gratuitamente, de forma digital, inclusive, pelo Centro de Referência em Educação – CRE – Mário Covas, de São Paulo. Mesmo o árduo trabalho com acervos pessoais, desenvolvido pelo GHEMAT, bem como o Repositório mantido por esse grupo já foram intensa e detalhadamente tratados em outras ocasiões. Devemos considerar que duas ou três mesas-redondas são insuficientes para abordar todos os aspectos de um tema tão atual quanto importante e necessário. Isso nos mostra, mais uma vez, a potencialidade – e a possibilidade – de iniciativas conjuntas, sistemáticas, mais amplas e abrangentes, relacionadas à preservação, manutenção e divulgação de acervos. As iniciativas existentes, embora meritórias e significativas, ainda engatinham quando se trata de pensar e agir coletivamente, para compor os esforços dos vários grupos de pesquisa existentes. Não devemos esquecer, entretanto – e por fim –, que essas discussões sobre os acervos escolares e pessoais, digitalizados ou não, objeto dessas duas mesas-redondas em discussão, ocorreram num momento em que apenas se cogitava a situação política do País que hoje nos ataca frontalmente. A crueza e a violência de que os dispositivos e as agências oficiais têm se servido para desqualificar as Ciências, e mais enfaticamente as Ciências Humanas e Sociais, transformando tanto o ódio às minorias e as oposições quanto o revanchismo 47 Sobre esse tema, impossível não fazermos mais uma vez referência a Darnton (2010) e Eco e Carriere (2010).

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e os ressentimentos em políticas de Estado, não nos permitem vislumbrar muitas saídas em curto prazo. Criar e manter acervos, higienizar e digitalizar materiais, negociar copyrights e criar sistemas informatizados, por exemplo, exige mais do que boa vontade e bons projetos: exige financiamento das agências e compromisso não só dos pesquisadores, mas das instituições responsáveis pela pesquisa no País. As iniciativas de sucesso relatadas nessas duas mesas- redondas são, é claro, exemplos exemplares de possibilidades que precisam ser divulgados, mas dentre os desafios apontados pelos pesquisadores, nessas atividades, há que se incluir a criação de estratégias para transcender um quadro de negatividades que, embora estivesse se anunciando, ainda não estava em funcionamento pleno à época do IV Enaphem.

Narrativas (orais): exercícios metodológicos possíveis Ao propor a discussão de “Três propostas metodológicas de pesquisa com História Oral”, as autoras responsáveis por essa mesa-redonda submetida ao Enaphem enfocam mais centralmente a questão metodológica que, de certo modo, mostra-se também em outras mesas. Tomemos, por exemplo, as duas atividades das quais tratamos anteriormente, em que o tema central são os acervos pessoais e a criação e a manutenção de arquivos físicos ou virtuais. Não só é necessário um estudo de métodos voltados a criar esses acervos como também é fundamental conhecer procedimentos específicos para mantê-los. Pode-se, certamente, manter uma posição pragmática nesse sentido, reduzindo a um fazer meramente operacional ou procedimental as práticas de formar, manter e divulgar os materiais de cada arquivo. Essa redução da metodologia aos procedimentos de coleta, higienização, manutenção e disponibilização, entretanto, são insuficientes – a julgar pelas discussões feitas durante o Enaphem – para promover uma reflexão sobre o fazer historiográfico que certamente deve estar no panorama dos seus pesquisadores. Isso implica considerar, de forma fundamentada, o alcance, os limites e a potencialidade das práticas de preservação e disponibilização de fontes o que certamente, por sua vez, implica considerar uma acepção mais plena dos termos “metodologia” e “método”, qual seja: um conjunto de procedimentos bem fundamentados que

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visam não só permitir, mas também otimizar a compreensão sistemática sobre determinados temas e contextos. Se os textos que norteiam essas mesas relativas aos acervos, optando por problematizar questões menos teóricas – mas nem por isso menos centrais –, não se voltam enfática e especificamente à questão metodológica desse ponto de vista mais ampliado (ainda que o façam incidentalmente, por meio de relatos sobre experiências com arquivos), a mesa cujo tema é uma metodologia específica – a História Oral –, por sua vez, propondo uma discussão em que fundamentação filosófica e procedimentos estão vinculados, não problematiza a criação de “acervos orais”, tema importantíssimo e que envolve aspectos distintos daqueles que se mostram quando os acervos são constituídos para preservar fontes escritas. Essa ausência de tratamento a questões que envolvem os acervos orais é, portanto, uma lacuna sensível no conjunto dos textos que compuseram as três últimas mesas aqui consideradas – aquelas que tratam dos acervos e dos repositórios não incluem menção à necessidade de preservação de fontes que não as escritas; e a mesa que trata da História Oral – que, ressalve-se, não manifesta ter esse entre os seus objetivos – também não aborda essa questão. Note-se ainda que um “acervo oral” deve incluir não apenas gravações de áudios e vídeos, mas também fontes escritas que são ou transcrições e textualizações dos materiais orais disponíveis ou resultados de pesquisas que têm as fontes orais como ponto de partida ou de apoio. Assim, a discussão sobre a criação, a manutenção e a disponibilização de fontes orais engloba a discussão sobre os acervos de fontes escritas e vai além. A problematização quanto aos acervos orais48, entretanto, não está minimamente posta no que atualmente se tem produzido em História da Educação Matemática, e colocá-la, ao menos de forma embrionária, é essencial principalmente dado o estágio bastante avançado das pesquisas que, atualmente, se valem das narrativas – criadas com ou sem o uso da História Oral – em Educação Matemática e, de modo mais amplo, em Educação, na Literatura e nas Ciências Sociais. Ao chamar a História Oral para o debate, os textos relativos à mesa_ redonda cujo título é “Três propostas metodológicas de pesquisa com 48 Note-se que tratar de acervos orais, como faço aqui, é, também, uma redução, já que há fontes registradas em outros suportes – as fontes pictóricas ou, de modo geral, as fontes materiais (bordados, maquetes...) como os trabalhos de estudantes em aulas de Trabalhos Manuais, por exemplo – não foram mencionadas, se não acidentalmente, quando tratando do tema dos arquivos e repositórios.

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História Oral: diferentes caminhos analíticos” enfatizam, dessa metodologia, o momento de análise das fontes constituídas a partir de entrevistas. Um dos primeiros aspectos a ser ressaltado é a diversidade dos temas das pesquisas que as autoras tomam como norte para discutir os caminhos analíticos dos quais trata o título. Uma dessas investigações tem como foco o estudo dos Ginásios Vocacionais – uma experiência de ensino público implantada no estado de São Paulo nos anos de 1960, cuja vigência foi tão curta quanto inovadora. Pautados em outras estratégias educacionais da época – como, por exemplo, as escolas experimentais e alguns modelos estrangeiros para o ensino secundário – os Ginásios Vocacionais operavam com certa independência administrativa em relação às demais instituições paulistas de ensino secundário, e as Ciências Sociais desempenharam papel preponderante no modo como se articulavam as disciplinas e eram promovidos diálogos entre os diversos conteúdos escolares. É desse cenário didático que surge uma das propostas apresentadas nessa mesa-redonda do Enaphem: “a frisa do tempo”. Pensada como um “varal de eventos”, no qual eram anotadas continua e constantemente situações, momentos e aspectos essenciais do mundo socio-histórico abordado nas aulas, a frisa do tempo foi aproveitada pela autora do trabalho de doutorado aqui relatado como uma estratégia para analisar os vários depoimentos orais coletados por ela com ex-professores e administradores dos Vocacionais. O que se caracterizava, em boa medida, como um recurso pautado numa versão histórica hoje anacrônica – mas que, à época dessa experiência educacional se mostrava inovadora para a historiografia escolar – a “frisa do tempo”, ressignificada – pois subvertida – permite a criação de uma narrativa sobre a história dos Vocacionais a partir das perspectivas singulares dos atores que participaram efetivamente dessa experiência. A “frisa do tempo”, ao operar com narrativas criadas para essa pesquisa e narrativas disponíveis em outras pesquisas, ao mesmo tempo em que se consideram estudos e fontes documentais específicas, permitiu a criação de uma versão sobre o movimento dessas escolas secundárias da década de 1960, ressaltando a possibilidade de outras versões e, portanto, de outras frisas. Trata-se, assim, de uma iniciativa metodológica que redimensiona uma abordagem didática mobilizada na própria instituição cuja história é o tema da pesquisa em questão. A potencialidade das narrativas é o tema do segundo texto apresentado nessa mesa- redonda submetida, e a pesquisa a partir da qual essa 184

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potencialidade é problematizada trata da história da formação de professores no sul do Mato Grosso Uno, atual Mato Grosso do Sul. Resta claro que a contribuição da História Oral para a História da Educação Matemática é criar narrativas plausíveis sobre determinados contextos educacionais. No caso, a autora discute o modo como nove entrevistas – feitas com professores e administradores das instituições em que há, ou houve, cursos superiores de formação de professores Matemática – foram geradas e editadas de modo a apoiar a criação de uma outra narrativa – a do pesquisador – sobre a história dessa formação. Trata-se, pois, de oferecer ao leitor modos específicos (versões) de conceber a formação docente numa determinada região, legitimando narrativas específicas e singulares que, por sua vez, tornam legítima a criação de outras narrativas. A aposta nessa cadeia de narrativas várias (orais, escritas, iconográficas, etc.) e variadas exemplifica uma norma, um modo de escrever história que opera além do próprio exemplo, impondo-se como modelo segundo o qual funcionam, ao fim e ao cabo, todas as operações historiográficas. O sul do Mato Grosso Uno, atual Mato Grosso do Sul49, é também o espaço geográfico tematizado pela terceira pesquisa abordada nessa mesa-redonda submetida ao Enaphem. Não gratuitamente, essa terceira contribuição estuda uma estratégia nacional de formação emergencial implantada para formar professores de Matemática que é parte, portanto, da pesquisa anteriormente discutida: ambos os projetos estão inscritos numa mesma proposta panorâmica de mapear a formação de professores que ensinam/ensinaram Matemática no Brasil. Se aquela tematizava, de modo geral, a formação docente na região, esta trata de uma modalidade específica de formação: as Licenciaturas Parceladas para a formação de professores de (ou que ensinam/ensinaram)50 Matemática, e as duas investigações, desenvolvidas segundo os parâmetros da História 49 Torna-se obrigatória essa referência, posto que a periodização dos trabalhos apresentados nessa mesa, acerca do ensino de Matemática e da formação de professores de Matemática sulmatogrossenses envolve, ao mesmo tempo, momento anterior e posterior a 1979, quando ocorreu a divisão do estado Mato Grosso. O que antes de 1979 era o sul do Mato Grosso passa a ser o estado do Mato Grosso do Sul. 50 Esse parêntesis justifica-se diante do modo como, atualmente, a literatura sobre formação de professores diferencia os professores formados em cursos de Licenciatura em Matemática, que atuam ensinando Matemática no ensino secundário (os “professores de Matemática”) dos professores com formação mais genérica, em cursos de Pedagogia, que trabalham com o ensino de Matemática e de outras disciplinas na escolaridade básica (os “professores que ensinam Matemática”). As Licenciaturas Parceladas na região da qual tratamos aqui ocorreram em dois momentos distintos, cada um deles voltado à formação desses dois perfis profissionais.

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Oral, operam a partir de depoimentos/narrativas visando a criar uma narrativa própria, articulando fontes das mais diversas naturezas. O que se mostra como diferencial nesta pesquisa sobre as Licenciaturas Parceladas é o modo, segundo o qual as narrativas coletadas foram analisadas, junto a outras documentações, para criar a narrativa do pesquisador. Aqui, optou-se por operar segundo as diretrizes do referencial teórico-metodológico conhecido como Hermenêutica de Profundidade. O diferencial, portanto, não está apenas na mobilização desse referencial, mas também no fato de que ele tem sido empregado, mais frequentemente, nos estudos em História da Educação Matemática, para analisar materiais escritos, como livros e textos da legislação51. Em termos gerais, a Hermenêutica de Profundidade pode ser apresentada como um referencial teórico-metodológico proposto por John Thompson como sendo radicado em dois territórios – a Sociologia e a Filosofia –, visando à interpretação de formas simbólicas. Se à Filosofia cumpre nutrir o referencial com considerações acerca dos limites e das potencialidades das interpretações (ou leituras), à Sociologia cabe direcionar essa hermenêutica à compreensão da ideologia que cerca/constitui as formas simbólicas52. Toda forma simbólica opera, segundo esse referencial, para criar (ou manter) uma determinada relação de poder de um grupo sobre outro. Vivemos num mundo de poderes e contrapoderes, num universo que é, forçosa e irremediavelmente, ideologizado, e a manutenção ou imposição de uma determinada relação de poder caracteriza as instituições53. Segundo a discussão proposta por John Thompson (2011) em seu livro Ideologia e cultura moderna, estudar ideologia implica estudar as maneiras como o sentido serve para estabelecer e sustentar relações de dominação. Particularmente, Thompson expõe alguns dos modos pelos quais a ideologia opera. Ela opera por legitimação (já que relações de dominação são sempre vistas como legítimas, ou seja, como justas e dignas 51 Até onde conhecemos, apenas duas investigações, até o momento, lançam mão da Hermenêutica de Profundidade para analisar textos criados a partir de entrevistas (o que temos chamado, de modo simplificado, de fontes orais, ainda que essas fontes tenham, tanto como as outras, suporte escrito). Trata-se dos trabalhos de Bagio (2014) e Gonzales (2017), desenvolvidos num mesmo Grupo de Pesquisa. 52

Forma simbólica é, em resumo, sinônimo de “construção humana intencional”.

53 Uma instituição é, sinteticamente, composta por um conjunto de indivíduos que opera a partir de um conjunto de normas definidas, gerenciadas, validadas e avaliadas nesse e por esse coletivo. Isso implica podemos considerar um Grupo de Pesquisa, por exemplo, como uma instituição do mesmo modo como o são a Igreja, a família, o Estado, os Tribunais, a escola etc.

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de apoio); por universalização (já que acordos institucionais globais – tidos como os melhores para todos – são decorrência de interesses de alguns grupos ou indivíduos); por dissimulação (relações de poder são sempre ocultadas, obscurecidas, representadas de modo a desviar nossa atenção, visando a nos fazer desconsiderar relações e processos existentes); por fragmentação (segmentando grupos e pessoas de modo a evitar ideias que podem se tornar um problema para os grupos dominantes); e por reificação (ao ser forjada uma tradição artificial para que se acredite ser permanente e natural uma situação que é transitória e histórica). Assim, afirmar que se pretende mobilizar a Hermenêutica de Profundidade para analisar determinada forma simbólica (seja um livro, uma pintura, uma prática, um hábito, uma apresentação oral, uma legislação, uma coreografia, um poema etc.) traz embutida a questão geradora essencial a esse referencial, ou seja: “Qual ideologia essa forma simbólica cria ou ajuda a manter?”, ou, traduzindo, implica perguntar “Como essa forma simbólica estabelece e sustenta determinadas relações de dominação e quais relações de dominação são essas?”. É, essa, segundo cremos, a contribuição desse terceiro e último texto apresentado nessa mesa-redonda: discutir o movimento analítico que busca compreender de que modo algumas relações de dominação (e quais) podem ser lidas nas narrativas de determinados atores envolvidos com a criação e o funcionamento das Licenciaturas Parceladas de Matemática num determinado momento histórico e em uma região brasileira específica, cujos movimentos de formação são, até hoje, em boa parte, fortemente tributários de mecanismos transitórios e de ação emergencial no campo da Educação.

Saberes a ensinar, saberes para ensinar, experts e expertises Três mesas-redondas estão radicadas num mesmo Grupo de Pesquisa e, segundo penso, têm um conceito a interligar os trabalhos nelas apresentados, a saber, o que se tem chamado “saberes” ou, por extensão, “saberes escolares”. Ainda que essa terminologia não seja nova e ocorra amiúde na literatura em Educação Matemática – principalmente, até onde vai minha compreensão, em estudos relacionados à formação de professores – cabe aqui diferenciar os modos como essa terminologia é compreendida e efetivamente mobilizada nos trabalhos relacionados à História da Educação Matemática de outros modos

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de concebê-la. Pois bem: aqui entramos em terreno que, para mim, como autor dessa sistematização das mesas-redondas submetidas, é pantanoso, já que não estudo propriamente essa temática nem me debruço, consequentemente, nesses conceitos que nos são apresentados nesses trabalhos54. É importante, portanto, afirmar que por isso – por meu total desconhecimento dos conceitos e dos modos de mobilizar esses conceitos – sou forçosamente levado a citações dos autores que compuseram essas mesas, ainda que, do meu ponto de vista, haja uma certa flexibilidade no uso desses conceitos, por esses autores, que tornam bastante árdua a tarefa de qualquer leitor que pretenda sumarizar ou elaborar, de um ponto de vista próprio, a partir desses trabalhos, esses conceitos. Essa constatação tem duas implicações fundamentais para este meu texto: a primeira diz respeito à função das mesas-redondas submetidas, que tratam de apresentar as elaborações atuais de um determinado coletivo, sendo natural que, num primeiro momento, ou nos momentos em que novos conceitos estão sendo inseridos num campo de estudos, haja incompreensões ou flexibilizações no uso deles de modo a um texto não legitimar integralmente as discussões expressas em outros textos; a segunda diz respeito ao modo diversificado como os coletivos – no caso os Grupos de Pesquisa – produzem conhecimento em História da Educação Matemática no Brasil. Há grupos que, como é o caso do grupo em que se inscrevem esses textos em discussão, operam a partir de um projeto comum, global e temático (o que implica compartilhar conceitos, autores, perspectivas metodológicas e tema) ao qual se vinculam vários projetos individuais que devem funcionar segundo as determinações (conceitos e autores) globais desse coletivo e, de algum modo, contribuir para responder a questões colocadas pelo projeto global. Por outro lado, há os grupos que atuam segundo princípios gerais comuns, cujos projetos, ainda que respondam a esses princípios, têm autonomia temática e podem apostar em metodologias, autores e conceitos diversos. Essa pode parecer uma diferenciação tênue, mas, na prática, esses modos de pesquisar são muito distintos, podem ser claramente percebidos, e estão baseados, fundamentalmente, na diferença entre “tema/aporte teórico comum” e “princípios comuns” (o que implica poder haver temas/aportes teóricos diversificados operando num 54 Essa minha posição deve ser bem marcada: as demais mesas, ao contrário dessa que passo a discutir, tratam de temas (no caso, o ensino técnico, os acervos e a História Oral) que estão no meu leque de interesses e que, por isso, são a mim, de certo modo, mais familiares.

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mesmo grupo). Pois bem, o leitor perceberá claramente que os nove textos que compõem as mesas-redondas “Orientações para ensinar: em busca da caracterização do saber profissional do professor que ensina Matemática”; “Trabalhos Manuais e o ensino de Matemática: histórias do Paraná, Rio de Janeiro e São Paulo”; e “Os experts e a produção de saberes na formação de professores e no ensino: uma análise de diferentes contextos” têm, em comum, uma questão diretamente vinculada à dos “saberes” segundo a concepção de Hofstetter e Schneuwly, pesquisadores europeus. Até onde foi possível a mim, como leitor, perceber, a noção de saberes ancora a diferenciação entre saberes a ensinar e saberes para ensinar. Esses saberes, articulados e vinculados a um campo específico (no caso, o da Matemática), constituem o saber profissional do professor (que ensina Matemática) e, em consequência, criam uma expertise específica que investe o professor de um reconhecimento profissional como especialista (no caso, em questões relacionadas ao ensino de Matemática ou, de modo mais amplo, à Educação Matemática). É assim que, como leitor, posso compreender o conjunto de afirmações dentre as quais destaco algumas (todas as inclusões – entre colchetes – e sublinhadas são meus): [Segundo Hofstetter e Schneuwly] saberes profissionais se constituem a partir da articulação entre os saberes a ensinar e para ensinar, sendo os saberes a ensinar aqueles relacionados aos saberes disciplinares (neste caso aqueles relacionados à matemática), como objeto de trabalho dos professores; e os saberes para ensinar aqueles relacionados às Ciências da Educação, como ferramentas de trabalho que envolveriam saberes sobre matemática, sobre o aluno, sobre maneiras de ensinar e aprender, sobre o espaço de atuação, entre outros. (Bertini, O que devem saber os professores sobre o uso de problemas nas aulas de Matemática? Uma leitura dos prefácios de manuais pedagógicos. In: Enaphem, 2018). Os saberes a ensinar e os para ensinar estão inter-relacionados e se aproximam dos saberes da docência. (Giusti, Os saberes para ensinar aritmética nos cadernos de normalistas (1920-1980). In: Enaphem, 2018). Hofstetter e Schneuwly consideram que o saber profissional se constitui na articulação de dois tipos de saberes, os “saberes a ensinar”, que tomam por Temas e problematizações: uma leitura das mesas-redondas submetidas...

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referência a matemática disciplinar, e os “saberes para ensinar”, que se referenciam na “expertise” profissional, ou seja, é a posse dos saberes que o diferenciam como profissional da docência, dos “saberes para ensinar”, que lhe dará o reconhecimento profissional como especialista de educação (Maciel, Um “cálculo oral para ensinar” no Cours Pratique de Pédagogie de Daligault. In: Enaphem, 2018). “[...] saberes para ensinar [são] os saberes sobre o aluno, seus conhecimentos, seu desenvolvimento e maneiras de aprender; saberes sobre a prática de ensino e saberes sobre a instituição que define o seu campo de atividade profissional. Em outras palavras, constituem saberes específicos da docência, cuja referência é a expertise profissional de cada professor. Para Valente, se o “saber a ensinar” constitui o objeto de trabalho docente, o “saber para ensinar” traduz-se como um saber capaz de tomar esse objeto constituindo-se como um ensinável, um saber como instrumento de trabalho. /.../ Ademais, a produção destes saberes se dá pela via dos experts, sujeitos responsáveis pela produção de novos saberes para o campo pedagógico. (Guimarães, O desenho para ensinar na formação de professores primários paulistas: a expertise de Cimbelino de Freitas. In: Enaphem, 2018).

O uso de uma terminologia comum e de frases que ressoam uma mesma referência aponta uma unidade no discurso. Talvez aquela minha aproximação anterior não seja totalmente equivocada: ela é, nos meus termos, uma aproximação plausível diante dos modos como esses conceitos são apresentados nos diferentes textos que compõem essas mesas-redondas. Em resumo, é a cadeia saberes/saberes para ensinar/saberes a ensinar/experts-expertise que apoia as contribuições dessas três mesas-redondas. Até então, eu entendia (e talvez também nesse caso eu não esteja totalmente equivocado) que a noção de saberes servia para acionar como que uma ampliação no seio do conceito de “disciplina escolar”. Explico: há certas práticas (na escola, mas não apenas na escola) que, mesmo não constituindo propriamente conteúdos disciplinares – e que, portanto, não estão necessariamente caracterizados nos programas escolares – apoiam o ensino e a apreensão de determinados conteúdos (ou saberes) disciplinares (que necessariamente compõem os programas escolares). Isso é o que me permitia pensar, por exemplo, nas atividades de montar, dobrar, desenhar, modelar, costurar,

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fazer/desfazer, tecer, jogar, pontilhar/juntar pontos etc. como ações que poderiam apoiar a compreensão de saberes escolares do domínio da Matemática não sendo, eles próprios, conteúdos ou ações “próprias” das salas de aula de Matemática (são, na verdade, mais próximos das salas de aula dos Trabalhos Manuais; do que ocorre nos pátios escolares ou nas atividades cotidianas, incluindo obviamente aquelas externas à escola). Uma experiência escolar, por mínima que seja, mostraria (e os estudos sobre manuais didáticos antigos comprovam totalmente essa minha afirmação) quão importante é a prática de dobrar e desdobrar para a percepção, por exemplo, das propriedades dos sólidos geométricos (um saber disciplinar da Geometria escolar); quão interessante é pesar/medir para a compreensão de saberes disciplinares escolares vinculados, por exemplo, à aritmética ou à álgebra; quão importante é o desenho à mão livre para a aproximação dos alunos com as ideias de projeção ou dimensão ou perpendicularidade/paralelismo ou mesmo para introduzir uma discussão sobre proporcionalidade; ou, ainda, quão significativas são as ações de ordenar/organizar/sistematizar/criar coleções para o aprendizado de noções como a de classe de equivalência e conjuntos-quocientes (até hoje mobilizadas para o ensino das operações com racionais e mesmo nas salas de Álgebra Moderna do ensino superior). Desse modo – se minhas apreensões têm algum sentido – a noção de saberes amplia (e apoia) a noção, mais específica e restrita, de saberes disciplinares, o que dá não só sentido, mas importância vital, por exemplo, aos trabalhos sobre a aproximação entre a disciplina Trabalhos Manuais e o ensino de Matemática, objeto central da discussão de uma das mesas submetidas ao Enaphem. Um outro exemplo poderia vir da defesa de Cimbelino de Freitas – tema de um dos textos de uma das mesas aqui discutida – como expert no caso do ensino de Matemática, sendo ele, na verdade, artista plástico55 (mais 55 É importante ressaltar a vinculação visceral existente entre a atuação de artistas plásticos brasileiros – que dificilmente conseguiam manter-se apenas com sua produção artística – em escolas públicas, principalmente Escolas Normais e Ginásios Estaduais. A história da arte brasileira está repleta de exemplos desses pintores professores, alguns dos quais, inclusive, criaram os primeiros cursos livres – não vinculados a instituições oficiais – de desenho e pintura no País – exemplos são Georgina de Albuquerque e Oscar Campiglia, este um dos mais importantes incentivadores para a criação de pinacotecas municipais no estado de São Paulo. Pouco se reconhece a importância fundamental desses artistas para a educação de crianças, com ênfase nas iniciativas educacionais voltadas aos meninos e às meninas menos privilegiados socialmente. Desses cursos para crianças carentes saíram excelentes artistas, como por exemplo, Garcia Bento, que estudou na escola criada por Levino Fânzeres. Essa vinculação entre o mundo da Arte e o da

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especificamente pintor e, ainda mais especificamente, um reconhecido aquarelista) e vindas as informações relativas a ele e à sua expertise, em boa parte, de textos relativos à História da Arte (no caso, o clássico texto do paraense Theodoro Braga, autor de Artistas Pintores do Brasil, da década de 194056). Ainda no que diz respeito à noção de expert, pergunto-me até que ponto ela não seria potencializada se estivesse ancorada em abordagem minimamente sociológica, na qual a personalização e a singularização do expert (ou do grupo de experts) fossem relativizadas diante do contexto da atuação e da produção de saberes desses agentes; ou mesmo se propuséssemos (ressignificássemos) essa noção para ressaltar não o expert “em si”, mas os saberes que ele produz e os modos como a escola e os demais aparelhos ideológicos cuidam de criar e manter experts para, efetivamente, disseminar suas agendas com mais eficiência, agilidade e autoridade. O uso exaustivo de um conceito ou estratégia de pesquisa não garante a imunidade desse conceito ou estratégia em relação a usos equivocados ou interpretações plurais e contraditórias. Pelo contrário: o uso reiterado pode esconder exatamente a precariedade dos esforços para a atribuição de significados, digamos, mais estáveis57. A “estabilidade” no uso de conceitos (já que não se poderia falar de definir conceitos, no campo das Ciências Sociais e da Educação, do modo como se faz nas Ciências Exatas) surge exatamente de exercícios frequentes e públicos como é o caso dessas mesas-redondas submetidas, quando eles são trazidos à cena e questionados a partir de diferentes pontos de vista. Cumpre, ainda, destacar algumas das questões centrais das pesquisas apresentadas nessas três últimas mesas aqui consideradas, com o que se ressaltará o extenso leque temático que vem vendo tratado a partir desse referencial específico e seus conceitos: pergunta-se, por exemplo, se há transformações em relação à justificativa para usar os problemas como estratégia de ensino Educação escolar (alguns autores afirmam que TODOS os pintores brasileiros da primeira metade do século XX foram professores – e não necessariamente professores de Artes, mas também de Matemática e Desenho Geométrico – em escolas públicas) ainda está para ser mais bem pesquisada, do meu ponto de vista. 56

... e também de Desenho Linear Geométrico, uma “retomada” do seu Problemas usuais de Desenho Linear Geométrico, da década de 1930.

57 Uma expressão do campo da Literatura é emblemática a esse respeito. Na análise literária, a noção de “desaparição pletórica” quer significar que um conceito pode perder sentido, passando a não se referir a nada e, portanto, tornando-se inútil do ponto de vista teórico, exatamente pelo uso reiterado e excessivo.

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nas salas de aula de matemática, e o que deveriam saber os professores para encarar mais consistentemente essa tarefa; ou, ainda, qual matemática esteve presente nos cursos de formação de professores ao longo do século XX ou, mais especificamente, qual aritmética emerge de uma análise de cadernos de professores em formação?; como manuais pedagógicos de Geometria e de Trabalhos Manuais produzidos no Brasil, no final do século XIX e início do século XX, propõem a articulação entre os saberes geométricos a serem ensinados na escola primária e os conhecimentos práticos advindos dos trabalhos manuais? Quais saberes determinados experts – autores de livros didáticos, professores, legisladores específicos – produzem?

Concluindo Deve-se reconhecer que não há como encerrar este texto – que teve a intenção e a pretensão de ser uma apresentação sintética e problematizada das mesas-redondas submetidas e apresentadas durante o IV Enaphem – com uma síntese ou com algumas questões. Pode-se dizer, sem dúvida, que todos os temas focalizados nessas atividades têm a potencialidade de serem retomados em outros momentos, dada a riqueza que os caracteriza e as questões que permitem entrever. Finalmente, não custa reafirmar, à luz do que tentei elaborar aqui, a importância e a necessidade, vitais para o desenvolvimento qualitativo de qualquer campo do conhecimento, de momentos públicos e coletivos nos quais conceitos, temas e estratégias de pesquisa sejam discutidos, apresentados, subvertidos ou ressignificados.

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Um olhar múltiplo para os trabalhos apresentados nas sessões coordenadas do IV ENAPHEM: uso e mobilização de fontes Thiago Pedro Pinto58 Carla Regina Mariano da Silva59 Edilene Simões Costa dos Santos60 Kátia Guerchi Gonzales61

Introdução Os livros do Enaphem não são um compilado ou uma versão resumida dos anais do evento. Ainda que cumpram, de alguma forma, também estas funções, eles pretendem lançar um olhar reflexivo e sistemático sobre o próprio evento ocorrido, algo impossível aos trabalhos que compõem os anais. Em 58

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática. E-mail: thiago.pinto@ufms.br

59

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática. E-mail: carla.silva@ufms.br

60

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática. E-mail: edilenesc@gmail.com

61 Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática. E-mail: profkatiaguerchi@gmail.com

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sua quarta edição, o Encontro Nacional de Pesquisa em História da Educação Matemática reuniu em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, pesquisadores de todo o País que submeteram trabalhos nas modalidades comunicação oral e mesa-redonda, além de algumas palestras e mesas-redondas convidadas com pesquisadores nacionais e internacionais. Coube-nos o difícil exercício de lançar olhar para os trabalhos submetidos às Sessões Coordenadas que são, em sua maioria, relatos de pesquisas de doutorado e mestrado. Os trabalhos enviados para o encontro apresentaram discussões sobre pesquisas iniciais, em desenvolvimento ou finalizadas e por essa diversidade de fases, o conteúdo dos textos submetidos varia consideravelmente. Em alguns são apresentadas as intenções de pesquisa, o que se pretende fazer, enquanto em outros, os dados, a metodologia utilizada para a produção das fontes e os resultados de pesquisa. A diversidade não para por aí, mesmo entre aqueles que enunciaram em seus textos uma determinada metodologia ou um determinado teórico havia diferenças, uma consequência das distintas escolhas de cada pesquisador no processo investigativo. A submissão de artigos não dispunha de possibilidades de indicação para qual Sessão o trabalho seria destinado, ou alguma outra temática ou metodologia que pudesse aglutinar previamente, por parte dos autores, esses textos. Tínhamos em mãos 24 Sessões Coordenadas e cada uma delas com a média de três trabalhos que foram assim aglutinados pelos presidentes da Comissão Científica do evento. Precisávamos, então, criar modos de proceder com a leitura de tantos artigos e conseguir, a partir dela, lançar apontamentos sobre este numeroso conjunto. Referenciais teóricos, períodos de análise, grupos de pesquisa a que pertenciam foram logo sendo descartados como possibilidade de aglutinação/ divisão dos trabalhos, pois algumas dessas escolhas nos levariam para um caminho que poderia ser percorrido sozinho quando da leitura desses trabalhos. Definimos olhar para as fontes, quais eram mobilizadas, como eram mobilizadas e a quais perguntas elas respondiam no escopo dos trabalhos. Em se tratando de pesquisas em História da Educação Matemática, olhar para o modo como essas fontes têm sido trabalhadas poderia nos ajudar a compor um panorama de como esse campo tem sido construído. Nossa primeira triagem buscou elencar quais eram as fontes utilizadas nas pesquisas, às quais os textos faziam referência, e em quais quantidades. 196

História da Educação Matemática e formação de professores: aproximações possíveis


Ao percorrermos todos os trabalhos submetidos, chegamos ao Quadro 1, com categorias não disjuntas, que preferimos chamar de eixos: Quadro 1 – Classificação das fontes Eixos

Quantidade de Trabalhos

Legislação

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Materiais para o professor ou para a sala de aula

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Entrevistas

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Outros: trabalho com acervos pessoais ou institucionais; teses, dissertações e artigos; cadernos de alunos; jornais

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Fonte: elaborada pelos autores

Estes dados iniciais, levantados a partir de título, resumo e palavras-chave, foram sendo observados com mais atenção e sendo colocados em xeque. Num movimento de questionamento da organização realizada, diversos trabalhos foram sendo realocados e, ainda assim, a quarta categoria marca grupos minoritários quantitativamente, inclusive grupos de um único trabalho e outros que, mesmo estando em um grupo maior, com um olhar mais acurado, poderiam constituir, talvez, um novo grupo unitário. Depois desta etapa, buscamos olhar para “como os trabalhos de cada eixo olhavam para as fontes”, “que perguntas respondiam”, “como as mobilizaram”. O caminho tomado teve como objetivo mapear os modos como as fontes têm sido mobilizadas na História da Educação Matemática. Buscamos identificar a forma como os pesquisadores que apresentaram seus trabalhos no IV Enaphem mobilizaram as fontes em seus textos e não nas pesquisas às quais os trabalhos faziam referência. Entendemos que os textos enviados para o evento são um recorte do relato das pesquisas realizadas ou a serem realizadas, e, portanto, os modos como as fontes são articuladas nessas investigações podem ser diversos e não estarem ali representados. Ainda assim, são resultados de uma escolha, do modo como os pesquisadores querem que seus trabalhos sejam vistos perante a comunidade de pesquisadores em História da Educação Matemática. A partir desse material, dos anais, apresentamos nosso olhar.

Um olhar múltiplo para os trabalhos apresentados nas sessões...

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Eixos estabelecidos a partir das fontes As categorias aqui definidas não esgotam todas as possibilidades, mas são o resultado de um trabalho a muitas mãos. A dificuldade em chegarmos a consensos foi grande, ainda que, logo de início, o trabalho com documentos escritos e fontes orais nos saltou aos olhos como possibilidades distintas de tornar documentos fontes historiográficas, até mesmo pela contraposição entre o “encontrar” de fontes e o “produzir” fontes e pela existência de grupos de pesquisa que, declaradamente, tem suas preferências62. Entre os documentos escritos também foi fácil distinguir aqueles que trabalhavam com documentos como legislações, normativas e aqueles que tomavam o livro didático como fonte de dados. As nuances, no entanto, são significativas e a existência de trabalhos em mais de um eixo, bem como a existência de um eixo que não é propriamente um eixo, mas o aglutinar de trabalhos diversos, que fogem às classificações anteriores merece destaque e nos aponta o quão contingente e provisório é este movimento. Ainda assim, como fluxo – estejam eles aumentando ou diminuindo – estes eixos nos apontam coisas, podem ser tomados como feixes luminosos63 que nos dão indicativos de movimentos maiores, de modos de nos constituirmos diante do campo de pesquisa. Assim, nosso leitor encontrará nas próximas páginas breves relatos dos movimentos de leitura de cada um destes eixos.

Legislação Os trabalhos que relataram ter mobilizado a legislação como fonte principal para responder a questão de pesquisa, não explicitaram o que compreendem por lei ou legislação, sentimos, no entanto, a necessidade de tecermos algumas possibilidades de entendimento. Se consultarmos o dicionário Michaelis da Língua Portuguesa64, atribui-se à palavra lei, atualmente, uma 62 A título de exemplo, podemos citar os trabalhos de integrantes dos grupos GHOEM e GHEMAT que, a partir de preferências teóricas e metodológicas, têm tomado ao longo dos anos, ainda que não exclusivamente, fontes orais e escritas, respectivamente, como prioritárias em seus trabalhos. 63

Pontuamos aqui nossa inspiração em diversos textos de Antonio Vicente M. Garnica, que tomam a frase de Alfredo Bosi: “Datas são pontas de icebergs” (O tempo e os tempos, 1992) para problematizar usos destas datas em pesquisas que visam, muito mais que levantar datas e nomes, problematizar a história.

64 1. Regra jurídica, de enunciado claro e conciso, estabelecida por uma autoridade constituída, o legislador, que tem seu poder delegado pela soberania popular: Todos

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série de significados. Da mesma forma, poderíamos proceder com o termo legislação65. De forma geral, podemos relacionar estas palavras a textos que tem o intuito de manter a ordem, estabelecer uma moral e uma norma de justiça e de conduta entre os homens. Estas leis são estabelecidas por um poder social legitimado através dos tempos. Dessa forma, quando a lei está em pauta, alude-se à discussão do direito e das normas, seja do cidadão, das instituições ou do Estado. No Brasil, a partir de 1827, depois da independência, é criada a primeira lei nacional de educação, que alude ao ensino das primeiras letras, “ler, escrever e contar”, dessa forma, como pontua Gomes (2014, p.15), “é nesse momento que se pode situar a primeira colocação de educação como direito social, com a descentralização que o governo central promoveu, em 1834, do encargo das “primeiras letras” para as administrações provinciais [...]”. Confirmando uma tendência nas pesquisas que se inserem na linha de História da Educação Matemática, tivemos 18 trabalhos apresentados no IV Enaphem que, de algum modo, mobilizaram legislações como uma das fontes para sua produção historiográfica. Dentre as leis que constituem a legislação educacional, para o Evento foram mobilizadas as seguintes: a constituição, os decretos, os regulamentos, os estatutos, os regimentos internos, os pareceres e outras decisões governamentais. É importante enfatizar que, embora alguns desses documentos não sejam nomeadamente leis, têm força de lei, por exemplo, o decreto-lei n. 4.073, de 30 de janeiro de 1942, que organiza o ensino industrial brasileiro, e a Lei Orgânica Industrial, tema discutido no texto “Os rudimentos de Matemática no Ensino Industrial de Emergência brasileiro” (RODRIGUES; COSTA, 2018). Outro exemplo é o Decreto-Lei 8.529, denominada Lei Orgânica do Ensino Primário, sancionado pelo presidente José Linhares, discutido no texto “O Ensino de Matemática nas Escolas Públicas

os cidadãos devem respeitar a lei. 2. Ordem, regra ou prescrição que tem autoridade absoluta ou inquestionável. 3. O conjunto de costumes, práticas ou regras que constituem a lei orgânica, prescrevendo a natureza e as condições de existência de um Estado ou de outra forma de comunidade organizada. 4. Tudo que é juridicamente obrigatório. (MICHAELIS. UOL, 2019). Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/ busca?r=0&f=0&t=0&palavra=lei. Acesso em: 2 dez. 2019. 65

Ampliando nossas compreensões, conforme indicado no minidicionário Rideel da Língua Portuguesa, legislação significa: “Conjunto de leis; ciência que estuda as leis” (ROSA, 2000, p. 166).

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de Canoas/RS, década de 1950”, que regulamenta os currículos mínimos para esse nível de ensino (HUFF; BAYER, 2018). Nos trabalhos aqui elencados, o fio condutor dos textos foram as legislações, o que não impediu que eles se utilizassem também de outras fontes, geralmente escritas – ou ainda, dito de outro modo, oficiais –, como: relatórios, programas de ensino, atas, resoluções e portarias. A pesquisa de Ferreira (2018) intitulada “A aritmética nas diretivas oficiais para a Escola Normal de São Paulo na década de 1920”, é um exemplo, pois o autor, ao analisar o Decreto n. 3.858 de 11 de junho de 1925 – que além de propor vários critérios normativos, como remoção e promoção de professores, amplia para cinco anos a duração dos cursos das Escolas Normais e apresenta o programa de ensino, na qual explicita a forma de distribuição das disciplinas –, observa que havia mais aulas destinadas à Álgebra e à Geometria do que as destinadas à Aritmética, passando a ser necessária uma análise minuciosa dos programas de cada uma dessas cadeiras. Em alguns trabalhos, como por exemplo, o texto “A caracterização dos saberes a ensinar aritmética a partir das finalidades do curso primário na Escola de Aprendizes Artífices”, de autoria de Barbaresco e Costa (2018) é possível notar que o estudo a partir da legislação teve o papel de compreender se em um determinado período de tempo as leis vigentes estavam, de algum modo, sendo apropriadas e incorporadas nas aulas de Matemática. Nesse viés, os pesquisadores lançaram mão de outras fontes como os livros didáticos que permitiram uma confrontação entre fontes para tecer compreensões sobre o ensino e a aprendizagem de Matemática66, no caso específico do referido estudo, sobre as finalidades dos saberes em torno do ensino de aritmética. 66 Segundo Dassie (2018), o estudo do livro didático possibilita observar por meio da organização e da linguagem as intenções que se têm para os dois leitores principais, o aluno e o professor. Acompanhando as ideias propostas por esse autor, pode-se dizer que essa produção didática é tanto instrumento de aprendizagem para o aluno, como instrumento de ensino para o professor. Assim, pode auxiliar o professor na organização da aula, como também ser complemento no aprendizado dos temas, atividades e/ou exercícios para os alunos. Proporciona, desse modo, diferentes formas de mediação na relação do ensino e aprendizagem dentro de sala de aula e nas tarefas fora dela. Na História da Educação Matemática, a análise do livro como um todo – capa, introdução, prefácio, sumário, capítulos e referências – bem como o contexto de produção, apropriação, propagação e as ideias dos autores e editores, auxiliam para a compreensão dessa relação. A forma de apresentar os capítulos, os conteúdos e as atividades também indicam, na visão de Dassie (2018), as concepções que os autores dos livros didáticos têm a respeito do conhecimento escolar e das metodologias que, para eles, devem ser trabalhadas no processo de aprendizagem.

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De forma análoga, Pedroso e Santos (2018), com o texto “Um estudo da matemática escolar a partir do caderno de Maria”, ao analisar as atividades matemáticas presentes em um caderno de tarefas de 1962, confrontaram os descritos com as orientações presentes na Lei 4.024/61, denominada Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. As autoras observaram que constituir fontes históricas, quando se trata de materiais escolares, é uma tarefa um tanto quanto difícil para o historiador, pois em nosso país não há incentivos à preservação. Neste sentido, pelo caráter oficial e pela ampla divulgação, as normativas têm, materialmente, resistido ao tempo. Outros trabalhos constituíram uma história a partir da legislação, buscaram fragmentos nestes documentos que possibilitaram discutir o objeto em estudo, sempre articulando as interpretações com outras fontes. O trabalho intitulado “O Ensino de Matemática nas Escolas Públicas de Canoas/RS, década de 1950”, de Huff e Bayer (2018) é um exemplo deste exercício, uma vez que tentam compreender o ensino da Matemática nas escolas públicas de Canoas/RS, na década de 1950 e, para isso, partiram de elementos dispostos nas leis e articularam com textos da época e artigos de outros pesquisadores que contextualizam, no período em foco, a sociedade gaúcha. Alguns dos artigos submetidos para o IV Enaphem podem ser classificados em dois eixos por fazerem uso de legislações e fontes orais para compor a escrita de uma história. Utilizando como metodologia de pesquisa a História Oral, alguns deles nos parecem partir das legislações para um estudo mais aprofundado sobre o tema de pesquisa antes de ir para a entrevista com os colaboradores. Nesse ponto há claramente uma distinção: a legislação é utilizada como um disparador do trabalho, enquanto as entrevistas se constituem como fontes. O texto de Santos e Baraldi (2018) é um exemplo desse movimento. No texto “Educação especial e educação inclusiva: considerações históricas”, as autoras, ao elaborarem uma compreensão do processo de reestruturação dos cursos de Licenciatura em Matemática dos campi da Universidade Estadual Paulista – UNESP e a inserção da discussão do tema educação inclusiva nas grades curriculares, explicitaram, que para o artigo submetido, foi feito um recorte com a pretensão de discutir o histórico da educação especial e da educação inclusiva e suas legislações. Outros trabalhos, que também utilizam a História Oral para criação de fontes, explicitaram que as histórias ali contadas foram compostas a partir das Um olhar múltiplo para os trabalhos apresentados nas sessões...

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narrativas dos colaboradores cotejadas com outras fontes, como jornais, materiais, pareceres, relatórios institucionais e legislação. A ausência de discussões sobre o motivo e os modos de se utilizar a legislação e, mesmo assim, ela se fazer presente em grande parte dos trabalhos, nos aponta para uma naturalização do seu uso no fazer historiográfico na Educação Matemática. Se há um movimento que parte da legislação para disparar a pesquisa, temos também aqueles que, no decorrer da pesquisa, vão incorporando a legislação como uma voz possível dentre tantas outras. Roque e Gomes (2018), no texto “História do primeiro curso de Licenciatura em Matemática em Governador Valadares-MG: um panorama geral”, explicitaram que as fontes orais constituídas como documentos históricos não existiriam senão por estímulo, presença e papel ativo do historiador durante o momento de entrevista, que reforçam a ideia de que essas fontes são legítimas. A partir desses dizeres, as autoras partiram então das narrativas dos colaboradores e a elas foram incorporando outras fontes que permitiram tecer uma história possível e plausível. É nessa junção que a legislação foi incorporada na versão constituída pelas pesquisadoras, contudo, é fundamental mencionar que nem nesse momento as legislações ou outras fontes utilizadas pelas autoras foram menos valorizadas do que as narrativas, mas sim, tornaram possível o diálogo entre múltiplas perspectivas. No texto “Algumas considerações sobre a formação matemática e os últimos anos de funcionamento do curso de Ciência da Fundação de Ensino Superior de São João del-Rei”, Paiva (2018) arrazoa em favor da ideia de que as narrativas proporcionam acesso às experiências capazes de alumiar elementos não explicitados em documentos escritos, contudo concorda com os demais autores que apresentamos, de que não se deve valorar um tipo de fonte em detrimento de outro. Para fazer essa afirmação, Paiva (2018) mencionou os dizeres de Gomes (2012, p.128): “nenhum tipo de documento retrata o que verdadeiramente se passou”. O diálogo entre as diferentes fontes é que será capaz de tramar uma história cheia de pontos de vista presentes nas fontes disponíveis ou nas constituídas via entrevista com o sujeito. É a partir dessas interlocuções de fontes que Paiva (2018) fundamentou-se na LDB vigente e nas resoluções da Universidade Federal de São João del-Rei, para compreender a formação do professor de matemática e os últimos anos de funcionamento do curso de Ciências. 202

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Outro grupo de trabalho enquadrado neste eixo mobilizou a legislação em contextos muito diversificados. A título de exemplificação, a leitura desse conjunto de trabalhos nos possibilitou conjecturar conexões que envolvem o saber docente e a formação de professores, a cultura escolar e a própria noção de historiografia, temas que trataremos brevemente a partir dos próprios artigos analisados, a seguir. Os trabalhos que envolveram o saber docente buscaram de alguma forma associar os saberes ao ensino de matemática previstos na legislação em determinado período e a história da formação docente, como é o caso de Rodrigues e Costa (2018), já discutido neste texto, que tratou particularmente dos saberes a ensinar e dos saberes para ensinar a partir das ideias de Hofstetter e Schneuwly (2017). A partir dos saberes a ensinar, os pesquisadores buscaram identificar quais seriam os saberes necessários aos professores para ensinar determinados conteúdos, investigando, assim, aspectos da formação e da profissão docente. Os saberes matemáticos, discutidos no texto intitulado “O processo de disciplinarização do ensinar a ensinar a matemática escolar no Instituto de Educação de Porto Alegre/RS”, de Silva e Dalcin (2018), podem ser identificados desde a implantação do Instituto de Educação General Flores da Cunha, em 1869, por meio da grade curricular, que destaca a presença de Aritmética, Álgebra e Geometria. Em 1909, a partir de uma reforma curricular, essa instituição, em específico, passou a integrar um currículo do curso de formação de professores primários, iniciando um movimento de “preocupação em ensinar a ensinar àqueles que estavam em processo de formação para atuar no magistério primário” (SILVA; DALCIN, 2018, p.3). Em meio aos estudos das autoras, pudemos notar que, em 1929, através do Decreto n.º 4.277 é que se intensificou a presença das disciplinas que têm a intenção de ensinar o docente em formação a como se deve ensinar. Surgem, nesse momento, as palavras Pedagogia e Didática com foco nesta atuação. Libório e Traldi Júnior (2018) discutiram, em “Formação Inicial do Professor de Matemática: um olhar aos documentos oficiais de âmbito federal (1961-1974)”, que os cursos destinados à formação de professores de Matemática apresentam dois componentes que tentam se equilibrar nas ementas dos cursos de formação, que são as disciplinas relativas aos conhecimentos específicos da área e os conhecimentos específicos para a docência, contudo, destacaram que ainda é comum termos as disciplinas em relativas aos Um olhar múltiplo para os trabalhos apresentados nas sessões...

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conhecimentos específicos em evidência. Pautados então na primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei Federal n.º 4.024/1961, os autores notaram os saberes valorizados nos documentos oficiais e destacaram que são estes os estudos que devem ser considerados, uma vez que são os aspectos prescritos e regulamentos, “que consiste no ordenamento legal, elaborado pelas instâncias políticas e administrativas e tem a função de normatizar e subsidiar a construção dos currículos” (LIBÓRIO; TRALDI JUNIOR, 2019, p.4). Esses autores buscaram então subsidiar suas interpretações a partir dos documentos oficiais utilizando as concepções de Hofstetter e Schneuwly (2017), assim como Rodrigues e Costa (2018). Em leitura análoga, Huff e Bayer (2018) também se dedicaram a compreender os saberes a ensinar e para ensinar, via os estudos de Hofstetter e Schneuwly (2017), assim, destacaram ser fundamental no que diz respeito às instituições escolares, observar os planos de estudo, os manuais, os textos prescritivos, os currículos e as legislações, pois eles contêm elementos do que se deve ensinar. Desse modo, via a legislação e esses outros documentos citados, os autores concluíram que os saberes para ensinar aritmética, presentes no programa de 1916, indicam uma formação geral, na qual sebuscava instrumentar o aluno que viria a ser um contramestre ou um operário. Pedroso e Santos (2018) utilizaram os conceitos expressos por Julia (2001, p. 2, grifos do autor) tomando a cultura como: Um conjunto de normas que define conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização).

Nesta direção, a legislação escolar é um objeto rico, nem sempre efetivado, para o estudo da cultura escolar. Para Silva e Dalcin (2018), fontes históricas podem ser todos os vestígios da ação humana deixados no passado e que nos possibilitem compreendê-lo, mesmo sem tê-lo vivenciado. Sob essa óptica, baseados em Le Goff, as autoras indicaram a necessidade de se lançarem por caminhos e abordagens metodológicas diversas, desde que fossem apropriadas aos diferentes tipos de 204

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documentos analisados, sendo elas “um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder” (LE GOFF, 1990, p. 545 apud SILVA; DALCIN, 2018). A noção de Historiografia, para Pedroso e Santos (2018), por exemplo, parte da premissa de que não se pode reconstituir o passado, mas elementos como documentos, arquivos e relatos pessoais, auxiliam a compreensão de como foi a constituição de diversos acontecimentos. Por esse prisma, Silva e Dalcin (2018) mostraram-nos que não somente os documentos oficiais, mas quaisquer vestígios de características diversas, que contenham resquícios das ações humanas, podem contribuir para a interpretação do tema em estudo. Morais (2018), no texto “Formação de professores de Matemática no RN: uma análise histórica a partir da ótica dos espaços”, defendeu que a perspectiva histórica na qual se inspira propõe lidar com os elementos históricos com a finalidade de produzir sua escrita. Tais construções, na visão dele, são sempre subjetivas e permeadas por verdades constituídas socialmente, seja na verdade narrativa de colaboradores, na verdade do pesquisador que a torna plausível seja na verdade daqueles sujeitos que construíram os documentos oficiais e as leis. Seria oportuno mencionar que dos 18 trabalhos analisados, todos eram pesquisas de mestrado ou doutorado, com exceção a uma única pesquisa desenvolvida por licenciandas do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC, sob orientação de um doutor. Além disso, grande parte dos documentos utilizados foi acessada nos sites e encontrada em acervos institucionais e pessoais. As legislações, nosso enfoque principal neste tópico, facilmente são encontradas nos sites governamentais e referenciados pelos pesquisadores. A partir das reflexões, proporcionadas por meio desses 18 artigos que citaram, que se debruçaram nas legislações, podemos perceber que, mesmo com referenciais teóricos e metodológicos diferentes, a noção de fonte é muito próxima nos trabalhos. Contudo, o modo de debruçar sobre as fontes, em nosso caso específico nas legislações, é muito particular, pois não leva em conta somente os referenciais teóricos e metodológicos adotados, ou o pertencimento em uma determinada comunidade acadêmica ou outra, mas sim, principalmente, a particularidade de cada objeto de estudo e a forma que cada

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pesquisador, imerso em suas concepções, enxerga e consegue comunicar ao leitor.

Materiais para o professor ou para a sala de aula Neste eixo aglutinamos 17 trabalhos submetidos e apresentados no IV Enaphem. A análise de como as fontes mobilizadas nos trabalhos pertencentes a esta seção foram interrogadas e constituídas nos leva a compreender que elas foram avaliadas não exclusivamente em seu conteúdo, mas em sua materialidade. Um exemplo disso é a análise dos paratextos editoriais e da veiculação da obra. Além destes, as mudanças nas edições e as diferenças entre obras de um mesmo período e de períodos diversos também foram levadas em consideração. Parece-nos plausível que os autores tenham partido da premissa que textos didáticos (manuais, livros e revistas) guardem em seu bojo características e concepções que foram negociadas em contextos políticos, econômicos e sociais do espaço e tempo no qual foram produzidos. Por exemplo, podemos citar o trabalho de Amorim e Gomes (2018), “Indicações metodológicas para o ensino de matemática no Livro “The New Methods In Arithmetic” de Edward Lee Thorndike: um estudo do exemplar presente na Biblioteca Pessoal Alda Lodi”, que problematizou a produção de livros e, entre os trabalhos, é o que mais aponta elementos paratextuais. A partir deles, as fontes foram inquiridas em busca de permanências e transformações de conteúdos curriculares, procedimentos didáticos e pedagógicos, métodos, práticas, bem como difusão e circulação da fonte, entres outros. Percebemos que as perguntas feitas às fontes foram múltiplas, produzindo diferentes interpretações, mas o foco entre os trabalhos analisados parece ser o mesmo: encontrar elementos que denotem particularidades de um determinado período da História da Educação Matemática. Para isso, discorreram sobre a estética da obra, forma de produção, editores, diagramação, ilustrações, marcas, data, prefácios, sumários, autores, conteúdos abordados, e formularam outras questões, jogando luz sobre algum tema em especial, como formação do professor primário, a transformação de saberes matemáticos, a análise de conteúdos matemáticos, as vulgatas e até mesmo as marcas deixadas no livro pelo leitor.

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As principais abordagens trazidas dialogam com a história cultural, a história das disciplinas escolares e a hermenêutica de profundidade, a fim de legitimar os objetivos do estudo. Um dos trabalhos elencados neste eixo se utilizou da análise sócio-histórica, tendo como referência Thompson (2011), os demais realizaram a análise das fontes no contexto sócio-cultural, tomando como referência autores como Chartier (2002), Chervel (1990), Darnton (1990), Julia (2001), entre outros. Nos textos abordados, os livros e as revistas foram tomados como objetos culturais, não só no sentido da produção como também em seus mecanismos de recepção que, por sua vez, é um modo de produção. Essas fontes permitiram sintonizar a cultura escolar de determinado período circuncidado pela cultura popular, social, econômica e política. As fontes adequaram a produção de “ideologias” entre as representações sociais e os cotidianos escolares de determinados períodos, tomados como movimentos pedagógicos. Nessa direção, na perspectiva da historiografia, parece tratar-se de estudos “da produção, difusão e conservação de objetos escritos” (CASTILHO GÓMEZ; SIERRA BLAS, 2008, p.19). Esses objetos denotam particularidades de um determinado período da História da Educação Matemática, como, por exemplo, um conteúdo curricular; o modo de elaborar ou resolver exercícios, tarefas; o modo de utilizar um instrumento didático, que podem apontar rupturas com ou não, pois são atravessados por questões culturais e práticas discursivas que constituem elementos da vida social. Ainda podem apontar aspectos remanescentes anteriores à turbulência na disciplina matemática que deram origem a novas ideias pedagógicas ou ainda, que apontam a transição para uma nova “vulgata” (FORTALEZA; ROCHA, 2018, p.4), que será identificada em uma nova vaga pedagógica. Fortaleza e Rocha (2018), no texto “Publicações de Geometria para o ensino primário brasileiro: iniciando a verificação da possibilidade de uma ‘vulgata’”, consideram que a pesquisa está no contexto da História da Educação Matemática, com foco na construção de representações acerca da produção matemática escolarizada, ensinada e aprendida ao longo do tempo. As questões feitas às fontes produziram fatos históricos que apontam que as fontes foram questionadas no sentido de compreender prescrições legais, finalidade da escola em determinado espaço e tempo, informações da constituição da comunidade matemática, de processos de institucionalização de Um olhar múltiplo para os trabalhos apresentados nas sessões...

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disciplinas como a Álgebra Linear. Tais questões geram fatos que nos parece a afirmação de Thompson (1979, p. 40 apud CURY, 2018): Supõe que o historiador está empenhado em algum tipo de encontro com uma evidência que não é infinitamente maleável ou sujeita à manipulação arbitrária, que há um sentido real e significante no qual os fatos “existem”, e que são determinantes, embora as questões que possam ser propostas sejam várias e elucidem várias indagações.

Essas considerações foram trazidas por Cury (2018), no texto “Análise de um livro de Geometria Plana”, que fez uso da Hermenêutica de Profundidade (THOMPSON, 2011) para analisar a fonte em estudo. Kuhn (2018, p.3), por sua vez, no texto “As frações nas edições da Segunda Aritmética da Série Concórdia”, considera que “O trabalho do historiador, de acordo com Certeau (1982), é fazer um diálogo constante do presente com o passado, e o produto desse diálogo consiste na transformação de objetos naturais em cultura”. Logo, os trabalhos apresentaram, em dada medida, a relação do historiador com as fontes. Outra referência que podemos considerar é o conteúdo analisado nas fontes em estudos, principalmente no que diz respeito à matemática. Santos (2018), no texto “A Disciplina Álgebra Linear no Brasil antes de 1960: entre textos e memórias”, apresentou Chervel para justificar o enfoque dado aos conteúdos matemáticos nas fontes estudadas, “Dos diversos componentes de uma disciplina escolar, o primeiro na ordem cronológica, senão na ordem de importância, é a exposição pelo professor ou pelo manual de um conteúdo de conhecimentos” (CHERVEL, 1990, p. 202 apud SANTOS, 2018, p. 2). Outro aspecto que podemos considerar nos trabalhos foram os modos, os critérios, os métodos determinados pelo pesquisador para analisar as fontes e produzir suas narrativas. A título de exemplo, citamos as pesquisadoras Caputo e Oliveira (2018), as quais no texto “O desenho como um saber para ensinar no primário (1925 a 1932)”, afirmaram terem trabalhado as fontes fundamentadas na História da Educação Matemática na perspectiva da História Cultural, pois essa permite identificar o modo pelo qual uma determinada realidade social foi construída, pensada e dada a ler de acordo com Chartier. Como é possível perceber, as muitas abordagens analíticas realizadas, bem como os fundamentos teóricos e práticos utilizados, permitiram emergir 208

História da Educação Matemática e formação de professores: aproximações possíveis


elementos que possibilitaram aos pesquisadores tecer inferências relativas às práticas pedagógicas de determinado período em estudo, funções instrucionais, caráter ideológicos e culturais de determinado material didático, esquemas tácitos de condutas, convenções e relações sociais que apontam para finalidades e normas sociais e culturais do sistema escolar em um dado tempo e espaço. Logo, a análise das fontes aponta o espaço e o tempo regido por linguagens, práticas, ideologias e representações. Entendemos que os pesquisadores buscaram nas fontes pistas que permitissem identificar e compreender a singularidade de uma determinada vulgata, da transformação dos saberes matemáticos, inferindo sobre determinadas convicções de autores de obras didáticas, como também a forma com a qual determinado conteúdo foi articulado no ensino e na formação do professor. Esses pesquisadores parecem ter buscado o “caráter eminentemente criativo do sistema escolar” (JULIA, 2001, p.33) em cada período abordado no estudo. Apenas dois trabalhos tomaram como fonte de pesquisa as revistas pedagógicas – Caputo e Oliveira (2018) e Santos (2018) – os demais tomaram como fonte principal de suas investigações os livros ou os manuais pedagógicos. Estes autores parecem ter tomado estes materiais como uma produção da cultura escolar, atravessada por questões culturais, políticas, econômicas e sociais mais amplas. As escolas, seus agentes e seus materiais, são resultados de processos mais amplos, possíveis de serem rastreados por meio destes e de outros materiais. Aqui podemos retomar as considerações realizadas por Dassie e Costa (2014) na análise de livros didáticos como fonte de pesquisas apresentadas no I Enaphem. Estes autores iniciam o texto argumentando sobre a importância de tais fontes para a escrita de uma História da Educação Matemática (2014, p. 200) e sobre os desafios metodológicos para a análise de tais fontes. O capítulo é finalizado considerando que “os textos careciam de uma discussão teórico-metodológica ao tratar de livros didáticos” (p. 208). Já no III Enaphem, Dassie et al. (2018, p. 168) dizem existir referências teóricas nos trabalhos apresentados e publicados, mas sem a devida mobilização no decorrer do trabalho: Se, por um lado, identifica-se a predominância de referências teórico-metodológicos nos textos, de outra parte, a maioria dos trabalhos não mobiliza Um olhar múltiplo para os trabalhos apresentados nas sessões...

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os autores ou os conceitos anunciados para a análise das fontes. Observa-se, portanto, um número significativo de textos nos quais não se consegue compreender os complexos processos de articulação entre os aportes teóricos, metodológicos, análises e resultados.

Estes autores tecem tais afirmações citando Garnica (2014) que discute a complexidade entre teorização e metodologia. A partir das observações e das análises retiradas do Livro do I e III Enaphems e das observações com relação aspectos teórico-metodológicos com os quais as fontes, principalmente livros, manuais e revistas, são tratadas nos textos dos Anais do IV Enaphem, é possível inferir que os trabalhos apontam para uma frágil, porém perceptível, mudança na análise das fontes. Na última edição do evento, é possível observar um exercício de analisar os documentos a partir do método explicitado ou dos conceitos e/ou categorias definidos.

Entrevistas Na escrita da História da Educação Matemática, especificamente nos trabalhos apresentados no IV Enaphem, 20 artigos apresentaram entrevistas como fontes utilizadas ou, no caso de trabalhos iniciais, como fontes a serem mobilizadas. A inclusão desses textos nesta categoria não significa harmonia de métodos, metodologias e teorias. Apesar de terem muitas semelhanças, outras categorizações poderiam ser feitas caso fosse desejável. Se tomássemos à discussão o momento no qual a pesquisa a que o trabalho faz referência estava, teríamos pesquisas de mestrado e doutorado em fase inicial que sequer apresentaram as fontes no texto, uma vez que essas ainda não foram produzidas/encontradas (cinco trabalhos), outras já finalizadas (quatro trabalhos), mas a maioria, no entanto, são pesquisas de mestrado e doutorado em desenvolvimento. Há ainda aquelas que se constituem como pesquisas de um grupo (três trabalhos), que não estão estritamente vinculadas a projetos de mestrados ou doutorados. Se levássemos em conta a exclusividade ou não do uso de entrevistas, teríamos pesquisas que dizem trabalhar com o cotejamento de fontes e aquelas que dizem serem as entrevistas algo complementar, tendo o documento escrito/oficial como fonte principal. De fato, muitas outras

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classificações poderiam ser criadas para encaixar cada um dos 20 textos, que ora pertenceriam a uma categoria ora a outra. Alguns autores optaram em seus textos por chamar as entrevistas de “narrativas” como é o caso de Morais (2018), já discutido no item 2.2. Outros como Costa e Gomes (2018) no texto “História do ensino de matemática no Colégio de Aplicação da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais (1954-1968)”, afirmaram a importância de todo tipo de fontes, mas reforçaram que os depoimentos são fundamentais. Silva e MartinsSalandin (2018) entendem, por sua vez, que as fontes orais permitem outro entendimento sobre o fenômeno estudado. Essas afirmações apontaram para uma valorização explícita das fontes orais na pesquisa histórica e, ainda que afirmem trabalhar com o cotejamento de fontes, as protagonistas parecem ser, nesses trabalhos, as entrevistas. Há ainda trabalhos em que a valorização das fontes orais aparece de modo implícito. O texto de Paiva (2018), já discutido no item 2.1. constituiu-se como a apresentação de resultados parciais de uma pesquisa de doutorado e tinha como objetivo apresentar aspectos da formação de professores em um curso de ciências após a criação das habilitações. Entre narrativas, documentos gerais do curso, proposta pedagógica, jornais, legislação educacional da época, diários, provas e notas de aulas dos docentes, o autor trouxe para o IV Enaphem uma narrativa histórica costurada pelas entrevistas. Os documentos (dois trazidos como imagem), por sua vez, são mobilizados apenas para comprovar a extinção do curso estudado, o que avaliamos como um indício da prevalência de fontes orais nesse texto. Por outro lado, no texto “O movimento da matemática moderna no litoral paranaense: trajetória do professor participante”, para Simões, Pires e Portela (2018, p. 3), é “importante uma metodologia que investigue documentos e arquivos buscando entender como os fatos ocorreram. No entanto, entende-se ser de grande importância a ampliação da pesquisa, por meio da narrativa de pessoas envolvidas, com o fato pesquisado”. E afirmam ainda, que conhecer a história pela perspectiva dos indivíduos envolvidos pode tornar a história mais fiel ao que realmente aconteceu. Percebemos uma preocupação em contar a verdadeira história, e aqui, a variabilidade de fontes ajuda na triangulação dos dados, tal qual é recomendado em alguns textos sobre pesquisa qualitativa. Esses autores investigaram a introdução do Movimento da Matemática Moderna no litoral paranaense a partir da elaboração de uma única entrevista Um olhar múltiplo para os trabalhos apresentados nas sessões...

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e é essa a discussão apresentada no trabalho. Apresentam também um livro citado na entrevista e utilizado pelo entrevistado durante seus estudos. Não há, no entanto, nenhum apontamento, análise ou comentário acerca do conteúdo interno do material, tendo o livro caráter apenas ilustrativo. Fica implícita a utilização de outras fontes uma vez que há a afirmação de que outros documentos foram utilizados, mas não há menção direta a elas. Já Oliveira e Martins-Salandim (2018), no texto “Estranhando uma escola: Orlando, contribuições para a História da Educação Matemática Brasileira”, entendem a investigação que praticam como um trabalho de provocar as memórias e escrever sobre elas a partir da ótica daquele que investiga, constituindo, assim, um conjunto de eventos pelos documentos e pelas entrevistas. Esse trabalho consiste em uma pesquisa de doutorado em fase inicial, mas que já traz alguns apontamentos e documentos encontrados no acervo investigado para contextualizar a pesquisa. Este é outro aspecto identificado em boa parte das pesquisas que se utilizam de entrevistas como fontes históricas. Os documentos encontrados nos acervos são trazidos no texto para contextualizar o tema a ser pesquisado e não compõem a narrativa histórica apresentada. Desse modo, adquirem apenas o caráter informativo e não passam pela análise do investigador. Por se tratar de um artigo enviado para um evento, não há como afirmar se, na prática, na investigação que subsidia o texto, os documentos terão o mesmo tratamento. Com exceção dos cinco trabalhos que apresentam apenas a intenção de tomar entrevistas como fontes, já que os dados ainda não foram produzidos, os demais textos afirmam terem mobilizado as entrevistas em suas pesquisas para compor uma história. A escrita dessa história apareceu de modos distintos nos 15 trabalhos restantes dessa classificação, ora através de excertos das falas, ora a partir de paráfrases. Alguns autores afirmaram ter como fonte entrevistas, documentos oficiais, pareceres, mas trouxeram ao IV Enaphem uma discussão histórica na qual apenas as entrevistas eram explicitadas. Esse aspecto parece mostrar uma soberania do uso de entrevistas e da subjetividade nelas contidas na produção de fontes históricas nesses trabalhos. A maioria, no entanto, busca travar um diálogo entre as fontes orais e escritas ao compor a história. As informações obtidas a partir de vários tipos de documentos se complementam sem que haja uma preocupação de se chegar à verdade dos fatos, ou ainda, tornar mais 212

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fiel à pesquisa. A pergunta que encontramos em um dos textos parece dar o tom de como foi feita a escolha de quais tipos de materiais seriam tomados como fontes: “Quais fontes nos ajudariam a problematizar nosso tema de pesquisa?” (OLIVEIRA; MARTINS-SALANDIM, 2018, p.7). Tomar essa questão no horizonte de pesquisa amplia consideravelmente seu acesso a fontes e possibilita um repensar das metodologias predeterminadas Se um trabalho é iniciado trabalhando com uma metodologia que privilegia o uso de fontes orais, mas no meio do caminho me deparo com um enorme acervo físico, será necessário avaliar se a metodologia utilizada continua sendo suficiente para o trabalho com as fontes produzidas. Nos trabalhos de Souza et al. (2018) – “Uma estudante, uma professora: o vir-a-ser de uma expert em Educação Matemática” – e no de Santos (2018), já discutido no item 2.1., foram utilizadas entrevistas já realizadas em outros momentos como fontes de pesquisa. No primeiro caso, a pesquisa tem caráter biográfico, e além de ter sido produzida uma entrevista em 2018, utilizou-se uma entrevista já produzida em 2006 para compor a história. Durante o texto são trazidos excertos destas duas entrevistas como citações e há um diálogo com a produção bibliográfica da entrevistada. As duas entrevistas foram concedidas ao grupo do qual as autoras do trabalho pertencem, e apesar de não ficar explícito, é possível que a entrevista de 2018 tenha sido feita especificamente para o trabalho apresentado. O outro caso apresenta uma peculiaridade, logo no título “A disciplina de Álgebra Linear no Brasil antes de 1960: entre textos e memórias” (SANTOS, 2018), a palavra memória está em destaque, o que nos levava a crer na mobilização de entrevistas no trabalho. No entanto, no decorrer do texto há excertos citados como comunicações pessoais que parecem ser essas memórias citadas no título. Além dessas comunicações, o autor trava um diálogo com outras três entrevistas, produzidas por outros autores nos anos de 2002, 2003 e 2009. De maneira geral, do grupo de 15 trabalhos finalizados ou em desenvolvimento em que se utilizam entrevistas, apenas 3 operam de um modo muito distinto quanto ao entendimento de elaboração e produção de entrevistas. Um deles, como é o caso de Santos (2018), não produz especificamente as entrevistas, mas se utiliza de entrevistas produzidas por outrem. No caso de Simões, Pires e Portela (2018), a existência de uma única entrevista é sem dúvida algo peculiar quando comparado aos outros 15 trabalhos que produzem 5, 8 e até Um olhar múltiplo para os trabalhos apresentados nas sessões...

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20 entrevistas durante a investigação. Apesar de serem minorias, é importante observamos que três trabalhos fazem uso de entrevistas em outro viés epistemológico. O processo de produção, a autoria, a textualização não são tomados e nem explicitados, pois não parecem ser importantes para os pressupostos teóricos assumidos. O que nos leva a conclusão de que o modo como as entrevistas estão sendo mobilizadas no texto parece ser o modo como certos grupos de pessoas (e não estritamente de pesquisas) tem legitimado na escrita da História da Educação Matemática.

Outras possibilidades Como em todo processo de categorizar, houve aqueles que escaparam da classificação aqui relatada. Trabalhos que com algum esforço conseguiriam ser aglutinados nas categorias anteriores, mas que, a nosso ver, apontavam para um “tópico à parte”. Assim, nesta seção lançaremos olhar para 15 trabalhos que, ainda que toquem categorias anteriores, tomam como fonte principal de suas produções: acervos pessoais ou institucionais; publicações científicas (artigos, dissertações e teses); cadernos de alunos e jornais. Cabe lembrar que estas categorias foram criadas com base em nossas leituras do título, resumo e palavras-chave dos artigos, buscando, nestes, elementos que os autores declararam utilizar como fonte(s) de seu trabalho. Apenas dois trabalhos submetidos ao IV Enaphem tomaram como fonte principal de investigação os cadernos escolares (PEDROSO; SANTOS, 2018; SILVA; SOUZA; FLORES, 2018). Estes dois textos tomaram cadernos de alunos como uma fonte de dados passível de identificação, ou seja, buscam identificar nestes cadernos determinados conteúdos escolares, como a matemática financeira e os conteúdos estabelecidos no programa estadual de Mato Grosso da década de 1960, respectivamente, para depois problematizar seus modos de trabalho. A temática do primeiro texto busca corroborar a discussão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), por esta trazer significativos apontamentos para a Matemática Financeira como conteúdo a ser abordado na escola de educação básica. Nele, as autoras buscam identificar a presença e os modos de articulação deste conteúdo em cadernos de um aluno, datado de 1942. Já o segundo, se figura como uma investigação sobre a cultura escolar, tentando mapear conteúdos e modos de ensino de outros tempos, década de 1960.

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Neste sentido, o uso da fonte histórica serviu de respaldo e resposta a questões do presente, que partem de uma questão inicial que poderia ser assim formulada: (1) “estava presente efetivamente na sala de aula tais e tais conteúdos?”, seguida da questão: (2) “de que forma?”. Diferentemente das legislações normativas, os cadernos apontam para temáticas efetivamente trabalhadas em sala de aula e, mais do que isso, para o modo como estas tendências eram trabalhadas. Estes dois trabalhos tentaram, a nosso ver, dar conta destas duas questões, ora focando mais em uma ora focando mais em outra. Mesmo apresentando uma fonte distinta, outros autores parecem atacar fortemente a primeira questão supracitada. Heidt e Silva (2018), “Matemática Moderna no Instituto Estadual de Educação Assis Brasil: vestígios encontrados em diários de classe”, focaram diários de classe da professora Cecy da Nova Cruz Sacco, entusiasta da Matemática Moderna (MM) na sua região e verificaram, em suas anotações no diário de classe, quais conteúdos podem ser relacionados com o que tem sido chamado de Matemática Moderna. Para isso, elas utilizam a literatura em Educação Matemática, especialmente em História da Educação Matemática para evidenciar aquilo que elas relacionam ao Movimento da Matemática Moderna. Este tipo de proposta verificacionista, segundo acreditamos, pode ser um movimento inicial de pesquisa, especialmente em alguns contextos, neste caso, por exemplo, sendo a professora alguém fortemente envolvida com a MM, encontrar em seus diários de sala manifestações deste envolvimento nos ajuda pouco na problematização do passado e da própria MM, pois os motivos para tal ocorrência, as relações e as tensões estabelecidas neste processo necessitam de outros movimentos de pesquisa para serem evidenciados. No entanto, por certo, todo o movimento de investigação sobre a personagem da história, a professora Cecy, já é, em si, produção historiográfica, ainda que não figure como tema principal do texto em voga. Assim também, o trabalho com os diários, para além de uma identificação de conteúdos, pode vir a indicar, acreditamos, investigações futuras, modos próprios de entendimento sobre a MM, possíveis limitações de seu uso – eventualmente por trazer elementos de fora dela para a sala de aula etc., enfim, os entendimentos múltiplos que se têm ou se tinham sobre o assunto. Outra problematização possível é quanto àquilo que se trabalha em sala de aula com aquilo que se anota nos diários. Não abordamos aqui possíveis desconexões, ainda que passíveis de ocorrer, mas o próprio entendimento daquilo Um olhar múltiplo para os trabalhos apresentados nas sessões...

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que se faz em sala de aula com um registro do tipo “partição. gráfico”, um dos itens anotados por Cecy e trazidos por Heidt e Silva (2018, p.6), pode ser discutido e investigado. Apenas um trabalho apresentado no IV Enaphem mobilizou notícias de jornais mais do que uma fonte complementar, tomando-as como principal movimento de análise. Pontello e Gomes (2018), inspirados na História Oral, trazem para o evento um recorte de fontes, os jornais, para olhar para a Cades no Ceará nas décadas de 1950 e 1960. No texto “A Cades no Ceará e a formação de professores de Matemática nas décadas de 1950 e 1960: o que diziam os jornais?”, as autoras optaram por produzir uma narrativa a partir destas notícias, inicialmente discutem a dificuldade em encontrar arquivos pessoais e institucionais devidamente acondicionados, organizados, limpos e disponíveis ao público. Os insucessos na busca por tais arquivos as levaram para as hemerotecas, nas quais obtiveram maior êxito. Ao molde colcha de retalhos, as autoras vão compondo uma história sobre a temática estudada. A narrativa final é composta essencialmente por notícias de jornais transcritas e encadeadas pelas ideias e pelas leituras das autoras. Neste primeiro momento, a narrativa é apresentada conforme as notícias, que são tomadas como documentos, verdadeiros em si. No entanto, na parte final do texto as autoras trouxeram alguns apontamentos sobre o paradigma indiciário e levantaram algumas hipóteses, problematizando as fontes em questão, seus modos possíveis de tendenciar as notícias, por exemplo. A partir das notícias, elas fizeram inferências sobre o conteúdo dos cursos, e sobre alguns nomes importantes relacionados à CADES no Ceará. Para finalizar, elas destacaram que se trata de um recorte da pesquisa, a qual engloba diversas outras fontes, especialmente o uso de entrevistas, conforme preconiza a História Oral. Quatro textos do evento se utilizam como fonte principal teses, dissertações ou artigos científicos para a elaboração de suas narrativas ou sistematizações. O trabalho de Costa e Amaral (2018), intitulado “Teses, exames, sabatinas e provas: uma tentativa de narrar a trajetória da avaliação da matemática escolar no ensino primário paranaense (1900-1970)”, abordou, a partir de cinco trabalhos submetidos ao XVI Seminário Temático do GHEMAT, a história e os movimentos da avaliação em escolas de ensino primário do seu estado, produzindo uma sistematização a partir deles, focando o movimento que vai de uma avaliação individual com intuito de nivelamento ao estabelecimento 216

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de padrões e normas de ensino. Como o foco deste texto é o uso de fontes, não abordaremos a periodização proposta pelos autores, mas nos interessamos aqui pelas discussões quanto ao uso de fontes históricas e os modos como os autores as utilizam. Deste modo, cabe aqui ressaltar que os autores do texto em voga optaram por tomar fontes atuais (textos de 2018) para a composição de uma narrativa sobre os 70 primeiros anos do século passado. Este aspecto mostra a importância de uma intencionalidade declarada de muitos trabalhos em História da Educação Matemática: a produção intencional de fontes. Assim, trabalhos que focam a HEM podem, eles próprios, constituírem novas fontes para trabalhos que ampliem suas temáticas, proponham olhares transversais e, assim, ampliem a discussão. Salientamos, no entanto, a inexistência de outras discussões a esse respeito no texto, ou mesmo sobre as fontes originais utilizadas pelos autores consultados, apenas se utilizam de seus resultados, sem uma problematização de suas produções. Já o texto de Souza, Dassie e Andrade (2018), intitulado “Alguns apontamentos acerca da mobilização da Hermenêutica de Profundidade como referencial teórico-metodológico em pesquisas em Educação Matemática”, nos parece ter um duplo objetivo, por um lado registrar a presença e a ampliação da Hermenêutica de Profundidade (HP) nas pesquisas em Educação Matemática, especialmente em HEM; por outro lado os autores parecem estar interessados em discutir os modos de se usar a HP nestas pesquisas, apontando os principais aportes metodológicos acionados nas pesquisas observadas em complementação à HP. Este levantamento engloba 21 teses e dissertações que foram indicadas por leituras prévias dos autores (que já trabalharam com HP), referências em outros trabalhos, indicações de pesquisadores e buscas no indexador Google Scholar. Os trabalhos vasculhados por eles trabalham prioritariamente com dois tipos de fontes: entrevistas e livros. Não é intenção dos autores discutir os modos de produção historiográfica destes materiais, mas salientam que, pelo referencial adotado, as fontes são tomadas como formas simbólicas, produções intencionais humanas, passíveis de um exercício hermenêutico. Os produtos educacionais, marcas características dos mestrados profissionais, foram o foco do trabalho de Alvez e Gutierre (2018) que quiseram, como seu próprio produto educacional, elaborar um panorama que facilitasse o uso e a aplicabilidade destes. As autoras falam em triangulação de dados Um olhar múltiplo para os trabalhos apresentados nas sessões...

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(produtos, dissertações, entrevistas, questionários e normativas) e tomam os produtos educacionais como documento/monumento, inspiradas em Le Goff. O texto apresentado se configura como um projeto com alguns apontamentos iniciais, pois o foco principal, a análise dos produtos, ainda não foi realizado. As autoras argumentam, ao final do texto, sobre a pertinência deste no evento por buscarem, em certo sentido, contribuir com a história do Mestrado Profissional da UFRN por meio destes trabalhos. O que chama a atenção no texto, no ínterim das fontes, é o modo das pesquisadoras apontarem para a aplicabilidade, há uma pergunta que perpassa o trabalho: “estes produtos têm aplicabilidade?”, com a triangulação proposta, a resposta parece caminhar para uma valoração dos resultados por parte das autoras e não para o que estas fontes dizem, elas mesmas, sobre a aplicabilidade proposta, aparecem palavras e expressões como “confirmação de informações”, “confrontar fontes”, “apresentar possíveis divergências entre as fontes” e identificar “possíveis falhas”. Neste sentido, se assim procederem, há o perigo que ronda todo aquele que se põe ao trabalho historiográfico, o anacronismo nas análises e apontamentos. Ainda que numa história do tempo presente, há o distanciamento daqueles que produziram os trabalhos em questão, e as autoras que produzirão análises sobre eles. Há aqui a marca da dificuldade de interação entre passado e presente. Se por um lado nos debruçamos sobre o passado a partir de questões do presente, as análises e o ferramental teórico, do presente, buscam desvelar significados e possibilidades possíveis/plausíveis no passado. Neste caso, há uma explícita indicação à priori das fontes analisadas colocadas em uma pergunta que direciona para tal recorte. No movimento contrário, no texto “História da educação matemática: um campo de lutas”, Hoffmann e Costa (2018) partem de uma questão mais abrangente, relacionada a como se constitui a HEM no Brasil como campo de pesquisa e, a partir daí, vão, das mais variadas formas, delimitando suas fontes, ou seja, possíveis documentos que respondam a esta pergunta. Num primeiro momento, os autores fazem um levantamento do quantitativo de grupos de pesquisa que investigam a HEM e dialogam com trabalhos que fizeram levantamento e investigações próximas a esta questão. Na sequência, se voltam para os eventos específicos da área, o levantamento apresentado nos parece ter partido da experiência dos autores, não trazendo para a discussão possíveis fontes ou meios de pesquisa. Estes dados novamente dialogam com 218

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pesquisas na área, em especial aquelas que apontam para o crescimento da produção na área. Outro ponto destacado pelos autores é a criação de disciplinas específicas, novamente mesclando literatura específica e a experiência pessoal. Para a discussão dos dados evidenciados, eles chamam Bourdieu para o diálogo, especialmente para estabelecer o que entendem por campo científico. Ao tomar a problematização de Garnica, eles trazem diversos trabalhos que exemplificam a multiplicidade destacada pelo primeiro, traçando assim um diálogo entre as fontes. Ainda nesta direção, os autores questionam suas fontes a partir da problemática buscada em Bourdieu e buscam, nas próprias fontes, reforços e contrapontos para a argumentação, no sentido que alguns pesquisadores chamam de “fazer as fontes falarem”. Por fim, trazemos neste tópico os trabalhos que trazem como temática ou fonte principal os acervos pessoais ou institucionais, três no total. Assim como aconteceu com o subtópico “jornais”, inúmeras outras pesquisas trabalham também com acervos, acreditamos que a grande maioria dos trabalhos do IV Enaphem passou, em algum momento, por buscas em acervos. No entanto, há um movimento de discussão sobre a conservação, manutenção e mesmo criação destes acervos e outro que recorta um determinado acervo como locus de pesquisa e trata de possíveis questões respondidas por este. Encontrar um arquivo organizado e em boas condições de visitação é um privilégio para poucos, Rosso e Bayer (2018) parecem ter encontrado algo nesta direção, ao adentrarem a Fundação Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha, onde pesquisaram o currículo de Matemática de um curso técnico. No texto “As relações do contexto histórico do Rio Grande do Sul no Currículo Escolar: um estudo a partir da disciplina de matemática em um Curso Técnico na cidade de Novo Hamburgo/RS (1967 – 1983)”, eles apresentaram os documentos encontrados dos quais se destacam as grades curriculares, nas quais conseguem identificar uma matemática própria para subsidiar os cursos técnicos. O trabalho de Toillier (2018), pelo contrário, não parece querer indicar matemáticas ou modos de manifestação da matemática, mas sim, mostrar movimentos de uma professora de matemática (licenciada e bacharel) a tornar-se uma “educadora matemática” e, para isso, discute modos de constituir uma biografia, da professora Lourdes de la Rosa Onuchic, aliado à História Oral e buscas em seu acervo pessoal. O texto intitulado “Uma proposta biográfica aliada aos usos de História Oral e a pesquisa em um arquivo Um olhar múltiplo para os trabalhos apresentados nas sessões...

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pessoal” apresenta uma pesquisa em fase inicial, que organiza e produz leituras sobre o acervo pessoal da professora e discute a ideia de arquivos pessoais, dos modos e dos motivos desta guarda de materiais ao longo dos anos. Talvez, mais do que o aspecto do acervo, a discussão sobre biografias toma grande importância em seu texto. Ainda no uso de acervos particulares ou institucionais, Fernandes, Araújo e Cosenza (2018) tomam o acervo da Faculdade de Filosofia de Minas Gerais (atual UFMG). A partir destas buscas e de terem encontrado um anuário de 1954, delimitam o período investigado de 1941 a 1954. Suas reflexões apresentadas no texto “Didática Especial e História da Educação Matemática: contribuições de um estudo sobre a formação de professores de matemática na Faculdade de Filosofia de Minas Gerais (Belo Horizonte, 1941-1954)” passam a caminhar em torno da disciplina Didática Específica, ofertada para o curso de matemática, mas também para outras licenciaturas. A relação que esta estabelece com a matemática e com um modo de conceber a matemática é alvo de seus inquéritos. O apartamento destes núcleos, a função social e acadêmica que a instituição exercia, a limitação do ensino superior nestas décadas fazem parte dos apontamentos dos autores. Este diálogo é realizado a partir de uma relação entre anuário e trabalhos acadêmicos, majoritariamente, identificando em suas fontes movimentos apontados nos referenciais teóricos. Cenários multifacetados e modos decoloniais de produzir História da Educação Matemática estão no bojo da discussão apresentada por Almeida e Souza (2018), no texto “Colonialidade de poder: um olhar sobre discursos naturalizados que atravessam a história da formação de professores de matemática no Brasil”. Na primeira parte do texto, as autoras discutem colonialidade e mostram, por meio de referências acadêmicas e em dados levantados junto ao MEC, modos que estas colonialidades operam. Já na segunda parte, defendem o uso da história oral e as narrativas como possibilidade de produzir histórias de um modo pós-colonial, que caminhe para a multiplicidade e para categorizações não hegemônicas, desnaturalizando discursos construídos e fixados ao longo do tempo. Ainda que tragam elementos históricos e diversos trabalhos que poderiam compor uma história do tempo presente quanto à produção em HEM, entendemos que se trata de um estudo teórico que tenta propor modos de leitura do passado, operando de maneira a se afastar da colonialidade.

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Comentários gerais Ao escrever o presente texto, nós, quatro pesquisadores com diferentes formações, participantes de diferentes grupos de pesquisa, sabíamos de antemão de seus obstáculos e riscos. Obstáculos devido à quantidade de trabalhos analisados para a produção de um artigo com limitação de páginas, o que impedia uma exposição mais minuciosa de todos os trabalhos; riscos, devido às categorias que agrupamos, pois verificamos e reconhecemos que essa organização tem seus limites. Contudo, essa foi uma sistematização possível e constituída por pesquisadores com óculos teóricos e metodológicos diversos, tentando operar de forma conjunta. A leitura aqui realizada concorda com Boaventura Souza Santos (1987, p. 38) quando esse diz que o “comportamento humano, ao contrário dos fenômenos naturais, não poder ser descrito e muito menos explicado com base nas suas características exteriores e objetiváveis, uma vez que o mesmo ato externo pode corresponder a sentidos de ação muito diferentes”. Ao nos atrevemos a apontar os modos como os autores mobilizaram fontes em seus textos, apresentamos uma visão externa do relato de um trabalho que está, na maioria das vezes, em fase de desenvolvimento. Temos em mente, no entanto, que qualquer análise se constitui como a visão do outro, que lê vidas a partir de sua própria vida. Nossas fontes para a sistematização aqui realizada se tornaram como tal a partir de nossos questionamentos, primeiro feito ao título e ao resumo, e depois de já classificados, aos textos na íntegra. Esses textos, no entanto, foram inscritos com vistas à divulgação do material em um evento científico que, como tal, tem como objetivo reunir pesquisadores de uma determinada área para fomentar a divulgação e a produção de conhecimento. Foram em um primeiro momento, avaliados por um par de pesquisadores, que deram anuência à sua presença no evento, depois disso, sistematizados em Sessões por um coordenador. E em mais um movimento analítico foram lidos e relidos na busca de identificar modos de se mobilizarem as fontes históricas. Um documento de qualquer natureza só se constitui como fonte a partir de um pesquisador e de uma questão colocada a ele. Neste caso, a partir de quatro pesquisadores e da pergunta: como foi o uso, a articulação e o papel das fontes na produção do texto? As sistematizações são, assim, riscos em nossos óculos teóricos que projetam estas divisões em tudo que olham. As divisões não

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são intrínsecas aos trabalhos, mas foram projetadas por nós em um processo de leitura, como tal, violento, que mesmo com a maior sutileza pela busca “do que apontam os trabalhos”, os fazemos responder a questões que, inicialmente e por vontade própria, não respondiam. Poderíamos problematizar então nossas visões epistemológicas, especialmente quanto ao passado, o que implica na discussão de nossos meios de acesso/produção, entre outras palavras poderíamos também problematizar “leitura”, talvez uma unanimidade aqui seja que as fontes sejam “lidas” (ou interpretadas), ainda que poucas vezes percebamos movimentos que explicitem “como se lê” alguma coisa. Parece que esta discussão fica delegada a outros “GTs”, linhas de pesquisa, como a filosofia. Talvez em momentos tão obscuros à ciência e às humanidades estas se dobrem ainda mais a um pragmatismo que nos coloca a pular certas etapas da investigação científica, produzindo resultados tangíveis e, quanto melhor, aplicáveis a algum contexto atual, como, por exemplo, a formação de professores – tema dos dois últimos Enaphems. Na sistematização aqui realizada percebemos em alguns autores certa preocupação em trabalhar com fontes que os levassem o mais perto possível do fato histórico. Assim, entrevistas, cadernos de alunos trariam uma dimensão subjetiva à pesquisa e uma história mais próxima do “chão da escola”. Por outro lado, a análise das leis de uma determinada época podem indicar mudanças em longo prazo na educação, como o fato de haver mais aulas para Álgebra e Geometria, do que para Aritmética, indicar uma ascensão de uma em consideração a outra. Algo similar acontece ao uso de livros como fontes em pesquisas históricas. Na maioria das vezes, não há certeza de seu uso efetivo, mas traz aspectos do ideário de uma época. Se um livro assim existe e teve circulação é porque ele manifesta ideários de um autor, um sujeito coletivo, aprovado e financiado por outras pessoas, que de alguma forma manifestam ali também concordâncias, se não com todo o conteúdo da obra, mas com a existência dela e com a possibilidade de vendas dela. Neste sentido, uma unidade pode ser o disparador de um movimento historiográfico, aos moldes da micro-história. Assim também podem ser pensados trabalhos que tomam de assalto apenas uma entrevista e, a partir dela, criam ou recriam toda uma sociedade da época que manifestam, naquela entrevista, seus valores e crivos. Estes crivos, aliás, ainda pouco explorados no evento, muitos trabalhos evidenciam um conteúdo, uma vontade, um problema manifesto em suas fontes, narram um 222

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episódio, poucos problematizam que sociedade, quais crivos foram capazes de produzir tais fontes. Assim, mais do que a presença da Matemática Moderna em determinado caderno, lei, caderneta, há a possibilidade de uma investida historiográfica na direção de que sociedade produziu uma Matemática dita Moderna e, mais ainda, voltando para o contexto educacional, que sociedade criou um movimento de disseminação deste ideário (modificado ou não) no contexto escolar. Em outras palavras, quais crivos ou critérios, têm nos tornado o que somos, quais discursos justificaram a existência de tais fontes? Talvez cada pesquisa, individualmente, não responda diretamente a estas questões, é possível que movimentos maiores, como os de grupos de pesquisa, os chamados projetos guarda-chuvas, possam se colocar nesta empreitada, talvez aqui a variação de fontes seja interessante, não como desvelamento ou triangulação, mas como multiplicidade. Mas, sem dúvida, colocar a falar uma fonte muda é um ato de violência, talvez elas merecessem o descanso dos mortos ou talvez nós possamos nos assumir mais como produtores de saber e menos como investigadores, e assim, abandonarmos a violência e partirmos para a produção conjunta: o que é possível produzir com o passado?

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Sessão Memória do IV ENAPHEM: textualização da entrevista com a professora Nilza Eigenheer Bertoni Mônica Menezes de Souza67 Carmyra Oliveira Batista68

Introdução Apresentamos nessa sessão um texto resultante de uma entrevista da professora Drª Carmyra Oliveira Batista com a professora convidada Dr.ª Nilza Eigenheer Bertoni, em 15 de novembro de 2018, que ocorreu durante o 4.º Encontro Nacional de Pesquisa em História da Educação Matemática (Enaphem). O tema desse Encontro foi a Formação de Professores, História, Cultura e Política. Essa entrevista aconteceu no Teatro Glauce Rocha da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), na Sessão Memória, espaço/tempo, que tem por objetivo socializar com os participantes do evento 67 Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal. E-mail: profmonicams@yahoo. com.br 68 Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal. E-mail: carmyra.batista@gmail. com

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experiências de pessoas que contribuem de forma relevante para o desenvolvimento do campo Educação Matemática. A entrevista, com duração de cerca de uma hora e meia, girou em torno de dois eixos: a constituição do “ser/estar” professora e as inquietações e buscas geradas ao longo da experiência docente da professora convidada. O áudio dessa entrevista foi transcrito e, em seguida, textualizado por integrantes do Grupo COMPASSODF69. Conforme Garnica (2018), a transcrição e a textualização fazem parte do protocolo de pesquisa com história oral, sendo que a transcrição é o registro escrito da fala gravada, e a textualização é uma adequação do texto produzido, pois, em um diálogo, as ideias podem ser superpostas, alternadas, interrompidas, retomadas mais a frente ou esquecidas. Ainda que na textualização se possa adequar a ordem dessas ideias, como a intenção de dar melhor fluxo à leitura, nela mantém-se o registro sintético das ideias tratadas e os modos de falar dos interlocutores. A textualização que apresentamos a seguir foi enviada para a professora Drª Nilza Eigenheer Bertoni e legitimada por ela para publicação.

Sessão Memória do IV Enaphem: professora Nilza Eigenheer Bertoni é entrevistada pela professora Carmyra Oliveira Batista

Professora Carmyra: Boa tarde. No meu modo de entender a Sessão Memórias tem por objetivo socializar experiências de pessoas que contribuíram ou contribuem, de maneira relevante, com o nosso campo, a Educação 69 Membros do Grupo COMPASSODF: Carmyra Oliveira Batista, Edilene Simões Costa dos Santos, Mônica Menezes de Souza e Rosália Policarpo Fagundes de Carvalho.

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História da Educação Matemática e formação de professores: aproximações possíveis


Matemática. Nesse sentido, estar com a professora Nilza Eigenheer Bertoni é uma alegria e uma honra. Em comum acordo, nós duas vamos iniciar a conversa, mas como a vida dela é muito instigante, vamos ampliar a roda de conversa para que a plateia possa participar. Sintam-se à vontade para fazer questões e conversar com a professora Nilza, pois é uma oportunidade que não podemos perder e considerei ser muito egoísmo só eu poder conversar com ela. Eu gostaria de agradecer, em meu nome e em nome do Grupo Compasso-DF, a oportunidade de estar compondo essa Sessão. Também parabenizo todas as pessoas envolvidas neste evento, tanto pela fecundidade de ideias de debates quanto pelo acolhimento. É muito bom pensarmos que estamos aqui agora, como se estivéssemos em uma varanda, ao entardecer, com flores aqui e pessoas carinhosas nos ouvindo. Para começar eu vou ler um breve perfil da professora Nilza, o currículo dela é extenso, mas darei alguns destaques para sabermos com quem estamos conversando. Ela é paulista, normalista, concluiu licenciatura e bacharelado em Matemática em 1962, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro-SP, posteriormente incorporada pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Concluiu seu mestrado em Matemática, pela Universidade de Brasília (UnB), em 1973, instituição da qual recebeu, em 2010, o título de Doutora honoris causa. Tem experiência na área de Matemática, com ênfase na Educação Matemática, atuando principalmente nos seguintes temas: currículo, educação matemática, currículo no ensino fundamental, currículo de formação de professores, formação continuada de professores e ensino-aprendizagem de números fracionários. Ela foi a primeira dirigente da Sociedade Brasileira de Educação Matemática (SBEM Nacional), é Presidenta Honorária da Regional SBEM-DF e coordenadora, na área de Matemática, no Centro de Formação Continuada de Professores da Universidade de Brasília (CEFORM), dentre outras inserções dela no campo da formação continuada de professores no Brasil. Então, professora Nilza, vamos iniciar nossa conversa, eu gostaria de puxar um assunto, como um grande eixo da nossa conversa, que é essa constituição do ser/estar professora, ao longo da sua vida, sabendo que esse eixo da nossa conversa vai trazer subeixos, nuances muitos interessantes da formação, currículo. Então eu gostaria que a senhora falasse dessa constituição de professora, da sua trajetória de estudante tornando-se professora.

Sessão Memória do IV ENAPHEM: textualização da entrevista com a...

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Professora Nilza: Muito interessantes essas questões, estimulantes. Mas antes eu tenho duas palavras: meu profundo agradecimento ao professor Wagner Valente, à organização desse evento, ao Grupo Compasso-DF que solicitou essa Sessão Memória e foi atendida pela Comissão Científica do evento. Quero dizer que é um momento muito especial para mim. Obrigada, Carmyra. É muito especial, esse Grupo de Brasília, com o qual tenho contato profundo – mas também tenho com outros, por causa da formação de professores – mas desse Grupo Compasso nenhum dos membros foi minha aluna. A nossa aproximação foi gerada na SBEM, em projetos como o que a UnB fez com o Acre e no próprio Grupo de Estudos Compasso que eu frequentei por muito tempo e só saí por razões pessoais. Em relação à questão colocada aqui: Eu gostava de matemática e era também a disciplina na qual eu mais tinha dificuldade, não nas provas, graças a Deus! Mas em entender as coisas, tinha muitas incongruências. Por exemplo: “jamais some sem alinhar os últimos dígitos de cada parcela”, já na multiplicação “recua, recua, soma depois” – sem nenhuma explicação. “Mas como eu vou somar, então vou alinhar os dígitos primeiro...”. “Não.” “Mas por que posso fazer isso?” “Em Matemática é assim, está certo. Se você fizer de outro jeito, está errado”. Chega nos números inteiros, sempre há dois sinais em jogo, um do próprio número e um da operação soma ou subtração. Há um certo colapso nos dois, engole as duas pílulas juntas e dá um jeito de digerir. Eu falava: “olha, vamos separar, vamos pôr um sinal para o número”. Tão fácil, gente! Depois nós no Brasil colocamos entre parênteses, os americanos põem aquele sinalzinho em cima, pequenininho, que é do próprio número e o da operação, até o aluno entender. Eu falo que eu tinha bastante dificuldade, pois não me davam respostas. Sobre esse sinalzinho, eu já usava, mas um dia a professora me corrigiu – porque fui eu quem inventei, eu não conhecia livros americanos, nem lia naquela época – ela ficou muito brava “Isso não existe em Matemática. Não faça assim. Isso não está certo. Você não pode fazer assim”. Então, nem os processos próprios que nos serviam de respaldo eram possíveis de serem usados. Era uma matemática triste, eu quase ouso dizer que era mais triste do que a atual. A atual tem algumas válvulas de salvação, aquela eu acho que não tinha. Outro momento foi ao terminar o ginásio, que era o ensino fundamental, e ia fazer o Científico ou Normal, a família estava toda lá, “Normal, Normal, mulher é Normal, homem é Científico”. Tinha oito pessoas, mas os homens 232

História da Educação Matemática e formação de professores: aproximações possíveis


vão para o Científico e as mulheres para o Normal. E eu argumentei bastante, mas no fim eu falei: “olha, eu soube uma coisa, que eu posso fazer o primeiro ano Científico que já vai valer como pré-normal, e depois eu vejo”. E assim foi feito, e no fim eu fiz o Normal e o Científico, os dois em três anos. Daí surgiu um novo impasse: eu queria fazer faculdade, universidade, e não havia pensado em fazer filosofia, que naquela época significava estudar na Faculdade de Filosofia e Ciências e Letras. Eu queria cursar arquitetura, porque eu sempre gostei de artes, literatura, cinema, arquitetura. Soube que só tinha o curso lá na FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo), em São Paulo, e que eram oito horas por dia. Porém, me dá aquele azar e sorte que a gente tem na vida: eu termino o Normal e ganho, o que em São Paulo existia, a cadeira prêmio. Quem se formasse em primeiro lugar na Escola Normal ganhava essa cadeira do Estado. Aí lá no concurso de professores chamava-se “As cadeiras prêmios, venham aqui e escolham”. Isso dava uma sensação, com tanta gente lá concorrendo... Já saía do Normal empregada. Mas com esse emprego, adeus Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, não dava para compatibilizar esse trabalho em São Caetano do Sul/SP e o curso na capital. E lá fiquei eu, dando aula durante três anos. Passaram aqueles três anos de magistério, nos quais eu ensinei matemática, eu não sei se eu ensinei, mas os alunos adoravam matemática. Passavam todos com 100 em matemática e alguns não passavam em escrita. O inspetor escolar que ia na escola aplicar os exames dizia: “Não, não é possível, acertou todos os problemas, mas como escrevendo mal assim”? Porque a professora não sabia nada, não tinha sabido ensinar, eu ensinei ler, mas não conseguia ensinar bem escrever, não dei a atenção devida. Eu já tinha percebido que eu gostava de lidar com a matemática. Eu não sei se nesse tempo eu amadureci a questão da matemática, mas eu acabei decidindo que queria fazer isso, eu queria tentar fazer a faculdade de Matemática que parece que estava entrando na minha cabeça. Além disso, quem tinha cadeira na escola pública podia se afastar para fazer uma faculdade oficial, eu penso que tinha que ser na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Seria uma prorrogação, uma continuidade da carreira de magistério. E eu fui fazer, fui reprovada dois anos no exame de física no vestibular – eram orais e escritos – mas então, abriu uma faculdade em Rio Claro/SP e minha família morava em Limeira/SP. Eu já estava inscrita para prestar mais um vestibular na USP Sessão Memória do IV ENAPHEM: textualização da entrevista com a...

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(Universidade de São Paulo), mas meu pai, que queria todo mundo ali perto, mandou meu irmão mais velho de carro para São Paulo me buscar: “Vai lá e a traz para cá, porque eu já fui visitar a faculdade de Rio Claro”. E no fim foi uma boa. Eu entrei em Rio Claro, houve lá uns ajustes administrativos, porque aquela famosa licença para estudar vinha do tempo em que só existia a faculdade da Rua Maria Antônia70. Mas o governo acabou permitindo uma vaga para cada uma das quatro carreiras que tinha lá e eu pude entrar na faculdade de Rio Claro. Então, fiz a faculdade e de lá ganhei uma bolsa para o IMPA (Instituto de Matemática Pura e Aplicada), embora não houvesse pós-graduação oficial, nem mestrado, nem doutorado. Mas lá fui eu, fiquei dois anos no IMPA, e lá um professor alemão – Otto Endler, de saudosa memória – me convidou para ir para a Alemanha. O IMPA encaminhava muito para os Estados Unidos, quer dizer, ficavam lá um tempo e daí a maioria ia fazer doutorado naquele país, que não precisava nem fazer mestrado naquela época. Minha adoração pela Europa era tão grande, e esse professor alemão me falou: “Olha, infelizmente você não vai conseguir fazer doutorado lá”. Eu falei: “Como não”? “Não, é porque lá, para cada doutorado que você faz, você tem que fazer uma prova, uma espécie de dissertação, numa matéria não afim”. Eu tinha que escolher uma de humanas. Então, você imagine... Ele falou: “Não dá porque vocês não têm tempo hábil para aprender a língua escrita”. Eu dominava assim, um pouquinho de alemão, mas não para escrever essa dissertação. Eu falei: “Mas, assim mesmo, eu vou”. Sem a possibilidade do título. O título também não era tão importante na época. E fui para a Alemanha, fiquei lá um ano e meio, e então voltei. Eu tinha enveredado definitivamente pela pesquisa... se bem que, restava alguma sementinha... Em algum momento, na Alemanha, eu me matriculei no Seminário de Didática da Matemática. Fui ver o que era. Já fazia uns 30 anos ou mais que o Félix Klein71, que introduziu essa disciplina na formação dos 70 A antiga sede da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP) funcionava nesse endereço. Atualmente, nesse espaço, funciona o Centro Universitário Maria Antonia, órgão da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP. 71 Félix Klein foi pioneiro e expoente na conexão entre os conhecimentos matemáticos do curso superior de matemática e os conteúdos escolares. Como ele próprio afirma na introdução de seu livro Matemática elementar de um ponto de vista superior: “durante muito tempo os universitários ocupavam-se exclusivamente da sua ciência, sem

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professores, tinha morrido. Suas ideias e motivações não estavam mais presentes, apesar da boa vontade do velho professor que conduzia o Seminário: “Vamos sugerir alguma coisa e alguém apresenta. Para o ensino médio, eu sugiro o estudo e aplicação do teorema da convergência de Stone-Weierstrass”. Bem próprio, não é? Bem próprio! Quer dizer, era cabeça de matemático, de um matemático dando Didática da Matemática. E a gente sabe as implicações disso. Mas eu voltei da Alemanha e como eu tinha feito o curso de Matemática em Rio Claro, a possibilidade de emprego... Eu falo: “Como era fácil, cartucho na mão, emprego no dia seguinte”. Isso em qualquer área: odontologia, medicina, engenharia, professor... Como mudou essa realidade. A faculdade de Rio Claro, sabendo que eu ia voltar, me chamou, me contratou, eu tinha chegado em julho e comecei a trabalhar no final de agosto, onde permaneci até o fim do ano. Foi quando passou lá em Rio Claro um representante do Leopoldo Nachbin72 – que foi um grande matemático do IMPA. É importante salientar que a Sociedade Brasileira de Matemática (SBM) não existia. O IMPA era o órgão que representava a matemática e nem pensava em ensino básico. Nem permitia que se pensasse! E esse representante falou: “Vamos ter um curso de verão dado pelo Leopoldo Nachbin, em Brasília. Haverá bolsas disponíveis”. Porque a UnB estava naquela crise histórica. O curso ia acontecer em janeiro de 1967. Professora Carmyra: Então, a senhora chegou em Brasília/DF no contexto da ditadura militar, com a Universidade [UnB] interrompida, corrompida, não é, passando por uma crise, inclusive muitos professores foram mandados embora, não foram?

pensarem nas necessidades das escolas, sem se preocuparem em estabelecer conexões com a matemática escolar” (Matemática elementar de um ponto de vista superior, vol 1, Parte 1, ARITMÉTICA, Editora SPM-SOC, 2009) . Nascido em (1849-1925) em Düsseldorf, realizou destacados trabalhos no campo da teoria das funções, na teoria de grupos, na geometria não euclidiana e nas conexões entre a geometria e a teoria de grupos. Disponível em: https://www.ecured.cu/Felix_Christian_ Klein. Acesso em: 28 jan. 2020.

72 Leopoldo Nachbin (1922-1993) nasceu em Recife/PE. Estudou na Escola Nacional de Engenharia da Universidade do Brasil entre 1939 e 1943. Atuou nas seguintes linhas de pesquisa: sistemas coordenados, topologia, análise funcional, análise complexa e holomorfia. Foi o primeiro matemático a incentivar o desenvolvimento da pesquisa matemática no País. Disponível em: http://www.compassodf.com.br/wp-content/uploads/2017/08/MONICA-MENEZES_-Tese_Uma-historia-di-DEP-de-Matematica-da-UnB.pdf. Acesso em: 28 jan. 2020.

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Professora Nilza: Foram. Teve grande demissão, e a UnB não se recuperava, daí a razão do Nachbin conclamar e mandar procurar em Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, Goiânia, gente para fazer o curso e, quem sabe, se animavam e ficavam por lá. Fiz, em janeiro de 1967, e fui convidada por Nachbin para ficar dando aula na UnB. Nossa! Eram os tempos áureos da UnB, com uma política de muitas contratações, e eu formada apenas há cinco anos. O salário era bem melhor, mas depois só houve perda de valor aquisitivo e o meu salário nunca foi igual ao que atingiu naqueles três primeiros anos. Vim para Brasília e comecei a dar aula também. Um professor do IMPA falou: “Olha, você foi minha aluna de análise, você pode dar cálculo”. Mas, é uma grande diferença ser uma aluna de análise e dar aulas. Esse professor foi um grande expoente também na Educação Matemática, o Roberto Ribeiro Baldino73 – eu acho que todos nós sentimos muito que ele tenha se afastado da SBEM. Ele era muito aberto a responder perguntas. Como, no Rio, eu morava perto do antigo IMPA, eu tirava dúvidas com ele no contraturno. E era muito bom ter alguém para me explicar, porque na faculdade quando eu perguntava: “Olha, eu não estou entendendo isso” – as respostas eram assim: “Não se preocupe, essas coisas a gente só entende uns três anos depois de formado”. E eu tinha perguntado sobre sequências e séries, era fácil explicar. Professora Carmyra: Neste momento, a senhora já estava trabalhando com a licenciatura em matemática... Professora Nilza: Não. Só com bacharelado no início, só cálculo e álgebra. A Educação Matemática praticamente não existia, nem livros. Então, comecei a ver as dificuldades dos alunos. E me falaram assim: “Ah, mas é muito por caso da simbologia, eles não entendem álgebra”. Eles não entendem álgebra, mas depois entra uma simbologia grande no cálculo diferencial e integral. Mas tudo era dado tão memorizado. Você fazia uma demonstração formal. Mas eles não alcançavam ou não se interessavam, não era algo que se fosse percorrer lá as raízes e eu mesma me indagava: “sim, mas por que quiseram definir essa coisa aí, o limite de uma razão incremental? Pelo amor de Deus!” E no fim 73 Possui graduação em Engenharia Civil e Eletricista pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1961), mestrado em Matemática – Stanford University (1965) e doutorado em Matemática pela Associação Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (1972). Atualmente é professor doutor da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, no Curso de Engenharia de Computação. Disponível em: https://bv.fapesp.br/pt/pesquisador/90100/roberto-ribeiro-baldino/. Acesso em: 28 jan. 2020.

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dá certo disso aí servir como coeficiente angular da tangente. Como sabiam que ia servir? Aquelas coisas. Então, enfim, comecei a me interessar mais e a ficar angustiada, porque quase não encontrava respostas. Mas daí aconteceu esse momento em que falei “Olha, mas não está nada mal, é boa essa profissão porque, principalmente, tem coisa à beça a resolver, tem desafio aqui”! Logo percebi não podia atuar de uma maneira retilínea como atuavam muitos dos meus professores. Depois, cheguei às disciplinas para os licenciandos, com ementas não claras e sem bibliografia. Então, eu me aproximei desses alunos e comecei a descobrir outros tipos de dificuldades. Porque muitos já davam aula, claro, não eram concursados e tinham dificuldades. Eles perguntavam, perguntavam muito mais do que os bacharelandos. Aliás, a gente dava aula para todos os cursos da UnB, com exceção de Letras e Relações Internacionais. Pegava Medicina, Física, Química, Educação Física, Nutrição e muitos mais. Em todos os cursos, e o mesmo Cálculo. Como é possível, se os interesses são tão diferentes e as atuações profissionais também? Mas, a par disso, veio principalmente aquela relação com os licenciandos, eles me transmitiam suas dúvidas e eu percebi, claramente, a dissonância entre o curso e o que eles iam fazer depois como professores. Professora Carmyra: Então, aí a senhora já se autoafirmou como professora. Nessa sua posição como professora universitária, o que gerou inquietações e buscas sobre a formação de professores e as aprendizagens matemáticas? Professora Nilza: Bom, foram as aulas que eu dava, percebendo o não entendimento dos estudantes, pois eles olhavam os conteúdos como se estivessem vendo grego, entende? E as dificuldades dos licenciados, que levaram a constituir um Grupo dos Sábados, um grupo quinzenal, eles já davam aulas, se dispunham a vir aos sábados na UnB para a gente conversar sobre as dúvidas da prática deles. Eu chamo de Grupo de Egressos, porque eram egressos da nossa licenciatura. E lá a gente bolava estratégias. Mas as discussões foram chegando num nível de mais exigências, já não dá mais para saber o que fui eu e o que foi cada um deles que problematizou, mas de lá saiu claramente a necessidade de dois projetos, dois programas de reformulação. Saiu um

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projeto de reformulação do ensino de 1.ª a 8.ª série, que seria de 1.º ao 9.º ano, atualmente.74 O projeto da Licenciatura tinha “Álgebra para o Ensino Médio”, “Geometria para o Ensino Médio” e “Estágio” – está formado o professor. E me falaram: “Mas está bom, tem universidade que não tem essas disciplinas para o ensino”. E eu fui perguntar como tinham sido dadas essas disciplinas, se tinham relatórios, não tinha. A sugestão que eu recebi foi usar um livro de Teoria dos Números, de um matemático, em inglês, super formal, daqueles que nem os bacharéis aguentam. Eu agradeci e decidi pensar em outras possibilidades para atuar nessas disciplinas da licenciatura. E daquele Grupo de Egressos surgiu a ideia de um projeto de reformulação para o ensino Fundamental e também de uma reformulação para a Licenciatura em Matemática. “Olha, mas também precisa reformular o curso que nós fizemos, porque nós discutimos, mas foi pouco ainda para o que precisamos”. O primeiro projeto encontrou uma oportunidade ideal, que eram os editais do programa SPEC (Subprograma de Educação para a Ciência) da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), e que podíamos fazer os projetos para serem aplicados nas universidades. Esse projeto saiu na Capes, mas na UnB, no Departamento, houve dificuldades, demorou três anos Alguém falou “Isso de trabalhar com ensino fundamental é para as faculdades mais fracas, essas faculdades particulares, elas cuidam de ensino, nós cuidamos de um ensino bem rigoroso, bem sólido”. E eu complementava “E que uns 20% aprende”. Pois essa era a média de aprovação nas disciplinas. Além disso, professores afastados solicitavam que não se votasse o Projeto da Licenciatura antes de seus retornos, dentre outras alegações. Até que eu percebi e solicitei que se votasse naquele ano, porque, caso contrário, eu teria que recorrer aos órgãos superiores sobre a existência de um projeto que não estava tramitando. Com muito esforço passou no Departamento de Matemática, dali para o Decanato de Graduação e para outros órgãos, os quais apoiaram o projeto, ainda que em algumas instâncias o representante do Departamento de Matemática tenha votado contra. Enfim, o projeto saiu e parece que vou contar um conto de GRIMM, porque eu não falo contos da Carochinha. Foi uma coisa maravilhosa, porque envolveu mais 74 Embora a demanda inicial do grupo fosse a reformulação da 5.ª a 8.ª série, a constatação de falhas e foco na memorização, no ensino das séries iniciais, levou à decisão por um currículo integral.

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dois professores75 do Departamento de Matemática da UnB, envolveu egressos, envolveu outros professores da rede pública e alunos da licenciatura. E a gente discutiu o que a gente já sabia que não estava bom. Discutimos aquilo e acabamos pensando numa metodologia de trabalho que seria: elaborar propostas novas a partir do que sabíamos que era importante ficar no currículo, mas também a partir de uma verificação se aquilo estava à altura da cognição e do interesse do aluno e se aquilo era demanda da sociedade ou uso da sociedade. E, com isso, nós elaborávamos as propostas, aplicávamos em alunos do laboratório, que eram filhos, irmãos ou parentes de funcionários e de professores. Tínhamos turmas diferenciadas, de um a cinco alunos e percebíamos que a maioria do que estava sendo trabalhado era do interesse deles. A gente tinha turmas diferenciadas e sabia o que estava sendo do interesse. Na cognição, eles chegaram a nos ensinar. Eu falei: “ai, não era só eu que queria ensinar os meus professores de matemática, olha esses pirralhinhos aì” Em situações que acabariam envolvendo “multiplicação com dois algarismos”, houve confrontos com o procedimento escolar76. Contudo, o caso mais emblemático de um procedimento novo para nós, trazido pelas crianças, eu não sei se vocês conhecem, foi o caso da subtração. A gente, até hoje em Brasília, tenta convencer os professores a aplicarem a subtração que os alunos nos ensinaram. Porque eles eram expostos a situações que tinham sentido e eles tinham materiais nos quais podiam agir, fosse dinheiro, fosse material mais abstrato. A criança lida com figurinha, com bolinha – era o suporte para o pensamento. Olha a situação: você tem 27 de tal coisa e ele está pedindo 15. Nem dava tempo de perguntar como eles iam fazer, e a criança já ia resolvendo usando os materiais. E nós pensamos que estávamos dificultando: “Olha agora, você tem 35 e ele está te pedindo 28. A criança disse: “Ah, 75

Ana Maria Gomide Taube e Maria Terezinha de Jesus Gaspar.

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Os alunos entendiam como somas de produtos parciais, por exemplo 12x24= 6x24 + 6x24 e calculavam informalmente, sem nenhum algoritmo. Começaram a registrar as somas que faziam. Demos um estímulo para chegarem ao registro formal da escola, sugerindo que registrassem 10 vezes 24 e 2 vezes 24 e somassem. De qualquer forma, no laboratório acabavam somando 240 + 48, sem problema. Um dia me chega uma professora e diz: “Nilza, pelo amor de Deus, me explica o que é isso, que esse menino está me perguntando todo dia”. O menino questionava a recomendação da escola de escrever os produtos parciais em certa ordem estabelecida – 2x24 antes – deixar sempre de pôr o zero final no segundo produto, e então “recuar uma casa” para escrevê-lo e depois somar. A intolerância maior do aluno era com o recuo do segundo produto parcial. Sua argumentação com a professora era que aquilo era impossível, pois, para somar, as casas finais das parcelas deviam estar alinhadas.

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tá”. E comentamos: “Mas você não tem os 8”...Ela: “Não, mas eu tenho mais, eu tenho mais. Aqui, um monte de 10 que eu desmancho e dou 8 palitos lá para ele”. E ainda dou os dois 10 que ele quer. “E quanto sobrou?”. “Olha, do 10 sobrou 2, mas sobrou aqueles no qual eu não mexi”. A novidade para nós era a questão de não juntarem o dez a que recorriam ás unidades que tinham. Uma vez recorrido a um dez, de lá tiravam todas as unidades pedidas. Eu apresentei isso num ICME de 1988, na Hungria, e houve muitas perguntas. Eu tinha sempre a curiosidade de saber “Será que a primeira vez na história foi aqui?” Eu sempre procurava respostas. Então, descobri que isso aí está na Aritmética de Treviso77, esse é o método com que era ensinado subtração – tirar do 10 e a sobra avaliar melhor, quer dizer, juntar com alguma outra que houvesse. Essa busca por materiais também ocorreu quando fomos ensinar frações. Fomos procurar de onde veio e o que não estava bom. E o que não estava bom era: os livros indicavam assim, números naturais vai da unidade, dezena, centena, milhar etc., daí chega no 3.º ano o capítulo vai em uma unidade, parte e começa a dar nomes para aquelas partes e chega a certas quantidades que não existem em uma unidade. “Mas você pode pegar outra unidade.” Mas os exemplos são sempre com uma unidade. Depois descobri um livro de que gostei, não era de Didática da Matemática, mas era A História da Matemática Elementar, de Johannes Tropfke [matemático alemão]78. Eu suei para conseguir esse livro, mas consegui de um conhecido que foi para a Alemanha. O livro mostrava uns ritos, assim, muito legais, de que as frações tinham aparecido quando os homens recolhiam alimentos e, ao fim, tinham que dividir. Ele dá um exemplo de sete peixes que tinham pescado para dividir pelos dez pescadores. Olha, uma boa ideia é dividir u peixe em dez, cada peixe em dez. Cada um vai levar sete partes, uma de cada peixe. Isso é o resultado da divisão de sete por dez, e é também sete vezes aquela unidade básica que você obteve, um sétimo. Era assim que a gente tratava, isso mostrava que a divisão da unidade, em partes iguais, havia nascido de situações reais. A gente olhava muito o que a sociedade usava antes de começar um item. Nas frações, por exemplo, foi meio espantoso, porque, quando os participantes do projeto fizeram uma pesquisa do que era utilizado em sociedade – em folhas de revista, jornais, rótulos, o uso 77

ARITMÉTICA de Treviso. Texto anônimo publicado em Treviso, Itália, 1478.

78 TROPFKE, Johannes. Geschichte der Elementarmathematik. Berlin-New York: Walter de Gruyter, 1980.

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do decimal resultou numa montanha de informações, enquanto a fração apareceu em um livrinho de receitas e em uma manchete assim: “governo dá um terço das terras indígenas”. Tinha um terço escrito em fração. Então, nós percebemos que não era para ensinar fração primeiro, mas sim, o decimal. Mas depois, vimos que havia motivos para um ensino das frações num contexto de coleções. E você pedia: “escreva um número com uma centena, duas dezenas, tantas unidades e uma fração que você quiser”. Aí o aluno escrevia. Então, integrou o ensino dos naturais com as frações. Estou escrevendo um capítulo de livro, sobre uma aprendizagem coesa, concatenada dos conjuntos numéricos, que foi o que a gente explorou depois no projeto. Por isso, realmente o projeto foi uma menina dos meus olhos. Nele, tanto olhamos quanto sugerimos aos professores mudanças para o currículo do 1.º grau. E as mudanças foram aceitas. Não sugeri assim... de eu mandar, não. Havia uma fruição, porque vinham professores e coordenadores da Secretaria, eles levavam as ideias e pediam para eu ir falar. Chamavam até de “o currículo da UnB”79. Professora Carmyra: A senhora estava olhando para o currículo, o qual as pessoas chamavam de currículo da UnB e que influenciou o currículo da educação básica, e também o currículo de formação, isto é, o da licenciatura. Eu queria que a senhora falasse um pouco das disciplinas que a senhora introduziu na licenciatura, quais eram as referências? Professora Nilza: Eu não sei se eu cheguei a falar, mas os alunos pediram também uma reformulação na licenciatura. Então, num primeiro momento, nós aumentamos as disciplinas necessárias para a sala de aula. Ainda não tinham as diretrizes do começo desse século. Nós criamos Álgebra para o ensino do 1.º grau, Álgebra para o ensino do 2.º grau, Geometria para o ensino do 1.º grau e Geometria para o ensino do 2.º grau. Todas com duração de um semestre. E excluímos três disciplinas de conteúdo matemático mais avançado. Depois criamos o Estágio em laboratório de ensino e incluímos a Pesquisa bibliográfica. Ainda não havia tanto material sobre o tema educação matemática, então a pesquisa era sobre o ensino de matemática. Era solicitada, nessa disciplina, a elaboração de uma monografia, pois ainda não se fazia o trabalho de conclusão de curso (TCC). Essa disciplina chamava-se Estágio de Redação sobre o Ensino de Matemática e foi aprovada com esse nome pelo Conselho, 79

Havia também um contexto favorável, que era o da Secretaria de Educação do DF estar desenvolvendo uma reformulação curricular.

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o nome é um pouco estranho, mas ninguém sugeriu outro. Nela, o estudante fazia uma pesquisa, escrevia um texto e, ao longo de um semestre, fazia apresentações semanais. Era como um TCC mesmo, com orientação. Professora Carmyra: Fale um pouco sobre o estágio. Professora Nilza: Eram três etapas, duas ocorrendo no laboratório de ensino. Nós aproveitamos o laboratório que era conduzido por mim, auxiliada pela equipe do projeto. Os alunos de graduação, aos pares, preparavam uma aula, uma oficina para ministrar, no laboratório de ensino, a um ou dois alunos do ensino básico, tudo era gravado. Eles observavam e percebiam as dificuldades, como, por exemplo: o cubo de mil unidades da Maria Montessori os alunos não conheciam, eles já tinham visto a placa, visto que tinha 100 unidades. “E o cubo, tem quantas placas?” “Seis”. “Seis?”. E os graduandos foram na minha sala, pedindo ajuda com essa questão. Porque eu falava que eles não deviam dar a resposta direto, tem que saber onde estava a dificuldade. Eu cheguei lá e falei “Eu acho que tem dez. Eu vou mostrar”. E empilhei dez placas “E vocês, quantas placas acham que tem no cubo?”. Eles pegaram um cubo e foram recobrindo, cada face, com uma placa, o que conseguiram com seis delas. E era isso mesmo que tinha que ocorrer para o obstáculo ficar bem claro. Então, havia essa etapa do estágio. Depois havia os minicursos, que eram a segunda etapa. A gente imprimia a propaganda em mimeógrafo, minicursos para alunos de tal série ou o nome do minicurso, o assunto e distribuía nas escolas. Os estagiários davam os minicursos, na universidade, em turmas de 12 a 20 alunos, que se inscreviam previamente por telefone. Já era uma experiência para lidar com mais alunos e, só depois disso tudo, é que eles iam para a sala de aula. Eu estava muito entusiasmada. Lendo muito mais! Eu ia nas livrarias, mesmo havendo poucas referências. Pena que o livro, na atualidade, está acabando. Uma belíssima e importante livraria de Paris fechou e agora só vende por encomenda, via catálogo. O exemplar encomendado é impresso em uma máquina moderna e o prazo de entrega vai depender do livro. Professora Carmyra: Eu vou trazer um outro assunto. A senhora viveu momentos de embate na universidade, com as ideias dos matemáticos puros do Departamento, que entendiam que a licenciatura era um bacharelado; e viveu o retorno do professor, que saiu da formação, cheio de dúvidas. A senhora pensou no currículo de formação do professor e no currículo da educação básica? 242

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Professora Nilza: Sobre esse ponto, eu queria chamar a atenção, porque acho que é o princípio fundamental no que faço: sempre que eu penso em currículo para a escola básica, eu penso, também, no currículo de formação do professor; para mim, é uma coisa que não pode ser feita sem a outra. Pode até sair uma e depois outra, mas você tem que ter em mente que o seu objetivo é chegar nas duas. Professora Carmyra: Certo dia, a senhora falou assim: “Olha, naquele momento, eu estava no tempo moderno! O ser humano em que se pensava era o da modernidade”. Professora Nilza: Eu não sabia que eu estava produzindo material e projeto para um tempo chamado moderno. A escola era monótona, recebia os alunos, tentava impor. Mas quando os alunos, membros do projeto, iam desenvolver alguma proposta, ela era aberta a isso. A escola era estável, ela não tinha violência, não tinha tráfico de drogas. A escola já era uma construção social, mas este século mudou muito. As coisas que vieram para o Brasil demoraram a chegar. Agora seria necessário um currículo apropriado ao pós-moderno. Professora Carmyra: Eu queria saber da senhora o seguinte, naquela época, pensou esse currículo dentro da modernidade? Professora Nilza: Não, era um currículo para a época, que eu considerava moderno. Me dei conta, depois, de que ele tinha sido pensando numa escola estável, para alunos quase que sem televisão e sem celular, seguramente. Os alunos do ensino fundamental, que participavam das oficinas, tinham poder de concentração por exemplo, se era uma oficina de que eles gostavam, ou se era sexta-feira à tarde, que tinha jogos, eles não iam embora, eles queriam jogar todos os jogos, perguntavam para que serviam os outros, como se jogava os que ainda não tinham aprendido. Então, era um interesse... quando você começa a olhar de novo a escola, percebe que as coisas estão um pouco diferentes. Professora Carmyra: Com relação às bases do currículo anterior, o que a senhora mudaria hoje, o que a senhora tem pensado? Professora Nilza: Eu vi, quando eu já era aposentada, que, quando eu aplicava aqueles jogos com as crianças da família, de amigos, antes os alunos diziam “Oba, tem outro”. Nos tempos mais recentes passaram a jogar dois ou três e falavam “Vamos fazer outra coisa, tem filme na televisão?”. Pois é,

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sintetizando, nosso currículo anterior foi centrado na cognição, no interesse, nas demandas sociais e na autenticidade matemática compreensível para os alunos. Então, eu percebi que a matemática tinha a mostrar seus jardins subterrâneos, seu enraizamento de tudo com tudo. Por exemplo, como a fração se desenvolveu ao longo dos tempos, não ficaram uns cem anos estudando como é que se somava aqueles pedaços de uma unidade. Não é nada disso. Então, eu acho que essa maneira de passar a matemática pode ser chamada de rigor substancial. É um sentido muito coeso, muito consistente de matemática. No IMPA eu aprendi a sentir quando uma ideia não estava bem explicada, sem base. Então, o que eu explicava para os alunos tinha que ter essa coesão firme e grande no que estávamos ensinando. E o que a sociedade nos mostrou: que os decimais eram mais usados, que as grandezas não eram usadas assim, homogeneamente, que a unidade mais usual de medida era o centésimo ou, às vezes, era o milésimo da unidade padrão. Quanto mililitro a gente achou por aí, não é, nas pesquisas. E não tinha centilitro. Nós ensinávamos as unidades mais usuais, quilômetro, metro e centímetro. Já quando chegava no litro, ia litro e mililitro. Quilolitro? Teve uma vez que eu ouvi uma receita italiana que falava um hexo de manteiga. Aí eu imaginei, mas, meu Deus, um hexo! Eles usam lá, um hexograma, que é 100 gramas. Então esse ainda é o uso social, mas tem que passar para o novo. O novo não existe, o novo está em elaboração. Mas o que muda? A demanda social é bem diferente. A sociedade é até chamada modernidade líquida, ela ficou fragmentada, multifacetada, ela é rápida, ela muda. O interesse dos alunos é igual ao interesse que eles têm no celular, muda para lá, volta para cá. É assim. Então, há essa fragmentação. A escola não é mais estável como era, a escola tem violência. Então, a cognição do aluno manifesta-se de outro modo. A escola vai ter que considerar essa redução do poder de concentração do aluno médio. Eu ainda entro em sala de aula, quando me dão chance, e percebo, às vezes, que a atenção é zero... E o maior temor que sinto nos ambientes que eu vou, seja de cinema, num filme, seja de show, uma música, seja de concerto, é: que atenção, que elã aquilo está criando? Quer dizer, eu nunca fui ao Rock in Rio, daí eu acho que, eu penso que... Então, o poder de concentração diminuiu, mas há interesse, só que não é concentrado. E os livros? Esse ano eu tive a oportunidade de fazer análise de um livro do 8.º ano. Tinha um “tratado” de estatística, incluindo moda, mediana etc. Eu falei: “Olha só, ele vai aprender isso se fizer uma pesquisa e 244

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na análise começar aparecer”. Tinha também um “tratado” de geometria sobre triângulo e figuras planas muito sem aplicação. Não dá! E eu entrava em certas aulas, e o professor estava falando sozinho! Eu tenho uma exceção na família, que presta atenção em tudo. É um neto que fala para os colegas de sala: “Fiquem quietos que eu quero aprender aqui, na aula, eu venho aqui para aprender, em casa eu não quero ter que estudar mais nada. Eu quero é aqui!”. Mas, isso é uma raridade atualmente. Então, a escola tem que considerar a fragmentação, a diminuição da duração do interesse, não é a diminuição do interesse. Agora, a matemática com raízes, com os seus jardins, funciona! É só eu dar uma palavrinha: “E vocês sabem por quê? Ninguém visitou um marceneiro, conhece como conserta tal coisa?”. Os alunos estranham porque são coisas que não se pergunta na sala. Por exemplo, a relação entre um triângulo materializado num papel suspenso pelo baricentro. Chame um físico para ele explicar porque aquilo é um centro de massa e, não apenas porque, na Matemática, é o encontro das medianas, é porque tem uma relação com a Física. Eu acho que o currículo vai ter que ser interdisciplinar. Se vocês perguntarem o que eu acho da BNCC (Base Nacional Comum Curricular), é análoga a uma excrecência do final do século XVIII, um rol de assuntos para alunos. Não dá, tem que ser diferente! Mas aí vocês vão falar, “Mas vai ficar tudo fragmentado?”. E tem a questão da linguagem. Como a linguagem importa! Vocês conhecem a carta de 207080? É linda, maravilhosa, escrita seriamente. Eu a conheci por meio de dois blogueiros, dois jovenzinhos, pedindo desculpas, mas que eles iam falar umas coisas que achavam importante; eu peguei um pedaço da carta já em rap. Em resumo, a carta de 2070 fala que ele tinha nascido em 2020, agora tinha 50 anos e já era bastante idoso, porque essa era a idade média que as pessoas viviam. Que houve uma época de muitos drones e carros voadores, que passou rápido, e em outra época em que ele tinha de beber oito copos de água por dia, mas que agora ele não podia beber mais do que meio copo, pois não havia mais água potável. E outras coisas como o ozônio, a elevação do clima, os agrotóxicos... Então, o que isso tem a ver? Se puser isso, desse jeito, na frente de uma sala de 8.º ano, eles ouvem até o fim e ficam comentando depois. Como eu gosto de alternar linguagens, eu gosto muito daquele músico Leonard Cohen, da música Aleluia (Hallelujah). Eu falo assim: 80 Carta publicada pela revista Crónica de los tiempos, em abril de 2002. Disponível em: https://pt.calameo.com/read/000421034003bc66e9831. Acesso em: 28 jan. 2020.

Sessão Memória do IV ENAPHEM: textualização da entrevista com a...

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“Deveria ter alguém lendo essa carta com essa música no fundo, como contraponto”. Eu estou pensando nessas coisas que tocam a maioria das pessoas. Professora Carmyra: Bem a fala da professora Luzia81 pela manhã, não é? Professora Nilza: Em geral, uma linguagem toca mais. Então eu penso que vai ficar tudo fragmentado, não dá mais para colocar tratados nos textos. Então, eu penso num currículo com fragmentações em várias linguagens e súmulas, não assim que acaba porque o semestre acabou. Não, gente, ele aprendeu uma porção de coisas, lá um ano e meio depois: “Olha, lembra aquelas coisas? Elas se casam um pouco assim”. Elas casam porque eu acredito nesse conhecimento matemático. Agora, poderiam me perguntar: “Você acha que vai desaparecer o interesse mais duradouro em um conhecimento?” Não, acho que ele vai aparecendo na medida em que a pessoa cresce e vai definindo os seus gostos, as suas tendências. Daí ele quer, ele quer ser, quer ler mais, quer saber, quer entender. Só que, em geral, não há bons livros. Professora Carmyra: Professora Nilza, eu vou agora pedir licença para senhora, para a gente ampliar a roda de conversa. Se alguém quiser conversar com ela, vamos ficar todos juntos. Professora Elizabete82: Muito obrigada, professora. Eu leio os seus textos há muito tempo, então, é muito emocionante vê-la e ouvi-la. Eu também me emocionei quando a senhora contou que fez o Normal e o Científico. Isso é muito especial. E o meu pedido é para a senhora falar um pouquinho sobre como essa experiência de ter feito os cursos Normal e o Científico fez parte da sua trajetória. Professora Nilza: Olha, em parte eu acho que a Escola Normal preparava mais o professor para dar aula de 1.ª a 4.ª série, e o motivava a procurar, não eram todos que procuravam não, mas se falava em teorias novas, falava-se em Dewey83, incentivava-se a leitura de capítulos. Em linguagem, já havia muitas propostas novas de alfabetização. Não apresentavam extensamente, mas você sabia que aquela proposta tinha criticado isso, que aquela outra era mais baseada naquilo. Em Matemática, nada de novo. Você tinha aula de sociologia, 81

Mesa-redonda realizada no IV ENAPHEM, na qual a professora Luzia Aparecida de Souza da UFMS tratou de outras linguagens e diferentes sensibilidades.

82

Elizabete Zardo Burigo.

83

John Dewey (1859-1952) nasceu em Nova Iorque/EUA. Foi filósofo e pedagogista.

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História da Educação Matemática e formação de professores: aproximações possíveis


biologia, de prática de ensino, elas falavam coisa com coisa. Eu escutava muito as aulas do Normal, embora eu as achasse incompletas. E, como eu fazia o Científico, eu aproveitei as ligações. Então, eu ia para o professor de Matemática e falava assim: “Parece que tem um problema na formação dos números que as crianças aprendem”. O professor respondeu que elas podem aprender a contar sem entender bem o número. Pois o danado do meu professor de matemática do Científico, Argante Dimenco, até me emprestou dois livrinhos de argentinos falando na elaboração do conceito de número pela criança. Em Ciências, eu achava assim: “Ah, mas ensinam muito raso, muito por cima para dar aulas de Ciências Naturais!”, mas o professor do Científico era um espetáculo, eu perguntava e usava no Normal tudo o que ele falava. Os colegas e professores babavam: “Nossa, quanto ela leu a mais?”. Leu nada! Aprendia lá no outro curso, entende? Então, eu vi que tem duas vertentes diferentes, mas que, para mim, ali, elas não entraram em choque. Elas me ajudaram, uma ajudava a completar a outra. Professor Luiz Carlos84: Muito obrigado, professora, pela sua presença e a sua disponibilidade em contribuir, isso é importante. Eu acho que você tem uma contribuição importantíssima na organização da área, no Brasil, e gostaria de pedir a sua gentileza de mencionar alguma coisa que aconteceu na década de 1980, a qual precedeu a organização, a criação da área, do ponto de vista institucional, lembrando dos colegas que já partiram, como o professor Damasceno85, se você pudesse falar uma palavrinha sobre ele, ele já não está aqui mais entre nós. E ele foi importante. E o Araújo86, do Rio Grande do Norte. É lógico que a sua riquíssima trajetória foi percorrida com vários colegas. Eu queria que você falasse um pouquinho desses companheiros nossos que já não estão entre nós. Professor Nilza: Oi, grande amigo Luiz. Sobre as pessoas com as quais convivi na SBEM, como o Baldino que eu já mencionei. O Damasceno chegou a ser meu colega pelo menos de universidade. Ah, o Araújo, com quem eu compartilhei a Diretoria, eu era diretora e ele era secretário, com muito profissionalismo e amizade. Ambos, Damasceno e Araújo, faleceram devido ao câncer, doença insidiosa, foi muito triste. E Damasceno era nossa esperança de 84

Luiz Carlos Pais.

85

José Antônio Elias Damasceno.

86

Antônio Pinheiro de Araújo.

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ajuda para uma pós-graduação continuada, boa, sabe. Mas infelizmente não deu! A vivência de SBEM foi uma coisa assim: “Queria isso na vida? Tome”. Caindo do céu. Só tinha livros em inglês. Eu lembro do 4.º ENEM87 em que teve uma sala para publicações em português. Foi um arrepio de ver. Eram umas 20 publicações, mas que tinham sido publicadas aqui no Brasil. Esses companheiros dos primeiros tempos, a gente não esquece, porque foi uma coisa muito boa. O Damasceno eu conheci depois, já em Brasília. Ele foi professor de escola pública, exerceu cargo de coordenador na escola pública e depois ele fez doutorado. Daí ele fez um concurso para a Faculdade de Educação da UnB e esteve lá. E você imagina o que é ganhar uma pessoa como ele. Ele tinha aquele brilho que a gente sabia, eu tinha esperança de que uma pós-graduação tivesse duas pessoas profundamente envolvidas, ele e Cristiano. Porque em Brasília, em termos de Educação Matemática, temos um carma! – Tem gente trabalhando? Tem. Gente boa? Sim. Fazendo mestrado? Doutorado? Sim. Mas também muitos fazem mestrado e doutorado fora. Houve uma pós-graduação em Educação Matemática forte? Houve, na era Cristiano Muniz, na Faculdade de Educação da UnB, antes de ele se aposentar. Vocês sabem a produção e o número de orientações dele? Foi a época de ouro! Quem trabalhava com ele?88 O Departamento de Matemática da UnB está começando agora a constituir a área de Educação Matemática, pelas gerações novas, porque antes só tinha matemática pura, demoraram muito e puseram matemática aplicada, demoraram mais e puseram estatística. Agora há uns três anos pode ter Educação Matemática. O Departamento de Matemática da UnB tem tido uma postura mais recente de chamar a área de Educação Matemática para a escola de verão. A escola de verão é de altíssimo nível, mas eu acho que nesse altíssimo nível faltam raízes à beça, faltam jardins subterrâneos. E parece uma Matemática para estocar. Professor Célia89: Eu queria parabenizar vocês e queria ouvir um pouco mais, até porque a gente teve recentemente no SIPEM (Seminário 87

IV Encontro Nacional de Educação Matemática realizado em janeiro de 1992 na cidade de Blumenau/SC.

88 O professor Dr. Cristiano Alberto Muniz da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (FE/UnB), entre 2002 e 2017 orientou 76 trabalhos de pesquisa em nível de iniciação científica, mestrado e doutorado. Alguns dos orientandos deste professor juntamente com a SBEM regional DF foram os responsáveis pela divulgação da Educação Matemática em escolas públicas e particulares do DF. 89

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Maria Célia Leme da Silva.

História da Educação Matemática e formação de professores: aproximações possíveis


Internacional de Pesquisa em Educação Matemática) uma retrospectiva, uma tentativa de fazer um balanço dos 30 anos da Sociedade Brasileira de Educação Matemática, e acho que, como a gente ouviu muito o seu relato, a constituição de professora, de pesquisadora, a senhora poderia falar um pouco mais sobre esse movimento e essa sua atuação, e como é que foi esse constituir-se enquanto grupo de educadores de matemáticos ao longo desse tempo? Professora Nilza: Olha, eu lembro bem que, no início, duas coisas foram muito importantes, foram coirmãos da Educação Matemática, da SBEM, que foi o Projeto SPEC90, o qual multiplicou o interesse pela educação matemática e pelo ensino de ciências no Brasil inteiro e a CAPES ter financiado os primeiros centros de pesquisa91, que começaram a pipocar. Essas duas coisas que surgiram logo depois da SBEM. Para mim, com mais cinco anos, a gente estaria com o ensino de matemática resolvido no Brasil. Nós tínhamos juntado todos os experts que já trabalhavam, que tinham participado de congressos no exterior. Havia o programa SPEC esparramando a educação matemática. Mas eu via aquele futuro lindo, que não foi acontecendo. E teve um momento acirrado da pesquisa acadêmica ficar muito evidente na Educação Matemática, porque a área queria o seu lugar na pesquisa e ela não tinha dentro da universidade. Então ela acirrou tanto a metodologia da pesquisa e quando me perguntam: “O professor do projeto SPEC da UnB foi investigativo”? Foi. “Teve metodologia da pesquisa no projeto”? Teve. “Qual foi”? Eu explico que foi investigativo, interventivo e mostro um esquema de elipses que apresentam o que foi alimentado, o que foi retroalimentado. Mas não teve essa coisa de se amarrar à pesquisa em detalhes de normas e quesitos tão exigentes para o qual evoluiu a maioria das pesquisas em Educação matemática. E foi aí que começou a definhar nossa alma de busca de um ensino vivo, consistente, apropriado aos alunos e à sociedade. Eu acho que isso começa a ser ultrapassado, como as pesquisas que o Cristiano orientou em Brasília, e que são nitidamente para a escola. O Seminário “Nilza Bertoni” também. E até agora nós estamos praticamente no mesmo. E vamos fundar outra SBEM, por que agora já estamos 90 Subprograma de Educação para a Ciência Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). 91

da

CAPES

(Coordenação

de

A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) foi criada em 1951 com a finalidade de aperfeiçoar o pessoal de nível superior. Em 1970, a CAPES passou a atuar junto aos centros regionais de pós graduação. Disponível em: https://www. capes.gov.br/historia-e-missao. Acesso em: 28 jan. 2020.

Sessão Memória do IV ENAPHEM: textualização da entrevista com a...

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reconhecidos? Porque a educação matemática, o ensino de matemática nós ainda não resolvemos no Brasil. Professora Carmyra: Como nós somos muito pontuais, eu gostaria de terminar contando para vocês uma fala da nossa convidada numa entrevista dada ao grupo COMPASSODF, que nos deixou muito emocionadas. Era um final de tarde meio chuvoso, a gente ali conversando, a Edilene92 pelo Skype, e ela disse: “Meu Deus, se eu pudesse ser feliz, se gostarem dessa fala, que bom, eu vou agradecer. Mas se não gostarem, se detestarem, mas se ela servir para alguma coisa em sala de aula, se alguém pegar e levar, se algum pensamento pegar e voltar a florescer, já valeu”! (aplausos e Carmyra cantou a música Luzes da Ribalta93, acompanhada pelo professor Odair Marques ao violão). Ontem falaram aqui: “Não vamos largar as mãos”! E eu digo para vocês: “Não percamos a esperança”! Muito grata pela presença, um bom final de tarde. Professora Nilza: Então, interrompendo um pouquinho esse elã que a Carmyra nos deu, eu queria chamar atenção, quem não entendeu, é isso que eu estou chamando de novas linguagens. Elas construíram o mesmo pensamento. Essa música que a Carmyra cantou, Luzes da Ribalta, consolidou numa outra linguagem o que conversamos. É isso que eu tenho acreditado também quando eu falo em uso das linguagens. Obrigada. Obrigada a todos. Professora Carmyra: A professora Nilza encerra esse momento de a gente pensar o tema do evento. É perfeito! Formação de professores, história, cultura e política.

Considerações finais A Sessão Memória é realizada em todos os Enaphem e tem como objetivo socializar com os participantes do evento experiências de pessoas que contribuem ou contribuíram de forma relevante para o desenvolvimento do campo Educação Matemática. No 4º Enaphem, a professora Carmyra Oliveira Batista convidou a professora Nilza Bertoni a falar sobre seu caminho profissional, suas ideias sobre 92

Edilene Simões Costa dos Santos, professora da UFMS.

93 Música do filme Luzes da Ribalta, em inglês Limelight, escrito, dirigido e interpretado por Charles Chaplin. Estreou em 23 de outubro de 1952. Disponível em: https://pt.wikipedia. org/wiki/Luzes_da_Ribalta. Acesso em: 28 jan. 2020.

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História da Educação Matemática e formação de professores: aproximações possíveis


o ensino e a aprendizagem da matemática escolar no passado, no presente e no futuro. Ao final da entrevista, a professora Carmyra Batista cantou a música Luzes da Ribalta a fim de exemplificar e ressaltar a importância do uso de outras linguagens na promoção das aprendizagens e sintetizar algumas palavras da professora Nilza. Meu Deus, [...] se gostarem dessa fala, que bom, eu vou agradecer. [...] Se ela servir para alguma coisa em sala de aula, se alguém pegar e levar, se algum pensamento pegar e voltar a florescer, já valeu! (BERTONI, 2018). ...o ideal que sempre nos acalentou renascerá em outros corações. (Música do filme Luzes da Ribalta). Por fim, é possível perceber, na relação de intertextualidade entre a fala da entrevistada e a letra da canção, o desejo de uma educadora, sua mais profunda esperança em que o jardim floresça e traga frutos à nossa sociedade.

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Sobre os Organizadores Maria Célia Leme da Silva Bacharel e Licenciada em Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1988), Mestre em Educação Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1997), Doutora em Educação (Currículo) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2002). Realizou estágio pós-doutoral na Universidade Nova de Lisboa (2006) e na Université Paris 11 (2015). É pesquisadora do GHEMAT – Grupo de Pesquisa de História da Educação Matemática no Brasil desde 2005. Professora Associada da UNIFESP – Universidade Federal de São Paulo. Professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde da UNIFESP. Editora Adjunta da HISTEMAT – Revista de História da Educação Matemática desde 2015.

Thiago Pedro Pinto Professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS; Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática do INMA; Graduado em Licenciatura em Matemática pela Faculdade Estadual de Filosofia Ciências e Letras de Jacarezinho – PR (2005) atual UENP. Mestre em Educação Matemática pela UNESP – Rio Claro (2009). Doutor em Educação para a Ciência UNESP – Bauru (2013). Desde 2006 está vinculado ao GHOEM, Grupo de História Oral e Educação Matemática. Desde 2011 está vinculado ao Grupo História da Educação Matemática em Pesquisa (HEMEP). Editor da Revista Perspectivas da Educação Matemática (2020).



Sobre os Autores José Manuel Matos Iniciou a sua carreira na Escola do Magistério de Beja no sul de Portugal e durante alguns anos foi professor de matemática do ensino secundário. Concluiu o mestrado na Universidade de Boston, em 1985, e o doutoramento na Universidade da Geórgia, em 1999, ambos na área de Educação Matemática e durante 20 anos lecionou na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa. Atualmente é professor visitante na Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. Desempenhou diversos cargos na Associação de Professores de Matemática, na Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação e na Sociedade Portuguesa de Investigação em Educação Matemática. Foi editor da primeira revista de investigação portuguesa em Educação Matemática e coordenador de um centro de investigação em educação. Até ao momento orientou 18 dissertações de doutoramento. Integrou equipas de investigação centradas na aprendizagem da matemática, na cultura da aula de matemática, no sucesso escolar e em estudos de carácter histórico e é autor e editor de diversos livros de investigação sobre estes temas.

Dolores Carrillo Gallego Ees Licenciada en Ciencias Matemáticas por la Universidad de Zaragoza y Licenciada y Doctora en Pedagogía por la Universidad de Murcia. En la actualidad es profesora titular del Área de conocimiento “Didáctica de las Matemáticas”, y su docencia ha estado dirigida a la formación del profesorado en ese ámbito. Sus líneas de investigación prioritarias son la Historia de


la Educación Matemática y la Didáctica de las Matemáticas en la Educación Infantil. Ha sido subdirectora de la Escuela de Magisterio de la Universidad de Murcia y vicedecana de la Facultad de Educación. Es miembro del Centro de Estudios sobre la Memoria Educativa (CEME) de la Universidad de Murcia desde su fundación y forma parte del equipo que gestiona el funcionamiento del Museo Virtual de Historia de la Educación (MUVHE). Ha sido secretaria del CEME (2013-2017) y, en la actualidad, es directora del mismo.

Antonio Vicente Marafioti Garnica. Livre-docente pela Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) – Câmpus de Bauru e doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da UNESP – Câmpus de Rio Claro. Pós-doutorado na Indiana University Purdue University at Indianapolis, Estados Unidos. Professor Associado do Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências da UNESP – Câmpus de Bauru, credenciado no Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência (UNESP-Bauru) e no Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática (UNESP-Rio Claro). É coordenador do Grupo de Pesquisa História Oral e Educação Matemática (GHOEM).

Elisabete Zardo Búrigo Licenciada em Matemática e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (2004). Realizou estágio pós-doutoral no Service d’Histoire de l’Éducation do Institut National de Recherches Pédagogiques, em Paris, 2011. Professora Associada do Instituto de Matemática e Estatística e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Matemática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Participa do GHEMAT Brasil – Grupo Associado de Estudos e Pesquisas sobre História da Educação Matemática. Coordena o projeto CNPq “Estudar para Ensinar: Práticas e Saberes Matemáticos nas Escolas Normais do Rio Grande do Sul (1889-1970)”.

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História da Educação Matemática e formação de professores: aproximações possíveis


Kátia Guerchi Gonzales Possui graduação em Licenciatura em Matemática pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), mestrado em Educação Matemática pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) e doutorado em Educação para a Ciência pela Unesp. Atua como docente do ensino superior na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) – Nova Andradina e como professora do Programa de Mestrado em Ensino de Ciências e Matemática da Uniderp. É membro do Grupo de História Oral e Educação Matemática (Ghoem). Desenvolve pesquisas na área da Educação Matemática, atuando principalmente na História da Educação Matemática.

Maria Laura Magalhães Gomes Licenciada e Mestre em Matemática pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Professora titular aposentada da Universidade Federal de Minas Gerais, em que atua como voluntária no Departamento de Matemática e no Programa de Pós-Graduação em Educação. Bolsista de Produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e editora associada do periódico Bolema-Boletim de Educação Matemática (IGCE-UNESP-Rio Claro). Suas pesquisas atuais se desenvolvem em temáticas da História da Educação Matemática.

Mônica Menezes de Souza Possui graduação em Ciências com Habilitação em Matemática pelo Centro de Ensino Unificado de Brasília (1989), mestrado em Educação pela Universidade de Brasília – UnB (2003), mestrado em Educação pela Universidade Católica de Brasília – UCB (2002) e doutorado em Educação Matemática pela Universidade Anhanguera de São Paulo – UNIAN (2015). Atualmente é professora aposentada da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal – SEEDF. Tem experiência na área de Matemática, com ênfase em Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: geometria, atividade interdisciplinar, ensino e aprendizagem, educação matemática e lúdico. Participa do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação Matemática – COMPASSODF e do Grupo Associado de Estudos e Pesquisas sobre História da Educação Matemática – GHEMAT Brasil.

Sobre os Autores

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Carmyra Oliveira Batista Doutorado em Educação pela Universidade de Brasília – UnB (2008), mestrado em Educação pela Universidade de Brasília – UnB (2003), especialização em Educação Matemática pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL (2005), especialização em Fundamentos Educacionais para a Formação dos Profissionais para a Educação Básica – início de escolarização pela Universidade de Brasília – UnB (2003). Professora aposentada da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal – SEEDF. Participa do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação Matemática – COMPASSODF e do Grupo Associado de Estudos e Pesquisas sobre História da Educação Matemática – GHEMAT Brasil.

Luzia Aparecida de Souza Possui graduação em Licenciatura em Matemática pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2003), mestrado e doutorado em Educação Matemática pela Universidade Estadual Paulista, campus de Rio Claro. Atualmente realiza Pós-Doutorado na Escola de Educação da Universidade de Cape Town na África do Sul. É coordenadora do Grupo História da Educação Matemática em Pesquisa- HEMEP e membro do Grupo História Oral e Educação Matemática- GHOEM. É professora associada do Instituto de Matemática da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Campo Grande. Atualmente trabalha principalmente com os seguintes temas: História da Educação Matemática, Narrativas e História Oral.

Adair Mendes Nacarato Licenciada em Matemática pela PUC-Campinas, Mestra e Doutora pela FE/Unicamp. Atua no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco, campus Itatiba, na linha de pesquisa Educação Sociedade e Processos Formativos e no curso de Pedagogia. É líder dos grupos de pesquisa Histórias de Formação de Professores que Ensinam Matemática (Hifopem) e Grupo Colaborativo em Matemática (Grucomat). Pesquisadora Produtividade CNPq nível 2.

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História da Educação Matemática e formação de professores: aproximações possíveis


Bruno Alves Dassie Graduado em Matemática pela Universidade Federal Fluminense (1998), Mestre em Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2001) e Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2008). Professor Associado da Universidade Federal Fluminense, com atuação na graduação (Licenciatura em Matemática) e na Pós-Graduação (PPG-FEUFF). É líder do Grupo de Pesquisa HEDUMAT – História e Educação Matemática. Integra também a equipe do Laboratório de Educação Matemática (LABEM/UFF).

Edilene Simões Costa dos Santos Doutora em Educação em Ciências e Matemática pela Universidade de Brasília, mestre na área de Educação / Ensino e Aprendizagem pela Universidade Católica de Brasília, Especialização em Manejo de recursos ambientais pela Universidade Federal de MS e graduação em Ciências Habilitação em Matemática pelo UniCeub/D.F. Professora do Instituto de Matemática da UFMS – Programa de Pós-graduação em Educação Matemática da UFMS a partir de 2015. Faz parte dos grupos de pesquisa: Compasso-DF, GPHEME, GHEMAT.

Carla Regina Mariano da Silva Graduada em Licenciatura Matemática pela Faculdade Estadual de Filosofia Ciências e Letras de Jacarezinho (2004), mestre em Educação Matemática pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2008) e doutora em Educação Matemática pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2015). Professora Adjunta do Instituto de Matemática da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, docente do Curso de Mestrado da Pós-graduação em Educação Matemática – PPGEDUMAT.

Sobre os Autores

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