História Social da Infância na Amazônia

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HISTÓRIA SOCIAL DA INFÂNCIA NA AMAZÔNIA


Comissão Científica: Casimira Grandi (Università di Trento – Itália) Chantal Cramoussel ( Universidad de Guadalajara – México) João dos Santos Ramalho Cosme (Universidade de Lisboa – Portugal) Mark Harris (University of Saint Andrews – Escócia) José Luis Ruiz-Peinado Alonso (Universitat de Barcelona – Espanha) Oscar de la Torre (University of North Carolina – Estados Unidos) Maria Luiza Ugarte (Universidade Federal do Amazonas) Luis Eduardo Aragón Vaca (Universidade Federal do Pará) Rosa Elizabeth Acevedo Marin (Universidade Federal do Pará) Érico Silva Alves Muniz (Universidade Federal do Pará) Clarice Nascimento de Melo (Universidade Federal do Pará) Lígia Terezinha Lopes Simonian (Universidade Federal do Pará)


FRANCIANE GAMA LACERDA ALBA BARBOSA PESSOA (Organizadoras)

HISTÓRIA SOCIAL DA INFÂNCIA NA AMAZÔNIA

2021


Copyright © 2021 As autoras 1ª Edição Direção editorial: José Roberto Marinho

Revisão: Fernando Paulo Neto Capa: Fabrício Ribeiro Projeto gráfico e diagramação: Fabrício Ribeiro

Edição revisada segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Dados Internacionais de Catalogação na publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) História social da infância na Amazônia / organização Franciane Gama Lacerda, Alba Barbosa Pessoa. – 1. ed. – São Paulo: Livraria da Física, 2021. -- (Florestas; 1) Vários autores. ISBN 978-65-5563-155-5 1. Amazônia - Aspectos sociais 2. Infância - Aspecto social 3. História social - Brasil 4. História social - Historiografia 5. Políticas públicas I. Lacerda, Franciane Gama. II. Pessoa, Alba Barbosa. III. Série.

21-87606

CDD-301.09811 Índices para catálogo sistemático: 1. Amazônia: Antropologia 301.09811 Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida sejam quais forem os meios empregados sem a permissão da Editora. Aos infratores aplicam-se as sanções previstas nos artigos 102, 104, 106 e 107 da Lei Nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998

Editora Livraria da Física www.livrariadafisica.com.br


APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO

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riado em 2004, o Programa de Pós-Graduação em História Social (PPHIST), vinculado ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Federal do Pará (UFPA), tem construídos estudos sobre a Amazônia invariavelmente alinhados às tendências historiográficas nacionais e internacionais. Com um diversificado perfil do corpo docente, que também se observa nas linhas de investigação, o programa tem se tornado um espaço importante de contribuição e renovação historiográfica com produção significativa em que se inserem Dissertações de Mestrado e Teses de Doutorado, relevantes nas suas temáticas e na articulação que estabelecem com os novos enfoques historiográficos. A percepção mais ampla da Amazônia de florestas e cortadas por muitos cursos d’água que tornam à terra úmida e colabora na sua fertilização, mas que também permitem os deslocamentos e comunicações, exige um exercício de investigação e uma perspectiva de análise que valorize as experiências vividas nesta vasta região e as múltiplas conexões, fluxos e compulsões internas e externas, historicamente construídas. O caleidoscópio movimento das populações e a forças das instituições deram lugar a projeções de dramas e experiências sociais diversas e de complexidade em relevo, o que tem imprimido ao programa um caráter inovador e renovador, com novas, instigantes e necessárias abordagens. Os livros que aqui apresentamos, neste ano de 2021, em que o programa completou 10 anos de criação do doutorado e 17 anos de existência, fazem parte da Coleção Floresta, vinculada ao IFCH, e são resultados dos trabalhos de professores e egressos do PPHIST. Revelam um promissor momento da pesquisa histórica na Amazônia abordando temas e temporalidades variadas que oferecem, como observaremos, novos aportes e novas interpretações sobre a Amazônia. Um dos iniciais objetivos comuns destes livros, é o de mostrar as variedade e complexidades do espaço amazônico, seu passado histórico e os fatores condicionantes que se tem mantido vigente em sua atualidade, assim como as relações produzidas com a introdução de novos enfoques de estudos. Assim, se foi perfilado um espectro de temas relacionados com questões espaciais,


identitárias e de poder. Experiências comuns, valores partilhados e sentimentos de pertencimentos foram observados em ambientes condicionantes por relações de poder e medidos por espaços forjados na luta e dentro das práticas que o configuram e o reproduz. A Amazônia se revela nestes estudos como espaço modelar em que os agentes que o operam socialmente, constroem percepções, representações e estratégias de intervenção em diferentes temporalidades. Tais trabalhos de pesquisa, sem dúvida, constituem contribuições originais e, sobretudo, desnaturalizadoras como se propõem ser os estudos que assumem, como coerência e autenticidade, a relação com o passado e demandas presente, tendo como eixo central de diálogo, a história social em contexto amazônico e suas conexões. Os trabalhos reunidos propiciam aos leitores, ademais, um profícuo exercício de crítica historiográfica, métodos e análises documentais. Como apontado, percorrem searas das mais diversas, adensando as riquezas de suas contribuições, quanto à análise de estratégias para enfrentar variadas formas de controle, pensar as ações de domesticação e dominações estabelecidas por agentes e agências oficiais, assim como revelar práticas de resistências, lutas e enfrentamentos. Os textos expressam, simultaneamente, pesquisas em andamento e outras já concluídas. Temáticas, temporalidades e enfoques plurais que apenas um programa consolidado poderia construir. Diante de tantas e inovadoras contribuições, a intenção é que o leitor estabeleça um exercício de escolha mais consentâneo a seus interesses e afinidades, estando certo de que encontrará nestas coletâneas um conjunto de leituras, instigantes, necessárias e provocativas. Aproveitamos para registrar os nossos cumprimentos e agradecimentos a CAPES pelo apoio financeiro para publicação, o que expressa o compromisso com o desenvolvimento da pesquisa e a formação superior no Brasil e na Amazônia. Estendemos os cumprimentos ao Programa de Pós-Graduação em História Social, ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas e a Universidade Federal do Pará pelo apoio institucional e envolvimento dos seus professores e técnicos na construção destas importantes obras bibliográficas. Um bom exercício de leitura é o que inicialmente desejamos. Fernando Arthur de Freitas Neves Diretor do IFCH Francivaldo Alves Nunes Coordenador do PPHIST


SUMÁRIO

Apresentação.................................................................................................9 Os aprendizes artífices da Marinha: infância, ensino de ofícios e formação militar na Província do Pará (1871 – 1880).................................................17 Admarino Gonçalves de Matos Junior

Os deserdados da sorte: infância, trabalho e escravidão no Grão-Pará (1870-1893)................................................................................................37 Marcelo Ferreira Lobo

Uma “justa sujeição” dos menores? Vadiagem, trabalho e tutelas em Belém de fins do Século XIX......................................................................................61 Victor Hugo do Rosario Modesto

Meninos desvalidos de Belém: educação e trabalho no Instituto Paraense de Educandos Artífices (1872-1879)...............................................................87 Raíssa Cristina Ferreira Costa

Livros escolares voltados à educação da infância paraense (1890-1920)....111 Wanessa Carla Rodrigues Cardoso

Fotografias de crianças em revistas ou folhear a infância: elite, representação e lugar social da infância em revistas ilustradas (Belém, 1919-1930).........141 Adnê Jefferson Moura Rodrigues

Para nossos pequenos leitores: histórias da Amazônia na Revista O Tico Tico [1914-1945]......................................................................................167 Isadora Bastos de Moraes

Educação e saúde das crianças: a atuação do SESP na Amazônia paraense (1942-1945)..............................................................................................189 Edivando da Silva Costa


Infância e conflitos agrários na Amazônia: memória de um filho de uma liderança sindical assassinada em Moju/PA na década de 1980................215 Elias Diniz Sacramento

Fragmentos de uma história da infância assistida no Acre nos anos de 1940..........................................................................................................241 Giane Lucelia Grotti

Xerimbabos: escravidão e precariedade na vida de crianças indígenas e negras (Brasil, Amazonas: Séc. XIX)....................................................................261 Ygor Olinto Rocha Cavalcante

A criança é armadilha de pegar adulto: a tentativa de disciplinarização da infância e da família na Manaus varguista.................................................281 Alba Barbosa Pessoa

Sobre os autores.........................................................................................305


APRESENTAÇÃO

Por uma História Social da Infância na Amazônia

A

Coletânea que ora apresentamos visa dar relevo para a produção historiográfica sobre a infância na Amazônia e, principalmente, chamar a atenção para esse tema de pesquisa. Desde que foi anunciada como proposição investigativa por Philippe Ariès nos anos 1960, a criança passou a atrair o olhar de pesquisadores.

No Brasil, podemos exemplificar isso por meio de muitos trabalhos dos Programas de Pós-Graduação que perceberam que a criança, até então invisibilizada pela historiografia, era portadora da chave de compreensão de muitos processos históricos pelo qual o País passara. Que esses pequenos seres não estavam como simples coadjuvantes dos processos históricos. Que, em distintos momentos, grande parte da sociedade brasileira para a criança voltou sua atenção, no sentido de ter maior controle e dela fazer maior uso.

A partir da festejada entrada da criança nos campos de pesquisa histórica, a produção historiográfica sobre o tema foi se adensando e se consolidando nos principais grupos de pesquisa do País, principalmente no que se refere aos filhos das camadas empobrecidas da população, o que resultou no seu esquadrinhamento nos mais distintos aspectos: cotidiano, políticas públicas, educação, legislação, sociabilidade, trabalho e outros aspectos. Desse modo, a criança saiu do anonimato historiográfico, passando a ser percebida como sujeito histórico. Nessa vasta produção historiográfica, cuja maior concentração se refere aos anos finais do século XIX e início do século XX, há praticamente um consenso no que se refere aos conceitos de criança e infância, não devendo os dois serem percebidos como sinônimos. Nessa perspectiva, a infância é uma construção cultural e histórica, sendo uma fase da vida do indivíduo determinada a


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partir do constructo cultural da sociedade na qual ele está inserido. A criança é o sujeito que vivencia esse período1. Assim, o que observamos é que, embora crescente, ainda é tímida a produção sobre a vivência de meninas e meninos da Amazônia. Ao trazermos a público uma coletânea sobre a infância em parte desse território, pretendemos justamente chamar a atenção para a premente necessidade de pesquisas voltadas para esses sujeitos históricos, no sentido de melhor refletirmos sobres os graves problemas envolvendo essas crianças na atualidade. Entendemos que a existência de variado acervo documental nas instituições de pesquisa da região é um convite para nos voltarmos às diversificadas e complexas vivências de crianças, habitantes de um espaço multifacetado chamado Amazônia, o que nos permite falar em infâncias amazônicas. Por perspectivas variadas, a infância tem sido motivo de muita preocupação por parte de alguns segmentos sociais, seus contemporâneos. Instituições governamentais foram criadas no sentido de resolver questões relacionadas às crianças das famílias privilegiadas socialmente, bem como àquelas oriundas de famílias empobrecidas. Esse foi o caso do Juízo dos Órfãos, que tratava não apenas de assuntos relacionados às heranças deixadas aos órfãos, filhos das famílias ricas, como também tratava, dentre outras questões, de assuntos relacionados ao encaminhamento de filhos das famílias empobrecidas para o trabalho2. Os processos do Juízo dos Órfãos nos permitem colocar em relevo a infância amazônica sob diversos prismas. Por se tratar de rico acervo, possibilitando que acessemos diversas falas de distintos sujeitos históricos, essa documentação permite entrever parte do cotidiano da cidade e de seus moradores, por tratar de assuntos relacionados à família, trabalho, heranças, dentre outros aspectos. No que se refere à infância, é possível desnudar suas representações existentes no período, bem como o que era desejado, a percepção que a sociedade tinha sobre o trabalho das crianças, e os diversos usos dessa mão de 1 2

Diversos autores trabalham com essa perspectiva, dentre eles, destacamos: LEITE, Miriam L. Moreira. A infância no século XIX segundo memórias e livros de viagem. In: FREITAS, Marcos Cesar de. (org.). História Social da Infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2003. PESSOA, Alba Barbosa. O Juízo dos Órfãos e o Trabalho Infantil na Cidade de Manaus (18901920). In: Fronteiras do Tempo – Revista de Estudos Amazônicos. V.1, nº2, 2011. Também trabalha com esse tema a partir de outra perspectiva: TEIXEIRA, Alcemir Arlijean Teixeira. O Juízo do Órfãos em Manaus (1868-1896). Dissertação de Mestrado. UFAM, 2010.


APRESENTAÇÃO

obra, intensamente explorada desde tenra idade. A despeito do potencial que essa documentação apresenta, não apenas para o tema infância, consideramos que até então ela foi pouco trabalhada, mantendo silenciadas em suas páginas amareladas as histórias de meninas e meninos, jovens e adultos, moradores da capital e do interior dos estados do Norte3. A preocupação com a infância por parte de autoridades públicas e particulares durante o período provincial também é evidenciada, em grande medida, por meio da assistência prestada às crianças consideradas abandonadas ou desvalidas. No decorrer de todo o período provincial até meados da República, instituições com fins assistencialistas foram criadas para receber os filhos das famílias empobrecidas. Conforme Irmã Rizzini, tais estabelecimentos tinham caráter educativo-preventivo4. Foi com essa preocupação que educandários com sistema de internato foram criados. A finalidade deles era a de não apenas oferecer assistência, mas, principalmente, preparar a mão de obra das crianças para o trabalho. Para as meninas, além da assistência, o ensino das prendas domésticas. Para os meninos, o ensino de sapataria, funilaria, encadernamento, dentre outros, acompanhavam a assistência prometida5. Os Estatutos ou Regulamentos dessas instituições nos possibilitam vislumbrar parte do cotidiano que essas crianças vivenciam dentro dos muros do educandário: um cotidiano de vigilância, disciplina severa e castigos. Na perspectiva de Michael Foucault, por meio da

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Para a cidade de Manaus, o acervo do Juízo dos Órfãos data de 1839 até as duas primeiras décadas do século XX. A guarda desse acervo inicialmente esteve aos cuidados do Arquivo Público do Estado do Amazonas, sendo posteriormente transferido para o Arquivo Histórico do Tribunal de Justiça do Amazonas. Em alguns arquivos nos cartórios do interior do estado, também pode ser encontrada documentação referente ao Juízo dos Órfãos. Para a cidade de Belém, a documentação está sob a guarda do Centro de Memória da Amazônia/Universidade Federal do Pará. RIZZINI, Irma. Assistência a Infância no Brasil: uma análise de sua construção. Rio de Janeiro, Editora Universitária Santa Úrsula, 1993. Também trabalha com esse tema: AMARAL, Josali do. Ritmos e Dissonâncias: controle e disciplinarização dos desvalidos indigentes nas políticas públicas do Amazonas (1892-1915). Dissertação de Mestrado. UFAM, 2011. PESSOA, Alba Barbosa. Infância e Trabalho: dimensões do trabalho infantil em Manaus (1890-1920). Dissertação de Mestrado. UFAM:2010. Também trabalha com o tema: SABINO, Eliane Barreto. A Assistência e a Educação de Meninas Desvalidas no Colégio Nossa Senhora do Amparo na Província do Grão-Pará (1860-1889). Dissertação de Mestrado. UFPA: 2012.

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disciplina severa exercida dentro dos internatos se almejava a resignação de corpos e mentes6. Os jornais, os álbuns de fotografias e revistas do período, com muita frequência, enalteciam tais estabelecimentos, pois acreditavam ser o único meio de dar ocupação às crianças que insistiam em brincar nas ruas, praças e igarapés das cidades amazônicas, sem uma ocupação considerada produtiva. Não raras vezes, os periódicos estampavam denúncias contra os castigos físicos praticados contra os educandos dentro do estabelecimento7. Enquanto a rua, por predileção, era o espaço de sociabilidade das crianças menos favorecidas economicamente, para as crianças das elites, moradoras de moradias espaçosas e confortáveis, a casa era “porto seguro”. Como destaca Aldrin Figueiredo, para Belém, o lar era o ambiente que mais se mostrava favorável às brincadeiras dos filhos das famílias ricas. Era o lugar em que se compartilhavam os brinquedos com os filhos dos amigos da família. Era o ambiente acolhedor, que transmitia segurança e lhes possibilitava exercitar a imaginação em seus diversos cômodos. “O espaço por onde a criança transitava dificilmente transpunha os limites da casa materna, dos fundos do quintal, do quarteirão da rua ou, quando muito das redondezas dos bairros”8. Com a chegada de Getúlio Vargas ao Governo Central, foi colocado em execução um projeto disciplinatório voltado para a infância no Brasil. Projeto esse gestado pelas elites intelectual, econômica e política do País, no sentido de proteger a mão de obra da criança, que estava se perdendo de forma precoce, devido ao seu uso intensivo 9. Todo um arcabouço foi montado no sentido de abarcar as crianças em seus distintos aspectos: saúde, família, sociabilidade, trabalho etc. Uma extensa documentação existente nos arquivos das capitais amazônicas permite analisar o engendramento desse projeto, sua execução e reação das famílias atingidas. Cartilhas, boletins, regulamentos, ofícios, relatórios, 6 7 8 9

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. 36. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009 Correio do Norte, nº536, p.1. Manaus, 07 de setembro de 1910.

FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. Memórias da Infância na Amazônia. In: PRIORE, Mary Del. (Org.) História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto. 1999.

PESSOA, Alba Barbosa. Pequenos Construtores da Nação: disciplinarização da infância na cidade de Manaus (1930-1945). Tese de Doutorado. UFPA: 2018. Para mais estudos sobre a infância na década de 1940: GROTTI, Giane Lucélia. História da Assistência à Criança Pobre no Rio Branco-Acre: instituições, sujeitos e ações na década de 1940. Tese de Doutorado. UFPR: 2016.


APRESENTAÇÃO

revistas e processos criminais fazem parte de um vasto acervo documental, que nos possibilitam contribuir para uma História Social da Infância na Amazônia. Cremos que algumas observações devem ser destacadas sobre o tema, que toma como espaço de ações dos sujeitos uma parte da Amazônia. É visível que os historiadores têm voltado seu olhar para a infância enquanto tema de pesquisa. No entanto, embora possamos constatar o avanço dessa produção, ela ainda se mostra tímida em relação à potencialidade do acervo documental existente. Percebemos uma concentração maior de pesquisa sobre o período da chamada Belle Époque, enquanto outros recortes temporais se encontram no mais completo silêncio. De forma semelhante, a espacialidade de tais pesquisas quase que invariavelmente se concentra nas capitais, enquanto a criança no interior das Amazônias permanece invisibilizada. Não podemos deixar de destacar que parte dessa produção historiográfica sobre a infância parece seguir um mesmo esquema analítico, uma mesma modalidade interpretativa, o que nos coloca como desafio romper com esse modelo, sob o risco de criar uma padronização em um mundo complexo e multifacetado. Cremos ser imperativo adensar e diversificar as pesquisas sobre a infância na Amazônia. Sabendo que ela, há séculos, é espaço de atração de grupos de migrantes nacionais e internacionais, faz-se necessário dar rosto e voz aos filhos da migração. Em relação aos imigrantes da região nordeste que se dirigiram para o Pará no início do século XX, Franciane Lacerda destaca que traços culturais das famílias de imigrantes eram por eles mantidos, no sentido de preservar um vínculo com a terra de origem, e que as crianças tinham papel importante na manutenção das tradições e na “Constituição de uma identidade no seu novo espaço de vida”10. Nesse sentido, refletir sobre as distintas formas que crianças, nacionais e estrangeiras, criaram e recriaram os espaços amazônicos, dando-lhes e recebendo novo sentido, é tarefa premente para os historiadores. De forma semelhante, refletir sobre as crianças nos seringais, nos trabalhos da juta, nas plantações de fumo, e em tantos outros espaços nas capitais e interiores amazônicos.

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LACERDA, Franciane Gama. Infância e Migração no Estado do Pará (final do século XIX, início do século XX). In: Terra Matura: historiografia e história social na Amazônia. Org: BEZERRA NETO, José Maia; GUZMAN, Décio de Alencar. Belém: Paka-Tatu, 2002. p.395-405.

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No contexto em que o Brasil se encontra, em que antigos debates sobre a legalização do trabalho infantil (para os filhos dos outros) e sobre a redução da maior idade penal voltam à efervescência com grande apoio popular, refletir sobre as infâncias na Amazônia é compromisso social para a historiografia. Dito isso, convidamos as leitoras e leitores a compartilhar das reflexões das autoras e autores que ora apresentamos. Admarino Gonçalves de Matos Junior analisa a formação de meninos pobres, órfãos ou desvalidos, encaminhados à Companhia de Aprendizes Artífices do Arsenal de Marinha do Pará, no período entre 1871 e 1880. A complexidade da relação existente entre infância, trabalho e escravidão no Grão-Pará dos anos 1870 a 1893 é apresentada por Marcelo Ferreira Lobo. Utilizando como fonte principal a documentação do Juízo do Órfãos, Victor Hugo do Rosario Modesto apresenta sua pesquisa sobre vadiagem, trabalho e tutelas na cidade de Belém, nos anos finais do século XIX. Raíssa Cristina Ferreira Costa se volta para a relação entre educação e trabalho dos meninos desvalidos de Belém, encaminhados ao Instituto Paraense de Educandos Artífices nos anos 70 do século XIX. A instrução no Pará, no período republicano, é a preocupação de Wanessa Carla Rodrigues Cardoso, que analisa os livros escolares voltados para a educação da infância paraense nos anos finais do século XIX e primeiras décadas do XX. As representações de crianças das elites nas revistas ilustradas de Belém foram objetos de reflexões de Adnê Jefferson Moura Rodrigues. As imagens infantis, presentes nas páginas desses impressos, permitem perceber a diversidade das experiências infantis. As revistas infantis podem ser percebidas como veículos de construção de sentidos. A partir desse entendimento, Isadora Bastos de Moraes analisa as revistas O Tico Tico por meio de imagens e textos veiculados sobre a Amazônia para crianças entre 1914 e 1945. A educação sanitária voltada para as crianças na Amazônia paraense dos anos finais do governo de Getúlio Vargas será tratada por Edivando da Silva Costa, que destaca a atuação do Serviço Especial de Saúde Pública – SESP nesse processo.


APRESENTAÇÃO

Elias Diniz Sacramento procurou entender a ausência das crianças quando se fala dos conflitos agrários no Pará. Partindo de suas próprias memórias, ele nos apresenta uma emocionante narrativa. Giane Lucelia Grotti se voltou para a chamada infância problema dos anos de 1940, e se detém em desvelar como se deu o processo de assistência à criança pobre na capital do então território do Acre. Voltando-se para a criança índia no Amazonas, Ygor Olinto Rocha Cavalcante investiga a escravização ilegal de crianças indígenas e negras, em uma modalidade de exploração e dominação chamada xerimbabo. No último artigo desta coletânea, Alba Barbosa Pessoa faz uso de diversificado acervo documental, no sentido de demonstrar a tentativa de disciplinarização da infância e da família na Manaus varguista. A todas e todos desejamos boa leitura. As Organizadoras

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CAPÍTULO 1

OS APRENDIZES ARTÍFICES DA MARINHA: INFÂNCIA, ENSINO DE OFÍCIOS E FORMAÇÃO MILITAR NA PROVÍNCIA DO PARÁ (1871 – 1880)

Admarino Gonçalves de Matos Junior

Resumo: O presente texto consiste em dimensionar o processo que envolveu a formação de meninos pobres, órfãos e desvalidos nas aulas de primeiras letras e nas oficinas da escola de internato ou Companhia de Aprendizes Artífices do Arsenal de Marinha do Pará, no período de 1871 a 1880. Para isso, foram fundamentais os ofícios e relatórios de inspeção trocados entre diretores, inspetores e autoridades políticas presentes na Série Marinha do Arquivo Nacional (AN), localizado na cidade do Rio de Janeiro e no fundo Arsenal de Marinha do Arquivo Público do Estado do Pará (APEP). Eles nos permitiram a construção de cenas cotidiana da escola, revelando que a condição dos aprendizes artífices nem sempre condizia com a pretensão da formação do operário ideal, especializado e disciplinado nos aspectos da moralidade e do bom costume. Palavras-chave: Aprendizes Artífices; Infância; século XIX; Pará.


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Introdução

A

partir da segunda metade do século XIX, crescem as iniciativas dirigidas à educação dos filhos das camadas populares para o trabalho. Foram projetos de origem variados com iniciativa governamental, religiosa, particular (filantropos) ou misto (particulares ou religiosas com subvenção governamental)11. A grande maioria dos estabelecimentos era do tipo de internato em que o contato do sujeito interno com a sociedade e com a família era rigidamente controlado, principalmente nas instituições voltadas para o ensino de ofícios mecânicos, inseridas no meio urbano ou nos arsenais de Guerra e de Marinha12. Na Província do Pará, o Ministério da Marinha do Império brasileiro fundava uma Companhia de Aprendizes Artífices através do Decreto nº 4.821 de 18 de novembro de 1871. A Companhia era uma forma de escolarização de internato, de ensino-aprendizagem de primeiras letras e de ofícios mecânicos relacionados à produção naval, estaleiro, reparo, montagem e fabrico de embarcações nas oficinas do Arsenal de Marinha. Ela era destinada à formação de meninos pobres, órfãos e desvalidos de 7 a 12 anos de idade que, nas palavras do Ministro da Marinha, em relatório proferido à Assembleia Geral Legislativa, seriam “Educados nos Arsenais, avezados desde os mais tenros anos à disciplina e ao trabalho cotidiano” para tornarem-se “Com o correr do tempo, hábeis operários e honrados cidadãos”13. Desse modo, o presente texto tem por objetivo dimensionar o processo de formação desses meninos dentro da Companhia de Aprendizes entre os anos de 1871 a 1880. O período corresponde à criação, desenvolvimento e extinção da Companhia. Por outro lado, é o momento em que a Marinha Imperial atravessava o processo de reorganização de suas agências e estruturas administrativas, para fortalecimento de seu poder naval que coadunava, também, com a proposta do Estado em investir e difundir instituições de ensino de ofícios como política de atendimento à infância desvalida. 11 12 13

RIZZINI, Irma. O cidadão polido e o selvagem bruto: a educação dos meninos desvalidos na Amazônia Imperial. Tese de Doutorado – Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/PPGHIS, 2004. Ibid., p.168.

BRASIL. Relatório anual apresentado pelo Ministro da Marinha à assembleia geral legislativa na 2ª sessão da 11º legislatura de 1861 – p. 22.


Os aprendizes artífices da Marinha: infância, ensino de ofícios e formação militar...

Para isso, os relatórios anuais apresentados pelo Ministro da Marinha à Assembleia Legislativa do Império, os relatórios de Presidente da Província do Pará apresentados à Assembleia Legislativa Provincial, os decretos presentes na coleção de leis do Império, os ofícios e relatórios de inspeção presentes na Série-Marinha no Arquivo Nacional (AN) e no fundo Arsenal de Marinha do Arquivo Público do Estado do Pará (APEP), além do jornal O Liberal (1876), são fundamentais para a compreensão do objetivo proposto em nos permitir entender a discussão política voltada à infância desvalida através da iniciativa da Marinha Imperial, os sentidos dados a essa iniciativa e o processo que envolveu a formação dos meninos aprendizes artífices dentro dos muros da escola.

Companhia de Aprendizes Artífices No Brasil Império, a implantação do sistema de companhias de aprendizes foi copiada do modelo de sistema europeu, em especial da Marinha portuguesa, que possuía um Arsenal que parecia uma grande fábrica, com operários agrupados para desenvolver diversos trabalhos. Como atesta Bonifácio, o Arsenal Real de Marinha de Portugal “Era uma imponente concentração operária em plena Lisboa”14. Oferecia diversas artes de ofícios, ministradas por mestres contratados na comunidade, e instruções militares, ministradas pelos oficiais de marinha, que podemos classificar como um misto de quartel e fábrica15. As companhias de aprendizes de Portugal tinham como público-alvo meninos que eram destinados aos diversos trabalhos nas oficinas de carpinteiros de machado, carpinteiros de obra branca, calafates, serradores, polieiros, pintores, entalhadores, tanoeiros, ferreiros e espingardeiros, bandeireiros e alfaiates, sapateiro e correeiros, instrumentos náuticos, casa das velas, armazém do aparelho, troço do mar, faluas e barcas de água, algarves, galegos e hiates16.

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BONIFÁCIO, Maria de Fátima. Os arsenalistas da marinha na revolução de Setembro (1836). Análise Social, vol XVIII (65), 1981, 1º, p.34

MESQUITA, Simone Vieira de. Ensino Militar Naval: escola de Aprendizes Marinheiros do Ceará (1864-1889). Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Fortaleza, 2016. p. 129. Ibid., p. 129.

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Da mesma forma, em meados do século XIX, o Ministério da Marinha do Império brasileiro demonstrava bem a percepção que se tinha sobre a infância, destacando o objetivo da instituição em acolher nos “Arsenais [de Marinha] todos os meninos pobres e desvalidos, que quiserem aprender um ofício (...)”. O relatório apresentado pelo Ministro da Marinha, no ano de 1842, asseverava que fosse oferecido “Uma educação e instrução acomodada a profissão(...)”, em que poderia o Estado “Conseguir o duplo e importante fim de criar operários inteligentes, e desviar da ociosidade centenas de homens, que se tornarão uteis a sí e ao Paiz”17. A documentação demonstra que tal pensamento se manteve nos anos seguintes, como pode-se perceber no Relatório anual apresentado pelo Ministro da Marinha, em 1857: O Governo Imperial convencido d’isso pretende organizar o ensino n’esses estabelecimentos, e esse ensino, quando destinado seja somente a esses artistas, dará ao Império os melhores construtores, e machnistas, o que é um bem, muito principalmente porque se começará assim a dar a educação de nossa mocidade uma direção benéfica, visto como tanto precisamos de homens de letras, como de habilitações que sirvam a todas as indústrias18.

O modelo educacional destinado à criança empobrecida, amplamente difundido pelas províncias, era aquele voltado para o ensino de ofícios. Por todo o Império brasileiro, surgiram diversas instituições dessa natureza19. De acordo com Matos Junior, na Província do Pará, houve experiências de instituições, como a Casa de Educandos Artífices (1840), a Companhia de Aprendizes Artífices do Arsenal da Marinha (1871), Aprendizes Menores do Arsenal de Guerra (1872) e o Instituto Paraense de Educandos Artífices (1872). Tais estabelecimentos apresentavam suas próprias especificidades, mas guardavam um elemento comum em oferecer educação para aprendizagem de primeiras letras e formação profissional difundida em diversos ofícios mecânicos20. 17 18 19 20

BRASIL. Relatório anual apresentado pelo Ministro da Marinha à assembleia geral legislativa na 2º sessão da 5º legislatura de 1842.3 – p. 12. BRASIL. Relatório anual apresentado pelo Ministro da Marinha à assembleia geral legislativa na 2º sessão da 10º legislatura de 1857 – p. 12.

RIZZINI, Irma. O cidadão polido e o selvagem bruto: a educação dos meninos desvalidos na Amazônia Imperial. Tese de Doutorado – Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/PPGHIS, 2004. p. 160 MATOS JUNIOR, A.G. A educação dos meninos desvalidos na Companhia de Aprendizes Artífices do Arsenal de Marinha do Pará (1871 – 1880). Dissertação de Mestrado – Programa de Pós


Os aprendizes artífices da Marinha: infância, ensino de ofícios e formação militar...

A iniciativa militar da Marinha em ofertar o ensino de ofícios na Província do Pará ocorreu através da Lei nº 1997, de 19 de agosto de 1871, que fixa a força naval para o ano financeiro de 1872 e 1873, em que autorizava a criação de uma Companhia de Aprendizes Artífices no Arsenal de Marinha do Pará21. A Companhia estava distribuída em: um comandante, um capelão e professor de primeiras letras, um secretário, um agente, três guardas, dois cozinheiros, um servente, e vagas para 40, depois aumentada para 80, meninos aprendizes artífices22. A estrutura organizacional seguia o modelo de um estabelecimento educacional de regime de internato. Era uma escola, só que efetivamente militar, e cabia ao comandante à função de direção. Ele tomava conta de tudo o que fosse concernente ao pessoal e material da instituição. Assim, o cuidado com a educação, com o bom tratamento, a moralidade e a disciplina dos aprendizes era pressuposto para sempre frequentar e fiscalizar as aulas nas salas e oficinas, monitorando o trabalho dos professores, além de monitorar os mestres e contra mestres responsáveis pela educação profissional23. A direção da instituição organizava o mapa escolar do funcionamento e o remetia ao inspetor do Arsenal de Marinha, que posteriormente encaminhava ao Ministério da Marinha, para relatar o funcionamento e desenvolvimento da instituição. Os demais funcionários, também, eram encarregados de cumprirem com suas obrigações. A incumbência da educação moral e religiosa dos aprendizes era responsabilidade do capelão. Ele ensinava a doutrina cristã como disciplina obrigatória, acumulando, também, a função de professor de primeiras letras. Ao Secretário, competia a organização burocrática da instituição com a “escripturação” de toda atividade da Companhia, como as folhas de gratificações, diárias e salário dos empregados24. O agente era responsável por inventariar todos os utensílios e objetos pertencentes à escola, cuidando da conservação e asseio. Também era 21 22 23

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Graduação em História Social da Amazônia, Universidade Federal do Pará. Belém, 2018. Ibid., p. 73.

BRASIL. Decreto nº 4.821 de 18 de Novembro de 1871. Coleção das Leis do Império do Brasil. BRASIL. Decreto Nº 2.615, de 21 de julho de 1860: Manda observar novo Regulamento para as Companhias de Aprendizes Artífices dos Arsenais de Marinha da Corte, e Províncias da Bahia e Pernambuco. Coleção das Leis do Império do Brasil de 1860. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1860. BRASIL. Decreto nº 2.615 de 21 de Julho de 1860. Art. 4 e 10.

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encarregado de cuidar do recebimento e distribuição da comida e fardamento dos aprendizes artífices e dos produtos utilizados dentro do Almoxarifado. Os guardas ficaram com a segurança e a vigilância da instituição; os cozinheiros estavam encarregados do preparo da alimentação; os serventes limpavam todo o estabelecimento escolar e do quartel em que funcionava como dormitório dos aprendizes. Para os alunos aprendizes artífices, eram oferecidos comida, roupa e alojamento. Eles deveriam aprender as primeiras letras e um ofício nas oficinas do Arsenal25.

Admissão de menores A admissão de menores era permeada por uma série de composições e aprovações, sem as quais não eram possíveis de acontecer suas matrículas. Para eles serem matriculados na escola, o regulamento exigia que as famílias buscassem dirigir uma petição ao inspetor do Arsenal, anexando o atestado de batismo para comprovar a idade e nacionalidade da criança. Em seguida, o inspetor do Arsenal deveria lavrar o termo e registrar em livro de talão com a assinatura dos pais, tutores ou responsáveis legais, concordando as obrigações que a criança deveria cumprir com regulamento da instituição26. De acordo com a documentação, foi o que ocorreu em 2 de janeiro de 1877, quando Mariana Vitória das Neves procurou o Conego João Ferreira de Andrade Muniz, da Freguesia da Sé, para solicitar a certidão de batismo e um documento que atestassem que era “Extremamente pobre e sem recursos necessários de cuidar da educação de seu filho menor de nome Joaquim”27. Os documentos eram necessários para solicitar a admissão do menino na Companhia de Aprendizes Artífices da Província do Pará, elemento burocrático imprescindível exigido pelo regulamento da instituição. Para Matilde Araki Crudo, o processo, que envolveu as exigências documentais no ato de as famílias entregarem seus filhos à escola de aprendizes artífices da Marinha Imperial, diferenciava-se do ato de deixar a criança na roda de expostos, nas santas casas de misericórdia ou em qualquer instituição 25

BRASIL. Decreto nº 2.615 de 21 de Julho de 1860. Art. 23 e 24.

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ARQUIVO PÚBLICO DO PARÁ. Fundo Arsenal de Marinha, área guerra. Série: ofícios da presidência ao inspetor e do inspetor à presidência de 1877, notação 115.

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BRASIL. Decreto nº 2.615 de 21 de Julho de 1860. Art. 18,19 e 21.


Os aprendizes artífices da Marinha: infância, ensino de ofícios e formação militar...

de caridade, muito praticado no Brasil oitocentista, porque não exigia qualquer tipo de formalidade, assinatura ou documentos necessários para inserção da criança na instituição28. Também o Corpo de Polícia e o Juiz de Órfãos encaminhavam menores para o Arsenal de Marinha, que, juntamente com outros menores levados por seus familiares, criavam uma diversidade de identidades, comportando múltiplos significados políticos e sociais. Entretanto, esses menores precisavam antes passar por uma série de inspeções para serem, então, admitidos. De acordo com o decreto 2.165 de julho de 1860, para a admissão dos meninos, os seguintes requisitos eram necessários: ser brasileiro, ter a idade de 7 a 12 anos, constituição robusta e ser vacinado. As vagas seriam preenchidas com meninos órfãos ou desvalidos, com filhos de pessoas que, por sua pobreza, não tivessem meios de alimentá-los e educa-los, ou com quaisquer outros que sejam apresentados por seus pais, tutores, ou quem legitimamente os representar, dando-se preferência para os operários e outros funcionários do Arsenal de Marinha29. Os meninos eram submetidos a uma consulta e inspeção de saúde. Caso fossem declarados pelos médicos da enfermaria do Arsenal como “Bem conformado, robusto e são”, definição para as ideais condições físicas e saudáveis, seriam admitidos como aprendiz artífice da instituição. Porém, nem todos os menores remetidos à instituição eram aceitos. Alguns tiveram suas matrículas recusadas, como é o caso do menor de nome André, remetido pelo Chefe de Polícia da capital, que “Foi submetido a inspeção de saúde e julgado inapto para o serviço por ter uma perna mais curta que a outra”. Outro menor, remetido pelo Juiz de órfão de Bragança30, foi submetido à “Inspeção e julgado inapto para o serviço por sofrer de uma lesão”31. Em um tempo que não existia a Ferrovia Belém-Bragança, o transporte até Belém não era fácil. A via marítima, além de perigosa e demorada, era realizada mediante pequenas embarcações à vela, obrigadas a aportar com 28 29 30 31

CRUDO, Matilde Araki. Infância, trabalho e educação: os aprendizes do Arsenal de Guerra de Mato Grosso (1842 a 1899). Tese de Doutorado – Instituto de Filosofia e Ciência Humanas, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2005. p. 79. BRASIL. Decreto nº 2.615 de 21 de Julho de 1860. Art. 17.

Bragança é um Município brasileiro que se localiza no Nordeste do Estado do Pará. À distância por estrada entre esse Município e Belém, a capital do Estado, é de aproximadamente 228 km. ARQUIVO PÚBLICO DO PARÁ. Fundo Arsenal de Marinha, área guerra. Série: ofícios da presidência ao inspetor de 1877, notação 115.

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frequência, a fim de procurar reabastecimento e abrigo nos pequenos núcleos de povoamento. Entre Bragança e Belém, podem ser assinalados os seguintes: Quatipuru, São João de Pirabas, Salinas, Maracanã, Marapanim, Curuçá, São Caetano de Odivelas, Vigia e Pinheiro. Um simples olhar sobre o mapa mostra a localização desses centros32, questão que revela, ao mesmo tempo, que as notícias sobre o ensino de ofícios do Arsenal da Marinha e a relação com as autoridades locais chegavam ao interior da Província do Pará. Havia grande estímulo para que as matrículas dos meninos aprendizes artífices prosperassem. Ao entrarem na instituição, receberiam um salário referente ao desenvolvimento das atividades, que começava com 100 réis, aumentando progressivamente para 200 e 300 réis, de acordo com o aproveitamento e adiantamento nas aulas. Esses valores ficariam depositados em uma conta na Caixa Econômica criada para cada aprendiz, podendo ser retirado o valor acumulado ao final da formação, mediante a autorização da Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha33. Porém, havia uma relação burocrática que assegurava o Estado em caso de desistência, evasão ou abandono das aulas e das atividades. Os aprendizes que abandonassem as aulas antes que completassem a formação adequada, ou que retornassem por quaisquer circunstâncias aos seus pais, tutores ou responsáveis legais, indenizariam a Fazenda Nacional com todo o gasto efetuado com sustento e vestuário durante a formação na escola de internato do Arsenal34. Por essa obrigatoriedade de ressarcimento ao Estado, não é improvável pensar que muitos meninos pobres, que não se adaptavam à rigidez das aulas e da disciplina que lhes eram impostas, acabavam por ficar na instituição por saberem que seus responsáveis não teriam meios econômicos para tal. Ao mesmo tempo, conforme veremos mais adiante, isso não impediu os eles de fugirem e de abandonarem o Arsenal. Com a transformação política, econômica e social presente no século XIX, a criança deixa de ser objeto de interesse, preocupação e ação do âmbito privado da família e da igreja para tornar-se uma questão de cunho social, de 32 33 34

ÉGLER, Eugênia Gonçalves. “A Zona Bragantina no Estado do Pará”. Revista Brasileira de Geografia. São Paulo, nº 3 (julho-setembro 1961), p. 528. BRASIL. Decreto nº 2.615 de 21 de Julho de 1860. Art. 39 e 43. Ibid., Art. 44.


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competência administrativa do Estado35. Desse modo, a criação e o desenvolvimento das Companhias de Aprendizes da Marinha representam uma ruptura fundamental em relação ao atendimento de meninos pobres maiores de sete anos de idade, sendo criada no Brasil uma instituição inteiramente pública para menores que não pudessem permanecer sob custódia dos hospitais ou de responsáveis. Muitos pais enviavam seus filhos para a Marinha, revelando, assim, certa atitude de preocupação e desvelo familiar, pois a referida instituição consistia em uma das pouquíssimas alternativas de aprendizado profissional destinado à infância pobre36.

As primeiras letras e o ensino de ofícios O Decreto nº 2.615, de 21 de julho de 1860, dispositivo que mandava gerenciar novo regulamento para a Companhia de Aprendizes Artífices, determinava os aspectos referentes ao ensino e aprendizagem dos alunos, caracterizando a então harmonização das bases de funcionamento projetada pelo Ministro da Marinha, José Antonio Saraiva37. Esse dispositivo definia que os alunos deveriam aprender a ler, escrever, as quatro primeiras operações de aritmética sobre números inteiros e decimais, geometria prática e desenho linear, ensino de música, doutrina cristã, natação, evoluções militares, como marchas e contra marchas, e a aprendizagem de um ofício distribuído pelas diferentes oficinas de carpinteiro, carapina, ferreiro, fundição e calafate38. Pelos dispositivos legais, cada Arsenal de Marinha do Império brasileiro deveria ter um capelão para os serviços concernentes às práticas do cristianismo. Além da responsabilidade por celebrar missa aos domingos e dias santos, ouvir a confissão das pessoas residentes do Arsenal, praticar outros serviços de cunho paroquial, do ensino da doutrina cristã e do catecismo, o capelão acumularia o serviço de professor de primeiras letras das Companhias de Aprendizes39. 35 36 37 38 39

RIZZINI, Irene. O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para infância no Brasil. 3º Ed. – São Paulo: Cortez, 2011. p. 23.

VENÂNCIO, Renato Pinto. Os aprendizes da guerra. In: PRIORE, Mary del. (Org.). História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2016. p. 198. BRASIL. Relatório anual apresentado pelo Ministro da Marinha à assembleia geral legislativa na 2º sessão da 10º legislatura de 1857 – p. 12. BRASIL. Decreto nº 2.615 de 21 de Julho de 1860. Art. 23 e 24.

Decreto nº 5.622, de 2 de maio de 1874. Reforma o Regulamento dos Arsenais de Marinha. Art. 72. Decreto nº 2.615, de 21 de Julho de 1860. Manda observar novo Regulamento para as

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Consoante Lins, a preocupação com o ensino das primeiras letras, sob responsabilidade do capelão, evidenciava o cuidado e a precaução que a Marinha Imperial buscava tomar em relação à formação e ao comportamento dos aprendizes. A doutrina cristã e a catequese alinhadas aos dispositivos de aprender a ler, a escrever e a contar buscavam moralizar o comportamento de meninos entre 7 a 16 anos de idade, remetidos por diversas autoridades nas mais variadas condições físicas e emocionais, e que provavelmente entravam na instituição desprovidos de qualquer instrução40. A documentação aponta que em Belém do Pará, ao final do ano letivo, o professor de primeiras letras deveria apresentar ao inspetor do Arsenal um mapa da frequência, do aproveitamento e da conduta dos alunos nas aulas. Os aprendizes artífices eram distribuídos por “classes” que, a princípio, não obedeciam a nenhuma relação com a distribuição por idade ou série etária definida. A distribuição ocorria de acordo com os progressos dos rudimentos do aprender a ler, escrever e contar, no ensino de geometria aplicada às artes mecânicas, aritméticas e desenho, que, após avançarem nesses aspectos, passariam para classes superiores41. De acordo com Ofício de Inspeção do Arsenal de Marinha do Pará, do ano 1875, na capital paraense, a aprovação dos aprendizes estava de acordo com o adiantamento em que eles teriam de “classes inferiores” para “classes superiores”. Em uma escala que ia da 4ª Classe, de menor aproveitamento, até a 1ª Classe, em que alcançariam os saberes necessários e se completariam os estudos básicos, do que eram previstos para as aprendizagens dos meninos. Assim, os estudantes, nas aulas de primeiras letras, tiveram seus aproveitamentos avaliados e descritos nos mais variados estágios de seu processo formativo como: “está dando 2º livro tabuada de somar e escreve o ABC”; “lê concretamente, dá gramática, tabuada de dividir e escreve”; “está dando 3º livro tabuada de somar,

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Companhias de Aprendizes Artífices dos Arsenais da Marinha da Corte, e Província da Bahia, Pernambuco e Pará. Art. 28.

LINS, Mônica Regina Ferreira Lins. Viveiros de “homens do mar”: Escolas de AprendizesMarinheiros e as experiências formativas na Marinha Militar do Rio de Janeiro (1870-1910). Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2012. p. 193. ARQUIVO PÚBLICO DO PARÁ. Fundo Arsenal de Marinha, área guerra. Série: Ofícios do Quartel a Companhias de Aprendizes de 1872, notação 50.


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escreve” e “está dando história do Brasil, gramática, tabuada de somar”42. Por essas informações que temos dos meninos, vemos que eles estavam inseridos nas aprendizagens básicas da instrução formal escolar daquele contexto, que consistia na leitura, na escrita e na memorização da tabuada que os levariam às contas das quatro operações básicas. Do mesmo modo, também fazia parte da instrução que os meninos recebiam no Arsenal o ensino de música. A formação de uma banda musical era condição essencial e ficaria destinada aos aprendizes que apresentassem alguma vocação. O ensino ficava a cargo de um mestre de música que também gerenciava os ensaios. A banda de música da Companhia de Aprendizes Artífices do Pará era sempre requisitada para participar dos festejos oficiais oferecidos pelo Governo da Província. Em outubro de 1875, o Comandante do Quartel da Companhia, Olympio José Chavantes, informava ao Inspetor do Arsenal, João Gomes de Faria, “Que a Companhia acha-se pronta a marchar junto com sua banda de música para acompanhar o Círio de Nossa Senhora de Nazareth”43. A presença da banda dos aprendizes do Arsenal na festa religiosa do Círio de Nazaré44 na capital paraense parece ter sido algo comum. Com efeito, em 26 de outubro de 1873, o Jornal O Liberal do Pará anunciava o início e a programação dos festejos do “Cyrio de Nossa Senhora de Nazareth”, em que a banda da Companhia de Artífices do Arsenal de Marinha participaria na condução da festividade. O festejo começaria pelas 6h da manhã com a romaria percorrendo a travessa da Roza, Largo da Sé, Rua dos Mercadores, Rua Santo Antonio, Praça de Pedro II e Estrada de Nazareth45. O Liberal do Pará descrevia a organização da gente do Arsenal na procissão, dando destaque também para o “Estandarte com as inscrições das bênçãos aos náufragos do brigue Portuguez S. João Baptista no ano de 1846”, que 42 43 44

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BRASIL. Arquivo Nacional - Série Marinha – Ministro - Secretaria de Estado. Ofício de Inspeção do Arsenal de Marinha do Pará de 1875. Notação: Maço X M – 480.

ARQUIVO PÚBLICO DO PARÁ. Fundo Arsenal de Marinha, área guerra. Série: Ofícios do Comando da Companhia de Aprendizes de 1875, notação 91. O Círio de Nossa Senhora de Nazaré é uma procissão católica, considerada uma grande festa religiosa e patrimônio cultural e imaterial brasileiro, que ocorre todos os anos desde 1793 pelas ruas da cidade de Belém do Pará. Ver: HENRIQUE, Marcio Couto. Do ponto de vista do pesquisador: o processo de registro do Círio de Nazaré como patrimônio cultural brasileiro. Revista Amazônica, Belém-PA, v. 3, n. 2, 2011, p. 324-346. Disponível em:<http://www.periodicos.ufpa. br/ index.php/amazonica/article/viewFile/771/1048> O Liberal do Pará, 26/10/1873, nº 243, p. 1.

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“Sobre os ombros dos homens do mar, desses homens crestados pelo sol do oceano (...) que jamais esquecem a Mãe de Deus, será conduzido o Escaler onde se efetuou o grandioso milagre salvando-se parte da tripulação...”. O estandarte, que ao mesmo tempo representava as agruras e a fé dos marinheiros, era garbosamente conduzido pelas “Bem disciplinadas e luzidas Companhias de Aprendizes Artífices com sua harmoniosa banda de música”46. A participação em festas religiosas e em atividades culturais da cidade de Belém sem dúvida representou um importante fator de motivação e atração para o aprendizado da música. As constantes apresentações geravam a quebra de rotina institucional, pois levariam os alunos a frequentarem espaços, principalmente nas comemorações em ambientes políticos, que jamais frequentariam em ouras ocasiões, fugindo, assim, da rígida distribuição e controle do tempo e espaço de uma instituição de internato escolar47. Além das primeiras letras, da música e da doutrina cristã, os menores deveriam aprender um ofício. Nas oficinas do Arsenal de Marinha do Pará, os mestres, contramestres e operários eram encarregados do ensino dos aprendizes artífices. O mestre deveria saber ler, escrever e contar, além das habilitações próprias para exercício de um ofício. Era sua obrigação cuidar das instalações e ferramentas das oficinas, da ordem, disciplina e aplicação dos operários nos trabalhos e na orientação para o bom comportamento dos menores48. Os alunos aprendizes eram inseridos no mundo real de trabalho nas oficinas, vivenciando a aprendizagem do ofício na prática. O trabalhar era, portanto, parte do cotidiano dos internos do Arsenal de Marinha. E isso se construía em meio a tensões e a imposições de ordens por parte dos mestres aos meninos. Assim demonstra o ofício do dia 14 de Julho de 1872, que foi encaminhado pelo comandante Antonio de Castro, responsável pela direção da Companhia, ao inspetor Manoel Carneiro da Rocha, relatando as ocorrências em que os mestres das oficinas estavam distribuindo os alunos em serviços “Incompatíveis com a aprendizagem do ofício” que deveriam se destinar. O comandante se referia ao fato de os aprendizes artífices serem submetidos a trabalhos pesados e intensos que não compatibilizavam com sua pequena 46

O Liberal do Pará, 26/10/1873, nº 243, p. 1.

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BRASIL. Decreto nº 5.622, de 2 de maio de 1874. Art. 147.

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RIZZINI, Irma. O cidadão polido e o selvagem bruto: a educação dos meninos desvalidos na Amazônia Imperial. Tese de Doutorado – Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/PPGHIS, 2004. p. 211.


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força, alertando ao inspetor que os mestres deveriam ponderar as atividades, em vez de se dar “A marcha errônea que seguem no ensino dos menores”49. O trabalho na construção e reparo das embarcações nos estabelecimentos da Marinha exigia a presença de diversos trabalhadores, que podiam ser especializados ou não nas atividades. Para os meninos, era o local direcionado para iniciarem as atividades na aprendizagem de algum ofício. Porém, tal atividade não era fácil para um menino cujo corpo ainda estava em formação e que não tinha a força física necessária. A vida nos estaleiros da Marinha era rude e pesada. Maria Luiza Marcílio, em seu trabalho sobre a história da criança abandonada no Brasil, expõe o testemunho de um médico que observou as crianças no Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro. A maioria delas se alimentava mal e tinha o corpo enfraquecido. Muitas vezes os meninos entravam alegres e robustos, depois, com a intensidade dos serviços, começavam a definhar, emagrecer, adquirindo uma cor pálida e amarelada, caracterizando muitas vezes o aparecimento de tuberculose50. No Arsenal do Pará, ao final de cada ano, a instituição organizava um cerimonial de culminância do período letivo. Nesse momento, eram exibidos os artefatos manufaturados e trabalhos de desenhos desenvolvidos pelos aprendizes artífices. Nessa cerimônia também era distribuída a premiação do exame avaliativo, que era feita para dimensionar a aprendizagem nas diversas atividades da escola. Os examinadores responsáveis por avaliar e julgar os alunos eram os funcionários do próprio arsenal. Cabia ao professor de primeiras letras a secretaria de inspeção e a produção do exame para qualificar aqueles que tivessem melhores desempenhos51. Essa medida serviria para a difusão de um valor moral, que seria fundamental para o desenvolvimento da instituição em propagar a formação do futuro trabalhador. O comportamento exemplar dedicado às atividades era compensado com uma premiação, aspecto presente nas iniciativas de educação militar que buscava a disseminação de um modelo ideal para estimular os 49 50 51

ARQUIVO PÚBLICO DO PARÁ. Fundo Arsenal de Marinha, área guerra. Série: ofícios das Companhias de Aprendizes Artífices de 1872, notação 94.

MARCÍLIO, Maria Luíza. A roda dos expostos e a criança abandonada na História do Brasil, 17261950. In: FREITAS, Marcos Cezar de. História social da infância no Brasil. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1997. p. 74. O Liberal do Pará, n. 264, 21/11/1874. p. 1.

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demais indivíduos, representando uma espécie de modelo disciplinador para evitar os desvios de conduta. A inserção e distribuição dos meninos desvalidos na Companhia Aprendizes Artífices do Pará não obedeciam a uma separação específica por idade nas atividades escolares dentro do Arsenal. Meninos de menor idade, entre 7 e 8 anos, se entrelaçavam em uma convivência de múltiplos significados sociais com outros de 15 e 16 anos, além de conviverem com outros adultos operários, marinheiros, enfermeiros, guardas e demais funcionários do estabelecimento. Para muitos meninos, a inserção nesses estabelecimentos não foi uma opção própria, e sequer de seus familiares. Lembremos que, no momento da entrada, muitos viviam nas ruas, eram remetidos pelo Corpo de Polícia e outros pelo Presidente de Província, ou pelos Juízes de órfãos que encaminhavam menores desamparados e desprovidos de família52. Isso é, diversas experiências compartilhadas dentro de um estabelecimento de internato escolar.

Disciplina e resistência A Companhia de Aprendizes Artífices seguia o modelo de internato escolar, em que muitos meninos foram submetidos ao processo de disciplina, controle, ordem, vigilância e punição, para que, assim, fossem formados de “Cidadãos moralizados pelos hábitos do trabalho, moderação e ordem”53, como discursava o Ministro da Marinha em relatório apresentado a assembleia legislativa de 1871. Fabiana Bandeira elucida que, ao serem inseridos em uma instituição militar, esses indivíduos do mundo da rua eram submetidos a um processo de disciplinarização. “A ação deles não era mais motivada por suas próprias vontades e por seus antigos valores culturais, mas por um conjunto de regras e modelos que transformam os corpos dos homens num só corpo, o militar”54. 52 53 54

CRUDO, Matilde Araki. Infância, trabalho e educação: os aprendizes do Arsenal de Guerra de Mato Grosso (1842 a 1899). Tese de Doutorado – Instituto de Filosofia e Ciência Humanas, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2005. p. 285. BRASIL. Relatório anual apresentado pelo Ministro da Marinha à assembleia geral legislativa na 4º sessão da 14º legislatura de 1871.1 – p. 1.

BANDEIRA, Fabiana Martins. Disciplinando homens, fabricando marinheiros: Relações de poder no enquadramento social da Corte (1870-1888). Dissertação de Mestrado - Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2010. p. 90.


Os aprendizes artífices da Marinha: infância, ensino de ofícios e formação militar...

Os dispositivos legais, estatutos e regulamentos eram bem claros quanto às normas impostas a esses meninos. Os artigos 45 e 46, do Decreto nº 2.615 de 21 de Julho de 1860, por exemplo, dispunham sobre os casos cometidos por falta de subordinação e disciplina. Os aprendizes não podiam sair sozinhos, eram rigidamente vigiados e controlados, devendo sempre estar acompanhados de um guarda. Se cometessem qualquer tipo de indisciplina, eles seriam correcionalmente punidos pelo inspetor ou comandante do Arsenal. O professor de primeiras letras e os mestres das oficinas, ao detectarem qualquer forma ou suspeita de delito, encaminhavam para a inspetoria providenciar a “correção”. A punição poderia ser bastante severa, indo desde prisão simples ou solitária, que não excedesse oito dias, até a privação da alimentação ou montagem de guardas em períodos dobrados55. Não raras vezes, os meninos presenciavam e participavam de casos de embriaguez, brigas, agressões, xingamentos, sexualidade, tanto entre os funcionários da instituição quanto entre seus colegas de escola. Para manter a disciplina, era necessário recorrer a métodos fortes, pesados e truculentos, como ficou documentado nos relatórios e ofícios da instituição56. Em dezembro de 1875, por exemplo, em uma aula prática que deveria ocorrer sobre a arte de construção naval a bordo do “Vapor Marcílio Dias”, deu-se o conflito entre os aprendizes artífices Fernando José dos Santos e Manoel Ferreira de Nazareth. Antes de iniciarem os trabalhos, o menor Fernando acaba repreendendo Manoel, que ficou incomodado e rebateu, proferindo “Insultos, palavras injuriosas e obscenas”, resultando no espancamento dado por Fernando, que é o maior entre os aprendizes, “Ao ponto de deixar Manoel bastante seviciado pelo rosto e pescoço, por ser pequeno e débil”57. Em outro momento, o aprendiz artífice Fernando maltratou, com pancadas dadas com uma vareta de espingarda, o seu colega José Maria dos Santos, mas foi repreendido imediatamente pelo guarda ajudante, “Dizendo-lhe que não tinha o direito de castigar seus camaradas”, ainda mais “Sendo fisicamente maior que todos da Companhia” e sendo seu camarada, o José Maria dos Santos 55

BRASIL. Decreto nº 2.615 de 21 de Julho de 1860. Art. 45.

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ARQUIVO PÚBLICO DO PARÁ. Fundo Arsenal de Marinha, área guerra. Série: ofícios das Companhias de Aprendizes Artífices de 1875, notação 94.

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BRASIL. Arquivo Nacional - Série Marinha – Ministro - Secretaria de Estado. Ofícios sobre Aprendizes Artífices (1875). Notação: Maço XM – 789.

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Maciel, um dos menores fisicamente. Subitamente, o aprendiz Fernando respondeu de forma “Insolente e insubordinada, dizendo que antes de comer o pão do Estado tinha desrespeitado um Tenente-coronel, quanto mais a um pequeno Sargento”58. Na manhã do dia 29 de março de 1876, o guarda 1º Sargento Lucas Espinoza de Brito, responsável por colocar os aprendizes artífices em forma antes de iniciarem as aulas, advertiu o menino João Pereira Primo por seu mau comportamento no momento da organização do pelotão59. O menino ignorou, fazendo pouco caso das ordens, e riu das admoestações que recebeu do dito guarda, que passou, em seguida, a repreendê-lo novamente de forma mais rigorosa, quando, na mesma ocasião, o referido guarda foi agredido por trás, sofrendo ofensas, insultos e novas ameaças de agressão por outro aprendiz artífice, o João Pereira Carmo, identificado como irmão de mais idade do menor Augusto. O guarda acabou prendendo os dois aprendizes, e encaminhou para que fossem punidos com prisão solitária para o menino Augusto Pereira do Carmo e prisão simples para João Pereira Primo60. O aprendiz que fosse considerado extremamente insubordinado, quando as demais punições não surtissem efeito desejado, poderia ser encaminhado à Companhia de Marinheiros como alternativa última para correção. O artigo 46 do regulamento atribuía como medida uma punição maior, pesada, devendo ser “exemplar” para esses meninos. Um exemplo foi a punição aplicada ao aprendiz artífice Cornélio Bezerra de Figueiredo, que, para o “Bem da disciplina e da moralidade da Companhia de Aprendizes Artífices do Pará”, foi transferido para ter praça na Companhia de Marinheiros. Da mesma forma ocorreu com o caso de Manoel Joaquim, como punição por ter sido encontrado em situação de embriaguez dentro do estabelecimento61. Essa prática de encaminhar os menores aprendizes artífices considerados insubordinados para a Companhia de Marinheiros como última alternativa 58 59 60 61

ARQUIVO PÚBLICO DO PARÁ. Fundo Arsenal de Marinha, área guerra. Série: ofícios das Companhias de Aprendizes Artífices de 1876, notação 94. ARQUIVO PÚBLICO DO PARÁ. Fundo Arsenal de Marinha, área guerra. Série: ofícios das Companhias de Aprendizes Artífices de 1876, notação 94. ARQUIVO PÚBLICO DO PARÁ. Fundo Arsenal de Marinha, área guerra. Série: ofícios das Companhias de Aprendizes Artífices de 1876, notação 94. ARQUIVO PÚBLICO DO PARÁ. Fundo Arsenal de Marinha, área guerra. Série: ofícios da presidência ao inspetor e do inspetor a presidência de 1877, notação 115.


Os aprendizes artífices da Marinha: infância, ensino de ofícios e formação militar...

para correção e disciplina evidencia, de acordo com David Patrício Lacerda, um paradoxo dentro da própria instituição: os chamados “viveiros” da Marinha (as Companhias de Marinheiros), locais dos quais se acreditava que sairiam habilidosos marinheiros, também eram considerados dentro da própria instituição espaços voltados para punir menores da Companhia de Artífices que demandassem disciplina mais rigorosa62. A deserção, a fuga e a evasão também fizeram parte da vida institucional dos meninos do Arsenal de Marinha. Em ofício datado de novembro de 1875, do Quartel da Companhia, o comandante informava ao inspetor que “Às 11 horas da noite de 22 de novembro, achando-se de serviço o guardião Belchior dos Reis Mello, deserdaram deste quartel os menores Manuel Antonio dos Santos e Francelino José Ferreira.” Em seguida, o comandante abre investigação para tomar ordem da situação e acaba averiguando que os referidos menores “Evadiram apossando-se de uma montaria deste arsenal”, e que “Os mesmos menores seguiram para a Baia do Marajó”63. No momento das atividades de ensino na aula da Oficina de Carapinas, os operários José Pedro Alexandrino e Francisco Luiz de Azevedo informavam, ao Comandante da Companhia, ter visto o aprendiz artífice Lydio Philadelphio da Silva “Fazer ações indecentes pela reta guarda do mestre da oficina na ocasião em que passava pelo banco do referido aprendiz”, e, quando era avisado, o aprendiz se “Fazia de firme”64. O fato foi confirmado por outro operário, Francisco de Oliveira Ramos, que confirmou tudo ao Comandante e ainda “Acrescentou dizendo que o referido aprendiz faz caretas e outras macaquices pela reta guarda do mestre”. Ao averiguar, o Comandante interrogou os demais aprendizes, que negaram a situação, embora os aprendizes Joaquim Antonio e Bernardino Dias relatarem que “Em outras ocasiões viram o aprendiz Lydio fazer caretas e momices para o mestre da oficina”65. 62 63 64 65

LACERDA, David Patrício. Trabalho, política e solidariedade operária: uma história social do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro (1860 - 1890) - Tese (doutorado), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2016. p. 140. ARQUIVO PÚBLICO DO PARÁ. Fundo Arsenal de Marinha, área guerra. Série: ofícios das Companhias de Aprendizes Artífices de 1875, notação 94. ARQUIVO PÚBLICO DO PARÁ. Fundo Arsenal de Marinha, área guerra. Série: ofícios das Companhias de Aprendizes Artífices de 1875, notação 94. ARQUIVO PÚBLICO DO PARÁ. Fundo Arsenal de Marinha, área guerra. Série: ofícios dos comandos das Companhias de Aprendizes de 1876, notação 94.

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A educação, vista como um meio pelo qual seriam impressos os valores morais pelas atividades desenvolvidas nas Companhias da Marinha, deveria consolidar esses valores e estabelecer uma forma de regulamentação social e controle do indivíduo. Até nos momentos de supostas “brincadeiras”, os meninos eram tratados com firmeza da disciplina. Manter os menores aprendizes da Marinha afastados dos maus costumes, dar a eles uma formação moral, eram grandes desafios66. A atenção e a preocupação com a moralidade e comportamento dos aprendizes artífices e dos funcionários da instituição parecem não ter impedido que os menores fossem suspostamente envolvidos em caso de abuso sexual. No ofício do dia 21 de Abril de 1876, o comandante da Companhia abre investigação para averiguar a veracidade dos fatos em relação ao caso do enfermeiro, Joaquim da Mata Cruz, que teria se aproveitado dos menores em tratamento na enfermaria do Arsenal para “Praticar atos imorais”67. O caso foi descoberto quando o aprendiz Augusto Pereira terminou suas aulas debaixo dos telheiros das construções navais e foi visitar seus camaradas e seu irmão mais novo, que estavam doentes, na enfermaria, momento em que foi interrompido pelo enfermeiro, que “Ordenou-lhe que não entrasse e que se retirasse”, pois não estava em horário de visitação. O aprendiz Augusto acabou respondendo que “Ele, enfermeiro, não havia de fazer o que faz com os outros”, e comunicou o caso ao Comandante, dizendo que o enfermeiro pretendera praticar atos imorais com seu irmão João Pereira Primo, e que, se se atrevesse a praticar esses atos, “Lhe faria alguma coisa”68. Quando interrogou outros menores, o Comandante confirmou o ocorrido e ainda descobriu que outros aprendizes, como Francelino Antonio Gouveia, Jose Lourenço dos Reis e “Até o remador da capitania do Porto, Victorino Gomes Pereira, que também se achavam doentes na enfermaria,

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MESQUITA, Simone Vieira de. Ensino Militar Naval: escola de Aprendizes Marinheiros do Ceará (1864-1889). Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Fortaleza, 2016. p. 185. ARQUIVO PÚBLICO DO PARÁ. Fundo Arsenal de Marinha, área guerra. Série: ofícios dos comandos das Companhias de Aprendizes de 1876, notação 94. ARQUIVO PÚBLICO DO PARÁ. Fundo Arsenal de Marinha, área guerra. Série: ofícios dos comandos das Companhias de Aprendizes de 1876, notação 94.


Os aprendizes artífices da Marinha: infância, ensino de ofícios e formação militar...

foram convidados pelo enfermeiro para praticar atos imorais ao modo que eles se recusaram”69. A experiência de formação na escola de aprendizes revela um processo de disciplinarização das crianças. Os constantes problemas enfrentados pela instituição eram uma indicação de que os menores vindos das ruas, do seio familiar, nas mais diversas situações, não estavam dispostos a aceitar as condições de vida e trabalho oferecidas pela Marinha e resistiam das formas que podiam. As tentativas de disciplinarização dos sujeitos e as formas de adestramento, punição e correção nem sempre produziam o efeito desejado70.

Considerações finais Percebemos que formar o trabalhador operário para o Arsenal de Marinha, desde a mais tenra idade, momento da vida em que se acreditava ser mais susceptível à modelagem do sujeito, era questão fundamental para se ter no futuro um sujeito moralmente disciplinado e qualificado para o serviço. Ou seja, era preciso torná-lo útil a si e ao Estado, questão que coaduna, portanto, com o objetivo político e ideológico do próprio Estado em transformar a Companhia de Aprendizes Artífices Pará (escola de internato de formação militar e profissionalizante) em obra de amparo a meninos pobres da Província do Pará. A instituição precisava de mão de obra qualificada para atender os serviços de suas demandas nos diversos arsenais espalhados pelas províncias. No entanto, a vida, a formação e a condição dos aprendizes artífices nas oficinas do Arsenal de Marinha do Pará nem sempre condiziam com a pretensão da formação do operário ideal, especializado e disciplinado nos aspectos da moralidade e do bom costume. Os meninos estavam inseridos na convivência de cenas de embriaguez, brigas, xingamentos, sexualidade, espancamentos e de trabalhos intensos e pesados. Aqueles entregues por suas famílias teriam de conviver com outros meninos das ruas, enviados pelas autoridades policiais, juízes de órfãos e com toda a sorte de sujeitos adultos, como operários, 69 70

ARQUIVO PÚBLICO DO PARÁ. Fundo Arsenal de Marinha, área guerra. Série: ofícios dos comandos das Companhias de Aprendizes de 1876, notação 94.

LINS, Mônica Regina Ferreira Lins. Viveiros de “homens do mar”: Escolas de AprendizesMarinheiros e as experiências formativas na Marinha Militar do Rio de Janeiro (1870-1910). Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2012.

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enfermeiros, guardas, mestres, contramestres de oficinas e demais funcionários da instituição que apresentavam atos de indisciplina. Meninos de maior idade, mais fortes e mais “robustos” fisicamente que outros participavam de momentos de violência e indisciplina, durante a formação nas aulas de primeiras letras e nas oficinas do Arsenal. Ao mesmo tempo, foram submetidos a rigorosas punições para a preservação da ordem, o que provocava fugas, deserções e resistências que evidenciavam a negação da formação em que estavam inseridos. De fato, as brincadeiras, as “macaquices”, as “caretas”, as “momices”, os atos de embriaguez, as brigas em que os meninos se envolveram, as fugas que os fizeram se lançar às correntezas dos rios em uma canoa, as denúncias que fizeram, suas relações de camaradagem e amizade, revelam reações e sentidos que esses sujeitos davam a sua vida no internato. Assim, para além da disciplina que lhes foi imposta, os meninos pobres do Arsenal do Pará, crianças e adolescentes dos 7 aos 16 anos, foram capazes de construir ações de resistência, de solidariedade, de trabalho e até mesmo de infância, em um mundo que lhes queria fazer esquecer esse momento de suas vidas.


CAPÍTULO 2

OS DESERDADOS DA SORTE: INFÂNCIA, TRABALHO E ESCRAVIDÃO NO GRÃO-PARÁ (1870-1893)

Marcelo Ferreira Lobo

Resumo: Entre 1871 a 1888, Belém do Pará, assim como em diversas capitais do império do Brasil, tive que lidar com as reformas promovidas pela Lei do Ventre Livre. Declarar livre o ventre cativo, longe de promover uma ruptura radical no sistema escravagista, levou à criação da categoria ingênuo (filho livre de ventre escravo) e aos debates acerca da infância pobre no Brasil, por vezes os filhos de livres pobres e escravas foram enquadrados dentro de uma categoria geral denominada “infância desvalida”. É exatamente sobre essas categorias e as transformações promovidas em relação à infância que este trabalho se debruça, demonstrando que o fenômeno das chamadas “crias da casa”, mesmo antecedendo à Lei do Ventre Livre, ganhou outros contornos, enraizada enquanto prática social, ao mesmo tempo tencionada entre antigos valores de uma moral senhorial escravagista e as novas aspirações de direitos de milhares de mulheres oriundas da escravidão. Palavras-Chave: Ingênuos; Infância desvalida; libertas. “...a nossa ocasião com a presente Lei, que posto não acabasse de todo com o mal, todavia estabeleceu o libertamento do ventre, preparando deste modo a liberdade completa, em um futuro não muito longínquo. Não deve ficar, porém, aí a obra, e é palpitante a necessidade de prepararmos o futuro


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desses entes, deserdados da sorte” (Vicente Alves de Paula, magistrado cearense, presidente do Tribunal da Relação do Pará, 1875)71.

A

niceto foi batizado em São Domingos da Boa Vista, interior do Pará, em 1874. Filho da escrava Esperança, sob os desígnios da Lei Rio Branco, nasceria em uma condição distinta da escravidão, contudo, ainda sob o domínio senhorial72. Esperança foi contemplada, em 1882, com o Fundo de Emancipação Escrava da capital paraense, contava então com sete filhos, todos livres pela lei, designados como ingênuos.73 Durante os debates acerca da lei que tornou livre o ventre escravo, a maternidade foi ponto importante a fim de pensar o projeto de emancipação gradual da escravidão. De tal modo, foi estabelecido que os filhos livres de mulheres escravas, nascidos a partir da lei número 2040 de 28 de setembro de 1871, não poderiam ser separados de suas mães em caso de venda das mesmas, até que eles atingissem a idade de 12 anos. Ainda assim, como destacou Victor Hugo Modesto, os projetos iniciais do que se tornou a lei do Ventre Livre estabeleciam a idade de 16 anos para que se pudesse separar mãe e filho, tendo em sua versão final fixado a idade de 12 anos74. Tal parâmetro indica que a força de trabalho de tais menores não seria descartada mesmo sob o discurso abolicionista. Ao contrário, o trabalho de menores foi largamente utilizado ao longo do século XIX, seja nas fazendas ou no mundo urbano. Décadas depois, Aniceto da Silva Santos, aos 22 anos, solicitou seu acento de Batismo em novembro de 1896. Ele experimentou a condição intermediária entre a escravidão e a liberdade em meados do século XIX. Assim como outros milhares de menores que figuraram nas páginas dos jornais, nos processos judiciais e nos pedidos de tutelas, Aniceto provavelmente foi submetido a formas compulsórias de trabalho, e uma política de arregimentação de mão de obra, alvo dos debates sobre a infância desvalida na província paraense. 71 72 73 74

PAULA, Vicente Alves de. Anotações à Lei e Regulamentos sobre o Elemento Servil: anotações até o fim de 1874, com os avisos do Governo, Jurisprudência dos tribunais e alguns esclarecimentos. Rio de Janeiro, Instituto Tipográfico do Direito. Rua Theofilo Ottoni, 1875, p. 6. Solicitação de assento de batismo de Aniceto da Silva Santos, 1896. Arquivo da Cúria Metropolitana de Belém; Autos de Justificação (1890-1900).

Diário de Belém (PA), 10/10/1882, p. 3. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (HDBN).

MODESTO, Victor Hugo do R. “Nascidos de Ventre Livre”: a tutela de ingênuos em Belém do Grão-Pará (1871-1889). Trabalho de Conclusão de Curso; Faculdade de História/UFPA. Belém, 2018.


Os Deserdados da sorte: infância, trabalho e escravidão no Grão-Pará (1870-1893)

Já o ingênuo José, filho da escrava Damásia, foi batizado na paróquia da Sé em Belém no ano de 187275. Assim como Aniceto, ele esteve sujeito a formas compulsórias de trabalho, modalidades híbridas entre a escravidão e o trabalho livre. José acabou por receber o sobrenome da proprietária de sua mãe, Clara Rosa da Natividade, e do marido da mesma, Antônio Vieira Lima. Com cerca de seus 11 anos de idade, José Natividade de Lima foi tutelado por Antônio Vieira de Lima em 188376, sua mãe era então falecida. O que se pode afirmar sobre esse ingênuo é que durante sua menoridade trabalhou como “pupilo” do comerciante português Antônio Vieira de Lima, provavelmente nessa condição aprendeu o ofício de caixeiro. Tanto Aniceto da Silva Santos quanto Jose da Natividade Lima foram parte da geração de transição entre o mundo da escravidão e o da pós-abolição no Brasil, entre 1870 e 1890. Contexto no qual a infância foi tema de inúmeras discussões, seja sobre a educação, ou sobre a formação do trabalhador nacional nos moldes de um ideal de modernidade. Eles foram tidos como menores desvalidos por constituírem a camada mais baixa da sociedade, filhos de escravas, filhos de relações ilegítimas ante os olhos da Igreja e do Estado. Aqui, temos uma distinção recorrente nos discursos sobre a infância em meados do século XIX no Brasil. Para os filhos das classes mais abastadas, o termo “criança” ganha destaque, enquanto o termo “menor” foi costumeiramente utilizado para designar os filhos da população pobre. A designação menor, antes da segunda metade do século XIX, esteve associada à faixa etária da criança, e passou a ganhar novo sentido, atrelado ao uso de sua força de trabalho, associado à ideia de abandono, miséria moral, material e delinquência77. A fotografia abaixo, retirada em 1900 na Doca do Reduto, em Belém do Pará, ilustra tal distinção entre menores e crianças apresentadas por Londoño. Ao retratar o cotidiano de Belém, apresenta na imagem vários sujeitos que frequentavam a zona portuária. Do lado direito da imagem, identificamos três mulheres negras, e, logo atrás delas, duas crianças também negras, com roupas maltrapilhas e descalças, uma delas carrega algo na cabeça. Do lado direito, 75 76 77

Livro de Batismos da Sé (1872 -1883), n.º 13, folha 20. Arquivo da Cúria Metropolitana de Belém. Auto de Tutela de José Natividade de Lima, 1883. CMA; Fundo Civil; Série Tutela.

LONDOÑO, Fernando Torres. A origem do conceito menor. In Mary Del PRIORE (Org.). História da Criança no Brasil. (3a ed.). (pp.129-145). São Paulo: Contexto, 1995.

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mesmo que desfocado, é possível identificar uma criança protegida do sol pela sombrinha de um adulto, a mesma está calçada e parece usar trajes em boas condições, demarcando distinções de classe e cor. Figura 1: Doca do Reduto, Belém - PA, 1900

Fonte: Marc Ferrez. Acervo Instituto Moreira Sales78.

No mesmo lugar, 15 anos antes, em outra imagem (Figura 2), temos novamente uma criança, negra, descalça e de cabeça raspada, tal qual a personagem Andreza, descrita na obra de Dalcídio Jurandir79: “Num átimo trouxe a

78 79

Disponível em: http://brasilianafotografica.bn.br/brasiliana/handle/20.500.12156.1/6402. Acessado em 29/10/2020.

Dalcídio Jurandir foi um literato paraense (1909-1979), nascido na então Vila de Ponta de Pedras no Marajó, ao longo de sua vida produziu uma serie de romances que retratam a natureza e cotidiano do Pará na primeira metade do século XX. Ver: Furtado, M. T., & Barbosa, T. S. (2011). DALCÍDIO JURANDIR: PARA ALÉM DO ROMANCISTA. DLCV - Língua, Linguística & Literatura, 7(2).


Os Deserdados da sorte: infância, trabalho e escravidão no Grão-Pará (1870-1893)

encomenda da senhora: uma menina de nove anos, amarela, descalça, a cabeça raspada, o dedo na boca. metida num camisão de alfacinha”80. O menor da imagem está claramente vendendo seus produtos na Doca do Reduto, uma das muitas possibilidades de uso da força de trabalho desse tipo de sujeito. Se a infância entre meados do século XIX e início do século XX foi marcada por uma série de debates, é necessário termos em mente que a própria categoria infância foi constituída por uma série de marcadores, de gênero, cor e classe, que tornam as experiências plurais no contexto de mudanças no mundo do trabalho. Figura 2: Doca do Reduto, Belém - PA, 1875

Fonte: Felipe Augusto Fidanza. Acervo Instituto Moreira Sales81.

Infância, trabalho e escravidão estiveram entrelaçados nas últimas décadas do império do Brasil. Se do outro lado do atlântico, ao longo do século XIX, o trabalho de menores foi largamente utilizado durante o auge da 80 81

JURANDIR, Dalcídio. Belém do Grão-Pará. Livraria Martins Fontes, São Paulo, 1960, p. 4.

Disponível em: http://brasilianafotografica.bn.br/brasiliana/handle/20.500.12156.1/2521 Acessado em 30 de Out. 2020.

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revolução industrial82, do lado de cá, a perspectiva de fim gradual do cativeiro proporcionou a construção de mecanismos que visaram tanto à formação de uma mão de obra nacional, como tentava lidar com o atraso e os “vícios” proporcionados pelo cativeiro. O Estado, por meio do juizado de órfãos, delegou aos particulares a missão de promover formas de aprendizado aos menores pobres. Aprendizado vinculado mais a ideia do trabalho, do que a um modelo de educação letrada. Os milhares de ingênuos existentes no Império em 1888 foram elementos de fundamental importância ao exercício do pensar a infância brasileira.

De Ingênuos a órfãos O “ingênuo” nasce em 28 de setembro de 1871 enquanto categoria social. Indivíduos que estariam marcados por uma condição fronteiriça entre liberdade e escravidão. Quando, em 1888, o ingênuo passa a ser tratado como órfão, tal “metamorfose” não se deu tão somente em virtude da Lei Áurea, e sim diante de um processo de demarcação social que se iniciou em 1871. ÓRFÃOS PELA LEI 13 DE MAIO. Acerca da educação e bem estar desses menores, requereu o Dr. Curador Geral, na audiência de ontem, diversas medidas salutares e acauteladoras. Pediu ao digno juiz, que tanto se distingui na Liga Redentora em prol da liberdade, sua intervenção valiosa em favor dos ex-ingênuos, cujas tutorias jamais devem ser concedidas aos ex-senhores que, iludindo a Lei e ao juízo, querem continuar a reter esses infelizes sob o reinado crasso da escravidão. Fez suas, em plena audiência, as judiciosas palavras do distinto Senhor Capitão-tenente Freitas que, em ofício dirigido a curadoria geral em data de 24 de maio, disse o seguinte:

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AGUIAR JUNIOR, Valdinei Santos de; VASCONCELLOS, Luiz Carlos Fadel de. A importância histórica e social da infância para a construção do direito à saúde no trabalho. Saúde Soc. São Paulo, v.26, n.1, p.271-285, 2017.


Os Deserdados da sorte: infância, trabalho e escravidão no Grão-Pará (1870-1893)

“as escolas de aprendizes e marinheiros são internatos, onde esses menores, considerados órfão pela Lei de 13 de maio, devem receber instrução elementar e profissional bem desenvolvida.” “todos eles, que não serão sujeitos aos castigos corporais já felizmente abolidos, formarão seus pecúlios na caixa econômica com a contribuição mensal que a todos proporciona o Estado, sob a imediata fiscalização da tesouraria da fazenda”. “concorramos todos, por esta forma, para o bem direito dessas crianças e para glória de nossa armada, que assim contará em seu seio marinheiros educados, prudentes e disciplinados.” Efetivamente assim opinamos e assim deve ser; nada de consentirmos, levados por certos respeitos sociais, por mais entendidas considerações a certos indivíduos, que os ingênuos de ontem e órfãos de hoje continuem, coitados, sob o látego fero do feitor nas obras e nos canaviais. Tudo esperamos da Lei; temos viva fé na boa vontade do digno Sr. Dr. Juiz de órfãos83.

Em meio aos anos que se passaram entre as Leis do Ventre Livre e a Lei Áurea, essa “geração de transição” foi alvo de projetos políticos, educacionais e disputas pela mão de obra. Experimentaram uma liberdade tutelada, aproximaram-se do mundo da liberdade não como qualquer criança livre, mas uma liberdade associada a orfandade, sempre sob a tutela do Estado ou dos senhores, com o discurso de serem movidos pelas “humanitárias ideias” do século. A legislação de 1871 aproximou os menores tidos como desvalidos da figura dos ingênuos. Maria Aparecida Papali enfatizou que os dispositivos da lei de 1871 serviram de incentivo a uma prática já recorrente no império: a de se ter “crias da casa”84. Quando na imprensa paraense ocorreu a transfiguração do ingênuo para órfão, não foi em virtude de nenhum dispositivo da Lei Áurea, e sim por meio de uma legislação orfanológica já existente, que a partir 83 84

A Província do Pará, 21/06/1888. p. 2. Biblioteca Pública do Estado do Pará/Fundação Cultural Tancredo Neves. Setor de Microfilme.

PAPALI, Maria Aparecida. A legislação de 1890, mães solteiras pobres e o trabalho infantil. Projeto História, São Paulo, n.39, pp. 209-216, jul/dez. 2009, p. 10.

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do 13 de maio passou a alcançar os milhares de menores, filhos de escravas, como aponta Papali: Os filhos menores dessas escravas foram, em inúmeros casos, considerados órfãos, devido às brechas permitidas pela Legislação emancipacionista de 1871, que manteve a questão do ingênuo em bases próximas da Legislação Orfanológica imperial, a qual preconizava serem considerados órfãos e passíveis de serem tutelados os filhos de mulheres solteiras pobres e miseráveis, categoria na qual se encontravam a maioria das escravas libertas85.

Se tomarmos em conta que, ao longo das décadas de 1870 e 1880, a grande frequência de alforrias de escravos foi proporcionando maior volume de libertas na sociedade paraense, o filho da alforriada poderia ser mantido com a mãe desde que tivesse a idade de até oito anos incompletos. Ao atingir essa idade, seria entregue ao Estado ou permaneceria sob a tutela dos ex-senhores de suas mães até atingirem a idade de 21 anos. Para a além dessa possibilidade, ficou determinado que o senhor perderia a tutela sobre o ingênuo se indenizado financeiramente, e em caso de castigos excessivos. No caso paraense, para o ano de 1884, dos 2.444 ingênuos matriculados em Belém, apenas 10% (249) foram entregues às suas mães libertas86. Se a legislação de 1871 outorgava algum direito às mães libertas em relação aos seus filhos ingênuos, a legislação orfanológica, ao equiparar tais menores a órfãos, criava uma série de interdições ao direito à família. Como ressalta Papali87, após o fim do império, o decreto nº 181 de 1890, que regulamentava o casamento civil88, sustentava o pátrio poder somente às mães legítimas, ou seja, a maternidade exercida dentro do casamento. Já os filhos naturais, ou ilegítimos, estariam à disposição do Juizado de Órfãos, a quem competia nomear um tutor idôneo. Em paralelo à legislação orfanológica, no Pará, as representações em relação aos egressos da escravidão, particularmente as mulheres, proporcionavam

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Idem, p. 12.

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PAPALI, idem, 2009, p. 116.

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Diário de Belém (PA), 10/12/1884, p. 2. HDBN. Coleção de Leis do Brasil - 1890, Página 168 Vol. 1 fasc. 1º (Publicação Original).


Os Deserdados da sorte: infância, trabalho e escravidão no Grão-Pará (1870-1893)

uma suspeição quanto às qualidades morais destas,89 elemento importante durante as disputas de tutelas, nas quais pretensos tutores atacavam a idoneidade dos familiares dos menores. Ao analisar as discussões da Lei de 1871 e a sua execução, que, longe de ter sido facilmente cumprida, encontrou dificuldades de cunho burocrático pela falta de recursos, má vontade dos senhores de escravos, e, em certa medida, pela inoperância do Estado, ao não promover o efetivo cumprimento da lei, no que concerne às matrículas, e registros de nascimentos. Os regulamentos e decretos que seguiram a Lei do Ventre Livre indicariam os modos e procedimentos para o cumprimento da Lei. Os Ministérios da Justiça e de Agricultura e Obras Públicas produziram uma série de avisos e circulares para todas as províncias do Império. Os jornais que circulavam em Belém discutiram o futuro do ingênuo, as ideias presentes em tais discussões estiveram articuladas a discussões que se processavam por todo o Império brasileiro. Os abolicionistas no Pará, na década de 1880, se ocuparam menos com o futuro dos ingênuos que com a libertação dos escravos. Não encontramos maiores referências sobre instituições relacionadas às associações emancipacionistas que se ocupassem da educação do filho da escrava. Em certa medida, a mudança de status do filho da escrava não se refletiu em uma mudança drástica nas relações particulares entre escravos e seus senhores.

Debates sobre a Lei do Ventre Livre As discussões ocorridas no final da década de 1860 acerca da emancipação escrava desembocaram na elaboração da Lei nº 2040, de 28 de setembro de 1871. Tal lei não se restringiu tão somente em libertar os filhos nascidos de mulher escrava, mas, também, em normatizar na lei determinados direitos assentados nas relações costumeiras entre senhores e escravos, como a compra da liberdade por parte do cativo90.

89 90

LOBO, M. F. Mulatas, pretas e criadas: entre o trabalho escravo e o trabalho livre em Belém. Canoa Do Tempo, 12(01), 231-259, 2020

Tal dimensão da lei do ventre Livre, em relação ao costume, do pecúlio foi discutida por Manuela Carneiro da Cunha. Ver: CUNHA, Manuela Carneiro da. Sobre os silêncios da lei: lei costumeira e positiva nas alforrias de escravos no Brasil do século XIX. In: Revista de Antropologia do Brasil, 1986.

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A Lei do Ventre Livre deixou os filhos dos escravos em uma condição jurídica diferente da escravidão, normatizou o pecúlio do escravo e a compra da alforria, criou o Fundo de Emancipação, estabeleceu a Matrícula Geral dos Escravos e libertou os escravos de nação91. E muitas vezes foi ressignificada nos tribunais, abrindo brechas para que os escravos alcançassem a liberdade92. Sidney Chalhoub analisou as transformações e as discussões no contexto da Lei de 28 de setembro de 187193. Ao mostrar o ir e vir discursivo de diversos parlamentares sobre a questão da reforma servil, principalmente a partir de 1867, Chalhoub mostrou o quanto conflituoso foi a aprovação da Lei do Ventre Livre – destacando a mudança de gabinete ministerial desde a solicitação pelo Imperador ao Visconde de São Vicente (Pimenta Bueno) para a elaboração de um projeto que versasse sobre a questão. Mesmo diante das pressões em prol da emancipação servil, que aumentou na década de 1860, tanto a aprovação da Lei quanto a sua execução encontraram resistência, sob o argumento de manutenção da ordem, e com o receio do abalo no poder moral dos senhores que a lei viria causar. Se durante as décadas de 1860 algumas ações movidas nos tribunais em busca de liberdade se baseavam na lei de fim de tráfico de 183194, após a Matrícula Geral de Escravos estabelecida na Lei do Ventre Livre, os senhores que adquiriram cativos traficados ilegalmente puderam ter sua propriedade ilegal escamoteada e “legalizada” pela matrícula, que não exigia maiores comprovações sobre a origem do cativo. Tal característica da Lei de 1871 demonstra 91 92

93 94

Os escravos de nação eram aqueles que pertenciam ao Estado, e exerciam suas atividades em estabelecimentos administrados pelo governo.

A Lei do Ventre Livre foi constituída por nove artigos, sendo o primeiro deles sobre a liberdade do ventre escravo o mais conhecido. O artigo 2º determinava que o governo poderia entregar o menor ingênuo a associações. No terceiro artigo, fora determinado a libertação de escravos em cada província com a criação de um fundo para tal fim. O 4º artigo permitiu ao escravo a formação do pecúlio, prática essa que era de cunho costumeiro. O artigo 5º sujeitava as sociedades emancipacionistas à inspeção do juiz de órfãos, no caso do Pará, o Curador Geral de Órfãos, Henrique Cordeiro de Castro, que assumiu o cargo em 1877 e era membro de uma agremiação abolicionista. O artigo 6º declarava libertos os escravos da nação, os dados em usufruto a Coroa, os de heranças vagas e os abandonados por seus senhores. O sétimo artigo determinava que nas causas da liberdade a ação seria sumária. Nos oitavo e nono artigos versavam sobre a matrícula geral de cativos e de ingênuos, e sobre as multas e taxas em relação ao não cumprimento das determinações da lei. CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis historiador. Companhia das Letras. E-book. 2003.

COTA, Luis Gustavo Santos. Não só “para inglês ver”: justiça, escravidão e Abolicionismo em Minas Gerais. História Social, nº 21, segundo semestre de 2011.


Os Deserdados da sorte: infância, trabalho e escravidão no Grão-Pará (1870-1893)

o quanto os escravocratas direcionaram os debates da referida lei. A discussão ganhou novas direções como a questão da formação de uma mão de obra livre para a lavoura, o controle da população liberta e dos filhos das escravas. Houve certo destaque durante as discussões sobre a Lei do Ventre Livre, dado a questão da denominação ser atribuída ao filho da escrava nascido a partir da promulgação da lei. Tal discussão não trazia em si somente a necessidade de denominação da criança de ventre cativo, e sim dos limites da cidadania que esses menores poderiam usufruir futuramente, seria ele chamado de liberto? Ou de ingênuo? Ao se denominar a criança nascida de ventre cativo de “liberto”, admitia-se o caráter de propriedade do menor, e, portanto, abriam-se brechas para a indenização aos proprietários das mães cativas – ao mesmo tempo em que se restringiam a cidadania completa, sendo que, pela constituição de 1824, os libertos não teriam acesso a determinados direitos políticos. O Barão do Rio Branco alertava para tal situação que iria ser criada se os filhos da Lei de 1871 fossem considerados libertos: A Lei não restitui a liberdade aos indivíduos a quem vai beneficiar, estabelece o princípio de que da sua data em diante, ninguém nascerá escravo no território brasileiro. É esse o seu pensamento, e por isso não reconhece nesta parte direito de indenização em favor dos senhores. O contrário estaria em flagrante contradição com tudo quanto se pode alegar e se alega, em nome da religião, do direito natural e das luzes do século, contra o estado de escravidão. O contrário fora criar entre nós uma nova classe social não menos perigosa, a de cidadãos privados de preciosos direitos em relação à vida pública e política. Se os libertos até hoje se mostram resignados, é porque neles verificam-se os motivos da incapacidade prevista pela constituição, e não são eles em grande número, ou se acham em situações muito diversas de lugar, de ocasião e de idade, visto que as alforrias são individuais, incertas e lentas. (Paranhos, 1871. Apud: Chalhoub)95.

Rio Branco distanciava a categoria social criada com a Lei do Ventre Livre da condição dos libertos. A lei não os restituiria à condição de liberdade, sendo que eles já nascerem livres, e, portanto, detentores de uma cidadania. O 95

CHALHOUB, Sidney. Idem, 2012, p. 127.

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valor de seiscentos mil reis, que visava indenizar o senhor da mãe cativa, não tinha por fim indenizar o valor da criança, e sim os gastos que o mesmo teria ao cuidar do menor até este atingir a idade de oito anos e tornar-se força de trabalho. A outra denominação, que, embora tenha sido usada durante os debates nos tribunais e na sociedade imperial de modo geral ao longo das décadas de 1870 e 1880, era o termo “ingênuo”. O indivíduo nascido ingênuo (nascido livre) possuiria direitos a uma cidadania “integral”, o que pareceu não agradar a muitos escravocratas do parlamento. A estratégia elaborada no discurso do Visconde de São Vicente (Pimenta Bueno) foi a de deixar a questão de “classificação” do menor para mais adiante, e o denominá-lo tão somente, por enquanto, de “condição livre”. Daí o silêncio do termo ingênuo na Lei de 1871. No entanto, costumeiramente, tal denominação foi bastante comum nos tribunais e nos periódicos. A necessidade de distinguir os filhos da Lei de 1871 das crianças cativas e dos libertos levou a uso costumeiro do termo ingênuo. Dos debates parlamentares até às transformações de fato vivenciadas pelos cativos e seus filhos, constituem-se quase que objetos distintos, no sentido de que, embora os legisladores e parlamentares calculassem os riscos e ressonâncias da Lei do Ventre Livre, sua efetiva aplicação ganhou significados diversos. Um dos primeiros foi a afirmação do menor nascido de “condição livre” enquanto ingênuo. Outro foi o uso da força de trabalho do ingênuo. Kátia Mattoso, ao falar do filho da escrava, ressaltou que os senhores de escravos, longe de deixarem de dar atenção à reprodução dos cativos de seus planteis, passaram a utilizar da mão de obra do ingênuo: Teríamos a tendência de pensar que, finalmente, o valor do escravo criança desaparece com a promulgação da Lei de 1871; até atribuímos a falta de precisões sobre o sexo, o nome, a cor e a idade ao fato que a criança ingênua interessava menos agora aos seus senhores. Na realidade, a falta de dados sobre ingênuos é talvez mais uma maneira dos senhores aproveitarem-se de situações pouco claras. De qualquer maneira, os senhores nunca deixaram de bem conhecer o valor real dessas crianças96.

96

MATTOSO, Kátia. O Filho da Escrava (entorno da Lei do Ventre Livre). Revista Brasileira de História.- São Paulo, V. 8, n. 16. Mar/Ago, 1988, p. 55.


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Quando esses menores atingiram a idade de oito anos, poucos senhores os entregaram ao Estado, a tutela do ingênuo tornou-se um direito do qual o escravocrata não abriu mão. Isso remete a uma experiência muito mais enraizada na sociedade brasileira, que é o de ter um moleque, uma cria da casa, ora um indiozinho, ora um mulatinho, uma relação baseada na exploração da força de trabalho em troca de cuidados e moradia, e alguma modalidade de educação. A manutenção do domínio senhorial sobre os ingênuos representou a institucionalização em termos legais de uma prática social. O literato paraense João Marques de Carvalho97 publicou um poema abolicionista em 1886, sob o patrocínio de uma associação abolicionista em Recife-PE. Nele, condenava a inoperância do Imperador D. Pedro em relação à questão servil. Sob o contexto da década de 1880, a Lei do Ventre Livre deixava de dar contento aos abolicionistas, que se reorganizavam e exigiam novas medidas em prol da emancipação escrava. O trecho do poema de Marques de Carvalho remete a esse contexto: A Pedro assim disseram: – Somos as crianças Que uma Lei luminosa ao jugo arrebatou. Nossos pais entretanto na desdita lanças! No teu peito o remorso nunca se aninhou! Ah! nunca! nunca! é certo.! O povo brasileiro E’ maldito por toda a civilização, Porque no Brasil reina o infame cativeiro, Esse verme que roe a pútrida nação! Quase todos nós somos filhos dos senhores De nossas boas mães, das míseras mulheres Que de dia sofriam do castigo as dores E á noite lhes davam sensuais prazeres... Coitadas! Muita vez para longe vendidas Deixaram-nos pra sempre, mártires bondosa, E vimo-nos sem mães, crianças desvalidas, Dos próprios pais sofrendo penas rigorosas! 97

João Marques de Carvalho nasceu em 1866 em Belém (1866-1910), concluiu seus estudos na Europa retornando a Belém em 1883, foi escritor, jornalista, político e diplomata, tendo vários contos publicados nos periódicos de Belém

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Mas libertos nós fomos, graças aos esforços De Rio-Branco o grande apostolo imortal Da santa Liberdade ... – O’ rei! duros remorsos Não te mordem acaso o coração brutal?98

O autor constrói uma representação romantizada da Lei de 1871, e a noção da escravidão, um elemento que degenera a nação brasileira, remetendo-se também às relações sexuais entre as cativas e seus senhores. Para Marques de Carvalho, assim como para outros abolicionistas, a Lei de 28 de setembro de 1871, ao libertar o ingênuo e não fazer o mesmo pelos pais, gerou uma massa de menores desvalidos: “E vimo-nos sem mães, crianças desvalidas”. Ao longo dos anos de 1870 até os de 1890, é possível localizar notícias nos periódicos de Belém que confirmam o uso da força de trabalho de menores. Em 1875, no jornal O Liberal do Pará, foi publicada uma circular produzida pelo então chefe de polícia da província, Samuel Fellipe de Souza Uchoa. Nela, o chefe de polícia queixava-se da prática promovida por autoridades policiais de dar, por conta própria, destino aos “órfãos desvalidos” de suas respectivas jurisdições, os entregando ao domínio de particulares que “Por esta forma se obrigam a prestar serviços próprios de criados, sob o pretexto de serem educados, e sem que percebam a menor vantagem”99. Segundo o chefe de polícia, aos menores deveriam ser dadas solda e educação por intermédio do Juízo de Órfãos. Ele ordenou aos delegados e subdelegados da província que remetessem uma lista de todos os menores que tivessem sido entregues a particulares, a fim de matricular os mesmos na companhia de aprendizes marinheiros. É importante ressaltar que, na visão do chefe de polícia do Pará, o problema estava na ilegalidade da ação das autoridades policiais, que tomaram para si uma incumbência que era atributo do juiz de órfãos, de forma que tais menores eram explorados sem a contrapartida, solda e educação. Nesse sentido, o trabalho de menores é tido como elemento aceito e incentivado, desde que com a devida contrapartida, a solda, e alguma educação. Decerto que a

98 99

Marques de Carvalho, João. O Sonho do Monarcha; Poemeto Abolicionista. Recife – Typographia da Industrial, 1886, p. 12. O Liberal do Pará (PA), 27 de fevereiro de 1875, p. 1. “Circular”. HDBN.


Os Deserdados da sorte: infância, trabalho e escravidão no Grão-Pará (1870-1893)

educação esperada a esses menores era uma de caráter oficioso, voltado à formação do trabalhador nacional100. A segunda publicação foi na década de 1880, sob a assinatura de “um filho da justiça”. O articulista queixava-se de que no Pará se reduziam a uma verdadeira escravidão os menores pobres e órfãos101. Segundo ele, esses menores eram tratados como escravos, sendo verdadeiramente “comprados” aos juízes de órfãos: Estes pobrezinhos tem o qualificativo de órfãos, e pupilos, porém não são mais que escravos comprados..... ao Sr. Juiz, curador geral e escrivão dos órfãos, por certos tipos que compram estes pobres por termo de tutela, sacam mandato, chamado um oficial carrasco (cobrem o rosto com as mãos perante tal cena) e mandam arrancar dos braços da desventurada mãe, que não pode resistir contra o mandato do juízo, o filho ou os filhos que tanto lhe custou a carregar e criar102.

Ao destacar a condição de sofrimento das mães, o autor da denúncia evocou os valores atribuídos à maternidade, ao amor, ao desvelo diante da prática de distribuição de órfãos por meio da tutela. Em relação às tutelas no império, trabalhos como os de Maria Aparecida Papali, Melina Perussato, Patrícia Urzolla103, entre outros pesquisadores, têm dado o devido destaque para o uso dos termos de tutela enquanto mecanismo de arregimentação de mão de obra, e controle sobre a população liberta, incluindo a pós-abolição. No caso paraense, ocorreram mudanças nas características desses processos tutelares após a promulgação da Lei do Ventre Livre, de tal modo que a figura

100 LOBO, Marcelo Ferreira. “Futuros operários do progresso”: Infância Desvalida e Educação no limiar da escravidão (Grão-Pará, 1870-1890). História, histórias, 8(16), 92-121, 2020. 101 Diário de Notícias (PA), 05/10/1886, p. 3. “Solicitados”. HDBN. 102 Ibidem.

103 PERUSSATTO, Melina Kleinert. Os filhos livres das escravas: relações de trabalho e significados da liberdade às vésperas da abolição em Rio Pardo/RS. Anais Eletrônicos do 6º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. URRUZOLA, Patrícia. Faces da liberdade tutelada: libertas e ingênuos na última década da escravidão (Rio de Janeiro, 1880-1890). Rio de Janeiro, Dissertação (Mestrado), Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2014.

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do ingênuo marcou fortemente o debate sobre a infância nas últimas décadas do Império104.

Pós-Abolição, nas margens da escravidão Já sob a vigência do regime republicano, novamente temos notícias da distribuição de menores como criados de servir. Em 1893, no periódico Correio Paraense, sob o título “Caçada de órphãos”, foi denunciada a distribuição de órfãos a tutores que os tratavam como escravos, retirando-os do seio maternal. As queixas recaiam sobre tal prática, que era sustentada por meio das leis orfanológicas, que, ao invés de proteger tais menores, os reduziam à escravidão de fato105. O articulista continuou as denúncias em outra edição. Dessa vez, destacou o caso das menores Ursulina, Mauricia e Raymunda, que, após a morte de sua mãe, viviam em companhia da tia Elisa Maria da Conceição, na travessa do príncipe, nº 86, em Belém. Segundo o articulista, as três moças foram “dadas” ao desembargador Roso Danin, sem levar em consideração a “honorabilidade” de sua tia, que havia solicitado que a tutela de suas sobrinhas fosse dada ao prático João Câncio da Silva Castro. Para o articulista, o constrangimento pelo qual essas moças estavam sendo obrigadas a passar aproximaria as mesmas da condição de escravas106. Embora os marcadores que possibilitassem a identificação do filho de ex-escravas fossem silenciados nos anos seguintes à abolição da escravidão, ainda foi possível identificar a presença dos antigos ingênuos sendo tutelados, principalmente nos meses seguintes ao 13 de maio de 1888. Entre os anos de 1888 e 1893, foram 265 processos de tutelas levantados, envolvendo 392 menores. Destes, 72 (18,36%) eram filhos de ex-escravos, embora o número possa ser maior, se considerarmos um elemento discursivo padrão nos processos que envolvem os antigos ingênuos. Tal elemento se 104 LOBO, Marcelo Ferreira. Liberdade Tutelada: de ingênuos a órfãos (1870-1893). In: Escravidão Urbana e Abolicionismo no Grão-Pará (século XIX). Org. BEZERRA NETO, José Maia; LAURINDO JUNIOR, Luiz Carlos. 1 ed. – Jundiai/São Paulo: Paco Editorial, 2020, p. 211-244.

105 Correio Paraense: Diário noticioso, Commercial e Literário (PA), 12 de outubro de 1893, p. 2. “Caçada de Óphãos”. HDBN. 106 Correio Paraense: Diário noticioso, Commercial e Literário (PA), 15 de outubro de 1893, p. 2. “Caçada de Órphãos”.


Os Deserdados da sorte: infância, trabalho e escravidão no Grão-Pará (1870-1893)

constitui no argumento: “O menor em questão mora em companhia do requerente ‘desde tenra idade’, ou desde o seu nascimento, caraterístico aos ingênuos que se mantinham sob o domínio dos ex-senhores de suas mães”. As tutelas foram instrumentalizadas a fim de legalizar uma prática costumeira, a de se ter crias de casa no Grão-Pará, e outras regiões do Brasil. Para além dos filhos de escravas e libertas, a entrada de migrantes e imigrantes pobres no Pará, ao longo das últimas décadas do século XIX e primeiras do século XX, também potencializou tal costume. No entanto, detivemo-nos especificamente nos processos em que a origem cativa dos pais dos menores é mencionada. Temos um conjunto de processos que nos laça em certos trechos das vidas de muitos libertos após o 13 de Maio, a luta pela manutenção de seus filhos perto de si. Desse modo, os litígios ocorridos nos tribunais de Belém remetem à busca do exercício de direitos inerentes à recém e frágil cidadania adquirida com o fim da escravidão. Entre os “ingênuos” tutelados no período pós-abolição, 39 eram mulheres e 25 homens, e um não identificado – visto o caráter fragmentário do processo. Em 50 casos, a idade é mencionada. A faixa etária corresponde desde crianças em tenra idade, como o menor Tomé, de 3 anos, filho da ex-escravizada Joana, até jovens com idade de 18 anos. Abaixo, apresentamos uma distribuição por faixa etária e sexo dos ingênuos tutelados no período de 1888 a 1893: Tabela I Distribuição dos tutelados ex-ingênuos por idade e sexo no Pará (1888-1893)

Faixa etária

Feminino

Masculino

Total

8 – 12

13

04

17

36

14

0 -7

13 – 21

13 10

03

07

16 17 50

(Dados retirados dos autos de tutela do Centro de Memória da Amazônia, 1888-1893).

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Tabela II Distribuição Geral dos tutelados por idade e sexo no Pará (1888-1893)

Faixa etária

Feminino

Masculino

Total

8 - 12

53

55

108

99

244

0 -7

13 - 21

42 50

145

29 15

71 65

(Dados retirados dos autos de tutela do Centro de Memória da Amazônia, 1888-1893).

Para o período de 1888 a 1893, dos 244 menores em que foi possível identificar as idades, cerca de 59% eram do sexo feminino. Em relação aos filhos das ex-escravizadas, o percentual atinge 72%, o que indica uma tendência geral entre os pretensos tutores em requisitar a tutoria de meninas. Embora não descarte a força de trabalho de menores do sexo masculino, a ênfase nos de sexo feminino está atrelada ao campo de atividades domésticas, que tais menores eram obrigados a exercer. A servidão doméstica de menores foi tipificada pelo literato paraense Dalcidio Jurandir, no seu romance Belém do Grão-Pará, ao construir a personagem Libânia, jovem que foi pega no interior do Estado por uma família em decadência, após a queda do intendente Antônio Lemos: Libânia, pés de tijolo, a saia de estopa. apressada e ofegante, era uma serva de quinze anos, trazida, muita menina ainda, do sítio pelo pai para a mão das Alcântaras. Entrava da rua, com os braços cruzados, carregando acha de lenha e os embrulhos, sobre os rasgões da blusa velha107.

A narrativa tecida por Dalcídio Jurandir resgata a figura das crias da casa, meninos e meninas que eram entregues por seus familiares, a fim de aliviarem o fardo da própria miséria, construindo uma representação do real em sua escrita108. Libânia “pés de tijolo” não tinha sapatos, o que pode tanto simbolizar a classe social à qual pertencia, como pode ser uma alusão às hierarquias que 107 JURANDIR, Dalcídio. Belém do Grão-Pará. Livraria Martins, São Paulo, 1960, p. 4.

108 FURTADO, Amanda Maia; SALES, Maria da Luz Lima. Libânia: pés no chão em Belém do Grão-Pará. Revista do Curso de Graduação em Letras e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura da Universidade da Amazônia. VOL. 15, Nº 1, JUL. 2018


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o calçado representou ao longo do século XIX, como destaca Matheus Serva Pereira: No período escravista, o uso de sapatos era uma atribuição comumente associada à condição de liberdade do indivíduo. Mulheres e homens, livres e escravizados, se distinguiam socialmente pelos calçados que usavam ou por simplesmente não terem os pés nus109.

O destaque para a figura da cria da casa remete precisamente para os muitos usos da força de trabalho de menores, que, dentro da lógica da legislação orfanológica, e particularmente após o decreto nº 181 de 1890, transfigurou qualquer menor filho de relações fora do matrimônio como órfãos. Na obra de Dalcídio Jurandir, a personagem Libânia foi descrita com a idade de 15 anos. Segundo dados da Tabela II, entre os 244 menores tutelados no período de 1888 a 1893, cerca de 44,2% estavam na faixa etária entre 8 e 12 anos de idade, seguindo pelo grupo entre 0 e 7 anos (29%). A preferência por menores entre seus 8 e 12 anos se dava em função das capacidades físicas, do menor risco de morte inerente à primeira infância, e de ser tido como a idade adequada de introdução desses menores no mundo do trabalho, colocando os mesmos a aprender certos ofícios. Novamente, encontramos na narrativa de Dalcídio Jurandir as representações de costumes da sociedade paraense. Agora, ao descrever a chegada menina Andreza em Belém, onde seria entregue à família Alcantara, a mesma na qual Libânia estava “empregada”: O tripulante voltou à “Deus te guarde”, num átimo trouxe a encomenda da senhora: uma menina de nove anos, amarela, descalça, a cabeça rapada, o dedo na boca. metida num camisão de alfacinha. A senhora recuou um pouco. o leque aos lábios, examinando-a: — Mas isto? E olhava para a menina e para o canoeiro, o leque impaciente: — Mas eu lhe disse que arranjasse uma maiorzinha pra serviços pesados. Isto aí... 109 PEREIRA, Matheus Serva. Liberdade em movimento: as disputas em torno da liberdade (São Paulo, 1886-1889). In: Caminhos da liberdade: histórias da abolição e do pós-abolição no Brasil / Martha Abreu e Matheus Serva Pereira (orgs.). – Niterói: PPGHistória- UFF, 2011. p. 232.

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Andreza caracterizada como muito jovem, com ares de primeira infância, foi, a princípio, recusada pela senhora da família Alcantara, contudo, logo esta recuou e decidiu se valer da menor. As atividades enquadradas dentro da categoria serviços domésticos eram amplas, indo da ação de limpar a casa, cuidar dos filhos dos “patrões”, cozinhar, lavar, pegar lenha, etc. Tal busca por uma cria que se adeque às atividades desejadas pode ser lida no pedido de tutela da menor liberta Lídia, com 12 anos, em 1876110. João Lício Pinto Guimarães queixou-se ao juiz de órfãos das pretensões de seu compadre, Joaquim Thomaz Corrêa. Este havia entregado Lídia a João Lício, a fim de educá-la. Contudo, solicitou que ela lhe fosse devolvida para usá-la de criada. Tal intuito foi comprovado em um bilhete escrito por Joaquim Corrêa, anexo ao processo de tutoria: Chiquinha Por me achar na mais dura precisão rogo-te me entregares a Lídia para me servir, pois estive me servindo com Virgínio e este não tem o menor préstimo para tratar de cozinha ao bem a mulher tratar de filhos doentes como bem sabes ou lidar com cozinha por isso é o motivo que te peço saúde te desejo o Joanico prima mariquinha. 6 de novembro de 1876111.

Menores, como Lídia, possivelmente, foram a base real de personagens como Andreza e Libânia, construídas no romance de Dalcídio Jurandir. Percebe-se tal prática enraizada culturalmente na sociedade paraense, embora os menores alvos de tal costume mudem de acordo com cada contexto. Tapuios, pardos, mamelucos, filhos de imigrantes cearenses e de libertos estiveram sujeitos a serem arrancados de suas famílias e distribuídos entre particulares. As experiências desses menores estão marcadas por relações de trabalho que os aproximavam do mundo da escravidão, assim como a violência a que estiveram sujeitos e mesmo o valor de “produto” diante de alguma negociação, não apenas o valor pecuniário. Desse modo, estas três categorias: trabalho, violência e “valor de mercadoria”, marcaram suas experiências ao longo do século XIX. Essas categorias refletem um domínio quase que absoluto dos tutores, mesmo os “tutores 110 Auto de tutela de Lídia, 1877. Fundo Cível, Série: tutela, 2ª vara cível, cartório Odon. CMA 111 Idem.


Os Deserdados da sorte: infância, trabalho e escravidão no Grão-Pará (1870-1893)

informais”. Daí, quando os familiares dos mesmos reclamavam na justiça, associavam a condição de seus entes ao estado de escravidão. Não só as denúncias dos jornais, mas também o aumento no número de processos de tutelas no ano de 1888 confirma o uso da força de trabalho dos então menores órfãos em Belém, no fim do século XIX. Também os projetos de educação visavam ofertar aos menores desvalidos uma educação profissional. Cabe agora entrarmos um pouco mais no universo desses processos pela disputa da mão de obra de menores livres, libertos e ingênuos. O uso de tutelas para a obtenção de mão de obra foi frequente não apenas no Pará, mas também no Amazonas. Alba Pessoa demonstrou em seu estudo como a tutela foi largamente utilizada na cidade de Manaus no contexto da pós-abolição112. Em agosto de 1888, Darlindo da Cunha Rocha solicitou a tutela dos menores Gorgonha e Amaro, de seis e dez anos, respectivamente, filhos de Jacinta, ex-escrava de Darlindo113. O ex-senhor alegava que havia criado os menores, e que jacinta buscava retirá-los de sua companhia. Ainda ressaltou a condição da liberta, segundo o qual ela não teria condições de promover a educação dos menores, e era dada ao “vício da embriaguez”. Certamente, as alegações de Darlindo foram construídas a fim de desqualificar as ações de Jacinta, pois, sendo possivelmente liberta pelo 13 de maio, ela não teria condições de fato de ter seus filhos consigo. Contudo, após a abolição da escravidão, buscou exercer o direito a família, que foi interditado sob a alegação de que não teria condições de cuidar dos próprios filhos. O juiz de órfãos deferiu a solicitação de Darlindo, de tal maneira que a recém-adquirida liberdade não implicou em um imediato acesso à família por parte de várias libertas do 13 de maio de 1888. Estratégia distinta foi intentada por Salustiana, ex-escrava de Joquim Martins da Silva114. Ela valeu-se das relações de compadrio, ao solicitar ao padrinho de sua filha Adalgisa que ocupasse o cargo de tutor da menor. O que nos leva a inferir que, por meio de uma rede de proteção, seria possível que mesmo com intermédio de terceiros, ex-escravas pudessem ao menos 112 PESSOA, Alba Barbosa. O Juízo de Órfãos e o trabalho infantil na Cidade de Manaus (18901920). Fronteiras do Tempo: Revista de Estudos Amazônico, 1 (2) 23-42, 2011.

113 Auto de tutelas dos menores Amaro e Gorgonha, 1888. CMA, Fundo Civil, Autos de Tutela, caixa (1871-1889) 114 Auto de tutelas da menor Adalgisa, 1888. CMA, Fundo Civil, Autos de Tutela, caixa (1871-1889)

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direcionar a vida de seus filhos diante das tentativas de domínio exercido por ex-senhores. Diante da impossibilidade legal das mães exercerem o pátrio poder, a nomeação de um tutor indicado pelos familiares dos menores seria uma das estratégias adotadas a fim de conseguirem a reunião familiar. Veríssima Maria de Belém, ex-escrava, conseguiu, por intermédio do seu marido, José Antônio do Ó, obter a companhia de seu filho Manoel Pio dos Santos, de 14 anos: José Antonio do Ó, casado com Veríssima Maria de Belém, mãe do menor Manoel Pio dos Santos, vem pedir a V. Sª. que se digne nomea-lo tutor do referido órfão, para que so suplicante o possa mandar educar e preparar-lhe assim um futuro melhor do que o aguarda, nas condições em que se acha, pois consta já quatorze anos de idade e nada sabe nem tem lucrado em companhia da pessoa com quem tem estado que é um parente do ex-senhor de sua mãe hoje minha mulher115.

O matrimônio de Veríssima com José Antônio possibilitou que, diante das autoridades do Estado, mãe e filhos pudessem estar reunidos. A educação e o preparo desses menores foram temas comuns nos pedidos de tutela. O marido de Veríssima tinha consciência da importância dos discursos sobre educar para o trabalho. O fato de Manoel Pio dos Santos continuar sob a companhia da família senhorial também foi utilizado, a fim de desqualificar as pretensões de domínio sobre o menor, o que também deve ter pesado na decisão do juiz de órfãos, ao deferir a solicitação de Jose Antônio. Se a lei do Ventre Livre conferiu a possibilidade de manutenção de domínio sobre o filho da escrava, visto que bastaria ao senhor não manifestar interesse de entregar o menor ingênuo ao Estado, para que usufruísse dos serviços destes até atingirem os 21 anos de idade, a partir da abolição, a insatisfação de vários ex-senhores, que se viram destituídos de seus cativos e poder moral, levou ao uso cada vez mais recorrente das tutelas como forma de manutenção do domínio e da exploração nos moldes da escravidão. Em nota publicada no ano de 1890 no Diário de Notícias, foi feita denúncia contra Alfredo Emiliano Lopes, de continuar a manter uma família sob 115 Auto de tutelas do menor Manoel Pio dos Santos, 1888. CMA, Fundo Civil, Autos de Tutela, caixa (1871-1889)


Os Deserdados da sorte: infância, trabalho e escravidão no Grão-Pará (1870-1893)

o regime de escravidão116. Segundo Sotero Brandão de Carvalho, sua irmã e sobrinhos menores continuavam submetidos à condição de escravidão na cidade de Itaituba, no interior do Estado do Pará, pelo Capitão Alfredo Emiliano Lopes. Sotero Brandão buscava levar seus familiares de Itaituba para Belém, e foi impedido pelas pretensões de domínio do Capitão Emiliano Lopes, de tal modo que a denúncia foi intitulada “7 escravizados”, remetendo às condições outrora vivenciadas ainda no Império do Brasil.

Considerações finais Por meio dos pedidos de tutelas, das páginas dos jornais e narrativas literárias, a infância esteve em pauta na virada do século XIX para o XX. O Estado passou a atuar na vida particular de famílias pobres, a fim de conduzir seus projetos de nação e formação de uma sociedade regida por um ideal de modernidade. O “menor” foi sendo definido como categoria atrelada à precarização da vida, dos costumes e da moral. Não tardaria para que, diante do projeto de fim gradual da escravidão, os filhos das ex-escravas seriam enquadrados no ideal do “menor desvalido”. É necessário compreendermos que a construção da infância como contraponto ao trabalho é algo relativamente novo na sociedade brasileira, de modo que infância e trabalho não eram antagônicos no século XIX. Não somente a escravidão, mas um conjunto de práticas enraizadas na sociedade oitocentista brasileira tinha no exercício de atividades por parte dos menores como algo comum, e uma forma das famílias pobres aumentarem as chances de sobrevivência. Assim como a sociedade foi marcada por hierarquias, tanto de classe quanto de cor, a infância também foi pensada e vivenciada em virtude de tais mecanismos de diferenciação. Meninos e meninas foram alvo de projetos distintos de educação. Negros, pardas e mulatos (embora não somente eles) nasceriam sob os signos da escravidão, e as visões jocosas de uma elite que buscava modernizar uma nação diante de um modelo de civilização europeu. Trabalho e ordem social figuravam como elementos fundamentais no processo de preparação para a vida adulta dos menores pobres, filhos de escravas, libertas, indígenas, migrantes e livres de cor. Impossível não traçar paralelo 116 Diário de Notícias (PA), 19/04/1890, p. 2.

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em relação às discussões sobre o que fazer com os libertos nas últimas décadas da escravidão, taxados de vadios, preguiçosos e indolentes. Muito se discutiu sobre a necessidade de preparação para a vida em liberdade. Figuras como Tavares Bastos e Joaquim Nabuco defendiam a ideia de preparação dos egressos da escravidão para vida em liberdade por meio da educação e do trabalho117. Para a infância desvalida, o trabalho constitui-se em uma obrigação civilizadora e um direito dos tutores. A educação nunca foi claramente definida, ao contrário, a Lei do Ventre Livre destacou o termo “criar”, subsumido o educar. Embora o ideal de educação pensado enquanto um direito tenha sido consolidado muito tempo depois da abolição, é inegável em meio às visões das mães e pais de tais menores, a infância, mais que uma categoria histórica, também foi um espaço de lutas por direitos, como foi destacado por uma comissão de libertos, ao solicitarem a Ruy Barbosa a educação de seus filhos: “Para fugir do grande perigo em que corremos por falta de instrução, vimos pedi-la para nossos filhos e para que eles não ergam mão assassina, para abater aqueles que querem a República, que é a liberdade, igualdade e fraternidade”118.

117 SILVA, Valder Paixão e. Abolicionismo e Instrução: o aprendizado da liberdade (Pará, 18601888). Trabalho de conclusão de curso; Faculdade de História, IFCH/UFPA, 2019.

118 Carta da Comissão dos libertos a Ruy Barbosa, 1889. Apud: ANDRADE, Wilma Therezinha Fernandes (org). Antologia Cubatense. Santos: Prodesan, 1975. P. 43.


CAPÍTULO 3

UMA “JUSTA SUJEIÇÃO” DOS MENORES? VADIAGEM, TRABALHO E TUTELAS EM BELÉM DE FINS DO SÉCULO XIX119

Victor Hugo do Rosario Modesto

Resumo: Nas últimas décadas do século XIX, a prática de tutelar crianças e menores de idade pobres foi disseminada em todo o Império brasileiro, tendo na desestruturação da instituição escravista um de seus contextos explicativos. Neste texto, a partir de processos judiciais de tutelas, analisamos os discursos que foram forjados com o intuito de tutelar crianças e menores que tinham diferentes condições jurídico-sociais, sendo “livres pobres”, libertos, ingênuos e indígenas, observando os significados dessa prática na cidade de Belém a partir de duas questões principais, os discursos em relação à vadiagem e o interesse em seus trabalhos. Evidenciamos que os trabalhos que crianças e menores executavam eram vistos como normais, principalmente os realizados no âmbito doméstico, e que foi a condição de pobreza em que viviam o traço comum que os fez compartilhar experiências semelhantes. Palavras-chave: Crianças; Menores; Tutelas; Vadiagem; Trabalho; Belém.

119 Originalmente, o presente texto corresponde ao 4º capítulo de minha dissertação de mestrado, intitulada “Como se fossem escravos”: menores de idade pobres tutelados na Amazônia (Brasil, Grão-Pará, 1871-1900). No entanto, o texto sofreu algumas modificações na escrita e acréscimos bibliográficos e documentais, que, em certo sentido, deram novo rosto ao texto.


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as últimas décadas do século XIX, o Império brasileiro foi palco de mudanças importantes, dentre as quais, destacamos: a reforma judiciária de 1871; duas reformas escravistas, sendo uma em 1871 (Lei do Ventre Livre) e outra de 1885 (Lei dos Sexagenários); além, é claro, da abolição da instituição escravista com a Lei Áurea. Em 1889, o Império brasileiro viria a desmoronar, dando lugar à República. Em meio a todos esses acontecimentos de cunho econômico, social e político, uma prática jurídico-social cresceu de forma pujante, fazendo-se presente em diferentes contextos: os pedidos de tutelas de menores de idade pobres120. Essa prática esteve ligada por vezes às mudanças provocadas por esses acontecimentos, que influenciaram a dinâmica desses processos, principalmente sua disseminação no último quartel do século XIX. No presente texto, propomos a partir da análise quantitativa das tutelas, bem como de algumas histórias de menores que foram tutelados, explicar os significados dessa prática na cidade de Belém, sobretudo a partir de duas questões principais: a vadiagem e os serviços executados pelos menores. Nesse sentido, empreendemos uma análise que relaciona esses processos sociais entre si, e com outros que coexistiam no período. O texto está dividido em duas partes. Na primeira, procuramos evidenciar os discursos sobre a vadiagem em relação aos menores, assim como algumas de suas sociabilidades. Nessa parte, a condição de pobreza em que muitos menores e seus familiares viviam terá importância substancial, pois muitos discursos do período faziam relações diretas da pobreza com a vadiagem, implicando em uma suspeição do cotidiano dos menores nas ruas da cidade de Belém. Na segunda parte, nosso objetivo é evidenciar os serviços que eram praticados pelos menores pobres121, cabendo salientar que esses menores tinham diferen120 Inicialmente, é preciso fazer um indicativo metodológico: a utilização, neste texto, dos termos “menor” ou “menores” está alicerçada em suas predominâncias nas fontes, sendo também comum a utilização de “órfãos”. O termo “criança” não é muito comum nessa documentação, ainda que em alguns poucos casos seja utilizado.

121 A historiografia que se dedicou no estudo de menores tutelados é vasta, destacamos alguns: AZEVEDO, Gislane Campos. De Sebastianas e Geovannis: o universo do menor nos processos dos juízes de órfãos da cidade de São Paulo (1871-1917). Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1995.; ALANIZ, Anna Gicelle Garcia. Ingênuos e libertos: estratégias de sobrevivência familiar em épocas de transição 18711895. 1ª Ed. Campinas: CMU/Unicamp, 1997.; PAPALI, Maria Aparecida C. R. Escravos, libertos e órfãos: a construção da liberdade em Taubaté (1871-1895). São Paulo: Annablume; FAPESP, 2003. Para a região Amazônica, ver: ALMADA, Paulo Daniel Sousa. A infância


Uma “justa sujeição” dos menores? Vadiagem, trabalho e tutelas em Belém de fins do século XIX

tes condições jurídico-sociais, sendo ingênuos122, libertos, indígenas e “livres pobres”123. Para a feitura deste texto, foi levantado o número de 643 processos de tutelas entre os anos de 1876 e 1900, envolvendo 983 menores de idade, que foram analisados em conjunto.

“Vaga constantemente pelas ruas, adquirindo assim vícios reprovados”: a questão da vadiagem dos menores Em 14 de julho de 1888, o Curador Geral Interino de Órfãos, Augusto Santa Rosa, informou ao Juiz de Órfãos que: Tendo se apresentado a minha presença a menor Antônia, dizendo ter vindo fugida do Hotel dos Estrangeiros onde estava em companhia de João Lardoza e sua família, requeiro que V.Exc.ª mande intimar a esse Sr. a comparecer neste juízo a fim de ser interrogado a respeito, em dia e hora marcado. Nestes termos sendo de justiça.124

desvalida: menores do Pará entre a Lei do Ventre Livre e a abolição. Monografia (Graduação em História) – Universidade Federal do Pará, Faculdade de História, Belém, 1994.; PESSOA Alba Barbosa. Infância e trabalho: dimensões do trabalho infantil na cidade de Manaus (1890-1920). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2010.; TEIXEIRA, Alcemir Arlijean Bezerra. O juízo dos órfãos em Manaus (1868-1896). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2010.; LOBO, Marcelo Ferreira. Liberdade Tutelada: Ingênuos e órfãos no Pará (1871-1893). Dissertação (Mestrado em História Social) - Universidade Federal do Pará, Belém, 2015.

122 Os ingênuos é como ficaram popularmente conhecidos os filhos das escravas que nasceram a partir da Lei do Ventre Livre (1871). Ainda que no texto da Lei não conste essa nomenclatura, ela foi largamente utilizada para se referir a esses menores. Na documentação aqui analisada, é comum encontrar o termo “ingênuos”, e, no contexto da pós-abolição, esses sujeitos serão referidos como “ex-ingênuos” em alguns casos.

123 A delimitação dessa categoria atende a seguinte metodologia de análise documental: nos processos de tutelas, se tirarmos os menores que têm vínculo direto com o mundo da escravidão, sendo esses ingênuos e libertos, a documentação pode dizer respeito a outras duas categorias de menores de idade: aqueles que possuem bens e aqueles que não possuem. Estes últimos são designados na documentação como “pobres”, “pauperrimos”, “desvalidos” ou “miseráveis”. Consideramos, então, os chamados “livres pobres” aqueles menores de idade que têm sua tutela requerida, mas não apresentam bens a serem arrolados, partilhados ou administrados. 124 Centro de Memória da Amazônia/Universidade Federal do Pará (doravante, CMA/UFPA), Série Cível, Subsérie: Tutela, 2ª Vara Cível - Cartório Odon, Auto de tutela da menor Antônia, 1888.

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O Curador Geral teve seu pedido atendido, e, dois dias depois, João Lardoza era interrogado. Em seu novo parecer sobre o que havia relatado o interrogado, Augusto Santa Rosa fez um breve resumo da história da menor Antônia: Tendo-se me apresentado a menor Antônia, e por mim levado a presença de V.Exc.ª, e aí interrogada dissera que tinha saído da casa do Sr. Manuel Lardoza, dono do Hotel dos Estrangeiros. Por ordem V.Exc.ª foi citado e compareceu perante V.Exc.ª o tal Lardoza que sendo interrogado declarou não ser ele o tutor da menor e sim o seu sogro Antônio Cassiano Marques, que a conservava em sua companhia, por ordem do tutor que não precisava dela em sua casa, e que mandava nas lojas e em Nazareth mas no [bond]. V.Exc.ª a requerimento meu mandou intimar ao tutor a vir perante V.Exc.ª depor sobre o assunto; até hoje, porém, não compareceu. Ora, não convindo por mais tempo estar a menor em casa de sua tia onde fora depositada, nem tão pouco que volte para a casa de Lardoza que [mora] em um hotel muito frequentado, e que não é seu tutor, nem coisa alguma, e que faz dela criada de recados e por esta forma a expõe a perdição, não convindo também que volte para a casa do tutor, que não precisa dela em casa, e que não desempenha esse cargo, com os cuidados, deveres e obrigações, proponho a remoção da dita tutoria para Antônio Félix Avellos Britto Inglez, que é pessoa idôneo e bem pode desempenhar esse cargo observando as disposições legais. Quanto ao procedimento de desobediência do tutor V.Exc.ª procederá como entender acertado. Nestes termos. Pará, 23 de julho de 1888. Augusto Santa Rosa. Curador Geral Int.º125

Das muitas questões que poderiam ser exploradas a partir dessa história, detivemo-nos a duas delas, devido ao grau de generalização que evidenciam em relação aos processos tutelares. A primeira questão – e que será tratada na segunda seção deste texto – é em relação aos serviços executados pelos menores e às percepções que os sujeitos envolvidos nos processos tinham dessa prática, que, na síntese da história realizada no parecer do Curador Geral, é 125 CMA/UFPA, Auto de tutela da menor Antônia, 1888.


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evidenciada a partir da insinuação que o tutor da menor Antônia não precisava dela em casa, fazendo alusão a possíveis serviços que ela poderia prestar. Por outro lado, é informado que quem tinha a menor em sua companhia fazia dela uma “criada de recados”. Sem deixar de compreender o quanto essas questões estão imbricadas, nesta seção, o foco será o segundo ponto de destaque, que é a relação dos menores com as ruas, ou o que no período era expresso comumente como vadiagem. A “exposição à perdição” na qual a menor Antônia estaria sujeita fez parte de muitos discursos do período, que associavam o ambiente das ruas a vícios e maus costumes. Esse ambiente não era aceito pelos agentes do Juizado de Órfãos como fazendo parte do cotidiano de meninos e meninas menores de idade, sendo que suas sociabilidades e os serviços que fossem praticados por esses nas ruas eram associados à ideia de colocar os menores expostos a perigos. Por outro lado, a própria recorrência desses discursos prova a existência constante de meninos e meninas que estavam nas ruas por diversos motivos, não só o do trabalho. O história da menor Antônia ocorre no limiar da abolição, mas esse processo de condenação das ruas era bem mais antigo, além de não estar associado somente à moralidade, mas também às questões envolvendo trabalho e disciplinarização. Em 25 de agosto de 1881, o Juiz de Paz em exercício no 2º distrito da capital do Pará, João Baptista Pereira da Sena, encaminhara ao juiz de órfãos um menor, nos seguintes termos: “Tenho a honra de apresentar a V.S.ª para lhe dar o competente destino, o menor Raimundo, órfão de pai, o qual por não ter ocupação alguma, vaga constantemente pelas ruas, adquirindo assim vícios reprovados”126. O Juiz de Paz havia recolhido o menor Raimundo das ruas, julgando que o mesmo fosse órfão, o que não era o caso, pois, alguns dias depois, seu pai emite petição ao Juízo de Órfãos, em que solicita que o mesmo menor, “seu filho legítimo”, fosse-lhe entregue. O que chama atenção é o procedimento empreendido pelo Juiz de Paz, que, vendo o menor Raimundo nas ruas, julgou-se no dever de encaminhá-lo para o Juízo competente. Por outro lado, a história dá indícios de uma prática comum, associada à reprovação que existia em relação aos menores frequentarem os espaços públicos. Mas, podemos 126 CMA/UFPA, Série Cível, Subsérie: Tutela, 2ª Vara Cível – Cartório Odon, Auto de tutela do menor Raimundo, 1881.

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questionar a partir da narrativa do Juiz de Paz, que era, como ele colocou, “O competente destino” para o menor Raimundo, mas não só para ele, como para muitos outros que estavam ocupando os mesmos espaços. Seguindo essa questão, consideramos que as ruas não eram percebidas como os espaços para os quais os menores deveriam ser encaminhados ou frequentar, o que confirma as várias preocupações dos agentes do Juizado a esse respeito. Podemos conjecturar que o destino de centenas de menores que estivessem nas ruas seria alguma casa de família, em que possivelmente aprenderiam algum ofício com os tutores que fossem nomeados, o que não seria diferente se tratando de meninas, com a diferença residindo no caráter do serviço que seria ensinado – notadamente o doméstico, como demonstraremos adiante. Sobre o contexto anterior às práticas de tutelar menores pobres, é possível perceber a criação de escolas e institutos que teriam como função, também, afastar os menores da chamada vadiagem. Irma Rizzini pontua que, entre 1840 e 1865, os governos de nove províncias instalaram Casas de Educandos e Artífices em suas capitais, preocupados com a formação para o trabalho e em evitar que crianças desvalidas se tornassem futuros vadios, inúteis ou mesmo perigosos à sociedade127. Outro destino possível para as crianças e menores desvalidos128 seria as Companhias de Aprendizes, que, como indica Renato Venâncio, legisladores brasileiros, talvez por saberem da experiência fracassada na Europa, criaram formas alternativas para o recrutamento, com o objetivo de que essas Companhias não dependessem exclusivamente das Casas dos Expostos129. Nesse sentido, algumas instituições formadoras de marinheiros foram instaladas em cidades, que, segundo o autor, nem ao menos contavam com tradicionais instituições 127 RIZZINI, Irma. O cidadão polido e o selvagem bruto: a educação dos meninos desvalidos na Amazônia Imperial. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004, pp. 160-161. 128 Esse termo é utilizado por alguns peticionários para se referir aos menores.

129 Sobre as Rodas e Casa de Expostos, ver: LEITE, Miriam Lifchtiz Moreira. O óbvio e o contraditório da roda. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). História da criança no Brasil. São Paulo: Contexto, pp. 98-112, 1996.; VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias abandonadas: assistência à criança de camadas populares no Rio de Janeiro e em Salvador – séculos XVII e XIX. Campinas, SP: Papirus, 1999.; VENÂNCIO, Renato Pinto (org.). Uma história social do abandono de crianças. De Portugal ao Brasil: séculos XVIII – XX. São Paulo: Alameda, 2010.; MARCÍLIO, Maria Luiza. História social da criança abandonada. São Paulo: Hicitec, 1998.


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para meninos abandonados, substituindo estes últimos pela possibilidade do recrutamento de crianças carentes enviadas pelos pais ou tutores, e aquelas presas por vadiagem. Ainda segundo Renato Venâncio, dessa vez tratando do contexto da Guerra do Paraguai, o mesmo identifica que, se as Companhias de Aprendizes passaram por um momento de expansão e prestígio nas duas décadas que antecederam este conflito, no período da guerra, essa situação sofre uma brusca inversão, instalando-se um clima de desconfianças por parte das camadas populares130. É interessante perceber a existência de preocupações em relação às crianças desvalidas, e que as mesmas poderiam ter diferentes destinos. Além disso, a vadiagem estava quase sempre associada às crianças e menores das camadas populares, o que vai constantemente chamar a atenção de autoridades, e, também, no contexto das últimas três décadas do século XIX, vai sujeitar essas mesmas crianças, pelo menos de forma mais intensa, a serem disputadas em tentativas de arregimentação, devido ao gradual processo de desestruturação da instituição escravista. No contexto em que a instituição escravista ainda se fazia presente, livres pobres, libertos e ingênuos teriam poucas oportunidades de ascensão. Talvez as melhores oportunidades se encontrassem nas escolas e institutos131, e, mesmo nesses, o cotidiano do trabalho seria demandado. Nesse sentido, menores de diferentes condições jurídicas compartilharam a partir da condição de pobreza em que viviam experiências comuns, sendo que o campo de possibilidades de ascensão social para eles seria muito parecido e reduzido. Sobre a sociedade escravista, Walter Fraga afirma o seguinte: A sociedade escravista não oferecia grandes alternativas de ascensão para gerações mais novas de livres e libertos. Especialmente para os meninos negros, a escravidão continuava a impor-lhes papéis subservientes e

130 VENÂNCIO. Renato Pinto. Os aprendizes da guerra. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). História das crianças no Brasil. 5ª Ed. São Paulo: Contexto, 2006, pp. 198; 202. 131 Para Venâncio, não seria exagero afirmar que, no século XIX, as Companhias de Aprendizes e Marinheiros fossem uma das raras opções de ascensão social para os filhos de forros ou de negros livres. Cf. VENÂNCIO, op. cit., p. 200.

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serviçais. Nas tendas dos mestres de ofícios, por exemplo, eram submetidos a rigorosa disciplina, a castigos corporais e a tarefas estafantes132.

Nesses termos, é importante atentar que, pelas condições sociais dos menores tutelados serem basicamente as mesmas, os problemas e as questões que os tocavam também os eram. Se no contexto em que a escravidão ainda era presente, a diferença jurídica entre os menores era importante, mas não crucial, para que suas experiências fossem díspares, no contexto da pós-abolição elas deixam de existir133. Podemos afirmar que, nesse contexto, os menores foram tomados como um todo, em que os encaminhamentos políticos e sociais que se destinaram a eles foram os mesmos. Sidney Chalhoub assevera que, nos meses que se seguiram à Lei Áurea, o conceito de “classes perigosas” vai ser um dos eixos de importante debate no Parlamento brasileiro, pela preocupação com as consequências que a sobredita Lei causara na sociedade, e, nesse sentido, o projeto que estaria em pauta era de repressão à ociosidade134. O embasamento dos deputados, segundo o autor, advinha de compêndios europeus, e um dos que mereceu destaque foi o de M. A. Frégier, alto funcionário da polícia de Paris, que, baseando-se na análise de inquéritos e estatísticas policiais, escrevera um livro influente, publicado em 1840, sobre “As classes perigosas da população nas grandes cidades”135. Sobre esse trecho, Sidney Chalhoub comenta que “O primeiro enigma a decifrar é se os nobres deputados, ao utilizarem a fórmula “classes pobres e viciosas”, pensavam que as palavras ‘pobres’ e ‘viciosas’ significavam a mesma coisa”, e nesses termos, “Todos os pobres seriam viciosos”, ao passo que, não sendo esses termos tomados “Como sinônimos, ficaríamos com a possibilidade de termos ‘bons’ pobres – honestos, trabalhadores – e pobres viciosos – aqueles que seriam os membros potenciais das classes perigosas”136. Sobre esse debate, 132 FRAGA FILHO, Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. São Paulo: Hucitec; Salvador: Edufba, 1996. p. 112. 133 É no ano de 1888 que reside a maior demanda por tutelas de menores pobres. Os pedidos crescem abruptamente, e, em relação aos ingênuos e libertos, a maior parcela desses pedidos se deu após a Lei Áurea, o que indica que os desdobramentos na instituição escravista influenciaram estes processos.

134 CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 20. 135 Ibidem, p. 21. 136 Ibidem.


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Chalhoub identificou que, para “Os nobres deputados, a principal virtude do bom cidadão é o gosto pelo trabalho, e este leva necessariamente ao hábito da poupança”, mas, por outro lado, o indivíduo que não conseguisse acumular, “Que vive na pobreza, torna-se imediatamente suspeito de não ser um bom trabalhador” ,137. A pobreza, então, seria uma premissa para que sujeitos fossem relacionados aos vícios e à ociosidade. No tocante aos termos de tutela, esse é um argumento recorrente, a pobreza relacionada à vadiagem, e, como consequência, alguém nessas condições não teria capacidade de conduzir o futuro de um menor. Ao mesmo tempo, o trabalho que deveria ser incutido aos menores não poderia estar associado ao âmbito das ruas, pois aí se encontravam todos os perigos, inclusive o da vadiagem138. Walter Fraga pontua que, o próprio “Termo vadio já comportava condenação moral, advinha do fato de estarem fora do domínio familiar e produtivo. O menino vadio atentava contra a ordem familiar ao trocar o ambiente doméstico pelo mundo da rua”139. Nas narrativas presentes nas tutelas, a pobreza vai ser, por vezes, considerada como porta de entrada para a vadiagem, ao mesmo tempo, essa condição despertaria sentidos de proteção em relação aos menores, o que não implicava sua utilização em determinados serviços. Em meio aos serviços que menores executavam, seja nas ruas ou nas casas de famílias, não podemos ignorar as suas sociabilidades, e que também eram alvo de criminalização. Sobre esse ponto, Isabel Reis indica que: A questão da vadiagem infanto-juvenil no século XIX, estava muito estreitamente relacionada à existência de centenas de meninos e meninas que, mesmo ligados a famílias, mestre de ofícios ou senhores (no caso dos escravos), faziam das ruas o espaço de trabalho, de divertimento, de peraltices, de jogos e brincadeiras140.

137 Ibidem.

138 Sobre a vadiagem, ver: KOWARICK, Lucio. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil. São Paulo, Paz e Terra, 1994.; MARTINS, Eduardo. A invenção da vadiagem: os termos de bem viver e a sociedade disciplinar no Império do Brasil. 1ª Ed. Curitiba, PR: CRV, 2011. 139 FRAGA FILHO, op. cit., p. 119.

140 REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. Histórias de vida familiar e afetiva de escravos na Bahia do século XIX. Salvador: Centro de Estudos Baianos, 2001. p. 113.

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Irma Rizzini informa que meninos vivenciavam nas ruas “Os prazeres da vadiação”, se organizavam em grupos para sobreviver e se defender das constantes investidas da polícia141. Bezerra Neto, por seu turno, dá conta da existência, na década de 1880, de novas recomendações do governo às autoridades policiais para tomada de providências que cessassem “De uma vez” os “Ajuntamentos de menores ociosos nas ruas e praças” de Belém142. Além disso, o autor informa, a partir de notícia reproduzida pelo Diário de Notícias, que chamava a atenção “Do Chefe de Polícia ‘para o brinquedo do papagaio, nas ruas e praças da cidade, no qual não se empregam somente as crianças, mas também homens, à falta de melhor ocupação”143. Queixas contra os ditos vadios, segundo Bezerra Neto, “Como parte do problema de ‘transição’ da mão de obra escrava para a livre, havia inclusive motivado, segundo notícia do jornal Liberal do Pará, o requerimento ao juiz de órfãos da associação emancipadora”, que: conforme a Lei de 28 de Setembro de 1871 e Regulamento de 13 de Novembro de 1872, solicitando que lhes fosse feita “a entrega dos menores de ambos os sexos, que vagueam nas ruas d’esta cidade”. Comprometia-se então, a dita associação que tinha “em seu seio um alto número de respeitáveis senhoras e distinctos cidadãos, à encarregar-se da educação d’esses infelizes menores”. No caso dos meninos, seriam empregues nas oficinas dos sócios da Emancipadora vencendo após 6 meses ou 1 ano, conforme as habilidades de cada um, “um módico salário que irá formando na caixa econômica o seu pecúlio”. Quanto às meninas, seriam depositadas em “casas de famílias honestas, onde serão dotadas com as indispensáveis prendas domésticas”144.

É notório que as sociabilidades dos menores eram criminalizadas em virtude dos espaços em que elas estavam se concretizando serem essencialmente as ruas. Por outro lado, as informações dão conta dos procedimentos 141 RIZZINI, op. cit., 165.

142 BEZERRA NETO José Maia. Por Todos os Meios Legítimos e Legais: as Lutas contra a Escravidão e os Limites da Abolição (Brasil, Grão-Pará: 1850-1888). Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009, p. 342. 143 Ibidem, p. 343. 144 Ibidem.


Uma “justa sujeição” dos menores? Vadiagem, trabalho e tutelas em Belém de fins do século XIX

que seriam empreendidos para que os menores fossem retirados das ruas da cidade de Belém, notadamente, no caso em tela, serem entregues para membros da Associação Emancipadora. A especificação dos afazeres dos menores indica procedimentos que também são comuns nas tutelas, baseados em questões de gênero bem específicas, no que tange ao que deve ser ensinado para meninos e meninas. A criminalização que ocorre em relação à infância durante a passagem do século XIX para o XX tem nas figuras judiciária e policial dois elementos cruciais no sentido de repressão e controle145. Contudo, desde 1871, a Reforma Judicial trouxe importantes mudanças à esfera processual, pois separou a polícia da justiça, tirou das autoridades policiais a obrigação de processar, além de tornar o processo-crime e seu julgamento privativo da autoridade judiciária, procurando resguardar da melhor forma o cidadão das violências oficiais146. Em 1888, no entanto, é observado em um caso de tutela um conflito de atribuições entre o Juizado de Órfãos e as autoridades policiais, que revelou outros encaminhamentos de menores pobres às margens do judiciário. O caso tem início na petição impetrada por João Régis de Araújo, que disse ter em seu poder os menores João e Dalila, filhos de Joana de Souza, que vivia em sua companhia. Porém, por motivo não revelado em sua petição, o requerente disse que a mãe das crianças retirou-se da casa e arrancou os menores de sua companhia, “Por intermédio do Subdelegado de Polícia da Sé, que chamou a si as atribuições desse respeitável Juízo, e como o suplicante queira continuar a criar e educar esses menores, que ficariam privadas desse benefício em companhia de sua dita mãe”, requeria então suas tutelas147. Esse caso suscita algumas dinâmicas sociais presentes nos processos de tutelas, como no parecer do Curador Geral dos Órfãos, José Henrique Cordeiro de Castro, em que fez uma consideração de que a mãe dos menores 145 Sobre essa questão, ver: MARIANO, Hélvio Alexandre. A infância e a lei: o cotidiano de crianças pobres e abandonadas no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX e suas experiências com a tutela, o trabalho e o abrigo. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2001.

146 PINTO, Bárbara Lisboa. Tratando dos “menores”: a tradição jurídica brasileira na área penal no alvorecer da República, os profissionais do Direito e a visão sobre os chamados “menores”. In: RIBEIRO, Gladys Sabina (org.). Brasileiros e cidadãos: modernidade política 1882-1930. São Paulo: Alameda, 2008, p. 322. 147 CMA/UFPA, Série Cível, Subsérie: Tutela, 2ª Vara Cível - Cartório Odon, Auto de tutela dos menores João e Dalila, 1888.

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não poderia “Criá-los nem educá-los por falta de meios e não ser de bons costumes”. Ou seja, associando as mães às imoralidades que seriam inerentes à condição de pobreza em que muitas se encontravam, discurso comum não só entre membros do Juízo de Órfãos, mas entre coevos. Outra indicação feita no parecer do referido Curador Geral foi a de que o Juiz de Órfãos verificasse se “A criança menor, de nome Dalila, ainda está no caso de precisar dos cuidados maternais e de ser amamentada”,148 se reportando à maternidade, questão que foi importante dentro das tutelas. Destacamos, no entanto, a parte do parecer que menciona a ação do Subdelegado de Polícia da Sé, em que o Curador Geral Cordeiro de Castro disse o seguinte: E por que me consta que o subdelegado em exercício do 1º distrito, saindo fora de suas atribuições, mandou por um soldado buscar numa casa de família esses menores, sob a imediata jurisdição deste respeitável juízo, requeiro se digne oficiar ao Dr. Chefe de Polícia para providenciar a respeito evitando a prática de tais abusos criminosos, pois informam-me até que essas autoridades policiais subalternas costumam a mandar pegar nas ruas e distribuir órfãos para pessoas incapazes de possuí-las - por sua vida má e desregrada149.

O interessante é perceber que a atitude do Subdelegado não se tratou de fato isolado. Ao contrário, Cordeiro de Castro indicava ter recebido informação da prática que algumas “autoridades policiais subalternas” costumavam empreender de pegar menores nas ruas e distribuir para pessoas, o que seria uma atribuição do Juízo de Órfãos, por isso que o Curador pedia ao Juiz de Órfãos que oficiasse ao Chefe de Polícia para que tomasse providências em vistas de cessar a “Prática de tais abusos criminosos”. As ruas, mais uma vez, emergem como sinônimo de vadiagem, de perigo, e isso explica a ação da polícia, ao passo que não era sua atribuição a distribuição dos menores. Porém, isso revela como a questão de crianças e menores considerados vadios poderia ser encaminhada, no caso da polícia, a partir de um expediente às margens da própria Lei, e no caso do Juizado de Órfãos, 148 CMA/UFPA, Auto de tutela dos menores João e Dalila, 1888. 149 CMA/UFPA, Auto de tutela dos menores João e Dalila, 1888.


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representante do judiciário, esse procedimento se dava a partir de expedientes legais, como as tutelas e soldadas. Fato é que, nas últimas décadas do século XIX, discussões sobre o “menor”, como bem indica Bárbara Pinto, já começavam a fazer parte dos debates jurídicos, um exemplo mencionado é a obra de Tobias Barreto, Menores e Loucos, escrita na década de 1880150. Segundo a autora, Tobias Barreto travou um grande debate com defensores do Positivismo Jurídico, e a questão era sobre a estipulação de uma idade para a imputabilidade151. No regime penitenciário, segundo Bárbara Pinto, “O Positivismo também esteve presente no que se referia à questão do ‘menor’”, no que a autora aponta que: As discussões em torno do “menor” tomaram maior vulto, fruto de longas discussões realizadas principalmente em congressos internacionais que debatiam o problema das penitenciárias. A educação das chamadas “crianças viciosas e abandonadas” estiveram presentes em vários congressos como o de Roma (1885), o de São Petersburgo (1892), o de Paris (1885), o de Budapesth (1905) e o de Washington (1910) entre outros. Educar era uma meta a ser cumprida para o desenvolvimento da sociedade152.

A partir disso, temos uma nova questão, que é a associação da pobreza e vadiagem ao crime, o que será presente nas narrativas para tutelar menores pobres, ainda que de forma pontual, assim como a questão da educação, argumento principal para tutelar os menores, e como visto, sendo mencionado como meta a ser cumprida para o desenvolvimento da sociedade. Bárbara Pinto também indica que, “O dilema trabalho versus crime era ponto de partida para os debates sobre o ‘menor’”, e, nesse sentido “A pobreza era o grande impasse, na medida em que era dela que vinham, na concepção estatal, os ‘pais indignos’, a vagabundagem e a marginalidade”. Dentro desse quadro, “O trabalho seria a única solução para desviar os pobres do crime”, e sendo assim, “O ‘menor’ tinha que ser educado para o trabalho”.153

150 PINTO, op. cit., p. 330. 151 Ibidem. 152 Ibidem.

153 Ibidem, p. 331.

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O alvorecer da República traria consigo afirmações nesse sentido, pois o Código Penal de 1890 condenava os “vadios e capoeiras”, em seu Artigo 399 era posto que: Deixar de exercitar profissão, ofício, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistência e domicilio certo em que habite; prover a subsistência por meio de ocupação proibida por lei, ou manifestamente ofensiva da moral e dos bons costumes: Pena de Prisão celular por quinze a trinta dias154.

Nesse mesmo Artigo, é especificado o caso dos menores de idade, que, se maiores de 14 anos, seriam recolhidos em estabelecimentos disciplinares industriais, onde ficariam até a sua maioridade155. Nesse sentido, o destino dos menores pobres, mesmo quando incorressem em crimes, era fundamentalmente o trabalho, algo que não era diferente se tratando daqueles que não estivessem cometendo tais atos. A questão é que isso se tornou um problema social dos mais graves, e a família, como bem considera Bárbara Pinto, “Era o meio natural, pelo qual se detinham os cuidados para evitar os males do futuro”, sendo que, “Na falta dela e na falta de ‘pais dignos’, deveria haver destituição do pátrio poder”156. Vadiagem, crimes e pobreza, elementos que se unem na composição de um quadro social que fez os menores em larga medida serem encaminhados pelos Juízes de Órfãos para estranhos, haja vista a demonstração quantitativa das tutelas dativas157. Nesse sentido, as tutelas também serviriam para educar os menores para o trabalho, como veremos mais detidamente agora. 154 Decreto nº 847 de 11 de outubro de 1890. Código Penal dos Estados Unidos do Brasil. In: Decretos do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1890, p. 2734.

155 Decreto nº 847 de 11 de outubro de 1890. Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, 1890, p. 2734. 156 PINTO, op. cit., p. 331.

157 A partir da jurisprudência que dava conta das tutelas de menores e órfãos, eram especificados 3 tipos desses processos: a tutela testamentária, a legítima e a dativa. A tutela testamentária era aquela deferida em testamento, indicação feita pelo pai ou mãe do menor, como “última vontade”, nesse caso, o Juiz só deveria tomar conhecimento da idoneidade da pessoa indicada. A tutela legítima, por seu turno, era aquela que recaía sobre os parentes dos menores, por disposições da lei, ou mesmo por nomeação do Juiz para os parentes mais próximos de onde o menor vive, e a escolha seguia o procedimento de conhecimento dos parentes, e se escolheria o mais idôneo. Por fim, temos a tutela dativa, aquela que o Juiz de Órfãos fazia a nomeação por sua própria escolha,


Uma “justa sujeição” dos menores? Vadiagem, trabalho e tutelas em Belém de fins do século XIX

Um destino comum: os trabalhos e serviços dos menores pobres Em 9 de fevereiro de 1885, Manoel Martins Aragão, casado e artista, emite petição ao Juízo de Órfãos, alegando que: Tinha em sua companhia a órfã Blandina de 13 anos de idade, filha da liberta Acelina, a qual educava como sua filha, como V.Sª verá pelo documento junto que oferece. Acontece, porém, que apresentou-se ontem em casa do suplicante a mãe da referida órfã a suplicada Acelina, e levou para sua companhia a dita órfã. Não tendo a suplicada meios de educar sua filha, e mesmo com esse procedimento, vai atirá-la a prostituição visto como já está ela na idade da puberdade; quer o suplicante evitar qualquer mal por isso vem requerer a V.S.ª se digne nomear um tutor a dita menor, podendo tal nomeação recair no suplicante que já a educa a 4 anos, mais ou menos158.

O requerente utilizou argumentos que tinham relevância na tomada de decisão dos Curadores Gerais e Juízes de Órfãos. É possível notar a ligação que há entre a pobreza da mãe e a condição quase inerente a que Blandina estaria submetida se ficasse em sua companhia, ou seja, a prostituição. Outro argumento utilizado foi a educação, que, nesse caso, não foi somente comentada, mas o pleiteante juntou aos autos um atestado em que comprovava que dava educação para a menor. O atestado em questão era da professora particular do 1º distrito de Belém, Leocadia da Costa Macedo, que nele disse: “O senhor Manoel Martins de Aragão, tem uma criança de nome Blandina Martins de Aragão, idade 14 anos, é minha aluna, desde 7 de janeiro de 1882, até o dia 31 de janeiro de 1885”159. Com isso, Manoel Aragão buscava convencer o Juizado de sua capacidade para exercer o cargo de tutor, justamente naquilo que era tido como mas que, na realidade, nos processos analisados, se deram a partir do interesse de diversas pessoas “estranhas” aos menores em querer tutelá-los, requerendo ao Juiz de Órfãos suas nomeações. Sobre as especificações das tutelas, ver: ORDENAÇÕES FILIPINAS, Livro IV, Título CII. Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l4ind.htm

158 CMA/UFPA, Série Cível, Subsérie: Tutela, 2ª Vara Cível - Cartório Odon, Auto de tutela da menor Blandina, 1885. 159 CMA/UFPA, Auto de tutela da menor Blandina, 1885.

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essencial, ou seja, a educação dos menores, o que provavelmente foi um dos motivos para que sua nomeação de tutor fosse deferida. Alguns dias depois, pedia que fosse passado mandado de entrega “De sua tutelada”, o que foi realizado por um oficial de justiça, que declarou ter recebido a menor Blandina de sua mãe, Acelina, e ter encaminhado para o seu tutor. A história da tutela de Blandina teria um novo capítulo, pois sua mãe entrara com petição junto ao Juízo de Órfãos, na qual alegava “Que a um ano pouco mais ou menos, entregou a Manoel Martins de Aragão, a menor Blandina Maria Rita, filha da suplicante, sob promessa de educá-la”, mas Manoel Aragão não vinha cumprindo o que prometera. Além disso, a mãe da menor disse que sua filha estava sendo empregada no serviço da casa de Aragão, “Encarregada de servir de ama dos filhos do mesmo”. Por fim, Acelina argumentava que, “Não convindo a suplicante o tratamento que sua filha recebe, pedi a suplicante que a entregasse, pois ia levá-la para a casa de Raimundo Marques de Carvalho, casado e empregado no arsenal da Marinha”160. A partir do alegado pela mãe da menor, o procedimento do Juizado foi de chamar Blandina para ser interrogada. Pouco tempo depois, a menor era apresentada em Juízo, em que lhe foram feitas as seguintes perguntas: “Seu nome, idade, filiação, naturalidade e residência”, no que respondeu “Chamar-se Blandina Aragão, de 14 anos de idade, filha de Acelina Maria da Conceição, natural da cidade de Vigia nesta província, e residente em companhia de Manoel Martins de Aragão”. Ao continuar seu depoimento, a menor relatou ter sido levada para a casa de Manoel Aragão por sua mãe, e que antes estava na casa de “Sua madrinha, onde aprendia a ler, escrever e costurar”, e que dali teria sido retirada. Em resposta às outras perguntas que lhe foram feitas, a menor finalizou seu interrogatório dizendo que: não deseja continuar em casa de Aragão, que dizem ser seu pai natural, porque, embora ali tenha continuado a aprender, entretanto não é bem tratada pela mulher do dito Aragão, que a insulta e continuamente lhe diz que deixe a casa em que esta e vá para outra parte, e que já lhe bateu uma vez por não ter querido a respondente varrer a casa; que ela respondente, é empregada em varrer, lavar a roupa dos filhos de Aragão em número de 160 CMA/UFPA, Auto de tutela da menor Blandina, 1885.


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quatro; que não conhece Raimundo Marques de Carvalho; que Aragão pela sua parte, trata-a bem, que caso não possa voltar para a casa de sua mãe, deseja a respondente não continuar na casa de Aragão161.

Blandina confirmou o que sua mãe havia alegado na petição, de que a menor servia como ama dos filhos de Manoel Aragão, por outro lado, temos conhecimento de que o dito Aragão seria seu pai, além de que a menor não conhecia o indivíduo indicado pela mãe para ser seu tutor. A história da tutela de Blandina nos servirá de fio condutor para tratar de questões mais amplas, mas, antes, é necessário um comentários sobre as lacunas que as fontes apresentam. Há duas idades atribuídas à Blandina, 13 anos na petição de Manoel Aragão e 14 anos no atestado da professora particular e no depoimento da menor. Essa diferença, no caso dessa menor, implica em saber sua condição jurídica e social; se era ingênua, liberta ou livre. Quando trabalhamos com tutelas envolvendo menores egressos da escravidão, há problemas na identificação de suas condições jurídicas e sociais, pois, em diversos casos, não dispomos de suas idades, ou mesmo da data em que suas mães obtiveram suas liberdades. Em relação à idade dos menores, isso foi um problema comum nas tutelas, nem sempre sendo possível está identificação. Contudo, mesmo com esses problemas, a maior parte da documentação evidencia questões envolvendo a idade e o gênero dos menores, e tem se constituído em importantes dados para a historiografia compreender os interesses nas tutelas dos menores. Vejamos, primeiro, a distribuição das tutelas em Belém162, de acordo com o gênero dos menores:

161 CMA/UFPA, Auto de tutela da menor Blandina, 1885.

162 Os dados dessa amostra dizem respeito aos processos tramitados no Juízo de Órfãos de Belém, que compreendia também outras cidades e localidades ao entorno.

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Gráfico I:

Fonte: CMA/UFPA, Série Cível, Subsérie: Tutelas, 1ª Vara Cível – Cartório Santiago (18891900) e 2ª Vara Cível - Cartório Odon (1871-1898).

O gráfico indica que o maior interesse nas tutelas eram de menores do gênero feminino, com 59,4% ou 584 do total. Enquanto os números do gênero masculino são da ordem de 399 ou 40,6%. Uma das conjecturas, baseadas na disseminação do trabalho doméstico, principalmente a partir da década de 1880, é que as meninas foram mais requisitadas para essas modalidades de trabalho, sendo que os menores do gênero masculino, ainda que praticassem esses trabalhos, eram encaminhados geralmente para o aprendizado de ofícios – o que fazia com que pleiteantes ao cargo de tutor com algum ofício tivessem suas chances aumentadas na tentativa de conseguir a tutela de determinado menor. Vejamos, agora, a relação do gênero com as idades dos menores:


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Tabela I: Gênero X Idade dos menores tutelados

IDADES 0–2

3–7

GÊNERO MASCULINO

14

82

112

IGNORADA

133

TOTAIS

TOTAL DOS GÊNEROS

Nº de Nº de Nº de Porcentagem Porcentagem Porcentagem ocorrências ocorrências ocorrências

8 – 12

13 – 21

GÊNERO FEMININO

56

399

3,5%

20,5%

28,1%

14,6%

33,3% 100%

27

98

156

4,6%

16,7%

26,7%

41

180

27,3%

303

30,8%

22,8%

191

584

100%

983

29,2%

18,3%

268

133

170

4,2%

19,4% 100%

Fonte: CMA/UFPA, Série Cível, Subsérie: Tutelas, 1ª Vara Cível – Cartório Santiago (18891900) e 2ª Vara Cível - Cartório Odon (1871-1898).

Analisando a tabela construída, é possível notar que, entre 0 e 2 anos, o interesse foi bem menor, e isso pode estar associado a índices de mortalidade de crianças recém-nascidas, assim como aos cuidados que essas crianças necessitavam, além de não serem capaz de realizar nenhum serviço. Por outro lado, as evidências apontam que o interesse maior no gênero feminino era majoritariamente em uma idade que, no mundo da escravidão, era vista como produtiva, a partir dos 8 anos de idade. Contudo, essa mesma constatação serve para o gênero masculino, ou seja, para ambos os gêneros o interesse se deu em idades nas quais os menores poderiam executar serviços para os seus tutores. A partir dos dados apresentados, podemos afirmar que a maior demanda pelas tutelas era em relação aos menores em idade produtiva, com prevalência do gênero feminino, o que também foi realidade em outros locais163. Porém, é possível fazer algumas considerações com vistas a explicar tais realidades, e, 163 Sobre a prevalência de menores do gênero feminino em outros locais, ver: para Porto Alegre: CARDOZO, José Carlos da Silva. “Como se fosse meu filho”? As crianças e suas famílias no Juízo de Órfãos de Porto Alegre (1860-1899). Tese (Doutorado em História) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2015, p. 133. Em outros locais as evidências mostraram certo equilíbrio entre os gênero dos menores: para Juiz de Fora, província de Minas Gerais, ver: FRANCISCO, Raquel Pereira. Laços da senzala, arranjos da flor de maio: relações familiares e de parentesco entre a população escrava e liberta - Juiz de Fora (1870-1900). Dissertação (Mestrado em História Social e Econômica) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2007, p. 121.; para Manaus, ver: TEIXEIRA, 2010, op. cit., p. 80.; para Pernambuco, ver: BARROS, Gabriel Navarro de. Órfãos pobres, desvalidos, “ingênuos ou menores?”: infâncias “perigosas” e vigilância dos Juízes de Órfãos de Pernambuco (1888-1892). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014, p. 131.


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para isso, é preciso observar a demanda de escravos nestas mesmas idades, o que pode, pelo menos em parte, explicar o interesse nas tutelas. José Roberto de Góes e Manolo Florentino podem nos ajudar na compreensão dessa questão, a partir das idades dos menores filhos de escravas. Segundo os autores, ao se iniciar alguma atividade, os menores começavam a ter certo valor agregado, que iria aumentando de acordo com a idade e o desenvolvimento de atividades, e, comparativamente ao que valia aos quatro anos de idade, por volta dos sete anos, um escravo era cerca de 60% mais caro, e, por volta dos 11, chegava a valer duas vezes mais. Ao passo que, quando chegavam à idade de 14 anos, conforme os autores, a “Frequência de garotos desempenhando atividades, cumprindo tarefas e especializando-se em ocupações era a mesma dos escravos adultos”164. Em estudo sobre a escravidão urbana em Belém, Laurindo Junior apresentou dados sobre os escravos anunciados no jornal Diário de Belém, entre os anos de 1871 e 1882. Segundo consta, de 0 até a idade de 20 anos foram coligidos o número de 282 escravos menores, de um número total de 787. No entanto, considerando os anúncios verificados pelo autor, que mencionavam o fator idade, um número de 322 situava-se entre as faixas etárias de maior produtividade, de 13 a 20 e de 21 a 30 anos165. Esses dados ajudam a dimensionar o interesse na mão de obra escrava em Belém, mas, por outro lado, o quanto esse interesse residia em idades que coincidem com as mesmas dos menores que estavam sendo tutelados, em parte, no mesmo período. Ainda nos referindo à capital do Grão-Pará, Bezerra Neto afirma que: Os negócios envolvendo escravos não conheciam limites de idade, considerando que desde os 8 anos, mais comumente a partir dos 10, as crianças escravas podiam e eram muitas vezes incorporadas ao mercado de trabalho. No Diário de Notícias, de 13 de julho de 1881, anunciava-se o aluguel de um “moleque próprio para casa de família ou comercial”, isto obviamente antes deste jornal fechar suas páginas para anúncios relativos a escravos. No 164 GÓES, José Roberto de; FLORENTINO, Manolo. Crianças escravas, crianças dos escravos. In: DEL PRIORE, Mary. (Org.) História das crianças no Brasil. 5 Ed. São Paulo: Contexto, 2006, p. 185. 165 LAURINDO JUNIOR, Luiz Carlos. A cidade de Camilo: escravidão urbana em Belém do GrãoPará (1871- 1888). Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2012, pp. 82-83.


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Diário do Gram-Pará haviam outros tantos anúncios de venda de jovens cativos aptos ao aprendizado de um ofício, ou quiçá preparados para o exercício profissional nesta ou naquela atividade: vendia-se “um pretinho de idade de 12 anos vindo do interior”; também se vendia “um bonito moleque de 14 a 16 anos de idade”; e, até mesmo, a “menor Aurea, com 18 meses, avaliada em cinquenta mil réis, filha da escrava Henriqueta”166.

Mais uma vez, informações como essas servem para estabelecer um panorama que possibilita delimitar o interesse nas tutelas, pois os tutores poderiam ter acesso aos serviços dos menores167. Então, não é o caso dizer que tornar-se tutor era muito vantajoso? Não há dúvidas de que, em termos gerais, o interesse nas tutelas era nos possíveis trabalhos que os menores poderiam executar. Mas, agora, podemos voltar para a história da menor Blandina, e a partir dela emergir com outras questões importantes, justamente sobre esses “possíveis trabalhos”. Depois que a menor foi interrogada, foi a vez do seu tutor. Ele foi inquirido pelo Juiz de Órfãos com perguntas sobre “Seu nome, idade, estado, profissão”. Ele respondeu “Chamar-se Manoel Martins Aragão, de trinta e sete anos de idade, casado, pedreiro”. Ao continuar seu depoimento, Manoel Aragão disse que não conhecia Raimundo Marques de Carvalho, indivíduo indicado pela mãe para ser o novo tutor da menor, além de que: Blandina frequenta uma escola particular, onde aprende a ler, escrever, costurar e prendas domésticas; que na casa dele respondente, nos intervalos da escola, ocupa-se no serviço doméstico, isto é, varrer a casa, lavar sua roupa, mas não lava a dos filhos dele respondente, que é lavada pela mulher dele respondente; que é bem tratada a menor tanto por ele respondente como por sua mulher, que tem alguma instrução e por cujo consentimento a menor esta em casa dele respondente, que a considera como sua filha; que atribue as alegações de Acelina Maria da Conceição, ao capricho, ao desejo 166 BEZERRA NETO, José Maia. Mercado, conflitos e controle social. Aspectos da escravidão urbana em Belém (1860-1888). In: História & Perspectivas, Uberlândia, v. 41, 2009, pp. 267-298. 167 A Legislação Orfanológica deixava como prerrogativa dos Juízes de Órfãos a concessão do direito de pessoas utilizarem os serviços de um órfão, desde que tivesse criado o mesmo desde tenra idade, argumento que será comum nos pedidos de tutelas dos menores pobres. Cf. ORDENAÇÕES FILIPINAS, Livro 1º, Título LXXXVIII, p. 211. Disponível em: http:// www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l1p211.htm

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de aproveitar-se dos serviços da menor que já se acha quase preparada em prendas domésticas, e que ele respondente interessasse por Blandina, se tem em vista garantir-lhe o futuro e preservá-la da prostituição168.

Considerando uma contenda entre pai e mãe da menor, ambos utilizam a pobreza um do outro como argumento, mas, por outro lado, o caso demonstra que as camadas populares também entrariam nesses embates tutelares. Essa disputa pode ser explicada pelas possibilidades que teriam contado com um ou uma menor em seus lares, visto que esses poderiam ajudar e muito na economia doméstica, fazendo diferentes serviços, ou mesmo empregando-se na rua, o que ajudaria na renda familiar. Exemplo disso pode ser encontrado na própria história de Blandina, em que, mais de uma vez, fica explícito que ela executa diferentes tipos de serviços na casa de Aragão; este, por seu turno, acusa a mãe de ter interesse nos serviços da menor. A questão envolvendo a menor Blandina e os serviços por ela realizados não era caso isolado. Os serviços domésticos foram as principais atividades praticadas por menores em Belém, notadamente por meninas, ainda que seja identificado outros tipos de trabalhos. O quadro abaixo demonstra, a partir de petições dos requerentes e alguns depoimentos de menores, os serviços que possivelmente eram executados por eles. Quadro I: Possíveis serviços ou ocupações169 dos menores pobres: Menções a serviços ou ocupações

Ofício

Caixeiro

Ofício de Ferreiro Serviços

Dar aos menores muito trabalho

Aprendendo a ler e prendas domésticas Cozinheira

Serviço de engomado e costura Lava roupa

168 CMA/UFPA, Auto de tutela da menor Blandina, 1885.

Nº de ocorrências 08 01 01 30 01 01 02 01 01

169 Preferimos inserir no quadro I os termos alusivos a serviços dos menores, como aparece na documentação.


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Serviço da casa

02

Serviços de roça

02

Serviço de criado Fazer/vender doces

Fazer compras no mercado Criada de compra Lavoura

Serviços/trabalho doméstico Extração de borracha Carregar água Lavar pratos

Empregado em farmácia Aprendizes

Serviço de rua TOTAL

05 02 01 01 01 25 02 01 01 01 02 01 93

Fonte: CMA/UFPA, Série Cível, Subsérie: Tutelas, 1ª Vara Cível – Cartório Santiago (18891900) e 2ª Vara Cível - Cartório Odon (1871-1898).

A partir do quadro I, é evidenciado que os serviços executados eram majoritariamente do âmbito doméstico, ainda que a indicação de ofícios, serviços de roças e outros também fosse presente. No entanto, ao que tudo indica, os menores foram encaminhados, de fato, para trabalhos no ambiente doméstico, e, se considerarmos as questões relacionadas à vadiagem e outras insinuações realizadas pelos agentes do Juízo de Órfãos, as evidências só aumentam nesse sentido, pois, em diversos momentos, era indicado que os serviços praticados eram comuns. Uma das possibilidades explicativas para a recorrência dos pedidos de tutelas e os encaminhamentos de menores para os serviços domésticos pode estar assentada no contexto da década de 1880, em que o trabalho escravo estava em declínio, devido tanto às legislações emancipacionistas quanto à própria ação dos escravos, que buscavam, a partir de variados mecanismos, suas liberdades. Além disso, é na década de 1880 que em todo o Império brasileiro começam a surgir tentativas de regulamentação do trabalho doméstico, o que

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também teve íntima relação com o quadro de crise da escravidão170, influenciando fatalmente a demanda por sujeitos que pudessem executar esses serviços, e que teve, sem dúvidas, ingerência na crescente demanda de tutelas de menores pobres, sobretudo na mesma década. Ao voltarmos para a história da menor Blandina, podemos compreender isso de forma mais clara. Depois de tudo o que foi alegado pelas partes envolvidas, o Curador Geral de Órfãos Cordeiro de Castro emite um parecer esclarecedor de como era compreendido as tutelas em termos generalizantes. Disse ele: Parece-me que, a vista do que consta dos presentes autos, deve ser mantida a nomeação de Manoel Martins de Aragão para tutor da órfã púbere de nome Blandina. Depreende-se que, só por mero capricho, procura a mãe desta menor tirá-la da companhia de seu tutor, que, apesar de artista e pobre, lhe dá a educação conveniente mandando-a ensinar a ler e escrever, como consta dos atestados da professora. Verifica-se ainda, pelos atestados passados por pessoas dignas de fé, que o tutor da menor é um homem casado e de reconhecida probidade, pouco importando, em meu humilde parecer, a declaração da referida menor Blandina, que torna-se suspeita em seu depoimento pelo fato de querer sair da justa sujeição em que se acha, para a companhia de sua mãe, que precisa alugar diariamente seus serviços. Uma menor nas circunstâncias de Blandina, deve aprender a cozinhar, lavar, engomar e outros misteres que constituem o verdadeiro dote de uma menina pobre, sendo que estes predicados melhor a habilitarão a um casamento pobre e feliz com um artista, que na pessoa de uma esposa procure, por sua vez, encontrar um auxílio - uma verdadeira dona de casa. 170 Análises sobre o trabalho doméstico, suas regulamentações e seus trabalhadores em meados e fins do século XIX têm demonstrado a importância da escravidão para o desenlace desses processos. Cf. BAKOS, Margaret Marchiori. “Regulamentos sobre o serviço dos criados: um estudo sobre o relacionamento Estado e Sociedade no Rio Grande do Sul (1887-1889)”. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 4, n. 7, pp. 94-104, mar. 1984.; GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e obediência: criadas e seus patrões no Rio de Janeiro, 1860-1910. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.; SILVA, Maciel Carneiro. Domésticas criadas entre textos e práticas sociais: Recife e Salvador (1870-1910). Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.; TELLES, Lorena Féres da Silva. Libertas entre sobrados: mulheres negras e trabalho doméstico em São Paulo (1880-1920). São Paulo: Alameda, 2013.


Uma “justa sujeição” dos menores? Vadiagem, trabalho e tutelas em Belém de fins do século XIX

É meu parecer, mandando este respeitável juízo o que em sua sabedoria julgar à bem da órfã mais conveniente e acertado. Belém, 13 de Abril de 1885. Curador Geral de órfãos Cordeiro de Castro171.

Esse parecer é esclarecedor sobre o que os sujeitos do período pensavam, não só sobre as tutelas, mas sobre ao encaminhamento de meninas majoritariamente para os trabalhos domésticos, “O verdadeiro dote de uma menina pobre”! É bom lembrar que a menor Blandina era educada, talvez isso tenha feito o Curador Cordeiro de Castro achar que aquela era uma “justa sujeição”, além dos serviços que eram praticados serem entendidos como os reais encaminhamentos de meninas pobres. Nesse sentido, tomando essa expressão do Curador, podemos afirmar que as tutelas se constituíram em uma “justa sujeição”, assentada em argumentos que visavam manter os menores nos ambientes domésticos, seja de seus familiares ou de pessoas estranhas, evitando, assim, os vícios das ruas, a ociosidade, a prostituição, um contexto amplo que os coevos souberam instrumentalizar nas suas argumentações para requererem as tutelas de meninos e meninas pobres, mas tendo como contexto bem específico, também, o gradual fim da escravidão – que teve por consequência a emergência de novos arranjos de trabalho, como as tutelas.

Considerações Finais A análise dos processos de tutelas nos permite compreender o encaminhamento de crianças e menores em fins do século XIX, que tiveram suas experiências balizadas por processos sociais mais amplos, como o contexto de crise da escravidão. Nesse quadro, discursos foram forjados com o intuito de conseguir a tutela dos menores pobres, ou encaminhá-los para o que se julgava ser o mais apropriado. Os serviços que os menores praticavam eram vistos como normais, principalmente aqueles no âmbito do trabalho doméstico, o que se tornou um elemento fundamental na motivação para tutelá-los, experiência compartilhada por menores ingênuos, libertos, indígenas e livres pobres. Nesse sentido, discursos que colocavam os menores como vadios serviram de argumentos para empreender pedidos de tutelas que tinham como principal significado usufruir dos serviços que esses menores poderiam executar. 171 CMA/UFPA, Auto de tutela da menor Blandina, 1885.

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CAPÍTULO 4

MENINOS DESVALIDOS DE BELÉM: EDUCAÇÃO E TRABALHO NO INSTITUTO PARAENSE DE EDUCANDOS ARTÍFICES (1872-1879)172

Raíssa Cristina Ferreira Costa

Resumo: O presente trabalho faz parte da minha pesquisa de dissertação e tem como objetivo principal fazer uma breve apresentação de informações acerca da condição dos meninos desvalidos admitidos nas primeiras turmas do Instituto paraense de educandos artífices (IPEA) durante a década de 1870, já que boa dos sujeitos estudados deixa o estabelecimento no ano de 1879. Para tanto, destaco uma pequena trajetória destes educandos começando pelas exigências para sua matrícula, as aulas que deveriam ser cursadas, os ofícios que poderiam ser escolhidos por eles, até punições, recompensas e as condições para seu desligamento da instituição. Utilizando para este fim a documentação produzida pelo diretor do instituto, anúncios de jornais, relatórios da presidência da província, legislação e a historiografia relacionada ao IPEA. Palavras- chave: Século XIX, Instituto Paraense de Educandos Artífices.

O

presente texto se insere no rol de reflexões da pesquisa de dissertação realizada pela autora deste texto, cujo objetivo é traçar um perfil e as trajetórias dos alunos das primeiras gerações do Instituto Paraense de

172 Pesquisa desenvolvida com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (CAPES).


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Educandos Artífices (IPEA) entre os anos de 1872 e 1910, mais ou menos quando seus rastros se dissipam por completo173. Buscaremos apresentar aqui um breve retrato da condição desses meninos enquanto internos do Instituto Paraense de Educandos Artífices. Tal inquietação permeou boa parte do nosso processo de pesquisa na graduação, na qual iniciamos o percurso de compreender o universo do IPEA. A necessidade de empreender esforços para enxergar os educandos na história de uma instituição de tamanha importância para província do Pará, em um contexto que dava sinais do fim da escravidão, é imperativa. Não somente quando se trata da história dessa instituição, ou da historiografia da educação do Pará, pois, consoante Maria Zélia Maia de Souza, a História da educação no Brasil carece de investimentos em pesquisas que deem maior atenção aos alunos, principais sujeitos das relações escolares174. No dia 03 de junho de 1872, foi inaugurado, na Província do Pará, o Instituto Paraense de Educandos Artífices (IPEA). No dia seguinte, a descrição do evento recebeu destaque na primeira página do “Jornal do Pará”, com o intuito de informar aos leitores a pompa e formalidade da ocasião, que contou com importantes membros da administração pública, dentre eles o chefe de polícia, os comandantes de armas e do terceiro distrito naval, chefes de repartições e o presidente da Província. Entre banquetes e discursos, procurou-se exaltar as vantagens e a nobreza de estabelecimento, com a finalidade de formar homens trabalhadores, cidadãos instruídos175. Apesar de não possuir destaque em nenhum outro periódico disponível nos acervos da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, foi um consenso para imprensa e para as autoridades locais que o Instituto era um elemento essencial para a Província, entendido, assim, durante todo o seu período de funcionamento. O jornal “A Constituição” argumenta em anúncio sobre a direção do Instituto em 1876: “O Instituto não tem somente um fim muito nobre de dar educação a meninos pobres, elle tem sobre tudo um fim nobilissimo 173 FERREIRA COSTA, Raíssa Cristina. Educados No Trabalho Para O Trabalho”: Trajetória Dos Alunos Do Instituto Paraense De Educandos Artífices (1872- 1912). In: Anais do 30º encontro nacional de História da ANPUH. Recife, 2019.

174 SOUZA, Maria Zélia Maia de. O aprendizado para o trabalho dos meninos desvalidos: Nem Negros Escravos E Nem Criminosos. In: Revista Contemporânea de Educação. Rio de Janeiro, v.4, n.7, 2009, 43-60 . ISSN 1809-5747. 175 Jornal do Pará, orgão official. Nº123, Belém/PA 40/06/1872. p.01


Meninos desvalidos de Belém: educação e trabalho no Instituto Paraense de Educandos...

de preparar artistas habeis e morigerados”176. A fala do diretor Major L. E. de Carvalho, em anúncio no Jornal Diário de Belém ao presidente da Província em 1873, também possui o mesmo teor de defesa: “(...) tenho certeza de que o estabelecimento se elevará ao maior gráo de prosperidade, (...) a par de outras vantagens do mais alto alcançe a moralidade e industrial da nossa população”177. Nesses termos, a criação do IPEA seria um passo necessário para o desenvolvimento e progresso. Podendo ser considerado o estabelecimento de ensino artístico mais importante da Província no período178. As aspirações para a criação do Instituto começam a aparecer na documentação oficial da presidência da província desde o ano de 1870. Em relatório de balanço para deixar o cargo, João Alfredo Corrêa de Oliveira registra, para o sucessor Abel Graça, que deixou o projeto do engenheiro Guilherme Francisco Cruz para avaliação, ressaltando o seu caráter de assistência aos desvalidos, utilidade para a cidade, moralização – inclusive incentivando sua aplicação em índios menores de idade com este fim – e, principalmente, destacando o seu baixo custo179. Como estimado pelo seu antecessor, Abel Graça, ainda na qualidade de vice-presidente da Província, demonstra seu interesse em levar em frente o projeto, apesar de afirmar, em relatório apresentado à Assembleia Provincial, haver necessidade de diminuir o orçamento destinado para a instrução, alegando déficit na renda pública. Segundo o vice-presidente, esse ramo do serviço público estava florescendo e precisava de mais esforços para alcançar “Um estado satisfatório, digno do papel que representamos no mundo civilizado”180, entretanto, não concordava em gastar a quantia de aproximadamente 240:000$000 réis somente nele. Seu argumento para a criação do IPEA seria sua conveniência de gerar receita através das obras produzidas em 176 A Constituição, Nº 87, Belém/PA, 20/04/1876. Pág.02.

177 Diário de Belém Nº291, Belém/PA, 25/12/1873. Pág. 01.

178 Durante o século XIX, a província do Pará contou com vários estabelecimentos de ensino de ofícios, dentre eles a Caza de Educandos Artífices de 1840, as Companhias de Educandos Artífices dos Arsenais de Guerra e de Marinha e a Escola Rural Dom Pedro II.

179 Relatório do presidente da província do Pará João Alfredo Corrêia de Oliveira passando a administração para o 4º vice-presidente Abel Graça.

180 Relatório apresentado a Assembleia Legislativa Provincial do Pará na primeira sessão da 17.a legislatura pelo quarto vice-presidente, Dr. Abel Graça. Pará, Typ. do Diário do Gram-Pará, 1870.

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suas oficinas, fazendo alusão às casas de educandos do Maranhão (1841)181 e do Amazonas (1858). O Instituto foi criado pela lei nº 660, de 31 de outubro de 1870182, que previa, logo em seu primeiro artigo, o caráter de amparo pelo seu objetivo de abrigar órfãos desvalidos e jovens desfavorecidos de fortuna, característica que sustentava o seu projeto de criação. Nessa lei, ficou definida oferta de instrução primária e o ensino profissional, com especificação do currículo teórico e prático, as condições para ingresso, etc.183. A cerimônia de inauguração citada no início deste texto foi realizada no prédio localizado na estrada de Nazareth, onde o IPEA funcionou em seus primeiros anos, e atualmente se encontra o Colégio Gentil Bittencourt. Segundo o Jornal do Pará, dentre os ilustres convidados, estava o Major Eduardo de Carvalho, nomeado diretor do Instituto, que discursou sobre “As vantagens do estabelecimento e dos seos resultados futuro”, seguido por Bento Figueiredo Tenreiro Aranha, que discorreu acerca da “Instrucção, como imã do progresso e da civilisação”184. O articulista deixa claro o interesse de retratar aos seus leitores a importância e solenidade da abertura do Instituto. Elogiando o banquete, os convidados e o ambiente, completa: 181 CASTRO, Augusto César. A educação da infância desvalida no Maranhão oitocentista: a casa de educandos artífices. In: Anais do IV Congresso Brasileiro de História da educação. Goiânia, 2006. ISBN 85-8977-937-8 182 Colleção de Leis do Ano de 1870, primeira parte. Tolmo XXX II. Typ. do Diário de Belém, 1872.

183 RIZZINI, Irma. O cidadão polido e o selvagem bruto: A educação dos meninos desvalidos na Amazônia Imperial. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de janeiro, 2004, p.169-170 É interessante destacar que em toda a documentação consultada sobre o Instituto Paraense de Educandos Artífices não tem referência à experiência da Casa de Educandos do Pará, somente a de outras províncias, que foram posteriores a ela. Para Casa de Educandos Artífices Vide: BARBOSA, Andreson Carlos Elias.O Instituto paraense de educandos artífices e a morigerância dos meninos desvalidos na Belém da Belle Époque. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Pará, Instituto de Ciências da Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Belém, 2011; FERREIRA COSTA, Raíssa Cristina. A Pedagogia da Liberdade: A educação profissionalizante e Instituto Paraense de Educandos Artífices. Monografia de Graduação. Belém, UFPA, 2016. RIZZINI, Irma. O cidadão polido e o selvagem bruto: A educação dos meninos desvalidos na Amazônia Imperial. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de janeiro, 2004. 184 Jornal do Pará, orgão official. Nº123, Belém/PA, 40/06/1872. p.01.


Meninos desvalidos de Belém: educação e trabalho no Instituto Paraense de Educandos...

Mas tarde, quando os importantes resultados d’aquele estabelecimento forem conhecidos, quando os meninos, que vão agora começar a aprender, forem homens e souberem colher todas as vantagens do trabalho intelligente; quando essas creanças, que entrão para ali agora balbuciando as lettras do alphabeto, forem cidadão instruidos, e concorrerem para o desenvolvimento moral e intellectual do seo da paiz, o Sr. Dr. Abel Graça será lembredo com reconhecimento: nome do illustre fundador do Instituto Paraense de Educandos Artifices, será gravado em lettras de ouro na história d’aquelle estabelecimento185.

O destaque recebido, os trechos dos discursos que seu autor escolheu transcrever, os títulos e nomes das “gradas” figuras que compareceram, dentre outros elementos selecionados para serem impressos neste artigo, falam a respeito da imagem que o governo provincial gostaria de vincular ao estabelecimento e ao seu “esforço” para criá-lo. Contudo, nessa fonte ou em qualquer outra que mencione a criação ou abertura do Instituto Paraense dos Educandos Artífices por nós consultadas, não há sequer um vestígio da condição dos menores recém-matriculados nesse internato. Estariam, nessa cerimônia, despedindo-se de seus pais ou tutores?

I – Currículo, espaço e saúde Com o anúncio chamando pais e tutores interessados em matricular seus filhos, destacando as condições exigidas foi publicado no “Jornal do Pará”186, houve solicitação de matrícula de 17 meninos para integrar a primeira turma do Instituto. Essas crianças passaram a fazer parte desse grupo por corresponderem algumas exigências comuns a quase todos os estabelecimentos de mesma natureza do período: ter entre 7 a 12 anos de idade, ser considerado apto em termos sanitários e, principalmente, ter comprovado a condição de desvalido187.

185 Idem.

186 Jornal do Pará, Nº122, Belém/PA, 02/06/1872, Pág. 02.

187 Actos do Governo da Província que formam a segunda parte da Colleção de Leis do Ano de 1872. Tomo XXXIV, Pará 1872.

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Vale ressaltar que várias das normas previstas no regulamento de abertura e, posteriormente, a de 05 de junho de 1873188, têm inúmeras semelhanças com outros estabelecimentos de artes e ofícios anteriores e posteriores ao IPEA, como a faixa etária para ingresso, o currículo primário, as aulas de música nas mesmas categorias, etc.189. No entanto, é igualmente importante considerar que as experiências têm suas especificidades. Dentre elas, estão inclusas: a questão territorial, devido ao fato de que algumas dessas instituições funcionaram em ambiente rural, e a conjuntura política, já que boa parte das experiências de casas de educandos são das décadas 1840, 1850 e 1860. Apesar das semelhanças, possuíam um caráter asilar e caritativo, diferindo dos princípios das instituições da década. Havia diversas preocupações por parte da elite política acerca da infância e da juventude empobrecida e de cor na segunda metade do século XIX, quase sempre baseadas em conceitos advindos de teorias raciais. Destaca-se, em muitos casos, a ideia da suposta tendência natural de indivíduos dessas categorias a vícios e a ociosidade, até mesmo incapacidade de viver como cidadão, especialmente referindo-se a pessoas negras190. Nesse sentido, a educação serviria como um instrumento para ordenar a realidade social da maneira desejada pelas elites políticas, segundo Marcelo Lobo: 188 Colleção das Leis da Província do Pará, Tomo XXXV, primeira parte. Pará Typ do Diário do Gram-Pará, Belém, 1873.

189 Para maiores informações sobre as casas e asilos para infância desvalida da dita fase caritativa do ensino de ofícios no país, vide: CASTRO. A educação da infância desvalida no Maranhão oitocentista. Op.cit.; PEREIRA LIMA, Ana Cristina. Colégio Dos Educandos Artífices: As Crianças Pobres E A Educação Profissional No Século XIX (Fortaleza,1856 – 1866). In: Anais do IV Colóquio nacional e I colóquio internacional de Produção do conhecimento em educação profissional: A reforma do ensino médio (lei 13.415/2017) e suas implicações para a educação profissional. Natal, 24 a 27 de julho de 2017.; REIS, Amada de Cássia Campos; FERRO, Maria do Amparo Borges. Estabelecimento De Educandos Artífices Do Piauí: Educação, Trabalho E Disciplina. (18471852). In: Anais do IV Congresso Brasileiro de História da educação. Goiânia, 2006. ISBN 858977-937-8; LIMA, Guaraciane Mendonça de. O Collégio De Educandos Artífices – 1865-1874: A Infância Desvalida Da Parahyba Do Norte. Dissertação. Universidade federal da Paraíba, João Pessoa 2008; e SILVA, Rosilda Germano da. O Colégio De Educandos Artífices no Brasil-Império: as raízes do ensino profissional para as crianças pobres em Alagoas (1854-1861). Monografia de graduação em pedagogia Maceió, 2010.

190 BEZERRA NETO, José Maia. Por todos os meios legítimos e ilegais: as lutas contra a escravidão e os limites da abolição (Brasil, Grão-Pará: 1850 – 1888). Tese de doutoramento. São Paulo, 2009. CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores do Rio de Janeiro da Belle époque. 3ª ed. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2012. Pág. 59 – 171 MAMIGONIAM, Beatriz G. Africanos Livres: abolição do tráfico de escravos no Brasil. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.


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O lugar social estaria marcado pela educação adequada à condição social do sujeito, estabelecer uma educação artística para população de pobres livres e libertos também ajudava a firmar hierarquias, podemos observar tais discursos tanto nos pareceres dos juízes de órfãos como os jornais que tratavam da questão191.

Foi dentro dessas perspectivas que foi delimitado o público-alvo de estabelecimentos com o IPEA, se propondo a “capacitar” jovens a viver de acordo com as convenções hierárquicas da sociedade. De acordo com o regulamento de 1872 do Instituto Paraense, permanecendo sem alterações no regulamento de 1873, desvalido seria um menor em estado de pobreza, e, para fins de comprovação, poderia ser apresentado um atestado do pároco da sua freguesia192. De acordo com o Código Criminal de 1830, indivíduos com idade inferior a 14 anos, desamparados pela família, seriam denominados pelas categorias: órfão, abandonados, infratores e desvalidos, cada qual com suas especificidades. Os desvalidos seriam aqueles em que o desamparo estava relacionado à impossibilidade de eles terem suas necessidades básicas providas por familiares ou tutores. Em outras palavras, segundo a historiadora Maria Sucupira Inês Stamatto, considera-se que a sobrevivência desse menor estaria ameaçada pela insuficiência de recursos financeiros dos seus responsáveis, estando, assim, na pobreza193. Dessa forma, ingressaram no Instituto em seus primeiros anos de funcionamento os seguintes menores desvalidos: Quadro 1: Lista nominal dos educandos NOMES 1

Narcizo Ferreira Borges

28

Augusto José Cardoso

3

Raimundo Nonacto de Belém

30

Hildebrando Xavier Oliveira Alves

2

Anastácio José Cardozo

29

Francisco Caetano de Vasconcellos

191 LOBO, Marcelo Ferreira. “Futuros operários do progresso”: Infância Desvalida e Educação no limiar da escravidão (Grão-Pará, 1870-1890). História, histórias, volume 8, nº 16, jul./ dez. 2020, 88-116 p.99. 192 Actos do Governo da Província que formam a segunda parte da Colleção de Leis do Ano de 1872. Tomo XXXIV, Pará 1872.

193 STAMATTO, M.I.S. “Experiências escolares para infância desvalida – Brasil Imperial (1822 – 1889)”. In: HOLOS, Ano 32, Vol. 05. Pág. 24.

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4

Clarindo Gomes Franco

31

Manoel Alexandrino da Silva

6

Benedicto de Moraes Tavares Rego

33

Luiz Pedro

5 7 8 9

10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27

Juvino Pereira Guimarães

Segismundo Antonio da Silva Pedro Evangelista de Leão

Cazemiro Anastácio das Neves João T. Wallace

Leopoldino Lajes Ribeiro

Bernardino Rodrigues R. de Oliveira Sotero Leão de Salles

Horacio Antonio Dias

Joaquim Antonio dos Santos Alfredo G. de Miranda Alfredo Pontes Braga

Pedro de Alcantara Pinheiro Libanio Marques da Silva

Antonio Gonçalves dos Reis

Augusto Candido Rodrigues Campos José de Moraes Tavares Rego Manoel E. da Fonseca João Batista de Farias

Sebastião da Cunha D’eça e Costa João A. Prestes

Tito de Araújo Guimarães

32 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53 54

Francisco Pantoja

Guilherme Farias da Silva Pedro Paulo da Silva João Braz Valleco

Raimundo F. Penna José Cardozo Bahia

Prilidiano P. Firmink

Segismundo P Firmink Antonio H. da Rocha

Raymundo de Mattos Costa

Francisco E de Mattos Costa Albino José Pereira

Raymundo de Peres Brito João Teixeira

Felipe da Conceição

Narcizo F de Nazareth

João Ladislau da Trindade José Cursino dos Santos

Napoleão M de Oliveira

João Nepomuçeno Prestes João Antonio Dantas

Agnello Antônio Dias.

Fonte: Jornal do Pará orgão official, Anno XII, 30/12/1874. P.02. Santos & irmãos, Belém/PA.

No momento de sua criação, à revelia da Lei nº660, que disponibilizava 50 vagas, o Instituto contava com apenas 17 alunos, sendo considerado completo, apenas com 40, pelo presidente da Província alguns meses depois em seu relatório194. Em dezembro de 1872, a taxa fixa de alunos cai para 30, havendo ainda ressalva de que não poderia haver aumento sem consentimento da Assembleia Provincial. Já em 1873, o presidente da Província Domingos Cunha Junior sugere o aumento das vagas para 100, discursando que, dessa forma, o IPEA atingiria um número maior de menores desvalidos e a renda 194 Relatório da Presidência da Província. Typ. do Diário do Gram-Pará, 1872.


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do estabelecimento cresceria, ou seja, encontrando suporte na proposta do Instituto ser sustentado por sua própria renda. Essa proposta foi aceita, contudo, por uma série de questões de estrutura e, principalmente, de ordem orçamentária. O total de estudantes durante toda a década de 1870 não alcançou esse número, apesar de que o IPEA passou a contar com 200 vagas a partir da década de 1880. O educando e sua família, após inspeção sanitária, deveriam esperar algum tempo para receber uma resposta do deferimento ou não da matrícula. O diretor do Instituto informava à presidência da Província o nome do menor, caso este viesse a ser aprovado pelo exame médico, pedindo a admissão na instituição, caso contrário, o ofício deveria informar o motivo da reprovação. No geral, as ocorrências são por moléstias, falta de capacidade física e fragilidade para os serviços que deveriam ser prestados nas oficinas195. Posterior a esse processo, era comum que fosse anunciado no jornal o deferimento ou não dos pedidos de matrícula dos menores. Ao ingressar no IPEA, os educandos cursariam as ditas “primeiras letras”, o ensino primário. De acordo com a Lei nº660, o conteúdo referente à instrução primária consistiria em: “Leitura, escriptos, elementos de aritmética, moral, civil religiosa, a traduzir em escriptos os pensamentos e breves rudimentares de physica e chimica” 196. Entretanto, o regulamento aprovado de 1872 trouxe algumas mudanças, acrescentando ao currículo o estudo da “grammatica da língua vernácula”197. O ensino profissional, em princípio, foi composto pelo ensino de “Geometria e mechanica applicadas às artes e à construção naval, de technologia e de aprendizagem nas oficinas do Instituto (...)”198. Contudo, o mesmo regulamento que alterou o currículo do ensino profissional dividiu em dois cursos: um de cunho teórico, que abrangia “Geometria e mechanica e de

195 Actos do Governo da Província que formam a segunda parte da Colleção de Leis do Ano de 1872. Tomo XXXIV, Pará 1872 e Minutas de ofício do diretor do Instituto Paraense de Educandos Artífices, 1879.

196 Colleção de Leis do Ano de 1870, primeira parte. Tomo XXX II. Typ. do Diário de Belém, 1872. 197 Actos do Governo da Província que formam a segunda parte da Colleção de Leis do Ano de 1872. Tomo XXXIV, Pará 1872.

198 Colleção de Leis do Ano de 1870, primeira parte. Tomo XXX II. Typ. do Diário de Belém, 1872.

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desenho lenear”199; e um curso prático que era realizado nas diferentes oficinas que o Instituto montou. A instituição também contava com o ensino de música, classe essa que resultou na banda do Instituto, muito famosa e disputada pelos eventos da cidade, tanto que houve conflitos relativos a um suposto monopólio feito pelas autoridades provinciais a agenda da banda200. A banda do Instituto foi considerada em relatórios da presidência, em ofícios e até em debates na Assembleia Provincial201, uma das atividades bem rentáveis do IPEA. Um indicativo da importância que a banda acarretou durante os primeiros anos de funcionamento dessa instituição foi o investimento em instrumentos musicais comprados da Europa202, sendo que os primeiros instrumentos utilizados pelos educandos foram doados pelo Corpo de Polícia por ordem do presidente da Província. Contudo, em dezembro de 1873 e 1874, encontra-se no Jornal do Pará uma lista nominal com as notas dos exames dos educandos. Em conformidade com o artigo 145 do regulamento aprovado em novembro de 1873, a lista foi organizada por classes e nos apresenta um quadro das disciplinas e oficinas em funcionamento apenas dois anos após sua abertura. Consta, no anúncio, aulas de: Geometria, desenho linear, Ensino Primário e Instrução Religiosa. No ano 1876, contam essas disciplinas como: Geometria, Mechanica e Primeiras Letras. Em 1877, são adicionadas as disciplinas de Dezenho e Música, a lista de notas e matrículas, seguindo assim até boa parte da década de 80. Nenhuma das fontes consultadas expõe se a causa dessas adições tardias foi em decorrência da pouca idade dos educandos, sua incapacidade ou por falta de professores. Porém, é possível afirmar que a maioria dos educandos 199 Actos do Governo da Província que formam a segunda parte da Colleção de Leis do Ano de 1872. Tomo XXXIV, Pará 1872.

200 BARBOSA, Andreson Carlos Elias.O Instituto paraense de educandos artífices e a morigerância dos meninos desvalidos na Belém da Belle Époque.Opcit; FERREIRA COSTA, Raíssa Cristina. A Pedagogia da Liberdade: A educação profissionalizante e Instituto Paraense de Educandos Artífices. Opcit; MACIEL, Elisane Gomes. Preparando o futuro. Instituto de Educandos Artífices Paraense (1870-1889). Belém: UFPA. Monografia de graduação, 1998; RIZZINI, Irma. O cidadão polido e o selvagem bruto: A educação dos meninos desvalidos na Amazônia Imperial. Opcit. 201 A Constituição, Nº60, Belém/PA, 15/05/1876. Pág.01.

202 Minutas de ofício do diretor do Instituto Paraense de Educandos Artífices para a presidência da província (1879). Caderno 1668 do fundo da secretaria da presidência da província – área: governo. (Arquivo Público do Estado do Pará)


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listados no Quadro 1 teve a oportunidade de cursar essas matérias, mesmo que seu rendimento não tenho sido bom. Como exemplo, podemos citar que as médias do educando Narciso Ferreira Borges variavam entre ótimo e bom durante todo o tempo em que esteve na condição de estudante interno do IPEA. As disciplinas nas quais foi avaliado o período de 1873 – 79 foram: Muzica (73, 77 e 78), Dezenho (73, 76 e 77), Dezenho linear e topographya (74), Geometria (73 e 74), Instrução Religiosa (74), Francez (78) e Mechanica (76). Completou o ensino primário em 1874, finalizou o curso de mechanica em 74, sendo considerado “prompto”, e terminou o segundo graó em 1877203. Além disso, consta nos Relatórios da Presidência que foram ministradas, gratuitamente pelo diretor, aulas de francês desde 1878. As cadeiras de “chimica” e “physica”, pouco citadas em relatórios, mas previstas na lei e nos regimentos, durante o período estudado, não tiveram classes correspondentes204. Desde 1874, se discutia o interesse por adicionar aulas de “Gymnastica”, considerada boa para a saúde e disciplina dos educandos: A carência de educação phísica em uma casa como o instituto, d’onde não podem alunos sahir, ainda nas horas vagas, sendo obrigados a manter um regime uniforme e sempre em uma area circumscripta, é um grande mal que convém ser de prompto reparado205.

Todavia, só passa a funcionar na segunda metade da década de 1880, já que, em 1886, é publicado no Jornal A Constituição que o professor dessa disciplina foi nomeado para o conselho. O ensino profissional era voltado à formação de mão de obra qualificada para atividades da esfera urbana, e tinha como critério de divisão dos educandos a “vocação”. Entende-se que se observava em que modalidade de ofício o 203 Jornal do Pará: 30/12/1873 - Pág. 02; 30/12/ 1874 - pág. 02; 04/01/1876 - Pág. 03; 27/10/1876 Pág. 02; 12/10/1877. Pág. 02; 09/10/1878 pág. 02; O Liberal do Pará, Nº2298, 10/10/1879. Pág.01. 204 Relatório de José da Gama Malcher, vice-presidente, passando a administração da província para João Capistrano Bandeira de Mello Filho, em 9 de março 1878.

205 Relatório apresentado ao exm. senr. Dr. Francisco Maria Corrêa de Sá e Benevides pelo exm. Sr. Dr. Pedro Vicente de Azevedo, por occasião de passar-lhe a administração da provincia do Pará, no dia 17 de janeiro de 1875. Pará, [Typ. de F.C. Rhossard], 1875.

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aluno possuía maiores habilidades, para então escalá-lo na oficina condizente. Como o método de aprendizagem na prática, os educandos produziam nas oficinas bens manufaturados, que, posteriormente, seriam vendidos. A venda desse resultado das oficinas deveria ser a principal atividade de geração de renda do IPEA206. As despesas do Instituto eram todas cobertas pelo tesouro provincial, tais como gêneros alimentícios, fármacos, manutenção, ornamento dos funcionários, etc. Não era diferente com as matérias-primas utilizadas nas oficinas ou o pagamento dos mestres que ali ensinavam. Ainda assim, os maiores clientes das oficinas eram órgãos oficiais: corpo de polícia, corpo de bombeiros, escolas públicas, repartições e, principalmente, o próprio Instituto. Este fornecia fardamentos, móveis e utensílios no geral; as encomendas de particulares e escolas privadas existiam, mas não eram tão expressivas207. As primeiras oficinas ofertadas foram as de carpina, funileiro, serralheiro, ferreiro e marceneiro. A partir do novo regulamento aprovado pela lei n° 781 de setembro 1873, foram adicionadas as de alfaiate, sapateiro, latoeiro, torneiro e fundidor208. Entretanto, apenas duas dessas últimas foram colocadas em funcionamento, a de torneiro, anexada à de marcenaria, e a de alfaiate. O Instituto possuía vários problemas estruturais e pouco espaço para abrigar os educandos. A precariedade dos cômodos, descritos em 1884 pelo vice-presidente da província, era muito grande, ao seu ver. Ele afirmou que o prédio do IPEA havia “Alcançando estado de ruína”. O grave problema das instalações da enfermaria, dos banheiros, oficinas, alojamentos e etc. só se agravou ao longo da década de 1870 e 1880, sendo relatado em quase todos os relatórios da presidência nesse período a necessidade de reformas. O prédio adquirido pelo presidente Abel Graça, em 1872, era uma antiga residência, pertencente ao comendador Pimenta Bueno, projetada para moradia de uma família, com luxos e espaço de sobra. Entretanto, para os números elevados de

206 Esta discussão é tema frequente nos relatórios da presidência da província durante as décadas de 1870 e 1880. 207 RIZZINI, Irma. O cidadão polido e o Selvagem bruto. op. cit

208 MACIEL, Elisane Gomes. Preparando o futuro. Instituto de Educandos Artífices Paraense (1870-1889).Opcit.


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educandos que o IPEA possuía, e que crescia cada vez mais, não possuía condições satisfatórias para abrigá-los209. Ainda nesse mesmo ano, o jornal O Liberal do Pará ocupa quase toda a primeira página somente para denunciar as atitudes do presidente Abel, fazendo uma crítica ao uso indevido do tesouro provincial. Segundo a denúncia, a casa, que saiu a um valor de 60:000$000 réis, foi adquirida durante um período em que a Assembleia Provincial alegava déficit, pois, segundo Abel Graça, a construção de um prédio seria duas vezes mais cara. Quanto a isso, o periódico dizia: Não duvidamos que assim acontecesse, attenta a maneira pelo qual se fazem, entre nós actualmente, as obras do governo; mas também é fora de duvida, mas também é fora de duvida que o predio comprado pelo Sr. Abel é uma casa de luxo, e como esta não se presta para o estabelecimento q’é destinada, visto q’para dar-se lhe as devidas accomodações será necessário despender não poucas dezenas de contos de réis. Além d’isso não há quem ignore, nesta capital, o fim que teve em vista o Dr. Abel, comprando a casa do commendador Pimenta Bueno, foi pagar certos favores que lhe deve a dos quais se quer remir às custas dos cofres da província (...)210.

Nesse mesmo ano, um parecer do inspetor do tesouro provincial estimava que as obras, que deviam ter sido feitas para a ampliação de inúmeros cômodos e alguns ajustes para a estrutura acomodar as oficinas, sairiam pela quantia de 5:466$840 réis211, mas foram suspensas sob alegação de falta de recursos nos cofres da Província. A casa continuou possuindo estrutura não condizente aos fins do estabelecimento, e, com o exponencial aumento do número de educandos que a lei determinava, o espaço ficava cada vez mais impróprio para abrigar todos e suas atividades. Era preciso que houvesse uma grande reforma, como sugeriram vários presidentes da Província em relatórios. 209 Relatório apresentado à Assembleia Legislativa Provincial na primeira sessão da 18.a legislatura, em 15 de fevereiro de 1872, pelo presidente da Província Abel Graça, Typ. do Diário do GramPará, 1872. 210 O Liberal do Pará, Nº17, Belém/PA, 23/01/1872. Pág. 01.

211 Jornal do Pará Orgão oficial. Nº143, Belém/PA, 28/06/1872. Pág.02.

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Apesar dos inúmeros apelos da presidência e de algumas denúncias da imprensa, a Assembleia Provincial, por muito tempo, se recusou a fornecer o ordenado necessário para as obras, alegando que os cofres da província não estavam em boas condições para gastos. Em dezembro de 1882, “O Liberal do Pará” publica um artigo em crítica à Assembleia, que mostra, aos olhos de uma oposição, as ações da assembleia em relação à reforma do Instituto: Continuamos a tarefa que nos impuzemos de chamar a attenção publica para os heroicos feittos da assembléia provincial. Occupemos-nos ainda uma vez com a instrucção publica que tantos golpes sofreo na maioria concervadora da assembléia: Se considerarmos o que foi feito para o Instituto de educandos artífices, vemos que não foi votado um seitil para melhoramento do edificio, que carece de oficinas largas e arejadas, de comodo para os educando e de aumento dos dormitorios para outros, que esperam vagas sem poderem ser admittidos pelo estabelecimento212.

Percebemos que essa atitude da assembleia é recorrente desde a segunda metade da década de 1870, quando os primeiros problemas de estrutura começam a aparecer. Em 1876, o corte nas verbas chegou a tal ponto, que todas as oficinas foram suspensas, alegando dificuldade para obter matéria-prima, pagamento dos mestres e de dívidas pendentes do Instituto, pela falta de recursos213. Assim, também, dispensou-se os educandos para passar férias com a família; apesar de alguns permanecerem nas dependências, também houve economia com a alimentação no período. Ocasionados ou não pelas más condições do prédio do Instituto, durante o período estudado, três alunos faleceram enquanto estavam internados na casa. Infelizmente, não foi encontrado nenhum registro da estatística médica do estabelecimento, porém, os obituários dos educandos Albino José Pereira e Francisco Salles de Miranda indicam óbitos por febres intermitentes. Existem outros registros de educandos enfermos, contudo, sem especificar as

212 O Liberal, S/Nº. Belém/PA, 01/02/1882. Pág. 01.

213 Jornal do Pará. Nº239, Belém/PA, 22/10/1876. Pág. 02.


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enfermidades, como o pedido de licença para educando Francisco Vasconcellos tratar enfermidade214. A situação complicava-se cada vez mais em relação à verba dedicada ao Instituto, chegando ao ponto de a Assembleia pensar em fechar as portas do estabelecimento. Nas páginas do jornal “A Constituição”, que antes defendera de forma contundente a administração provincial contra os ataques do jornal opositor “A Província”, agora a colocava em dúvida, haja vista que custava 60 contos de réis anuais para a Província e “Pelo seu fim pela sua lei de creação tem, depois de certo tempo, de ser mantido à sua custa, com rendas suas peculiáre; vão-se já 5 longos annos e não concorre talvez o quinto da dispeza”215. Não havia periódico que concordasse com o fechamento, todos reconheciam sua importância de formar artistas hábeis e morigerados, porém, tampouco estavam satisfeitos com o trabalho ali realizado, pois o próprio jornal A Constituição chamava a atenção para a não existência de um mísero educando formado216. O pedido pelas obras só foi acatado e colocado em prática na década de 80, e por etapas: primeiro a enfermaria, depois as oficinas e, por último, o prédio principal. Contudo, o Instituto se muda no início do século XX. Não obtivemos, assim, informações sobre conclusão das obras. O bom funcionamento das oficinas estava intimamente ligado ao despacho de recursos do tesouro provincial. Assim, todas essas questões de cortes ou de investimento interferiam no rendimento das oficinas. Apesar de todos esses entraves, somente nos últimos meses de 76 todas as oficinas pararam de funcionar.

II – Disciplina e desligamento: Sendo uma instituição que tinha, entre seus principais preceitos, a propagação da moral cristã e da “civilidade” por meio da inoculação de hábitos considerados condizentes com a moralidade em jovens cuja personalidade estava 214 A Constituição, Nº ilegível, Belém/PA, 11/04/1877. Pág.03.; Ofícios do diretor do Instituto Paraense de Educandos Artífices – 1879-1881. RIZZINI, Irma. O cidadão polido e o Selvagem bruto. Opcit; ARAUJO, Sonia Maria da Silva; BARBOSA, Anderson Carlos Elias. Instituto Paraense de Educandos Artifices: um recurso para a formação do cidadão morigerado na Belém da Belle Époque. In: Revista Educação e Emancipação, São Luís/ MA, v.5, n.2, jul/dez. 2012 215 A Constituição. Nº187. Belém/PA, 21/08/1876. Pág.01. 216 Idem.

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em desenvolvimento217, o IPEA possuía um programa de controle rígido das atividades dos seus alunos e um sistema de recompensas e punições igualmente severo. Ou seja, para cumprir um de seus objetivos principais, que era a formação de trabalhadores dóceis, ordeiros e conformados com sua condição, que possuíssem as “virtudes” de um cidadão morigerado que tem amor ao seu trabalho, o Instituto contava com um método rigoroso para disciplinar seus alunos. Segundo o filósofo Michel Foucault, a disciplina é um importante dispositivo, e tem como principal função o controle de corpos e mentes dos sujeitos. Esse método tem como objetivo impor a sujeição constante das forças do indivíduo, impondo, assim, uma relação de cultivo da docilidade na pessoa para a qual a disciplina é aplicada. Na perspectiva desse filósofo, o controle do tempo dos sujeitos, visando à construção de uma programação que priorize unicamente os objetivos desejados, é um instrumento indispensável. A ideia é empregar “bem” o tempo, tendo como base o princípio de não ociosidade218. Assim como na maioria das escolas com a condição de internato, as medidas disciplinares começavam a partir do controle preciso das atividades de acordo com o horário, previsto pelos Artigos 24 a 29 do Regulamento de 1873, ou seja, o controle e divisão tempo dos alunos, esquematizado no quadro a seguir: Quadro 2: Itinerário de segunda a sábado alunos do IPEA HORÁRIO 5h 5h15 6h – 8h 7h – 8h 8h – 9h

ATIVIDADE Despertar; vestir; seguir em fila, acompanhados pelo diretor até a capela para oração. Limpeza dos alojamentos; banhos; revista geral (asseio) e café.

Aulas de 1ª letras; 1ª cadeira do 1º ano e 2º cadeira do 2º ano do curso teórico (classes separadas). Trabalho nas oficinas (alunos avançados). Almoço e descanso.

217 RIZZINI, Irma. O cidadão polido e o Selvagem bruto. Opcit; ARAUJO, Sonia Maria da Silva; BARBOSA, Anderson Carlos Elias. Instituto Paraense de Educandos Artífices. Opcit. 218 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Tradução de Raquel Ramalhete. 41. ed. Petrópolis: Vozes, 2013. P.148 _______. A verdade e as formas jurídicas (Traduzido por Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardins Morais). Rio de Janeiro: Nau, 2001. p.108


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9h – 11h 11h – 16h 16h – 18h 18h – 19h 19h – 21h

2ª cadeira de 1º ano de curso teórico; 1ª cadeira do 2º ano do curso teórico; oficinas para quem não frequentar estas turmas. Trabalho nas oficinas para todos.

Aula de música, ensaio da banda e trabalho nas oficinas. Banhos, oração e recreio.

Ceia; estudos em comum; oração; recolhimento nos dormitórios; silêncio.

Fonte: Colleção das leis da província do Gram-Pará. Tomo XXXV 1873. Pará. Typ do Diário do Gram-Pará.

Aos domingos e dias de festejos religiosos, os educandos seriam levados para assistir uma missa externa, em igreja designada pelo diretor, aula de “doutrina Christã” após o almoço e a revista e passeios, atividades físicas ou militares219. Os educandos eram responsáveis pela limpeza do edifício e ficavam, de acordo com texto do regimento, sob constante vigília e inspeção. Não lhes era permitido deixar as dependências do Instituto, e se fosse por ordem ou licença da direção, só a poderiam fazer devidamente uniformizado220. A interação com o público geral também era cerceada pelo regimento, e, devido a essa preocupação, as atividades da banda foram ao longo da década de 1880 diminuídas, pois os educandos ficavam, muitas vezes, “expostos a más companhias” nessas ocasiões221. A obediência era a principal obrigação dos educandos, sendo as palavras-chave do regimento “respeito, promptidão e obediencia militar”222, o desrespeito a essas normas implicavam em punição direta. A metodologia de punições e recompensas também era utilizada como meio disciplinar. As penalidades previstas no artigo 35 correspondiam a práticas pedagógicas que visavam repreender alunos que transgredissem as normas impostas, e, também, por meio de punições públicas e de rebaixamento, “dar o exemplo”, para evitar que outros cometessem as mesmas infrações. Nesse momento, remetemo-nos ao estilo do modelo panóptico do jurista utilitarista Jeremy Betham, que, dentre 219 Colleção das leis da província do Gram-Pará. Tomo XXXV 1873. Pará. Typ do Diário do Gram-Pará. 220 Idem.

221 O Liberal do Pará, Nº193, Belém/PA, 27/08/1885. Pág.01.

222 Colleção das leis da província do Gram-Pará. Tomo XXXV 1873. Pará. Typ do Diário do Gram-Pará.

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suas características, a constante vigília e a punição pública era o ponto-chave de seu modelo, pensado para espaços de confinamento223. Assim, as punições variavam entre repreensão particular, pública, exclusão dos horários de lazer, trabalhos militares extras, privação alimentar, “serviços vexatórios”, aprisionamento no “xadrez da casa” ou, até mesmo, o desligamento e a perda do direito ao pecúlio. Entretanto, a prática de castigo físico não era consenso nesse período, pois, segundo Carlos Barbosa, o jornal A constituição anunciava que o presidente da província havia sido informado sobre o uso de castigo físico pelos mestres das oficinas, durante o ano de 1886, e que o mesmo pedia para que o diretor do Instituto averiguasse a situação para encerrá-la224. As recompensas eram apresentadas em forma de premiações, para destacar o bom comportamento e empenho dos alunos que mais se sobressaíram nas atividades, disciplinas e oficinas ofertadas no estabelecimento. As modalidades eram capacidade intelectual, moral e industrial; e as normas para essa premiação, ainda segundo Barbosa, eram: Os prêmios por capacidade intelectual eram resultado da avaliação de aproveitamento dos alunos feita pelos professores nas aulas ofertadas, ou na chamada parte teórica. O prêmio por capacidade moral resultava da observação da conduta do educando no dia a dia, de sua morigerância. Para escolher o educando que receberia esse prêmio, era formado um júri composto pelo agente, pelo escriturário e pelo almoxarife do estabelecimento. Já o reconhecimento por capacidade industrial relacionava-se à perícia apresentada por um educando na manufatura dos diferentes produtos 223 CESAR, Tiago da Silva. “Estado, sociedade e o nascimento da prisão na América Latina”. In: MÉTIS: história & cultura. v. 12, n. 23, jan./dez. 2001; FACEIRA, Lobelia da Silva. “Punição e tratamento: as faces contraditórias do sistema penitenciário brasileiro”. In: [SYN]THESIS: Cadernos do Centro de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, vol.8, nº 1, 2015. P.127 -137; MANTOVANI, Rafael. “A prisão em São Paulo na primeira metade do século XIX: demandas sociais, atores e contradições”. In: Rev. hist. (São Paulo), n. 177, a00817, 2018; MULGAN, Tim. Utilitarismo. Tradução de Fabio Creder. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 2012; OLIVEIRA, Fernanda Amaral de. Os modelos penitenciários no século XIX. In: Anais do Seminário Nacional de História da Historiografia: historiografia brasileira e modernidade, ocorrido na cidade de Mariana – MG entre os dias 01 a 03 de agosto de 2007; TRINDADE, Cláudia Moraes. “O nascimento de uma penitenciária: os primeiros presos da Casa de Prisão com Trabalho da Bahia (1860-1865)”. In: Tempo [online]. 2011, vol.16, n.30, pp.167-196. ISSN 1413-7704. 224 ARAUJO, Sonia Maria da Silva; BARBOSA, Anderson Carlos Elias. Instituto Paraense de Educandos Artífices. Opcit.P.50.


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ensinados pelos mestres nas oficinas. A qualidade do trabalho concluído e um conjunto de características observadas, como o cuidado com os acabamentos, eram critérios que os mestres usavam para apontar os educandos mais habilidosos nos seus respectivos ofícios225.

Eram feitas através da entrega de medalhas e publicação dos nomes dos vencedores. Contudo, vale ressaltar que esse evento e, principalmente, sua divulgação nos jornais tinham como objetivo chamar a atenção dos leitores para o IPEA e apresentar os resultados iniciais, já que a instituição estava funcionando apenas há um ano pouco mais ou menos, em 1873. Os anúncios das premiações também apresentavam os produtos confeccionados e oferecidos pela instituição, até mesmo o preço das mercadorias poderia ser estimado graças a uma tabela de lucros contida no anúncio226. Além disso, representava uma forma de defender, por fim, a utilidade que aquele estabelecimento tinha para a Província, e, principalmente, não pesaria aos cofres provinciais227. As condições para o desligamento do Instituto Paraense de Educandos Artífices, segundo o Regulamento de 1873, estavam baseadas nos preceitos sanitaristas e disciplinares da instituição. Nesse sentido os motivos para desligamento do Instituto consistiam em: apresentar moléstia de qualquer natureza contagiosa ou incurável; mau comportamento e insubordinação que se julguem não haver “esperança de poder corrigir-se”, por falta de habilidade nas oficinas oferecidas no tempo máximo de três anos ou o meio “natural” do percurso do educando, o final do curso, “Depois de prompto na arte ou officio que se dedicou”228. Contudo, o desligamento não era assim tão simples no momento da certificação. Todos os alunos deviam terminar os cursos relativos à instrução primária e o curso teórico, contudo, era seu desempenho nas oficinas que iria definir sua classificação na hora de concluir e ganhar seu título, o que nem sempre 225 Idem. P.47.

226 Diário de Belém, Nº291, Belém/PA, 25/12/1873. Pág. 01

227 O Liberal do Pará, 14/01/1879. Nº10. Belém/PA, Pág.01.; Diário de Belém 14/01/1879. Nº10. Belém/PA pág.01; Jornal do Pará 19/03/1875. Nº63. Belém/PA, Pág.01; Jornal do Pará , 06/02/1877. Nº28. Belém/PA Pág.01; Diário de Belém. 25/12/1873. Nº291, Belém/PA, Pág.02; O Liberal do Pará.13/01/1880. Nº09. Belém/PA. Pág.01. 228 Colleção das leis da província do Gram-Pará. Tomo XXXV 1873. Pará. Typ do Diário do Gram-Pará.

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foi possível. No ano de 1880, agrava-se o problema dos jovens das primeiras turmas ainda permanecerem internados no IPEA para além do tempo previsto229. Dentre outros motivos, chama atenção o caso do jovem Francisco José Pantoja. Ele é referido pelo diretor do Instituto em ofício para a presidência da Província como um aluno que está 9 anos e meio no Instituto e que abnega absolutamente os estudos científicos, estando, assim, sem aproveitamento algum do curso teórico, apesar de já ser 1º oficial de sapateiro230. Francisco Pantoja não foi o único educando a se encontrar na situação de maior interno. Os ofícios de janeiro 1880 argumentavam que boa parte dos educandos maiores de idade estavam ali desde sua abertura, e não era conveniente que convivessem com os meninos de 7 anos que também viviam na instituição. O ofício trazia uma relação de 19 alunos, a maioria ingressantes nos três primeiros anos de funcionamento do IPEA, contava também a idade de alguns. Por fim, informava que a maioria deles já possuía título de 2º oficial em determinadas artes. Sendo assim, o diretor defendia que eles já poderiam trabalhar e estavam ocupando vagas de meninos desvalidos da capital231. Quadro 3: Educandos internos maiores de idade em 1880 1 2

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5 6

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NOMES:

IDADE:

Narciso Feliciano de Nazareth

Francisco Pantoja

Luiz Pedro d’Oliveira

José Cardoso Bahia

José A. Ferreira Guerra João Teixeira

Segisfredo Firmink

Libanio Maranhense da Silva Manoel Cardoso Bahia

Alberto Antonio Canto

Augusto Candido Roiz Campis

– –

19 anos 19 anos

229 O Liberal do Pará, Nº25, Belém/PA, 31/01/79. Pág.01; Ofício do diretor do Instituto Paraense de Educandos Artífices para o presidente da Província, 1880.

230 Ofício do diretor do Instituto Paraense de Educandos Artífices para o presidente da Província, 1880. 231 Idem.


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Guilherme Farias

20 anos

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Luiz Joaquim de Lyra Barros

18 anos

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Paulo Augusto Pfaender

18

Eugenio d’Assumpção Madureira

13 15

17

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Antônio Roiz dos Reis

Lino Augusto Pfaender João Manoel Pinto

Alfredo Guilherme de Miranda

Fonte: Ofícios do Diretor do IPEA para a presidência da província – 1880.

18 anos

19 anos

15 anos

18 anos – –

Apesar dos argumentos acerca das condições dos educandos maiores “ocupando espaço” que não lhe cabia mais, muitos dos pais e tutores desses 19 educandos fizeram pedido de desligamento, alegando que eles, já adultos, poderiam lhe servir de arrimo da família. Os textos das cartas com pedido de desligamento são quase iguais para todos os educandos que saíram por serem maiores ou por terminarem o curso. No momento da certificação, os que mostravam grande habilidade em apenas uma das oficinas eram qualificados como pertencentes a 1ª classe, estes obtinham o título de mestre/1º oficial da arte. Os que eram como 2ª classe possuíam habilidade em mais de um ofício, estes tinham direto a diploma de 2º oficial da arte e 3ª e 4ª os que possuíam mérito não apenas em mais de uma oficina, mas foram considerados aptos e aplicados, estes recebiam o título de construtores de primeira classe232. Todavia, no relatório de Domingos José da Cunha Junior, em dezembro de 1873, apresentado na ocasião de passagem da administração, as oficinas seriam divididas em classes, de acordo com a natureza da atividade desenvolvida. Sendo assim, a classificação seria: Official de 1ª classe. Trabalhos com obras de madeira, comprehendendo as officinas de marceneiro, carpina, esculptor torneiro, modelador. Official de 2.ª classe. Trabalhos em obras de ferro e de bronze, comprehendendo as officinas de ferreiro, torneiro de metal e serralheiro. 232 MACIEL GOMES, Elisane. Preparando o futuro. Instituto de Educandos Artífices Paraense (1870-1889). Belém: UFPA. Monografia de graduação, 1998. Pág. 24.

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Official de 3ª classe. Trabalhos de fundição, comprehendendo as officinas do mesmo nome, as de caldeireiro de cobre e de ferro, e soldador. Official de 4ª classe. Trabalhos em obras de metaes em folhas, compreehndendo as oficinas de latoeiro e de funileiro. Official de 5ª classe. Trabalhos em obras de pelles. comprehendendo as officinas de sapateiro, coureiro, surrador e curtidor. Official de 6ª classe. Alfaiate233.

A maioria dos educandos das turmas de 1872 a 1875 conseguiu o título de oficial, mas não foram encontradas referências que confirmassem dentro de qual dos dois sistemas apresentados. A revelia dessas diferenças de titulação, consta, neste mesmo regulamento supracitado, que, terminado o período de ensino e aprendizado, os educandos ainda teriam de trabalhar por três anos nas oficinas, a fim de continuarem produzindo obras que auxiliassem no sustento da instituição e alimentassem a demanda, como principais consumidores que eram, das repartições e dos órgãos de caráter público. Existia toda uma preocupação com essa questão do trabalho do aluno que estava formando, para que continuasse por um tempo produzindo para o Instituto, se utilizando de toda técnica e habilidade que a experiência nas oficinas lhe conferiu; mas não somente os “formandos” foram compelidos a essa regra. Foi criada a condição de aluno externo, por volta de 1878, para que os educandos com mais de 18 anos deixassem de morar na instituição. Contudo, eles deveriam “Assignar um termo no qual declarem, que se obrigam à conserva-los trabalhando no instituto durante o praso marcado por v. exc. Assim, pois, não só contamos já com esses officiaes, como também nas vagas d’estes podem entrar novos”234, visto ser alta a demanda para matrícula e as instalações do IPEA não ter condições de abrigar a todos. Todos os pedidos – entenda-se de iniciativa dos pais dos educandos ou deles – de desligamento eram por meio de solicitação à Assembleia Provincial, 233 Relatório com que Domingos José da Cunha Junior passou a administração da província do Pará ao vice-presidente, Guilherme Francisco Cruz, em 31 de dezembro de 1873. 234 Província do Grão-Pará. Relatório IPEA, 1878, Annexo, p.IV.


Meninos desvalidos de Belém: educação e trabalho no Instituto Paraense de Educandos...

e estavam sujeitos ao pagamento de compensação pecuniário, uma espécie de indenização pelos gastos que a província teve com o aluno, resultando na sua não formação. Contudo, nenhum dos casos pesquisados parece ter precisado ressarcir a Província. Por fim, após seu desligamento total do Instituto, o educando poderia trabalhar por sua conta no mercado da cidade, que, segundo Bezerra Neto, possuía uma demanda crescente por esses produtos manufaturados que estavam habilitados a fazer235. Durante a pesquisa, foi possível fazer um perfil dos educandos egressos do IPEA que ingressaram no começo da década de 1870 e foram considerados externos ou desligados entre 1879 a 1880, traçando sua trajetória com a metodologia da prosopografia, que geralmente é utilizada para biografar personalidades históricas, como políticos, militares de alta patente, intelectuais e membros da elite. Ou seja, pessoas que tiveram oportunidade de produzir suas próprias fontes. Para esses meninos desvalidos, não seria possível fazer uma biografia que se reconstitui suas relações sociais e familiares, ou posicionamentos políticos ideológicos, porém, na prosopografia de grupos populares, é comum que as informações mais consistentes sejam relativas ao mundo do trabalho, levando, principalmente, em consideração que o marcador inicial que torna esses indivíduos em um grupo conciso é a condição de artífice. Assim, para esse grupo, foi possível perceber tendências de atuação profissional através de extensa pesquisa nominativa nos periódicos da capital paraense disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, para as décadas de 1880 a 1890. Também foi realizada consulta aos alistamentos eleitorais de 1892 e 1898, os quais foram fonte riquíssima para não apenas observar essas tendências, mas, também, o acesso ao nome completo dos indivíduos, além da idade, ocupação e endereço, tornando mais fácil o reconhecimento dos egressos IPEA.

Considerações finais: Privilegiando informações a respeito da dimensão regimental do Instituto Paraense de Educandos Artífices, o presente artigo desvelou parte do processo 235 BEZERRA NETO, José Maia. As oficinas do trabalho: representações sociais, institutos e ensino artístico no Pará (1830/1888). Ver a educação, Belém, v.2, n.1, p.41 – 70, jan/jun, 1996.

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ao qual esses e vários outros meninos desvalidos foram submetidos no período em que residiram naquele internato. Sem dúvida, o Instituto representou um ponto importante na trajetória desses rapazes, dando-lhes perspectivas profissionais que somente a educação institucionalizada poderia oferecer naquele momento, e ainda os localizando na categoria de artífices, o que, nas décadas seguintes, viriam ter envolvimento na vida política do Estado, durante a República. O IPEA também marcou a capital do Pará, passando a se chamar Instituto Lauro Sodré em 1897. O legado da escola profissional esteve na memória de muitos belenenses através do século XX, como uma rápida busca pelos jornais do período na Hemeroteca Digital pode apontar. Ainda em funcionamento, o Instituto Lauro Sodré atualmente é uma escola pública com Ensino Fundamental e Médio regular, atendendo ainda um elevado número de meninos e meninas paraenses. Como esperado, a maioria dos ex-educandos que acompanhamos até aqui permaneceu atuando como artífices, e alguns conseguiram abrir suas próprias oficinas, como Bernardino Rodrigues Roiz de Oliveira e Narciso Ferreira Borges. Chama a atenção o alto percentual de educandos atuando em serviços públicos, como o corpo de polícia ou sendo funcionários da Alfandega e da Recebedoria do tesouro. Vale ressaltar que só foi possível encontrar os rastros da vida adulta de 30 educandos de um grupo inicial de 73, porém, não é tarefa menos importante dar voz a indivíduos que por muito tempo passaram despercebidos, quase invisíveis na história, mesmo que não seja possível par


CAPÍTULO 5

LIVROS ESCOLARES VOLTADOS À EDUCAÇÃO DA INFÂNCIA PARAENSE (1890-1920)

Wanessa Carla Rodrigues Cardoso

Resumo: Este trabalho tem como intento analisar dois importantes livros escolares voltados a educação pátria da infância paraense no período de 1890 a 1920. Os livros de leitura “Alma e Coração” (1900; 1905), obra de Hygino Amanajás e “Mosaico Infantil”, de Virgilio Cardoso de Oliveira (1905; 1907; 1911), foram aprovados e adotados pelo Conselho Superior de Instrução Pública, circulando entre alunos e professores dos Grupos Escolares e Escolas Isoladas do Estado do Pará. As crianças passam a ser alvo das políticas republicanas, sendo crescente a preocupação em disciplinar modos e hábitos da população, particularmente da infância, através da educação, da escola, do ensino primário e dos Livros Escolares. A literatura escolar abordava temas considerados úteis a educação infantil, tais como cívico-morais, o ensino da língua, da geografia e história pátria, com o intuito de preparar o aluno/cidadão leitor republicano. Livros como “Alma e Coração” e “Mosaico Infantil” foram publicados para atender essa crescente demanda da escola e do ensino primário por livros de leitura, considerados mais adequados a formação da infância, de cunho nacionalista que despertando um amor abnegado pela pátria, pelo trabalho e pela família, e a apreensão de normas comportamentais e de civilidade condizente com o projeto educacional republicano em curso. Palavras- chave: Manuais escolares, Educação Republicana, História da Infância


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Julgava vir encontrar uma escola como me descreveste as do vosso tempo. Meninos agglomerados, sem ordem assentados em bancos grosseiros, em uma sala asphixiante, com o semblante denotando cansaço e tédio, e no fundo a figura do mestre, ríspido, temeroso, ameaçador, com a palmatória em punho!... Ao contrario d´isto encontro uma sala espaçosa, arejada, com elegantes carteiras, bem dispostas, os meninos satisfeitos, o mestre com aspecto risonho e amável, e a sua banca coberta de flores!236

O

trecho acima foi extraído do livro de leitura “Alma e Coração”, obra de Hygino Amanajás. Fragmento de uma das inúmeras correspondências entre a mãe Angelina e o garoto Ernesto, que retrata aspecto da vida escolar de Belém no final do XIX e início do XX. Ernesto compara sua escola na capital paraense com a escola descrita por sua mãe, com “meninos agglomerados”, com “bancos grosseiros”, “sala asfixiante”, mestres imputando castigos corporais, alunos com aspecto de “cansaço e tédio” ao sistema escolar – tudo isso remete aos tempos do Império. Por outro lado, Ernesto relata para a mãe o encantamento do primeiro dia de aula, descrevendo a escola da capital como uma instituição modernizada, acolhedora, ampla e higienizada, com “meninos satisfeitos” e “professor amável”, com amplo espaço de leitura, sem castigos corporais, e que se contrapunha à escola de outrora. As representações feitas por Amanajás, da escola republicana paraense, mesmo não se passando em um grupo escolar, remetem-nos a um ambiente ideal de aprendizagem, condizente com a pedagogia moderna e com a divisão, organização e uniformização do ensino. Tal ambiente, conforme veremos ao longo deste artigo, nem sempre será aquele encontrado nas escolas paraenses, no período estudado. Pela perspectiva de ensino desse contexto, esperava-se o uso de um único livro escolar para cada saber/disciplina, e que em cada lição ou prelação do professor fossem exaltados os valores pátrios e a história da pátria. A escola tinha um caráter regenerador da sociedade, bem como os livros. A íntima relação entre República e instrução iria superar a degradação e mazelas herdadas de nossa origem colonial, e os vícios e defeitos da mestiçagem 236 AMANAJÁS, Hygino. Alma e Coração. Belém: Typ. da Imprensa Oficial,1905. P.16.


Livros Escolares Voltados à Educação da Infância Paraense (1890-1920)

do povo brasileiro, através da aprendizagem do gosto pela cultura civilizada e de valores cívico-morais237. Em relatório de 1891, feito para a Diretoria de Instrução Pública do Estado do Pará, José Veríssimo afirma: “Estou profundamente convencido que o único meio que temos de corrigir-nos de vícios e defeitos que nos degradam e prejudicam é termos coragem de afrontar com os males públicos reconhece-los e profliga-los”238. Quando do advento da República no Pará, Belém vivia um intenso processo de modernização, graças aos proventos da economia gomífera, que provocaram enormes transformações em sua fisionomia urbana, alicerçados nas ideias de progresso e civilização. O remodelamento da cidade pressupunha também remodelar os hábitos de sua gente, o que se tornava um desafio e um empecilho para as autoridades, graças ao crescimento urbano, de concretização do projeto modernizador. A população se impunha nos espaços ordenados e saneados para a elite, estabelecendo, através de tentativas de se inserir no mundo do trabalho, relações de sociabilidade diversas e uma composição social heterogênea239. Segundo Sarges e Lacerda, era imperiosa a necessidade de se criar uma moral educadora, através de políticas de vigilância e da criação de um código de posturas, na tentativa de disciplinar os modos da população, polir os costumes que perpassavam pela forma de falar e se portar no espaço público as medidas higienizadoras e de controle sanitário de trabalhadores e estabelecimentos comerciais240. No espaço da cidade, onde circulavam ideias e pessoas de todas as classes sociais, também foram disseminados a escola, a escrita, a imprensa e o livro. É nesse contexto que a educação, a instrução, a escola e a literatura escolar passam a ter uma importância capital, e que se difunde a crença de que a escolarização dos indivíduos é geradora de bons costumes, civilidade, progresso, modernização e mudança social.

237 VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 3ª ed. Porto Alegre: Mercado Aberto,1985.

238 VERÍSSIMO, José. A Instrução Pública do Estado do Pará: Relatório de 1890. Belém: Typ. De Tavares Cardoso e Comp., 1891. p.71. 239 SARGES, Maria de Nazaré. Belém: riquezas produzindo a belle-époque (1870-1912). 3ª Edição. Belém: Paka-Tatu, 2010.

240 SARGES, Maria de Nazaré; LACERDA, Franciane Gama. A cidade e a Floresta: Urbanização e Trabalho no Pará (Finais do século XIX início do século XX). In: Os Oitocentos na Amazônia: Política, Trabalho e Cultura Org. Sarges & Ricci. Belém, Editora Açaí, 2013.

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A educação e a escola, para republicanos históricos como José Verissimo241, Justo Chermont, Lauro Sodré e Augusto Montenegro242, especialmente a escola primária, seriam instituições privilegiadas para moldar esse novo homem, capaz de operacionalizar o projeto civilizador de conformação e nacionalização do indivíduo, e de regeneração e assimilação social, instituições sem as quais não haveria progresso nem civilidade243. Preocupados em operacionali241 José Verissimo Dias de Matos (1857- 1916), intelectual paraense da chamada geração de 70, de grande destaque no cenário intelectual nacional. Sócio fundador da Academia Brasileira de Letras, sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, José Veríssimo, com contribuições significativas em diversos campos, seja para a educação, literatura, jornalismo, a cultura e a política brasileira. “Trazia no lastro de suas ideias, que permeou a intelectualidade da geração de 1870, a influência do cientificismo europeu, reelaboradas e adaptadas à realidade nacional. Segundo essa geração, somente a educação intelectual e a confiança total no poder das ideias construiriam caminhos para o melhoramento de homens e mulheres, acelerando a marcha evolutiva do progresso e a constituição da nação brasileira”. CARDOSO, Wanessa Carla Rodrigues. “Alma e Coração”: o Instituto Histórico e Geográfico do Pará e a Constituição do Corpus Disciplinar da História Escolar no Pará Republicano (1900‐1920). 2013. Dissertação (Mestrado em Educação) – Belém: UFPA, 2013. p.45; BEZERRA NETO, José Maia. Os Males de nossa origem: O passado colonial através de José Veríssimo. In: Terra Matura: Historiografia e História social na Amazônia. Org. José Maia Neto, Décio Guzmán-Belém: Paka-Tatu, 2002; MORAES, Felipe Tavares de. José Veríssimo (1857-1916), intelectual amazônico: geração 1870 e a educação no Grão-Pará (18771891). 2018. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. 242 Justo Pereira Leite Chermont (1857- 1926), Lauro Nina Sodré e Silva (1858-1944) e Augusto Montenegro (1867- 1915), republicanos históricos que se agregaram em torno do Clube Republicano do Pará, criado no ano de 1886 e considerado o primeiro embrião do republicanismo no norte do país, passando a divulgar suas ideias através do jornal A República, “Instrumento por excelência da doutrinação republicana no Pará”. COELHO, Geraldo Mártires. No Coração do Povo: O monumento da República em Belém. Belém: Paka-Tatu, 2002. p. 37. Justo Chermont fez seus estudos iniciais no Liceu Paraense e formou-se em Direito pela Faculdade do Recife, foi deputado provincial em 1880, e nomeado provisoriamente para assumir o poder no Pará no período de 1889 a 1891. Lauro Sodré iniciou seus estudos no Liceu Paraense e posteriormente ingressou como cadete na Escola Militar da Praia Vermelha, Rio de Janeiro. Assumiu o Governo do Pará por duas vezes no período de 1891-1897 e de 1917 a 1921. “Apoiado em Littré, e Comte, Sodré defendia que a instrução pública, era o principal dever do estado no sentido de garantir a democracia. O ensino público gratuito seria talvez o maior benefício a serviço da liberdade, que deveria começar pela liberdade de consciência”. FARIAS, William Gaia. A Construção da República no Pará. Belém: Açaí, 2016.p.90. Augusto Montenegro, magistrado, diplomata e político paraense, bacharelou-se em ciências jurídicas e sociais pela Faculdade de Direito do Recife em 1889, eleito deputado federal pelo Pará em 1892, em 1901 assume o governo do Pará, reeleito permanece no poder até 1909. MATTOSO, Ernesto. O Dr. Augusto Montenegro: sua vida e seu governo. Paris: T. Dussieux Éditeur,1908.

243 GONDRA, J. G. Artes de civilizar: medicina, higiene e educação escolar na Corte imperial. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2004; GOMES, Ângela de Castro. A escola republicana: entre luzes e sombras. In: GOMES, Ângela de Castro; PANDOLFI, Dulce Chaves; ALBERTI, Verena, et. al. A República no Brasil. (Coord). Rio de Janeiro: Nóvoa Fronteira: CPDOC, 2002.


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zar o projeto educacional republicano, esses homens passaram a reorganizar e ampliar o ensino primário, movimento que acontece na grande maioria dos estados brasileiros nesse contexto, tendo os princípios da pedagogia moderna como base, e tendo São Paulo na vanguarda desse processo, com a organização das escolas seriadas, classes homogêneas, criação de grupos escolares e o uso do método intuitivo. A Escola-modelo paulista passa a ser referência, exemplo a ser disseminado para as demais escolas primárias republicanas, como signo do progresso e da modernidade pretendida, “Instituição que deveria ser o “coração do estado”, revelar-se-ia, “Aos olhos dos futuros professores, o mundo novo pra eles do ensino intuititvo”. (...) que estariam em constante aperfeiçoamento na Alemanha, na Suíça e nos Estados Unidos, era a base do ensino moderno”244. Havia, no entanto, um debate entre políticos e intelectuais sobre a pertinência ou a não obrigatoriedade do ensino, que permeavam as revistas pedagógicas e o legislativo paraense, vendo-as como necessárias para a ampliação da Instrução Pública no estado, e outros como um empecilho a esse processo. A obrigatoriedade do ensino foi instituída no primeiro regulamento republicano de 1890, e retirada da legislação educacional através do Regulamento da Instrução Pública de 13 de julho de 1891, no governo de Lauro Sodré245. Vilhena Alves, renomado escritor e poeta, estava entre os intelectuais que se posicionavam contra a obrigatoriedade do ensino. Discorrendo sobre a Instrução Pública, o autor de Selecta Litterária demonstra, através dos números do censo escolar, a disparidade entre as matrículas e a efetiva frequência dos alunos às aulas246. Para além do abandono escolar, havia uma população considerável em idade escolar que nunca sequer havia se matriculado. Segundo o autor, o número de alunos que abandonavam a vida escolar demonstrava a ineficiência da escola, as dificuldades de inspeção, de fiscalização dessas instituições no território paraense, com uma população pequena em um vasto território; o fato de ferir os princípios de liberdade pela coação dos pais tornava a obrigatoriedade “inexequível” e “inútil”: “Somos contra a 244 CARVALHO, Marta Maria Chagas de. A escola e a república e outros ensaios. Bragança Paulista: EDUSF, 2003.p.25.; CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Reformas da Instrução Pública. In: 500 Anos d e Educação no Brasil/org: Eliane Teixeira, Luciano Filho, Cynthia Veiga- 5ª edição. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. 245 Revista de Educação e Ensino. Belém: Typ. de Tavares Cardoso. n.7, v.5, jul. 1895.p.50.

246 ALVES, Francisco Ferreira de Vilhena. Miscellanea litteraria: coleção de artigos. Belém, PA: R. L. Bittencourt, [18--?].

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obrigatoriedade (...) porque fere a liberdade individual; porque torna-se, de maneira geral, instrumento de perseguição no interior do estado”247. No trecho citado, o autor refere-se à ação policial, particularmente no interior do estado, pela frequente ausência de autoridades escolares de inspeção no cumprimento da lei da obrigatoriedade, constrangendo e coagindo a população. Para o autor, era necessário convencer “as massas” dos benefícios da escola. A coação e a força afastariam as “classes menos ilustradas” da instrução: Já se vê que, não estando ainda o espírito público covenientemente educado, não se pode esperar que tão de repente abandone os antigos hábitos. É preciso ir operando lentamente essa metamorfose, não só pela doutrinação dos princípios liberais como substituindo ou suprimindo as antigas molas dos governos, tirando os agentes da autoridade todo o pretexto de cometer abusos e excessos248.

A ideia de “redenção” da população pela instrução evidencia-se nas ponderações de Vilhena Alves sobre a obrigatoriedade do Ensino Primário. Entretanto, também indica a grande resistência da população ao processo de escolarização nos anos iniciais da república no Pará. Como incorporar novos hábitos e preceitos, políticos, sociais e culturais em população tão heterogênea e diversa, em uma sociedade recém-saída do regime de escravidão? Fazia-se um desafio. A grande dificuldade em deixar “antigos hábitos” aponta a distância e as tensões entre o projeto educacional republicano, as vivências da população e a Instrução Pública efetivada no estado. A escola seria o espaço da veiculação de saberes escolarizados, legitimados pela ciência, em contraposição aos saberes populares, considerados ilegítimos, vistos como sinônimo de ignorância e superstição, hábitos que seriam educados pela ação civilizatória da escola. Esta, como lugar de disciplinar os espíritos e os corpos, tiraria as crianças da ociosidade, do mundo do crime e da “vagabundagem”, contudo, as autoridades escolares reconheciam as dificuldades em atrair as crianças em idade escolar para dentro das escolas das vilas e municípios do estado. Isso pode ser exemplificado pelo relatório de recenciamento escolar de 1890, feito pelo professor Otavio Pires em um bairro da capital, como uma amostra do 247 Ibidem. p.149. 248 Ibidem. p.152.


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contingente da população “iletrada” no estado: “Das 473 crianças recenseadas, só 275 recebiam instrucção; 246 estavam entregues a vagabundagem e encaminhando-se desde tão tenra idade para o abismo do crime”249. Podemos perceber o aumento das preocupações dos agentes do estado com a disciplinarização das crianças empobrecidas através da instrução moral e preparação para o mundo do trabalho, à medida que crescem o número de crianças nas ruas, vistas como “vadios”, “vagabundos” e como uma ameaça à ordem pública. A obrigatoriedade do Ensino Primário foi instituída em junho de 1898, pela Lei nº 593, que previa “A obrigatoriedade escolar para populações que residirem nas cidades, villas e povoações dentro de um raio de um kilometro fora d’ellas”. Por esse decreto, a obrigatoriedade estava direcionada a meninas de seis a doze anos, e meninos de sete a quatorze anos. Alexandre Tavares250, em texto escrito em resposta a Augusto Olimpo, Diretor de Instrução Pública na administração de Paes de Carvalho, tece considerações a respeito da obrigatoriedade, que, para o ex-diretor, pela pobreza da população, se tornaria “inexequível” e “letra morta”. E no que diz respeito à obrigatoriedade para meninas a partir dos seis, considera inadequado tanto psicológica quanto pedagogicamente, por sua inferioridade intelectual, sendo mais apropriado aos meninos começarem mais cedo a idade escolar: “A razão e que a cerebração na representante do sexo frágil fazendo-se, regra geral, mais lenta e demoradamente do que no sexo forte, este, na mesma idade d’aquella, possue maior capacidade intelectual”251. É possível perceber que, no início do século XX, quando a resposta de Alexandre Tavares é publicada, a obrigatoriedade do Ensino Primário ainda é uma questão para políticos e intelectuais paraenses, bem como as interdições ou discursos restritivos quanto a educação das meninas, mesmo a feminização 249 ALVES, Francisco Ferreira de Vilhena. Op. Cit., p.160.

250 A “Brochura” escrita por Alexandre Tavares, diretor de instrução Pública de 1891 a 1897, inicialmente publicada no Jornal A República, feita em resposta a “coleção de leis e regulamentos, da reforma da instrução pública d´este estado, em 1900” escrita por Augusto Olympio de Araujo e Souza, contém as leis da instrução pública primária de 1891, 1897, 1899, esta últma contendo as reformas emprendidas por Olympio quando Diretor da Instrução Pública do Estado. Segundo Tavares, em pagina direcioonadas ao leitor, a publicação seria em respostas as “insjustas cusações” feitas por Augusto olympio a Alexandre Tavares e suas ações no governo de Huet de Bacellar (1891) e Lauro Sodré (1891-1897). TAVARES, Alexandre. A Instrução Pública em 1900 Prologo da coleção de leis e regulamentos do ensino público organizado pelo ex-diretor Augusto Olympio de Araujo e Souza, Pará, 1902. 251 Ibidem.p.65-66.

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do magistério sendo um fato nesse contexto no Pará, e os princípios da coeducação sejam defendidos enfaticamente por alguns intelectuais, como José Veríssimo252. Baseados na crença da inferioridade intelectual feminina, alegava-se que investimentos em sua educação e preparação para a vida social, pública, eram supérfluos, ao mesmo tempo em que crescem com a República as defesas de sua preparação para o magistério público, por sua natureza “dócil” e “educadora”, bem como a coeducação dos sexos e implementação de escolas mistas253. Entre as estratégias utilizadas para a manutenção de alunos e para convencer pais e comunidade em geral da importância das escolas, estavam as festas escolares. Esses festejos passaram a fazer parte do calendário escolar, seja em comemoração aos dias da pátria ou comemorações de aniversário de instalação dos grupos escolares, em que uma programação especifica, aprovada previamente pela Diretoria de Instrução Pública, era organizada pelo diretor da instituição e por professores, contando com a presença do alunado, pais e autoridades locais254. As festas, além dos ensinamentos pátrios, tornaram-se 252 Sobre o Pensamento Educacional de Veríssimo e o princípio da coeducação do ensino, ver: VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 3ª ed. Porto Alegre: Mercado Aberto,1985; FRANÇA, Maria do Perpétuo Socorro Gomes de Souza Avelino. José Veríssimo (1857-1916) e a Educação Brasileira Republicana: raízes da Renovação Escolar Conservadora / Maria do Perpétuo Socorro Gomes Souza Avelino França. – Campinas, SP: [s.n.], 2004; CARDOSO, Wanessa Carla Rodrigues; GUTIERRES, Damiana Valente Guimaraes. República, Educação Nacional e Formação Cívica, no Pensamento Educacional de Jose Veríssimo. In: Anais XII Encontro Maranhense de História da Educação/Intelectuais na História da Educação: Trajetórias, Espaços e Contextos. Universidade Federal do Maranhão – UFMA, 2019. Issn: 2236-397. Sobre a feminização do magistério no Pará, ver: FRANÇA, Maria do Perpétuo Socorro Gomes de Souza Avelino. Op. Cit.; CARDOSO, Wanessa Carla Rodrigues. Mulher, Educação e República no Pará no Virando Século. In: Anais do Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política / Schneider, Aimée. Porto, Portugal: Editora Cravo, 2021. ISBN: 978-989-9037-05-2. 253 A respeito da defesa da preparação feminina para atuação no magistério público por grupos de intelectuais republicanos, ver: Ibidem; ALMEIDA, Jane Soares de. Mulher e educação: a paixão pelo possível / Jane Soares de Almeida. São Paulo: Editora UNESP, 1998 (Prismas). VERÍSSIMO, José. Op. Cit., 1985; FRANÇA, Maria do Perpétuo Socorro Gomes de Souza Avelino. Op. Cit.; VILLELA. Heloisa de O.S. “O Mestre Escola e a Professora”. In: 500 Anos de Educação no Brasil/org.: Eliane Teixeira, Luciano Filho, Cynthia Veiga- 5ª edição, Belo Horizonte: Autêntica, 2011; TANURI, L. M. “História da formação de professores”. Revista Brasileira de Educação. Mai/Jun/Jul/Ago, 2000, nº 14. 254 Sobre festas escolares, ver: BITTENCOURT, Circe M. F. As “tradições nacionais” e o ritual das festas cívicas. In: O Ensino de História e a criação do fato/ Jaime Pinisky (autor e organizador). 14 ed. São Paulo: Contexto, 2011; CÂNDIDO, Renata Marcílio. Culturas da Escola: as festas nas escolas públicas paulistas (1890-1930). Dissertação – (Mestrado em Educação) – Universidade do Estado de São Paulo. Faculdade de Educação, 2007.


Livros Escolares Voltados à Educação da Infância Paraense (1890-1920)

um atrativo para a frequência de alunos, especialmente no interior do estado, e um meio de persuadir os pais da necessidade de sua formação nessas instituições, como nos mostra o relatório de inspetoria de 1905, de Hilário Máximo de Santana. Após visita de inspeção escolar na Zona Tocantina, nas escolas de Cametá, Mocajuba, Baião, Igarapé Miri, Moju e Abaeté, relata a participação na festa de instalação do Grupo escolar desse último município, ressaltando sua importância para os fins do ensino e do convencimento da população da necessária escolarização. Trouxe d’ella a melhor impressão, mais se arraigando em meu espírito a crença em que se estava, da necessidade deste estimulante para a creança que se inicia a sua aprendizagem, No interior, então ellas tomam o caráter de uma verdadeira festa local, e ao mesmo tempo que servem de incentivo aos pequeninos, lembram e encorajam os paes descuidados ou recalcitrantes a confiarem os seus filhos a esses estabelecimentos públicos de ensino255.

As festas e desfiles escolares tinham um caráter obrigatório e educativo para alunos e professores, sendo considerados de método fácil para inculcar ensinamentos pátrios nas crianças e de plasmar uma identidade nacional. Os professores, junto com a Diretoria de Instrução Pública, eram os organizadores desses eventos, como o que ocorreu em Belém no ano de 1905. Idealizado e realizado no governo de Augusto Montenegro, o desfile escolar reuniu as escolas municipais, escolas isoladas e grupos escolares da capital, contando com apoio da imprensa e da oficialidade local. O governo, para garantir o maior número de alunos, distribuiu brinquedos importados da Europa e um par de botinas, especialmente para alunos pobres que participaram do evento e tivessem frequentado assiduamente o semestre256. A festa infantil marcada pelas comemorações do 7 de setembro, amplamente divulgada e aclamada pela imprensa, teve o intuito, segundo “A Província do Pará”, de “Incentivar publicamente a alma despreocupada da infância”, servindo de “Estimulo a infância que se educa n’esta capital, incutindo-lhe o amor 255 Relatório do professor escolar Hilário Máximo de Santana direcionado ao Secretário de Justiça, interior e instrução pública Amazonas Figueiredo. Boletim Official da Instrucção Pública do Estado do Pará. Tomo I, nª.1, março - maio, 1905. Belém: Imprensa Official, 1905. p.14. 256 MATTOSO, Ernesto. Op. Cit., p.212.

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à escola, onde são formados o coração e o espírito”257. Seus registros fotográficos resultaram no “Álbum da festa das creanças: descripções e fotografias”258, como meio de divulgação das ações empreendidas na instrução pública por Augusto Montenegro. Concentrando-se na praça da República, alunos e professores saíram às ruas em carros alegóricos de cada escola, ponto alto do desfile, representando a nação, a República e a instrução no estado259.

257 PARÁ. Governador (1901-1909: A. Montenegro). Álbum da festa das creanças: descripções e photographias, 7 de setembro de 1905. Estado do Pará. Paris: Aillaud [19--]. 57 p. il.p.4. 258 Ibidem.

259 BITTENCOURT, Circe M. F. Op. Cit. Ver também: MOURA, Daniella de Almeida Moura. A República paraense em festa (1890-1911). Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Pará, Belém, 2008; RIBEIRO, Genes Duarte. A Professora da Nação: as festas cívicas e as escolas na Paraíba. 2017. 233 f. Tese (Doutorado em Educação) Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017; RIZZINI, Irma; SCHUELER. Alessandra Frota Martinez. “Tradições Inventadas” de uma Belle Époque no Estado do Pará: Expansão da Escola Primária para a Infância Paraense. In: ALVES, Laura Maria da Silva Araújo; ARAÚJO, Sônia Maria da Silva; FRANÇA, Maria do P. Socorro G. de Souza Avelino (orgs.). Educação e Instrução pública no Pará Imperial e Republicano. Belém: EDUEPA, 2015.


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Imagem 1: Carro de Honra Município

Fonte: Biblioteca Pública Arthur Vianna. Album da Festa das Creanças (1905).

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Imagem 2: Alunas Porta-Estandarte

Fonte: Biblioteca Pública Arthur Vianna. Album da Festa das Creanças (1905).

Como é possível observar nas imagens acima, o “Carro de honra do município” (Imagem 1) tinha ao fundo o escudo do município ricamente ornado e, como destaque, um grande livro aberto, ressaltando a importância da formação de indivíduos pátrios, contendo, em um dos lados de sua página, o seguinte dizer “Nada por mim; por minha pátria tudo”; no outro lado, “A Escola é o berço do cidadão”, exaltando a importância da escola e dos livros escolares para a formação requerida pela república. Outra imagem representativa, as alunas porta estandartes (Imagem 2), é do carro do grupo escolar de Nazaré (quinto


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grupo escolar), em que a República, representada pela menina de trajes coloridos, estava apoiada na pintura de José Bonifácio, tido como patriarca da independência, enquanto a História, representada pela menina de trajes brancos, registrava em suas páginas “Sete de Setembro de 1822”, sendo tecida sob o olhar republicano, retirava o “protagonismo” de D. Pedro I do “feito”. As imagens são representativas do lugar da instrução, da escola, dos livros escolares e da história pátria no projeto republicano de conformação social260. Nos álbuns e Revistas, vendia-se um modelo de criança civilizada, representativa de um dado segmento da população, que não condizia com a totalidade das crianças que frequentavam as escolas e grupos escolares de então. De segmentos menos abastados, boa parte do alunado tinha dificuldades de acesso a livros, o que por vezes levava o professor a solicitar a distribuição gratuita dos mesmos para a Diretoria de Instrução Pública do Estado Pará261. Lacerda, ao discutir as memórias de infância de imigrantes no Pará, no final do XIX e primeiras décadas do XX, sua luta cotidiana por subsistência, inserção no mundo do trabalho, conflitos, e sociabilidades tecidas, faz com que reflitamos sobre a realidade múltipla da infância nesse contexto. As crianças pobres e imigrantes eram o foco das políticas higienistas, saneadoras e disciplinadoras das elites, a quem o poder público por vezes não conseguia alcançar e que eram, por outro lado, sujeitos de suas experiências e vivências nas tramas das relações sociais estabelecidas262. As crianças passam a ser alvo das políticas republicanas. Os livros voltados à sua preparação eram um meio de ensinar conteúdos e temas diversos, tais como morais, cívicos, científicos, higiênicos, geográficos, históricos e outros, através do ensino da língua e dos livros de leitura, especialmente, considerados 260 Santos, ao trabalhar com o ideário cívico patriótico que circulou nas revistas pedagógicas A Escola e Revista Do Ensino, trata das festas cívico-escolares e utiliza em sua análise o Álbum Festa das Creanças de 1905: SANTOS, Darlene da Silva Monteiro dos. A arte de civilizar: a educação cívico-patriótica na revista a Escola e na revista do ensino no Pará republicano (1900-1912)/Darlene da Silva Monteiro dos Santos; Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Estado do Pará. Belém, 2018. 261 CARDOSO, Wanessa Carla Rodrigues. Arautos da Civilização: Circuito de Livros de História Pátria no Pará (1890- 1920). Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História, Belém, 2020.

262 LACERDA, Franciane Gama. Infância e Migração no Estado do Pará (final do século XIX, início do século XX). IN: Terra Matura: Historiografia e História Social na Amazônia/ José Maia Bezerra Neto, Décio de Alencar Guzmán, organizadores. Belém: Paka-Tatu. 2002.

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os mais adequados e úteis a sua formação263. É possível, então, dimensionar a importância que “Os livros de leitura assumiram na formação do cidadão republicano com o objetivo de forjar uma educação moderna e civilizada, comprometida com a “ordem” e com o “progresso” da nação”264.

Livros utilizados para educação de meninos e meninas no Pará: “Alma e Coração” e “Mosaico Infantil” Mosaico Infantil de Virgílio Cardoso de Oliveira O livro “Mosaico Infantil”, de Virgilio Cardoso de Oliveira, foi inicialmente publicado em 1905 (1ª edição), pela Typographia Aillaud, Alves & cia, em Paris, momento em que seu autor ocupava o cargo de Diretor de Ensino Municipal de Belém265. Em 1907, Mosaico Infantil estava em sua 3ª edição, publicado no Pará pela Livraria Escolar, e, em 1911, em sua 4ª edição, editado pela Livraria Catilina, na Bahia, e impresso pela Livraria Francesa, do Recife, publicação que tivemos acesso. Esse livro escolar circulou nas escolas primárias do estado do Pará, Ceará, Bahia e Rio de Janeiro, aprovado e adotado pelos seus respectivos Conselhos de Instrução Pública, como informa o autor no frontispício do livro. No estado do Pará, teve aprovação unânime em 14 de novembro de 1905. Em parecer, o Conselho revestiu o livro de grande qualidade pedagógica e literária, exaltando o embelezamento gráfico da obra, a forma prática do ensino das lições e o estilo simples e “deleitável”, apropriado para alcançar as crianças de então. A estratégia utilizada pelo autor, que no parecer é chamada de “ardil de pedagogo experimentado”, de explanar o mesmo assunto em prosa e poesia, explicando-os, foi considerada pelo Conselho um “Methodo de vantagem indiscutível no ensino a que é destinado”266. A obra, composta de 154 páginas, 93 ilustrações, e 45 lições, é organizada em forma de poemas, sucedidos por pequenos textos de caráter explicativo, ressaltando os valores cívicos e morais de cada lição, e indicativo de

263 RAZZINI. Márcia de Paula Gregório. A livraria Francisco Alves e a expansão da escola pública em São Paulo. I Seminário Brasileiro sobre o livro e História Editorial, Rio de Janeiro, 2004. 264 Ibidem. p.3

265 OLIVEIRA, Virgílio Cardoso de. Mosaico infantil. Bahia: Livraria Catilina, 1911. 266 Ibidem. p.2 (anexo).


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“protocolos de leitura”267 aos pequenos, estabelecendo as intenções de leitura dos atores e editores do texto. As lições são estas: “O operário”, “Abnegação”, “O micróbio” “O trabalho”, “O estudioso”, “Lealdade”, “O dever” “Hino ao trabalho”, “A instrução”, “Saudação à pátria”, “A Pátria”, “A covardia”, “A sabatina”, “Visita Escolar”, “Hino ao futuro”, entre outras. Elas são compostas por um “mosaico” de temas considerados úteis à criança e tidos como necessários à formação da infância brasileira. Recheado de ilustrações, 93 ao todo, o livro prima em dar um ar de ludicidade aos primeiros ensinamentos pátrios às crianças leitoras, com poesias, textos e imagens ligadas ao seu dia a dia, deveres e brincadeiras infantis. Os paratextos, além da capa ricamente Ilustrada, são compostos pelo índice, o prólogo intitulado “Duas Palavras”, frontispício (indicando título, autoria, edição) e, semelhante à Pátria Brasileira, contém a fotografia do filho Rodolfo, a quem dedica a obra268. O pós-texto, por sua vez, é composto de trechos de pareceres da Instrução Pública de diversos estados, em que os livros foram aprovados, e críticas elogiosas e juízos publicados em jornais e revistas, no Brasil, como o “Jornal de Notícia”, na Bahia, e no exterior, como “O Século” e “A Epoca” , de Lisboa, sobre os três livros do autor: Mosaico Infantil, Nossa Pátria e Leitura Cívica – intitulado “Alguns juízos sobre o Curso de Leitura Cívica Escolar”. Suas lições abordam eventos históricos, em que os dias da pátria ou festas cívicas ganham notoriedade, como também abordam questões ligadas à higiene infantil, normas comportamentais e de civilidade, caros à educação desse contexto, reafirmando o valor do trabalho, da família, da pátria, da dedicação à escola e aos estudos, e do necessário cultivo da lealdade, coragem e benevolência do educando/leitor. 267 “Protocolos de leituras”, estratégias implícitas ou explícitas, são utilizados para imprimir uma leitura correta, adequada do texto pelo leitor, de acordo com as intencionalidades do autor/ editor. Os protocolos norteiam como prováveis leitores devem conduzir a prática leitora, através de um conjunto de instruções, presente nas imagens do frontispício do livro, da orla do texto, advertências, prólogos e outros indícios identificadores, levando-os a uma leitura adequada do impresso. CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Trad. Mary Del Priori. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999b; CHARTIER, Roger. Do Livro a Leitura. In: Práticas da leitura.Org, Roger Chartier. Trad. Cristiane Nascimento. 5ª. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2011; CHARTIER, Roger. Inscrever e apagar. Cultura escrita e literatura (séculos XI-XVIII). Tradução de Luzmara Curcino Ferreira, São Paulo: Editora da UNESP, 2007. CHARTIER, Roger. Os Desafios da Escrita/ Roger Chartier; Tradução de Fulvia M. L. Moretto – São Paulo: UNESP, 2002. 268 Ibidem; OLIVEIRA, Virgílio Cardoso de. A Patria Brazileira, Leitura e Escolar Illustrada. Estabelecimento typo-lithographico Constant Gouweloos, 1903.

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A capa de Mosaico Infantil (Imagem 03) é também representativa do caráter que Virgílio quis empregar ao livro. A ilustração contém crianças, meninos e meninas, que, à primeira vista, estão em uma simples brincadeira de roda, ao redor de uma árvore, em que foi hasteada a bandeira do Brasil, em espaço aberto e arborizado. O autor traz a ideia de um aprendizado lúdico das coisas da terra natal, pátria que na imagem pode ser representada pela árvore, pois está cercada e abraçada alegremente por crianças, enquanto dois meninos cuidam de seu símbolo maior, a bandeira no topo. No abraço à pátria, Virgílio traz a ideia de que é necessário conhecer as coisas do lugar de origem, cuidar e devotar amor como indivíduo e como nação, todos juntos, como cidadãos. Essa ideia de unidade é representada pela roda de crianças, juntas em prol da pátria brasileira. A capa de “Mosaico Infantil” tem demonstrações claras das intencionalidades de seu autor e de seu editor, educativas e nacionalistas269. Por meio da imagem do filho Rodolfo (Imagem 04), Virgílio de Oliveira deixa explícita a sua intenção de representar, através dela, a infância brasileira, demonstrando seu amor devotado à pátria e às crianças futuros cidadãos da pátria: “À infância brasileira, representada em meu querido filho, como, uma expressiva demonstração de amor que à mesma consagro”270. A fotografia de menino do filho Rodolpho, de 1905, retrata a infância desejada pelo autor, saneada, ordeira e estudiosa, acima de tudo. Rodolpho aparece fardado, trajando um uniforme escolar, sentado no que aparenta ser um banco escolar ou lugar reservado aos estudos, com o livro “A pátria Brasileira”, de autoria do pai, em mãos, o que explicita uma outra intencionalidade da fotografia, fazer propaganda do outro livro do autor, analisado acima, que havia publicado sua 2ª edição nesse mesmo ano.

269 SILVA, Caroline Santos. Representação e Subjetividades Infantis nos Livros Para Crianças em Salvador no Início do Século XX. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História, Florianópolis, 2017. 270 OLIVEIRA, Virgílio Cardoso de. Mosaico infantil. Bahia: Livraria Catilina, 1911. s.p.


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Imagem 3: Capa do Livro Mosaico Infantil

Virgílio Cardoso de Oliveira. Fonte: Acervo Museu da UFPA.

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Imagem 4: Fotografia do Filho de Virgílio

Cardoso de Oliveira, Rodolpho-Dedicatória. Fonte: Acervo Museu da UFPA.

Em prefácio, o autor menciona os “protocolos de leitura” de Mosaico infantil, ressaltando os objetivos do livro, “destinado” a dar “Os primeiros passos na educação cívica, moral e physica” do educando/leitor, e os meios utilizados por ele para cumprir tal tarefa, aplicando “O mais salutar princípio pedagógicos – Educar, deleitando”. Com o intento de deleitar e educar as crianças leitoras, Virgílio de Oliveira usa as mais diversas estratégias que especifica em prefácio: o canto, as ilustrações, jogos e brincadeiras infantis – segundo ele, escolhidos de acordo com suas intencionalidades educativas. Agradece, ainda, a colaboração da esposa Maria Ceselina, que foi responsável pelas músicas dos hinos e canções, demarcando que a obra foi feita em colaboração com a família, voltada, portanto, para as famílias brasileiras. A colaboração da esposa,


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como mulher e mãe, demarca o papel direcionado às mulheres na sociedade, na família e na educação das crianças, sendo, segundo ele, “Uma prova significativa da intenção carinhosas que esse livrinho traduz”271. E, se reportando aos pais e mestres, conclama que acolham a obra, bem como as crianças/leitoras: “E as creanças, alliados aos meus bons desejos, recebam parte do affecto de minha alma”272. A criança é leitora e personagem das histórias de Mosaico infantil. A leitura, para Virgílio de Oliveira, deve ser efetuada na família, mas, especialmente, na escola, bem direcionada e estimulada por professores. A criança leitora, a quem Virgílio se reporta, é na verdade o educando se constituindo em educando/leitor de obras escolares, a quem adverte sobre a importância da escola e dos estudos, lembrando da necessidade em aprender a dividir o tempo entre o trabalho, o esforço da instrução e os divertimentos próprios da infância, como demonstra nos poemas “O Estudioso” e a “Instrução”, reafirmando em prosa e poesia esses aconselhamentos. Na poesia “Instrução”, o autor demonstra aos meninos que eles devem contribuir com o país, mesmo não sendo soldados – se estes, longe de casa e da família, lutam pela pátria, a mocidade também assim deve fazer, lutando contra a ignorância, usando os livros no lugar de espadas e letras no lugar de canhões. É um dever do menino querer aprender, obedecendo às orientações dos pais e dos mestres, contribuindo com a pátria e com o progresso do país através da instrução, mesmo em dias de paz. Na poesia “O Operário”, Virgílio descreve a ação “abnegada” de um menino sapateiro, que deixa a roda de amigos e as brincadeiras infantis para ajudar o pai em sua vida cotidiana, e é ridicularizado por um de seus coleguinhas, a quem ressalta sua condição de operário e o valor do trabalho. O autor demonstra como o trabalho fazia parte do cotidiano das crianças, especialmente das crianças empobrecidas, como via de sobrevivência e ajuda familiar. Lacerda, ao tratar do dia a dia de crianças imigrantes em Belém, mostra-nos que as crianças tentavam se adaptar, com muitas dificuldades, ao novo lugar, o que perpassava pela busca de uma ocupação, que era sempre muito mal remunerada. As ocupações mais comuns para crianças “Giravam em torno de

271 OLIVEIRA, Virgílio Cardoso de. Op. Cit., 1911. s.p. 272 Ibidem. s.p.

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trabalho no comercio local, destacando-se o trabalho de caixeiro em mercearias, padarias, lojas de fazenda”273. Já Folguei... sou operário: Após o descanso, a lida... O trabalho é necessario Dá força, prazer e vida!! Partindo... aqui vos deixando Sei o tempo aproveitar Emquanto ficais vadiando Vou á tenda trabalhar!!274

O autor de Mosaico Infantil constrói uma narrativa de grande valorização do trabalho, condizentes com os princípios liberais do período, advertindo aos meninos e meninas leitoras que é necessário estudar, mas também habituar-se ao trabalho. Para Virgílio Cardoso, “Instrução e trabalho engrandecem-se mutuamente”, sendo vias indissociáveis de formação do caráter do indivíduo, seja o trabalho intelectual ou braçal. O trabalho é representado como dignificador do homem, estabelecendo vínculos com as ideias de progresso e os princípios de ordem; já ociosidade, por outro lado, debilita o homem, pois é relacionada ao que não deve ser cultivado: a preguiça, o egoísmo, a falta de honra e a indignidade. Impregnado de um discurso normatizador e moralizante, apresenta as crianças, a quem chama de “bons amiguinhos”, às escolas de formação profissionalizante, como o Liceu Artes e ofícios e o Instituto Lauro Sodré, tecendo representações desses espaços através de descrições e fotografias, especialmente do último, com sua sala de aula e oficinas de sapateiro, marceneiro e alfaiate, como o lugar de crianças felizes e dignificadas pelo trabalho e por receber o aprendizado de uma profissão – corroborando com o discurso da oficialidade local, que via a instrução e o trabalho como vias de moldar e disciplinar a infância, retirando-lhes da influência perniciosa das ruas275. 273 LACERDA, Franciane Gama. Infância e Migração no Estado do Pará (final do século XIX, início do século XX). IN: Terra Matura: Historiografia e História Social na Amazônia/ José Maia Bezerra Neto, Décio de Alencar Guzmán, organizadores. Belém: Paka-Tatu. 2002.p.397 274 OLIVEIRA, Virgílio Cardoso de. Op. Cit., 1911. p.56.

275 Mesmo com a existência de instituições de ensino direcionadas às crianças desvalidas, subordinadas à Diretoria de Instrução Pública, como o Instituto Gentil Bittencourt (Antigo colégio do Amparo, 1851), Instituto Lauro Sodré (Instituto Paraense dos Educando Artíficis,


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O amor à pátria é frequentemente evocado em verso, prosa, através das ilustrações – que retratavam o entusiasmo das pessoas nos desfiles cívicos, carregando símbolos pátrios mesmo em dias de paz –, através dos hinos, dos eventos históricos, como a independência, e dos feitos dos heróis da pátria, como os de D. Pedro I e Pedro Álvares Cabral – retratados através de ilustrações, dando exemplo de pessoas de coragem, que se se sacrificaram por esse sentimento maior –, e de pessoas comuns, como Maria Quitéria Medeiros, jovem que se vestiu de homem para entrar nas fileiras do exército baiano, se tornando uma das protagonistas da guerra da independência na Bahia. Dessa forma, o autor ressalta os deveres para com a pátria, de meninos e meninas. Elas deveriam entender, tanto quanto os meninos, o valor de ser brasileiro(a), e deveriam se sacrificar pela pátria, caso necessário276. 1870), Escolas de Aprendizes Artífices (criada em 1909), Instituto da Criança Desvalida Santo Antônio do Prata (Núcleo Colonial do Maracanã, 1903) e Instituto Orfanológico do Outeiro (1903), que tinham como objetivo o ensino de um ofício e do ensino primário ás crianças órfãs ou comprovadamente pobres, esses espaços não conseguiam abarcar as dimensões e necessidades do estado, sendo que poucas vagas eram direcionadas às crianças vindas do interior. Essas instituições foram criadas, no Brasil e no Pará, para institucionalizar o atendimento a infância pobre, que estaria sob a tutela do estado em abrigos e instituições específicas, em uma perspectiva normatizadora e redentora da infância pobre ou desvalida da sorte. PINHEIRO, Welington da Costa. O Instituto Orfanológico do Outeiro: assistência, proteção e educação de meninos órfãos e desvalidos em Belém do Pará (1903-1913). 2017. 227 f. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Pará, Instituto de Ciências da Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Belém, PA, 2017; RIZZINI, Irma. Assistência a Infância no Brasil: uma análise de sua construção. Rio de Janeiro: ed. Universitária Santa Úrsula. 1993; BARBOSA PESSOA, Alba. Pequenos Construtores da nação: Disciplinarização da Infância na Cidade de Manaus (1930-1945)/ Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História, Belém, PA, 2018.

276 A escola, a educação escolarizada no Brasil como uma criação liberal/burguesa foi pensada em uma perspectiva homogeneizadora e apagadora das diferenças. Criada pela elite, tanto na monarquia quanto na República, era responsável pela inculcação de valores e hábitos civilizados na população. Com esse objetivo, cresce entre seus defensores as discussões das formas de implementação desse processo e ampliação do ensino primário, na mesma proporção cresce discussões sobre Instrução Pública, laica e obrigatória, vista para alguns como um empecilho e para outros como uma via de preparação de um povo novo, do cidadão e do trabalhador, que contribuiriam para manutenção e afirmação dos princípios liberais republicanos. Esse modelo de escola difundido e implementado, tinha clara influência eurocêntrica, elitista, homogeneizadora e que visava a execução de práticas pedagógicas marcadamente disciplinar, desconsiderando as experiências e vivências da população. Com o fim da Primeira República, permanece o modelo de escolarização calcado nos princípios liberais, bem como a preocupação em incutir o nacionalismo pátrio, o amor pela escola, pelo trabalho e a aversão aos vícios, jogos e comportamentos perniciosos, exacerbando um patriotismo personalista em períodos autoritários, sendo a educação, a escola e as cartilhas escolares utilizadas pelo estado para a formação que se queria no tempo, e para manutenção do estado de coisa. COSTA, Verônica Albano Viana. Entre imagens e palavras: educação e nacionalismo no Estado Novo (1937-1945). Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal

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A necessidade de assimilação social e de fortalecer o sentimento de pertencimento em prol de uma unidade nacional perpassa por toda a obra, bem como a necessidade de cultivo desse sentimento através da família, da educação e do trabalho. Sobre o exemplo de Maria Quitéria: “Da mesma forma, (...) que esta jovem guerreira, elevando tão alto o sentimento do patriotismo, esquecida da fragilidade do sexo, se fez soldado pela pátria (...) assim também aquela excelente menina, (...) foi uma verdadeira heroína, guiada por sentimentos de outra ordem”277. A história, em Mosaico Infantil, é calcada em símbolos e heróis pátrios, é vista como uma via de conhecimento útil e prático para a cidadania e para o cultivo dos sentimentos pátrios, através das ações exemplares e abnegadas pela pátria.

“Alma e Coração”, de Hygino Amanajás “Alma e Coração”, por sua vez, teve duas edições, a primeira de 1900, provavelmente pela tipografia J.B. dos Santos, e a segunda edição de 1905, pela Imprensa Oficial. A obra foi provada e adotada pelo Conselho Superior de Instrução Pública do Pará, no dia 05 de julho de 1900, em parecer dos professores Francisco Vilhena Alves, Paulino de Brito e Cornélio Pereira de Barros Junior, comissão que recomendou seu uso por considerar ser de muito proveito “a mocidade estudiosa”. Indicado para as aulas de Leitura, esteve entre os livros escolares escolhidos pelo Conselho Superior para adoção e uso prioritário no ensino primário, tanto em 1903, direcionada para o 2º ano do curso elementar, quanto em 1919, sendo recomendada o uso no 4ª ano deste mesmo ensino. Entre os méritos da obra, que contribuíram para sua aprovação pelo conselho, além das escolhas dos assuntos, e o estilo “simples e correto”, necessários a produções desse gênero, o conselho ressalta a abordagem de assuntos de história pátria e de “Artigos de commemoração aos grandes dias da pátria”278, trazidos de Minas Gerais, Faculdade de Educação, Programa de pós graduação em Educação, Belo Horizonte, 2009.; COSTA, Miguel Ângelo Silva da; SCHMITZ, Zenaide Inês; REMEDI, José Martinho Rodrigues. Cartilhas escolares e doutrinação infantil no contexto do Estado Novo (1937-1945). Educação Unisinos. Volume 21, número 2, maio/agosto 2017.; GOMES, Â.C. 2003. As aventuras de Tibicuera: literatura infantil, história do Brasil política cultural na Era Vargas. Revista USP, 59:116-133.; BITTENCOURT, Circe M. F. Pátria, Civilização e Trabalho: O Ensino de História nas Escolas Paulistas (1917- 1939). São Paulo: Loyola. 1990.

277 OLIVEIRA, Virgílio Cardoso de. Op. Cit., 1911. p.42,42.

278 AMANAJÁS, Hygino. Alma e Coração. Belém: Typ. da Imprensa Oficial,1905. p.4.


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sem aridez e de forma amena, preenchendo a narrativa recheada de lições sobre o passado, que seriam facilmente apreendidas pelos alunos, em avaliação do Conselho. Inspirado no livro Cuore (Coração), do italiano Edmond De Amices, Alma e Coração, caracterizado como livro de leitura, tem narrativa organizada como no livrinho italiano, em forma de missivas escritas pelo jovem personagem Ernesto, recém chegado à capital para estudos, à sua mãe Angelina, para quem relata seu cotidiano em uma instituição de ensino, em que viera para fazer sua instrução. Ernesto descreve o cotidiano da cidade, seus monumentos e prédios recém construídos, a vida escolar, as prelações da professora, suas orientações e aconselhamentos. Coração, por sua vez, desenvolve sua narrativa em torno do personagem Henrique, que, bem como o personagem de Amanajás, narra o cotidiano da vida escolar em primeira pessoa, em forma de diário, ao longo de um ano letivo. As páginas de Alma e Coração contêm lições de História, Geografia, e Educação Moral e Cívica, identificadas a partir do relato de Ernesto e das prelações da professora em sua prática diária279. Segundo Gontijo280, Coração esteve entre os livros europeus que tiveram grande circulação no Brasil no final do XIX, e sua contribuição e importância medem-se pelas sucessivas adoções nos diversos estados brasileiros para uso nas escolas primárias, formando gerações de leitores, por suscitar inspiração em várias produções de autores brasileiros e atenção e análise de intelectuais, como Raul Pompéia e José Veríssimo, por sua forma de atingir o alunado. Veríssimo publicou “Educação Nacional: a propósito de um livro italiano” (1892). A primeira edição de Cuore foi em 1886, traduzido para a língua portuguesa somente em 1891, por João Ribeiro, e publicado pela Livraria e Editores Francisco Alves, em 1907. Foi publicado pela Livraria Universal de Echenique irmãos, e considerado um dos livros didáticos mais traduzidos no mundo, em mais de 10 idiomas, com um número expressivo de mais de 500 edições. A prática de tradução e adaptação de obras estrangeiras era corrente no Brasil, sendo grande o volume de livros proveniente de outro país, traduzidos,

279 AMANAJÁS, Hygino. Op. Cit.

280 GONTIJO, Rebeca. Coração: Um diário, Vários tempos e algumas histórias. In: A história na escola: autores, livros e leituras/Helenice Rocha, Luis Reznik, Marcelo Magalhães (org.)- Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009.

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que habitavam o espaço escolar281. Outro exemplo clássico foi o livro “Através do Brasil” (1910), escrito por Olavo Bilac e Manuel Bonfim, inspirado no livro Francês “Le tour de la France par deux garçons” (1877), de G. Bruno282. Passa a existir um clamor de intelectuais, como José Veríssimo, pela nacionalização dos livros escolares no Brasil, primando-se por produzir “Um material escolar não só feito por brasileiros, o que não é o mais importante, mas brasileiro pelos assuntos, pelo espírito, pelos autores transladados, pelos poetas reproduzidos e pelo sentimento nacional que o anime”283. Era grande o movimento pela nacionalização dos livros e manuais escolares nos anos iniciais da república, abrindo espaço para a produção nacional e local desses manuais. No entanto, em listagem de livros escolares publicada por Firmo Cardoso, recomendados pela Diretoria de Instrução Pública, adotados e distribuídos gratuitamente ao alunado paraense no ano 1893, persistia a presença de autores estrangeiros que habitavam as escolas paraenses – Edmundo de Amicis era um deles284. A narrativa de Amanajás se passa, portanto, na cidade de Belém, descrevendo seu cotidiano, no desenrolar da vida escolar. Por vezes, a cidade é descrita por Ernesto, demonstrando sua admiração com as transformações do espaço público e com a modernização das ruas, prédios e instituições da cidade. Ficando latente a preocupação de Amanajás em incutir nos leitores a relação clara entre o “progresso material” da cidade e a instauração da república, através da descrição de praças, logradouros públicos, igreja da sé, bosque, teatro, bondes e da iluminação pública – além das obras públicas em curso ou recém-inauguradas, como a penitenciária, o Instituto Lauro Sodré e o Colégio do Amparo, demonstrando os melhoramentos materiais e intelectuais advindos com a república, e seus vínculos com as ideias de progresso e civilização do povo.

281 Ibidem; CORRÊA, Carlos Humberto Alves. Circuito do livro escolar: elementos para a compreensão de seu funcionamento no contexto educacional amazonense (1852 - 1910)/ Carlos Humberto Alves Corrêa- Campinas-SP: 2006.

282 LAJOLO, Marisa. “Introdução”, in Olavo Bilac, Manoel Bonfim. Através do Brasil São Paulo, Companhia das Letras, 2000. 283 VERÍSSIMO, José. Op. Cit.,1985.

284 CARDOSO, Firmo. Evolução das escolas primárias do Pará. In: Annuario de Belém em commemoração de seu tricentenário, 1616-1916: histórico, artístico e comercial. Belém: Imprensa Oficial, 1915.


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Descreve ainda, em seus relatos à mãe, as atividades do ano escolar até o encerramento do ano letivo, tais como as festas e comemorações cívicas, exercícios, práticas escolares cotidianas, lições patrióticas de valorização, exaltação e afirmação do regime republicano. As narrativas de apelo emocional tinham como intuito alcançar o jovem leitor, como a carta que relembra o pai republicano que havia falecido antes de ver seu sonho de instauração do regime concretizado: “Observa-se a grande preocupação de Amanajás em negar o passado monárquico, essencialmente ligado ao atraso econômico e social, e vincular os valores republicanos à grandeza, à liberdade do povo e à ideia de progresso”285. A ideia de cidadania de “Alma e Coração” não difere de “Noções Cívicas”286, primeiro livro do autor, vinculada a um ensino de caráter, ao amor à pátria e aos deveres para com ela. Desse modo, era necessário o cultivo não somente dos valores cívicos, mas, também, de valores morais do indivíduo, amando a pátria, a Deus, a República, e o trabalho; cultivando virtudes, como o respeito, desvelo, zelo e a caridade; evitando vícios, como o jogo e a bebida, perniciosos à vida social287. A narrativa de Amanajás se desenrola na perspectiva de formação desse cidadão republicano. Para “formar a mocidade” para a vivência patriótica, era necessário amar a pátria como condição primeira de cidadania, mas não só isso. Era necessário conhecê-la, conhecer sua história e seus heróis, como ações e feitos exemplares no passado. Assim, seguem as descrições de Ernesto sobre as prelações do professor de História pátria, mas, especialmente, sobre os dias pátrios e os heróis que a República queria lembrar e exaltar: 24 de fevereiro (promulgação da Constituição de 1890); 21 de abril (Tiradentes); 22 de abril (descobrimento do Brasil); 13 de maio (libertação dos escravos); 12 de outubro (descoberta da América); e 15 de novembro (proclamação da República). “Amai a memória dos grandes homens da vossa pátria meus meninos, e da história do vosso paiz; destacai todos os heroes, para vos servirem de exemplo

285 CARDOSO, Wanessa Carla Rodrigues. Op. Cit., 2013.p.92.

286 AMANAJÁS, Hygino. Noções de educação cívica: para uso das escolas primarias do Estado do Pará. Typ. Do Diário Oficial. Belém-PA, 1898. 287 AMANAJÁS, Hygino. Op. Cit., 1905. MULLER, L. As construtoras da nação: as professoras primárias na Primeira República. Niterói: Intertexto, 1999.

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no amor e dedicação, que todos devemos a terra do nosso berço, tão amada e tão querida por nossos antepassados”288. Ganha relevância em sua narrativa, lições de história pátria, em que as ações destacadas dos inconfidentes, entre eles Tiradentes, em prol da liberdade do povo, e a necessária abolição da escravidão no Brasil, com a Lei Áurea, são associadas à república e às ideias de liberdade advindas com o regime. A figura de Tiradentes é republicanizada, movimento que acontece nacionalmente de revitalização de heróis e constituição de mitos com a república, sendo transformada em mártir do povo e da causa da liberdade, em sua luta e sacrifício incessante para libertar o Brasil do julgo colonial. “Espiritos altamente patrióticos e devotados até o sacrifício, soffreram os inconfidentes a pena do seu reputado delicto, que tantos benefícios trouxe à nossa pátria.[...] O martyr viverá, aureolado e bemdito, glorificado no altar da pátria, e coberto das bênçãos de um povo agradecido”289. A educação e disciplinas, como a História Pátria e a Geografia Pátria, seriam os meios pelos quais as ideias ou visões de República extrapolariam o mundo circunscrito das elites, alcançando um número maior de pessoas, contribuindo decisivamente para a afirmação de imagens, alegorias, símbolos, rituais e mitos referentes ao novo regime, que, utilizados pela educação pública, modelariam o novo cidadão republicano290. A Lei Áurea, por sua vez, é associada ao triunfar da república no Brasil, sendo o regime de escravidão incompatível com a modernidade e com um povo civilizado, representando, em sua narrativa, o atraso do povo, e tudo que deveria ficar para trás com a monarquia. ___ Com a publicação da lei que concedeu a liberdade incondicional e completa a todos os captivos existentes no nosso território, em 13 de Maio de 1888. Era o espírito republicano, o espírito de egualdade, que triumphava; e assim bem o comprehendeu a grande e previdente intelligencia

288 Ibidem. p. 56.

289 Ibidem. p. 54,55.

290 Segundo José Murilo de Carvalho os símbolos, alegorias e mitos só se afirmam socialmente quando há um terreno sócio-cultural em que possam se alimentar. “Na ausência de tal base, a tentativa de criá-los, de manipulá-los, de utilizá-los como elementos de legitimação, cai no vazio, quando não no ridículo”. CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas. O Imaginário da República no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 20ª edição, 2011.


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do barão de Cotegipe, quando exclamou, por occasião de promulgar-se essa lei: _____ A monarchia está morta no Brasil Sim, a monarchia estava morta desde esse momento; porque a ideia republicana triumphava até no seio do próprio governo do Imperador; mas o Brasil conquistava seu logar de nação livre no convívio universal e reparava a mais tremenda das injustiças, que é a escravidão291.

Nas narrativas de Amanajás, o estudo de história pátria é a grande fonte de patriotismo de um povo. Desse modo, fazia-se necessário decorar os grandes nomes da história pátria-brasileira, especialmente os republicanos, fonte de ensinamentos exemplares e imprescindíveis à mocidade na conformação das futuras gerações e do cidadão que a república queria. “Estudai bem a historia da vossa pátria meus meninos, e apprendei nos exemplos de patriotismo e virtude que nos deixaram os grandes homens”292. O estudo da História, suas narrativas, seus feitos patrióticos, tinha como objetivo, nessa perspectiva homogeneizadora, servir à nação e nacionalidade. Os estudos empreendidos sobre o livro escolar de história apontam para a importância do livro escolar para o entendimento das gênesis do processo de constituição de uma disciplina escolar e suas transformações ao longo do tempo293. O saber histórico escolar prescrito no Pará Republicano, nos programas e livros escolares, tinha como intuito a formação cívico-patriótica do indivíduo. Esses saberes de História Pátria, presentes em livros de História, Geografia, Moral e Cívica e Livros de Leitura, passaram a ser veiculados em uma quantidade significativa de livros escolares, frutos de um momento fértil de produção, editoração e impressão do livro escolar paraense no final do XIX e início do XX. 291 AMANAJÁS, Hygino. Op. Cit., 1905. p. 65,66. 292 Ibidem. p. 146.

293 BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Op. Cit.,2008; CARDOSO, Wanessa Carla Rodrigues. Op. Cit. 2013.; CHERVEL, André. História das Disciplinas Escolares. Teoria e Educação. nº. 2, 1990, p. 177-229.; GASPARELLO, Arlette Medeiros Construtores de Identidades: a pedagogia da nação nos livros didáticos da escola secundária brasileira. São Paulo: Iglu Editora, 2004.; MATTOS, Selma Rinaldi de. O Brasil em Lições: a história como disciplina escolar em Joaquim Manuel de Macedo. (Coleção Aprendizado do Brasil; 1) Rio de Janeiro.

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Essa fertilidade produtiva, dos autores paraense e dos processos de impressão e circulação do livro escolar, deve-se a dois fatores de grande relevância: As transformações empreendidas pelo surto econômico da borracha e suas implicações econômicas, sociais, culturais e espaciais, aumentando as condições de acesso à cultura letrada por meio da ampliação do número de jornais, livrarias, tipografias e espaços de leitura; a necessidade de implementação do projeto educacional republicano, voltado à formação pátria do indivíduo, e, consequente, ampliação do Ensino Primário, aumentando-se as demandas por uma literatura escolar, que não somente atendesse ao público crescente de alunos e professores, como também respondessem aos apelos de nacionalização do livro escolar, feitos pela intelectualidade paraense e brasileira, nesse contexto, sendo defendido de forma veemente por José Veríssimo Dias Matos, primeiro Diretor de Instrução Pública do Estado294. Houve uma intensa produção de livros escolares com conteúdo de História Pátria no Pará republicano, bem como foi intensa a circulação dessa literatura escolar nas escolas primárias públicas, no final do XIX e início do XX. Apesar dos envios serem muito menores que as necessidades reais dos grupos escolares e escolas isoladas do estado, e que, pela legislação, fossem distribuídos apenas aos alunos em condição de pobreza, o que por vezes não ocorria, esses livros eram aprovados pelo Conselho e direcionados como sendo os mais adequados em um dado ano, para sua adoção e usos por professores no ensino primário295. Alguns livros aprovados e adotados caíram no gosto do professorado paraense, tais como “Paraenses Ilustres”, “A pátria brasileira”, e os dois livros aqui em estudo, “Alma e Coração” e “Mosaico Infantil”, que ficaram por décadas inteiras sendo solicitados por professores à Diretoria Geral de Instrução Publica, para usos nas escolas primárias296. “Alma e Coração” e “Mosaico Infantil” foram, sem dúvida, livros de grande circulação no ensino primário paraense. O primeiro, não somente foi adotado e aprovado pelo Conselho, mas esteve entre os livros, dentre os adotados, que prioritariamente deveriam habitar o cotidiano escolar. Em prefácio da 294 VERÍSSIMO, José. Op. Cit.; VERÍSSIMO, José. A instrução e a imprensa: 1500 –1900. In Livro do Centenário (1500-1900). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1900. CARDOSO, Wanessa Carla Rodrigues. Op. Cit., 2020. 295 CARDOSO, Wanessa Carla Rodrigues. Op. Cit., 2020. 296 Ibidem.


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segunda edição, Amanajás ressalta que “Em três annos exgottou-se a primeira edição de cinco mil exemplares”, o que pode ser comprovado pelas ordens de pagamento direcionadas ao autor de “Alma e Coração”, feitas à Secretaria da Fazenda Pública. Sucesso esse que o autor não alcançou com a sua primeira produção escolar “Noções de educação cívica: para uso das escolas primarias do Estado do Pará”297. No entanto, segundo Bitencourt, a história da leitura tem um caráter ambíguo, tendo em vista que feita para produzir determinada formação homogeneizadora, inculcando práticas, comportamentos e valores nos indivíduos. Contudo, a leitura que se faz de um livro nunca é a mesma por seus leitores298. Para Chartier, apesar dos inúmeros “protocolos de leitura”, direcionados pelo autor e editor, no sentindo de levar o leitor a empreender uma dada leitura autorizada, o leitor nunca faz uma única leitura, pois atribui vários significados a essa prática cultural, a prática leitora299. Esse caráter ambíguo fica mais evidenciado no livro escolar, que, por princípio, tem um caráter formador e conformador dos indivíduos, com intento de disseminar conteúdos e valores, que, a priori, deveriam ser internalizados e apreendidos de forma homogênea por todo alunado. No entanto, segundo Bitencourt, se o espaço escolar em que os livros são aplicados e discutidos também é um espaço da ambiguidade e da contradição, na medida em que é tido como espaço da transmissão e reprodução de saberes, conhecimentos e ideologias, também é o espaço por excelência da produção do conhecimento, da oposição e da resistência a projetos hegemônicos300.

297 AMANAJÁS, Hygino. Op. Cit., 1905. s.p.; AMANAJÁS, Hygino. Op. Cit., 1898. 298 BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Op. Cit.,2008. 299 CHARTIER, Roger. Op. Cit.

300 BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Op. Cit.,2008.

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CAPÍTULO 6

FOTOGRAFIAS DE CRIANÇAS EM REVISTAS OU FOLHEAR A INFÂNCIA: ELITE, REPRESENTAÇÃO E LUGAR SOCIAL DA INFÂNCIA EM REVISTAS ILUSTRADAS (BELÉM, 1919-1930)

Adnê Jefferson Moura Rodrigues

Resumo: O presente texto301 tem como objeto de suas preocupações a análise de representações de infância em revistas ilustradas a partir de fotografias de crianças de elite em Belém-PA. O recorte temporal do trabalho concerne aos anos de 1919 a 1930, período em que são observados os avanços de ordem técnica em impressão das revistas ilustradas, que permitiram a incorporação de fotografias e gravuras coloridas. O corpus documental é composto pelas revistas A Semana, Belém Nova e Guajarina, que traziam o maior número de imagens e publicidades na época. As fotografias de crianças publicadas nas revistas indicam certo processo de seleção para a composição dos registros, ao mesmo tempo que elucida como setores das elites local procuraram reforçar através das imagens sua condição de prestígio frente ao público leitor. Ao atrelarem as imagens de crianças arrumadas, limpas, em registros posados em 301 Este trabalho é fruto de parte da Dissertação de Mestrado, defendida em 2017, no Programa de História Social da Amazônia da Universidade Federal do Pará (PPHIST-UFPA), sob orientação da Profa. Dra. Cristina Donza Cancela. O trabalho contou com financiamento através de bolsa de estudo da Capes.


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casa ou em ambientes de estúdio, à noção de “futuro da família”, acabaram por construir narrativas visuais que indicam certas representações coletivas de infância. Palavras-chave: representações coletivas; infância; elite; revista; fotografia.

O

presente texto tem por finalidade analisar as representações de infância em revistas ilustradas a partir de fotografias de crianças de elite da capital paraense. Os marcos temporais deste trabalho concernem aos anos de 1919 a 1930, período em que são observados os avanços de ordem técnica em impressão das revistas ilustradas, que, assim, permitiram a incorporação de fotografias e gravuras coloridas. Nesse ínterim, as revistas A Semana, Belém Nova e Guajarina integram nosso corpus documental primordial, por serem os periódicos que alcançaram o maior tempo de circulação, além de trazerem o maior número de imagens e publicidades. Através delas, penetramos nos recônditos familiares, preservados pelas lentes das câmeras que registraram cenas do cotidiano e que por diversos motivos foram publicizados, chegando às suas páginas. De semana em semana, ou de quinzena em quinzena, as revistas propagandeavam a imagem de famílias ilustres do estado e anúncios dos mais diversos produtos, além de crônicas, artigos e poemas que abordaram direta ou indiretamente a infância. O conjunto de todos esses registros permitiu analisar diferentes representações coletivas de infância construídas pelos sujeitos da época. As revistas, além de se constituírem em veículos catalizadores e divulgadores da cena literária e intelectual, também eram importantes espaços de afirmação das elites política e econômica da cidade, servindo muitas vezes de instrumentos de propaganda das ações dos governos e dos eventos que envolviam os mais abastados. Contudo, é necessário destacar que entendemos elite enquanto um grupo de indivíduos que ocupa posições-chave em uma sociedade, dispondo de poder, de influência e de privilégios, que são produtos de uma seleção social ou intelectual que repercutem no acesso a determinados bens, sendo, assim, inacessíveis ao conjunto de seus membros302. Faz-se mister 302 HEINZ, Flávio. “O Historiador e as elites – à guisa de introdução”. In: ______ (Org.). Por outra história das elites. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2006, p. 08-09.


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ressaltar que a detenção de certo poder, embora possibilite o acesso às posições dominantes, não pressupõe, em contrapartida, um corpo homogêneo e monolítico socialmente. Ao utilizarmos o termo “elite” neste trabalho, abordaremos a experiência de indivíduos que, por diferentes interesses, adotaram a revista como meio de afirmar seus valores e comportamentos303. Nosso contexto diz respeito aos anos de 1920, quando a cidade de Belém sofreu com a estagnação da economia da borracha. Os lucros obtidos pela comercialização da hevea, que antes impulsionaram a reurbanização da capital paraense, desaceleraram fortemente com a concorrência da borracha asiática e sua oferta a preços mais competitivos no mercado internacional304. A pujança econômica experimentada em um passado recente, especialmente durante a intendência de Antônio Lemos, que proporcionou as transformações urbanísticas da cidade, como a abertura de boulevards, o calçamento e a arborização das ruas do centro com as emblemáticas mangueiras, a construção do Teatro da Paz e a implantação das redes de água e esgoto, inspiradas na remodelação levada a cabo por Haussmann, em Paris, também possibilitaram a Belém a condição de vitrine para os investimentos estrangeiros em plena floresta amazônica305. Os áureos tempos da economia gomífera passaram. Nos anos 20, a crise do funcionalismo público do estado e o grande contingente de desempregados foram consequências do baixo fluxo de capitais que se deu após a queda dos preços da borracha306. Além disso, as contradições sociais já existentes agudizaram-se no período. O enferrujamento dos bondes e a escuridão das ruas devido à deterioração da rede de iluminação pública constituem não apenas o 303 BOURDIEU, Pierre. Condição de classe e posição de classe. In: AGUIAR, Neuma. Hierarquias em classes. Rio de Janeiro: Zahar, 1973, p.67.

304 De acordo com Barbara Weinstein, os saldos da economia da borracha no Pará, e na Amazônia como um todo, diminuíram vertiginosamente após o ano 1910. Nem mesmo o crescimento da exportação do produto, observado em 1912, pôde conter a sua desvalorização no mercado. Um dos principais motivos da queda dos preços da borracha na região foi a concorrência da produção racional de látex proveniente da Ásia, que, ano após ano, passava a aumentar sua parcela nos lucros dentro da balança comercial internacional. Cf. WEINSTEIN, Barbara. A borracha na Amazônia: expansão e decadência, 1850-1920. São Paulo: HUCITEC, 1993.

305 SARGES, Maria de Nazaré. Belém: riquezas produzindo a Belle Époque (1870-1912). Belém: Paka-Tatu, 2010. 306 FIGUEIREDO, Aldrin. Os Vândalos do Apocalipse e outras histórias: arte e literatura no Pará dos anos 20. Belém: IAP, 2012, p. 50.

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cenário de dificuldades que se configurou naqueles anos como também servem de metáfora à precarização da vida na outrora “Paris dos trópicos”307. Na contramão desse cenário de crise, a década de 20 pode ser considerada um marco para a difusão de revistas ilustradas em Belém. Se todos os fatores citados evidenciam um contexto desolador, de tons escuros e monocromáticos, as revistas contrariamente imprimem um novo colorido ao cotidiano. Nelas, os espetáculos teatrais, os lançamentos cinematográficos, os bailes de gala na Assembleia Paraense, além de datas importantes para as famílias abastadas de Belém, como casamentos, aniversários, batismos ou o nascimento de seus herdeiros, eram noticiados com certa pompa e estampadas com cada vez mais cores e matizes. Evidenciando a função de vitrine de produtos e negócios que as revistas possuem. Espaço propício durante os primeiros passos da publicidade, a revista A Semana não deixou de destacar as novas oportunidades de lucros que o setor madeireiro permitia, apontando-o como alternativa ao decadente mercado da borracha, e, portanto, como meio de enfrentar a crise. A fotografia de um carregamento de madeira no porto de Belém, sob o título “as nossas possibilidades”, potencializa a mensagem otimista da revista quanto às oportunidades de melhora econômica da cidade e da região308. As revistas se constituem, nas primeiras décadas do século XX, em novos referenciais de sociabilidade para os contemporâneos da época. No período, se viram florescer diferentes periódicos, ao estilo magazine309, revistas de variedades que reuniam diversos assuntos em um mesmo número, ou especializadas, tais como as revistas médicas, pedagógicas, esportivas, religiosas, entre outras. Em Belém, magazines, como A Semana, Caraboo, Belém Nova, Guajarina, Parauara, Terra Matura, tornaram-se as principais publicações, embora algumas não tenham conseguido permanecer por muito tempo no cenário local. Mesmo com perfis distintos, o que claramente influencia no espaço dedicado a determinados assuntos, as revistas locais dialogavam com a representação comum das revistas na época de veículo moderno, portadoras de um conteúdo refinado 307 COELHO, Marinilce. O Grupo dos Novos (1946-1952) – Memórias literárias de Belém do Pará. Belém: Edufpa/Unamaz, 2005, p. 24-25. 308 AS NOSSAS POSSIBILIDADES. A Semana, n. 383, 22 de agosto de 1925.

309 MAUAD, Ana Maria. Sob o signo da imagem: a produção da fotografia e o controle dos códigos de representação social da classe dominante, no Rio de janeiro, na primeira metade do século XX. 1990. 340 f. Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense (UFF), Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Programa de Pós-Graduação em História, 1990, p. 210.


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e atual, que, por isso mesmo, tornaram-se locus para os sujeitos verem e serem vistos nas colunas sociais, em que os eventos organizados pela elite da cidade eram divulgados310. Longe de ser uma especificidade local, a circulação de revistas de variedades se insere dentro de um contexto mais amplo, que, não por acaso, levou Maria Martha de Luna Freire a considerar a década de 1920 como a belle époque das revistas, devido à explosão de produção e consumo de revistas ilustradas em diferentes regiões do país311. Como a autora ressalta, cada vez mais as revistas ilustradas ganhavam a imagem de porta-vozes da novidade. Quem buscava a leitura desses periódicos tinha por objetivo ter acesso a um conteúdo visto como moderno, atualizado às últimas tendências da moda, literatura, música, cinema, esportes, etc.312. Modernidade tornou-se expressão corrente entre as décadas finais do século XIX e entre as primeiras do XX, períodos marcados pelo frenesi em relação aos avanços tecnológicos conquistados com o desenvolvimento dos potenciais energéticos, como a eletricidade e os derivados de petróleo. Mais do que isso, o ritmo das descobertas e inovações repercutiu drasticamente na vida dos sujeitos, acelerando os transportes, as comunicações, as jornadas de trabalho e alterando os costumes cotidianos, principalmente nos meios urbanos313. Como Maria Martha de Luna Freire chamou a atenção, modernidade que acabou por se constituir em paradigma para a formulação de políticas públicas, seja por meio da remodelação dos espaços da urbe, seja através da normatização dos hábitos nos meios público e privado, calcada na crença da autoridade científica como orientadora da sociedade, de sua ordem e de seu progresso314. Ser “moderno”, em muitos momentos, significou estar atualizado aos novos padrões de comportamento que se instituíam com a emergência da higiene,

310 MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revista: imprensa e práticas culturais em tempos de República (1890-1922). São Paulo: Edusp/FAPESP, 2008.

311 FREIRE, Maria Martha. Mulheres, mães e médicos: discurso maternalista no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009, p. 24. 312 FREIRE, Maria Martha. Op. Cit., 25.

313 SEVCENKO, Nicolau. Introdução. O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso. In: ______ (org.). História da vida privada no Brasil – da Belle Époque à era do rádio. São Paulo: Companhia da Letras, 2010, p. 09. 314 FREIRE, Maria Martha. Op. Cit., p. 20.

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afirmando certo otimismo e uma euforia das elites em relação à ciência e a tecnologia315. Esse sentimento se adensou após a instauração da República, que, para muitos contemporâneos da época, representou um passo primordial para se galgar a civilização do país. Segundo Maria Tereza Chaves de Mello, era corrente na sociedade, principalmente entre os setores mais liberais da intelectualidade, a linha interpretativa que percebia a implantação da República, somada à abolição dos escravos, como a insígnia da entrada do país nas sendas do progresso316. “No afã do esforço modernizador , as novas elites se empenhavam em reduzir a complexa realidade social brasileira, singularizada pelas mazelas herdadas do colonialismo e da escravidão, ao ajustamento em conformidade com padrões abstratos de gestão social hauridos de modelos europeus ou estadunidenses”317. De acordo com Nicolau Sevcenko, essa fase eufórica para os grupos beneficiados com o novo regime, que abrange o período da Grande Guerra, durante a qual ocorreu um impulso em setores da indústria brasileira com o aumento das exportações para os países beligerantes, assinala a introdução no país de novos padrões de consumo, estimulados pela interação entre as modernas revistas ilustradas e a nascente publicidade318. Em parte, a representação do objeto revista como veículo novidadeiro, verdadeiro emblema da modernidade, ocorreu devido a melhor incorporação das novas tecnologias em impressão319. Segundo Ana Luiza Martins, as revistas, por sua periodização mais espaça, sendo semanais, quinzenais, mensais e, até mesmo, semestrais, aproveitaram melhor as inovações em impressão, o que possibilitou um acabamento mais apurado para suas páginas320. Diferente dos jornais, voltados ao conteúdo factual, as revistas puderam abordar temas como a moda, os flirts em público, as efemérides pátrias, a literatura e as notícias que movimentavam o colunismo social de maneira mais 315 FREIRE, Maria Martha. Op. Cit., p. 25.

316 MELLO, Maria Tereza C. de. A República consentida: cultura democrática e cientifica do final do Império. Rio de Janeiro: Ed. FGV/Edur, 2007. 317 SEVCENKO, Op. Cit., p. 27.

318 Ibidem, 37.

319 FREIRE, Maria Martha. Op. Cit., 25; MARTINS, Ana Luiza. Da fantasia à História: folheando páginas revisteiras. História (São Paulo), São Paulo, v. 22, n. 1, p. 59-79, 2003, p. 72-73.

320 MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revista: imprensa e práticas culturais em tempos de República (1890-1922). São Paulo: Edusp/FAPESP, 2008, p. 40.


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aprofundada. “A aproximação com as revistas revela que elas mesmas expressam a ideia de que o consumo cultural é, ao mesmo tempo, uma instancia de socialização e de distinção, incluindo variados graus de refinamento”.321 Não por acaso, as revistas ganharam status de leitura “sadia”322. Os avanços tecnológicos permitiram a ampliação da cartela de cores e a oportunidade de reproduzir fotografias, o que deu nova aparência aos periódicos, principalmente às páginas das revistas. A alcunha de “ilustradas”, em especial, não deve passar despercebida. Parece-nos oportuno afirmar que se estava conferindo um novo significado para a imagem na imprensa do período, ao ponto desta se tornar um artifício à parte para atrair novos leitores323. Martins também atenta para isso, ao destacar que a imagem resultou em uma maneira eficaz de potencializar as informações, pois seu poder multiplicador de sentidos alcançava mesmo àqueles que não eram alfabetizados324. Seguindo essa tendência, as revistas veiculadas na capital paraense deram novos tons à cena urbana local. A Semana, por exemplo, “A interessante e elegante revista da elite paraense”, como destacada por seus editores, circulou sempre aos sábados. De propriedade de Alcides Santos, o semanário foi criado em 1918, em forma de jornal, e apenas no ano seguinte adotou o formato de revista. Sua redação ficava à travessa 7 de setembro, nº 33, e, no mesmo endereço, funcionava a casa tipográfica, responsável por sua impressão e por executar serviços gráficos sob demanda, como a confecção de cartões de visita, livros, folhetos, etiquetas, rótulos, carteiras, etc. A chefia de redação ficou a cargo de Rocha Moreira, cearense radicado em Belém, poeta e articulista do jornal Folha do Norte325. De inspiração art nouveau, seguindo as tendências da época, seu projeto gráfico apostava em elementos da natureza, como as margens florais que 321 KAMINSKI, Rosane. Gosto brejeiro: as revistas ilustradas e a formação de juízos estéticos em Curitiba. In.: BREPOHL, Marion; CAPRARO, André Mendes; GARRAFFONI, Renata Senna. Sentimentos na História: imagens, práticas, emoções. Curitiba: Editora UFPR, 2012, p. 231. 322 FREIRE, Maria Martha. Op. Cit., 25.

323 MARTINS, Ana Luiza. Op. Cit., p. 193.

324 MARTINS, Ana Luiza. Op. Cit., p. 193-192.

325 LACERDA, Franciane Gama. Entre o sertão e a floresta: natureza, cultura e experiências sociais de migrantes cearenses na Amazônia (1889-1916). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 26, n. 51, p. 197-225, 2006.

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emolduravam as fotos nas capas, e valorizava a sinuosidade das curvas. Foi o hebdomadário belenense que possuiu o acabamento mais refinado, contando com a maior parte de sua impressão em papel couché, e com mais fotografias e anúncios que seus congêneres analisados no trabalho. Não por acaso, o preço de seu exemplar, as assinaturas e o espaço para a publicidade eram mais caros, e, como sugere o grande número de ilustrações e anúncios, era também o periódico mais apreciado. Nas páginas ímpares (mais valorizadas), marcas nacionais e internacionais de diversos produtos, como Emulsão de Scott, Nestlé e Quaker, disputavam os centímetros e a atenção dos leitores, bem diferente das revistas concorrentes, que não contavam com anunciantes do mesmo porte. No início da década de 1920, A Semana foi o principal meio de divulgação da produção literária local, até o surgimento de Belém Nova (1923), revista dirigida por Bruno de Menezes. De periodização quinzenal, a publicação circulou entre os anos de 1923 e 1929, sendo impressa pela gráfica oficial do Estado. Muitos de seus colaboradores estavam comprometidos com um movimento de renovação da literatura paraense ou, podemos dizer, com o modernismo no Pará. Além de Bruno de Menezes, Abguar Bastos, De Campos Ribeiro, Jacques Flores, Paulo Oliveira, entre outros, integravam a “Associação dos Novos”, assim denominado o grupo de intelectuais que percebeu como necessária a renovação da literatura paraense, sintonizando-a às vanguardas artísticas europeias326. Belém Nova alcançou uma tiragem de 5 mil exemplares, número considerável para uma revista de letras e ostentado pelo periódico: “Belém Nova é a revista de maior circulação e tiragem no norte do Brasil”327. Embora tenha dedicado espaço ao mundanismo, a maior parte de seu conteúdo era voltado à literatura. Abraçou como nenhuma outra a renovação estética e o combate ao passadismo, atribuído a movimentos literários anteriores, como o Parnasianismo e o Simbolismo328. 326 Sobre o “modernismo” no Pará Cf. FIGUEIREDO, Aldrin. Os Vândalos do Apocalipse e outras histórias: arte e literatura no Pará dos anos 20. Belém: IAP (Instituto de Artes do Pará), 2012; ______. Eternos Modernos: uma história social da arte e da literatura no Pará (1908-1929). Tese (Doutorado) – Universidade de Campinas (UNICAMP), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História Social. Campinas, 2000. 327 Belém Nova, n. 73, 20 de agosto de 1927.

328 FIGUEIREDO, Aldrin. Eternos Modernos: uma história social da arte e da literatura no Pará (1908-1929). Tese (Doutorado) – Universidade de Campinas (UNICAMP), Instituto de


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Outra importante revista, Guajarina, foi um quinzenário que circulou de maneira intermitente, em três períodos distintos: 1919-1920; 1930-1931; 1937. Localizada à travessa Padre Prudêncio, nº 17, a revista era editada pela tipografia Delta e também sobrevivia da impressão de modinhas, chulas, sambas e foxtrotes em folhetos, além da comercialização de obras da literatura sertaneja, como romances e cordéis329. De propriedade do pernambucano Francisco Lopes, dono de uma folhetaria de cordel homônima à ilustrada, a revista dedicou espaço à literatura e ao mundanismo, de um modo geral330. Ao analisarmos a trajetória de Guajarina, percebemos que foi o periódico que apresentou o projeto gráfico mais irregular, com propostas bastante diferentes em cada período que circulou. As mudanças disseram respeito não apenas às concepções estéticas, e, sim, quanto às dificuldades financeiras enfrentadas pela casa editora para veicular o periódico. Em 1930, por exemplo, quando retorna depois de longo hiato, a revista trazia pouquíssimas fotografias, e suas capas eram ilustradas, na maioria das vezes, por caricaturas. Em meados desse mesmo ano, a revista deixou de circular a cada quinze dias para tornar-se um semanário. Sua fatura até melhorou, com o incremento de cores e fotografias, ainda que seu projeto gráfico fosse mais acanhado, com menos peças publicitárias e ilustrações. Em 25 de outubro, no entanto, a revista não deixou de expressar suas dificuldades logísticas, como quando comunicou aos leitores que a escassez de papel na praça poderia suspender a circulação do magazine331. Embora dedicassem um grande espaço para a propaganda dos empreendimentos dos governos da situação, em certos momentos os perfis de cada periódico ficavam mais alinhados a determinadas correntes políticas. Um exemplo disso diz respeito ao famoso caso das agressões sofridas pelo então diretor da revista Belém Nova, Paulo Oliveira, por capangas do governador do estado, Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História Social. Campinas, 2001, p. 226-227.

329 A editora Guajarina foi alvo de um interessante trabalho sobre a produção e circulação de folhetos de cordel, em Belém, entre 1922 e 1949, realizado por Geraldo Magella de Menezes Neto. Cf. MENEZES NETO, Geraldo Magella. Por uma história do livro e da leitura no Pará: o caso da Guajarina, editora de folhetos de cordel (1922-1949). 2012. 165 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de PósGraduação em História da Amazônia. Belém, 2012. Sobre a circulação da revista vide: NOVA PHASE. Guajarina, n. 24, 18 de outubro de 1930. 330 MENEZES NETO, Geraldo Magella. Op. Cit., p. 52. 331 Guajarina, n. 29, 25 de outubro de 1930.

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Dionísio Bentes. A revista, que teceu críticas ferrenhas ao governador devido ao escândalo de concessões de terras a parentes, amigos e correligionários, lançou um número com vários artigos com denúncias a Bentes, estampando, ademais, fotografias dos hematomas e ferimentos sofridos por Oliveira332. Em que pese a orientação política de cada periódico, predominava a veiculação de conteúdo menos ácido sobre política, resguardando uma característica geral das revistas “mundanistas”, que é a de levar ao público um conteúdo visto como mais ameno – o que não significa dizer que seus articulistas não participavam dos debates políticos, inflamados pelas diferentes correntes partidárias do estado. Em momentos de grande tensão, por exemplo, com o aumento da censura333, a orientação editorial das revistas pode ser vista como estratégia para se manter em jogo, pois a atenuação do tom não significou ausência de crítica ou de tomada de posição. Rocha Moreira, redator-chefe da revista, em artigo comemorativo pelos três anos de A Semana, publicado em 26 de março de 1921, deixou clara a visão contemporânea da época sobre o perfil editorial que as revistas ilustradas deveriam seguir, asseverando a função do periódico, que tinha por intuito comentar “Os fatos da vida provinciana e em cujo seio não penetrasse a política, perpétua fonte de dissociação”334, ainda que expressasse seu apoio discreto ao governador Souza Castro, em um contexto em que o governo sofria duras críticas pela condução da crise do funcionalismo público335. Essa particularidade, porém, não inviabilizou que as revistas abrissem outras frentes de discussão política no campo estético, por meio da literatura e das artes plásticas, e se tornassem um espaço profícuo para a abordagem de diversos temas cotidianos, que nem sempre eram dignos de nota nas páginas dos jornais, em especial, sobre o papel da mulher na sociedade e também, para nós em particular, da criança.

332 Belém Nova, n. 73, 30 de agosto de 1927.

333 Em 1927, as críticas ao governo de Dionísio Bentes se acentuaram na imprensa após escândalos de corrupção dos cofres públicos do Estado. O recrudescimento da censura chegou a provocar a saída de circulação de Belém Nova, em outubro do mesmo ano. FIGUEIREDO, Aldrin. Op. Cit., p. 100-105. 334 A Semana, n. 155, 26 de março de 1921.

335 FIGUEIREDO, Aldrin. Op. Cit., 2001, p. 223.


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Imagem 1: Fotografia. “A nossa alta sociedade”. A Semana, n. 354, 31 de janeiro de 1925. Seção de Obras Raras da Fundação Cultural do Estado do Pará - CENTUR.

Com as revistas, um novo espaço de propaganda política é aberto para veiculação das ações governamentais. Todas as que foram analisadas enalteceram em algum momento as políticas implementadas pelos governos da situação em diversas áreas, como educação, saúde, economia, infraestrutura urbana, etc. Com o auxílio de fotografias, as matérias eram potencializadas pelo conteúdo visual, ampliando o alcance da mensagem aos diferentes leitores. Ao apresentar figuras do meio político, no entanto, elas chamaram a atenção não somente para os aspectos da gestão pública. Na imprensa, tornou-se praxe a publicação de fotografias dos candidatos eleitos dias após a realização do pleito ou nos primeiros dias de seus mandatos. A imagem atua como uma espécie de “pórtico inaugural”, com a intenção de marcar a chegada de um novo governo, ou, melhor dizendo, de um novo tempo, sendo parte de uma

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cultura política336, que, com o avanço das tecnologias em impressão, torna-se cada vez mais visual. Geralmente, trata-se de um retrato, em que a autoridade aparece muito bem alinhada, invocando respeitabilidade através de uma figura altiva. Em um número d’A Semana, de 31 de janeiro de 1925, por exemplo, o retrato do recém-eleito governador do estado do Pará, Dionísio Bentes, foi publicado na capa. Nesse sentido, o retrato de perfil do político tem por intenção reforçar seu prestígio através de seu êxito pessoal337. Em outros casos, no entanto, a fotografia visa explorar outras facetas do homem público, e a reivindicação de autoridade pela imagem é coadunada aos papéis de pai e marido. Dias antes da posse, A Semana estampou novamente uma fotografia de Dionísio Bentes em página inteira, dessa vez acompanhado de sua família (Imagem 1). Permeando a fotografia, o objetivo de transparecer à sociedade uma figura respeitável, baseada no casamento e na constituição de uma família com filhos. A exposição da imagem na imprensa está de acordo com as convenções do início dos mandatos e evidencia o desejo dos chefes políticos de mostrar à opinião pública seu merecimento de confiança, por demonstrarem princípios condizentes aos “bons costumes” da época, como casar e gerar herdeiros. Nessa perspectiva, a posição de cada membro presente na imagem possibilita perceber algumas intenções da fotografia. A imagem altiva do pai no centro da fotografia, por exemplo, pode ser um meio de revelar sua seriedade e liderança dentro do grupo; a mulher, que aconchega seu filho menor, sugere as expectativas esperadas de uma esposa amorosa a sua família338. As crianças, entrementes, estão longe de figurarem apenas de maneira assessória na imagem. Primeiramente, a presença dos filhos, de um modo geral, pode representar uma imagem bem-sucedida da família calcada principalmente nos estudos, aqueles que serão os responsáveis por darem continuidade familiar. Os menores, porém, denotam o cuidado dos pais, ao apresentarem uma imagem 336 Roger Chartier chama atenção para as formas como as representações de poder se insinuam em textos e objetos que fazem parte do cotidiano da maioria. No contexto do Antigo Regime, analisado pelo autor, tais representações muitas vezes objetivavam celebrizar, por meio de textos e imagens, a vida ritualizada dos príncipes, visando a reforçar seu culto e a cimentar sua autoridade, ao se inscrever nas práticas e representações de sociabilidade, tanto na dimensão pública quanto privada dos sujeitos. CHARTIER, Roger. História cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 2002, p. 195-198. 337 CORBAIN, Alan. O segredo do indivíduo. In PERROT, Michelle. História da vida privada – da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 338 A Semana, n. 354, 31 de janeiro de 1925.


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saudável e asseada, que pode afirmar assim a figura do político também como bom chefe de família339. Se, por um lado, a imagem manipula os padrões de marido e esposa, com o intuito de firmar a imagem como modelo para os leitores, os jovens e as crianças deixam claro o sucesso obtido nessa trajetória, mostrando-se como os bons resultados dos cuidados destinados pelos responsáveis340. Nesse caso, as crianças desempenham um forte papel na propaganda política dos governantes. Não sabemos ao certo se a fotografia foi feita especialmente para o clichê da revista. A imagem, contudo, expõe sua dimensão negociada341. Ao analisar a produção de retratos pictóricos do casal Portinari, Sérgio Miceli chama atenção para as relações de negociação estabelecidas entre os envolvidos, o artista e os retratados. Como o autor bem relata, as pinturas não deixam de indicar as expectativas dos agentes quanto à imagem pública que querem apresentar, e, por isso mesmo, são travadas constantes negociações, objetivando o melhor manejo dos sentidos que retratados e retratistas querem infundir, seja na própria obra, seja nos parâmetros de sua leitura e interpretação342. Ao ter sua imagem capturada pela lente da câmera, a família elege aquele momento como digno de ser retratado, fixando assim sua representação no tempo. Seu registro posado busca orientar o expectador a ler a mensagem pretendida, a ver aquilo que o grupo deseja revelar. E, por meio dela, busca fortalecer a imagem do grupo enquanto conjunto, ao mesmo tempo legitimando certo modelo de família a ser seguido. Como bem indicou Michelle Perrot, “O valor normativo desse modelo, tão detalhado quanto um código de etiqueta, tão coercitivo quanto um cerimonial aristocrático, justifica o lugar que lhe é concedido. Através dele, esboça-se uma vontade de um estilo de vida”.343 Aliás, considerando a dimensão política do registro, acreditamos que outra colocação da autora também é bastante bem-vinda: “A domesticidade é um modo 339 BRITES, Olga. Crianças de Revista. Educação e Pesquisa. São Paulo, v.26, n.1, p.161-176, jan./ jun. 2000, p. 166. 340 BRITES, Olga. Op. Cit., 2000, p. 168-169.

341 MICELI, Sergio. Imagens Negociadas: retratos da elite brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 21. 342 MICELI, Sérgio. Op. Cit., p. 15

343 PERROT, Michelle. A vida em família. In.: ______. História da Vida Privada IV: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 173.

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e um modelo de governo”344, e, portanto, todos os membros do grupo devem desempenhar bem suas funções para, com isso, garantir a ordem e a harmonia da casa. Por esse ângulo, a fotografia da família Bentes pretende ser lida de maneira positiva pelo público ao reforçar o cumprimento de “boas condutas” por seus agentes. De acordo com Miriam Moreira Leite, desde o final do século XIX, a fotografia passa a exercer um papel simbólico na legitimação da família. O ritual do registro fotográfico parece solenizar diferentes momentos da vida privada, conferindo certa distinção social à família. Porém, ao eleger “os momentos retratáveis”, o grupo deseja reproduzir sua condição social, além de demonstrar sentimentos, padrões de comportamento e atenção a determinadas condutas sociais, elaborando uma representação daquilo que gostaria de ser. Assim, se difundem as fotografias de casamento, piqueniques, aniversários, preservadas em álbuns, a princípio mais presentes em famílias de classe média e alta345. Por outro lado, embora trate-se de uma foto emblemática, devido à posição política que seus protagonistas ocupam, a fotografia da família Bentes elucida, ainda, o hábito cada vez mais comum entre as elites da época, de não somente registrar passagens do cotidiano, como de verem e serem vistos em páginas de revistas. As colunas sociais se ampliam potencializadas pelas imagens, e seções como “A felicidade do lar”, em A Semana, “Guajarina na intimidade”, em Guajarina, ou “Domingueiras”, em Belém Nova, mostram que as reuniões de família ganham maior espaço a cada número. Outros ritos privados passam a ser publicados nas ilustradas, em especial, os que envolvem as crianças, como aniversários, batizados e primeira eucaristia. Essas fotografias também tiveram sua seção própria, as “galerias infantis”, o que pode indicar o interesse dos leitores sobre as imagens de crianças nas publicações. A partir delas, é possível conferirmos a passagem do tempo infantil, acompanhar o crescimento de algumas crianças que apareceram com frequência nos periódicos locais. A regularidade de exposição de algumas delas instiga a perceber as revistas como um prolongamento dos álbuns de família, que o incentivo ao colecionamento das peças proporciona, embora outros significados se somem à representação infantil nas revistas. 344 PERROT, Michelle. Loc. Cit.

345 LEITE, Miriam Moreira. Retratos de Família. São Paulo: Edusp/FAPESP, 2000.


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Virando as páginas, a sucessão de imagens de crianças estimula alguns questionamentos. Ao abrirem suas portas e deixarem fotógrafos entrarem em suas casas, ocuparem as soleiras ou mesmo as salas de estar, por que tirar as crianças dos quartos e tornar públicas suas imagens? Essa pergunta pautou todo o processo de trabalho e levou a muitas outras, que tentamos responder em maior ou menor grau. Se, em um primeiro momento, tentamos evidenciar as revistas como espaços “modernos”, difusoras de uma linguagem visual que se aperfeiçoa segundo o desenvolvimento da técnica, avançaremos agora sobre os sujeitos ali presentes e, claro, sobre as infâncias que também objetivam revelar através de suas páginas ilustradas. Ao folhearmos as revistas, percebemos que as imagens de crianças não necessariamente estavam coadunadas aos artigos publicados, e, em muitas ocasiões, os textos abordavam assuntos diversos, em um primeiro olhar, sem necessariamente haver nexo entre os textos escritos e imagéticos nas páginas. Por outro lado, a figuração no meio dos artigos pode ser considerada uma estratégia das revistas para chamar atenção do leitor às fotografias, que, embutidas nos textos, acabavam por forçar o olhar, não apenas às crianças fotografadas, mas aos elementos que vinham juntos às imagens. Acompanhadas por uma legenda que mencionava o nome dos pais e, às vezes, de certos familiares, a exposição das crianças nas páginas das revistas destacava mais do que os sujeitos ali presentes. A fotografia anterior (Imagem 2), por exemplo, vinha acompanhada dos seguintes dizeres: “Domingos, interessante filho do Sr. Carlos Navarro, comerciante da nossa praça, que faz anos quarta-feira próxima”346. Embora os pais não figurassem na imagem, as crianças estavam diretamente ligadas a eles, por meio da veiculação dos seus nomes e sobrenomes, apresentados enquanto signos de distinção social347. O destaque aos pais e sobrenomes não era algo exclusivo das legendas que acompanhavam as fotografias de crianças. Como observou Cristina Cancela, anúncios de noivado e casamento também ressaltavam o sobrenome de suas famílias, e traziam os nomes dos pais dos contraentes, como meio de reforçar o pertencimento

346 A Semana, n. 158, 16 de abril de 1921.

347 BRITES, Olga. Crianças de Revista. Educação e Pesquisa. São Paulo, v.26, n.1, p.161-176, jan./ jun. 2000; ______. Imagens da infância: São Paulo e Rio de Janeiro, 1930/1950. Projeto História, São Paulo, v. 19, nov., 1999.

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e a condição privilegiada dos envolvidos348. As revistas se constituíam em instrumentos de afirmação das elites locais, pondo em relevo elementos que caracterizam a influência social de famílias consideradas ilustres. A presença constante de algumas crianças nas revistas, algumas vezes em números seguidos, pode indicar tanto uma proeminência social da família quanto relações estreitas entre esta e os articulistas dos periódicos. Imagem 2: Fotografia. “Domingos”. A Semana, n. 158, 16 de abril de 1921. Seção Obras Raras da Fundação Cultural do Estado do Pará – CENTUR.

Nas revistas, estava em jogo a afirmação do prestígio da família através da apresentação aos leitores de uma imagem asseada e bela das crianças. Dessa forma, a exposição infantil tinha para as famílias uma finalidade prática, mas, por outro lado, poderia representar para a opinião pública o zelo por aqueles que darão continuidade à família e que no futuro estarão encarregados de assumir a riqueza e o sobrenome enquanto signo de influência no meio social349. Seria este um dos motivos para tornar pública a imagem das crianças 348 CANCELA. Cristina. Destino cor-de-rosa, tensão e escolhas: os significados do casamento em uma capital amazônica (Belém, 1870-1920). Cadernos Pagu, Campinas, n. 30, p. 301-328, 2008. 349 BRITES, Olga. Op. Cit., 2000, p. 168.


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nas páginas das revistas. Com isso, o processo de publicização da bela aparência delas objetivava ecoar os cuidados que as famílias têm para com seus filhos, “futuro da família”, e, com isso, fortalecer a imagem de família “bem-estruturada” frente à sociedade. Portanto, ao invés de perceber as imagens como fontes (repostas prontas e inesgotáveis), ou evidências (fatos incontestáveis), elas podem vir a se constituir como importantes indícios (pistas) do passado, ao possibilitarem “imaginá-lo” de uma maneira mais vívida350. Em uma linha semelhante, inspirado no método indiciário de Carlo Ginzburg, Boris Kossoy destaca que as imagens carregam em si indícios, microaspectos de cenários, fatos e personagens de determinados tempo e espaço351. A análise, ou, nas palavras do autor, a desmontagem da trama fotográfica, implica o desvelamento das intenções, usos e finalidades que permeiam a produção e a trajetória das fotografias. Os elementos icônicos presentes na imagem constituem códigos culturalmente construídos que fazem parte de um sistema histórico de representação visual. Nessa perspectiva, em se tratando das fotografias de crianças em revistas, a pose, as vestes, os objetos postos em cena, o ambiente escolhido, enfim, os diferentes elementos que se materializam em frente à luz da câmera e compõem o registro fotográfico indiciam uma historicidade dos valores construídos sobre as crianças. As imagens elucidam um processo de seleção que envolve a composição das fotografias, com a finalidade de transparecer à opinião pública a sintonia das famílias a valores sociais que expressem requinte. Os significados atrelados à fotografia ultrapassam a impressão de retrato da realidade, se constituindo primordialmente no resultado de um ato de investimento de sentido352. As fotografias veiculadas pelas revistas devem ser concebidas como fruto do trabalho social de produção, pautado em códigos convencionalizados culturalmente que remetem às formas de ser e agir do contexto em que as mensagens fotográficas foram construídas, como afirmado por Ana Maria Mauad, ao discorrer sobre a 350 BURKE, Peter. “O testemunho das imagens”. In.: ______. Testemunha ocular: História e imagem. Tradução: Vera Maria Xavier dos Santos. Bauru: EDUSC, 2004, p. 11-41.

351 KOSSOY, Boris. Os Tempos da fotografia: o efêmero e o perpétuo. Cotia: Ateliê Editorial, 2014, p. 31.

352 MAUAD, Ana Maria. Através da Imagem: fotografia e história interfaces. Tempo, Niterói, v. 1, n. 2, p. 73-98, 1996, p. 03.

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importância de romper com a visão que toma a fotografia enquanto analogon da realidade e da necessidade de percepção da mesma em sua historicidade353. Destarte, as fotografias também são produtos de escolhas354 que buscam interferir nas leituras feitas sobre as imagens. Miriam Moreira Leite elucida que essas escolhas acabam por transformar o momento de captura da imagem em um ritual, atribuindo uma aura solene inteiramente ligada ao processo de seleção que envolve a fotografia, como o uso de certas roupas, o ensaio de posturas corporais, a escolha dos artefatos a serem evidenciados em cena e de determinado local para a feitura do registro355. Assim, podemos inferir a construção negociada que implica a elaboração da fotografia, pois as imagens publicizadas pelas revistas são construídas a partir de mediações entre os sujeitos envolvidos, as pretensões do fotógrafo e dos que encomendam os retratos de crianças, o que, na perspectiva de Sérgio Miceli, configura “imagens negociadas”, como elucidamos anteriormente356. Dessa feita, o clique final transmite os desejos de projeção social que os sujeitos possuem e, consequentemente, de interferir na consagração de sua própria imagem. Desse modo, a figura asseada e bela das crianças acaba por corroborar não apenas a posição social, mas também os signos de poder e riqueza que as famílias pretendem exibir. Em sentido lato, percebe-se, assim, que as representações de infância em revistas permitem analisar a reinterpretação da imagem das crianças na época. As preocupações com as imagens das crianças, ou seja, sua elaboração negociada, são sintomáticas da maior visibilidade que elas adquirem no período que compreende desde as décadas finais do século XIX à primeira metade do século XX. Não obstante, acionada de diferentes maneiras, a associação das crianças para as noções de futuro ocorre sob muitas roupagens, seja pelas famílias, que não deixam de usar a imagem das crianças em seus anseios de distinção e afirmação social, seja pela classe política, através de discursos que reforçam a necessidade de intervir sobre a infância por meio da educação e da assistência como forma de assegurar o ingresso do estado e, de um modo geral, do Brasil, na esteira do progresso. 353 MAUAD. Ana Maria. Op. Cit., p. 03.

354 LEITE, Miriam Moreira. Retratos de Família. São Paulo: Edusp/FAPESP, 2000, p. 95. 355 Ibidem, p. 74.

356 MICELI, Sérgio. Op. Cit., p. 21.


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A imagem da infância, enquanto período da vida que carece de intervenção e planejamento, não se inaugura na década de 1920. Como destaca Michelle Perrot, após a Revolução Francesa, a visão de grupo, que prevalece sobre os indivíduos, transformou a noção de criança. Seres “sociais”, os filhos não pertencem apenas aos pais, pois agora representam o futuro da nação, da raça, etc.357. No Brasil, Patrícia Hansen, ao analisar a constituição de uma literatura cívico-pedagógica que eleva a imagem da criança-futuro, identifica uma acentuação desta postura com a implantação da República358. Vista como projeto coletivo, a infância ganha maior visibilidade, adquirindo por conseguinte nova “função social”359. Phillipe Ariès também dá pistas sobre a historicidade da infância como período que reclama atenção e cuidados. Por isso, aqui, cabe uma nova digressão: de acordo com Ariès, a percepção de especificidades referentes à criança, diferenciando-a do adulto, desenvolveu-se de maneira mais acentuada a partir de finais do século XVI e durante o século XVII. O surgimento de dois sentimentos de infância – a “paparicação”, a não hesitação em demonstrar afeto através de gestos de carinho às crianças, bem como a exasperação, o “negativo” da atenção dedicada às mesmas, inspirando sua disciplinarização – evidencia uma nova sensibilidade em relação às crianças. Embora de maneiras diferentes, tais sentimentos tomam a inocência e a fraqueza como próprias da infância, e, associados às preocupações com a higiene e a saúde física, influenciaram, inclusive, a educação do século XX360. Essa diferenciação de dois sentimentos, paparicação e exasperação, todavia, faz parte de um mesmo processo de ampliação da infância como campo de ação, disputa de saber e representação. Pontua, ao mesmo tempo, a necessidade de disciplina e conhecimento – que estão na gênese da institucionalização de certos saberes, tais como a pedagogia, a psicologia e a medicina, em vertentes voltadas especificamente à formação infantil –, e as representações de infância 357 PERROT, Michelle. Op. Cit., p. 134.

358 HANSEM, Patrícia. Brasil, um país novo: literatura cívico-pedagógica e a construção de um ideal de infância brasileira na Primeira República. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo (USP), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Humanas, Programa de Pós-Graduação em História Social. São Paulo, 2007, p. 16. 359 PERROT, Michelle. Op. Cit., p. 147.

360 ARIÈS, Philippe. História Social da criança e da família. Rio de janeiro: Guanabara, 1981, p. 65; 162-164.

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que naturalizam a inocência, a ausência de conflitos e a alegria como próprias deste período da vida361. Imagem 3: Fotografia. “Claudio”. A Semana, n. 275, 28 de julho de 1923. Sessão de Obras Raras da Fundação Cultural do Estado do Pará - CENTUR.

361 Idem, 1981, p. 162-164; BRITES, 2000, p. 166.


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Imagem 4: Fotografia. “Um Travesso”. A Semana, n. 337, 04 de outubro de 1924. Sessão de Obras Raras da Fundação Cultural do Estado do Pará - CENTUR.

Saúde e educação despontam nas revistas como as principais áreas de confluência da formação infantil, afinal, faz-se necessário criar e educar crianças saudáveis visando o futuro das famílias, da raça e da nação. Quando defendidos como os principais campos de modernização da sociedade, por meio da intervenção sobre a infância, comumente recorreram a representações do período infantil que negavam certas contradições sociais. Isso se deve ao próprio espaço das revistas, também idealizado, visto como conteúdo seleto, higiênico, sem compromisso com o noticiário factual dos jornais, marcado pela doença, pobreza e violência. Perspectivada como futuro, a infância foi retratada de diferentes maneiras nas ilustradas, iluminada em certos pontos, desfocada em outros. Determinados aspectos foram ressaltados em detrimento de algumas nuances nem sempre convenientes.

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Fotografias de crianças com brinquedos possibilitam entrever o processo de seleção que envolvem as representações, além de capturarem bem a idealização da infância como período de alegria e de ausência de intemperanças e sofrimentos. O aparecimento de crianças com brinquedos em cena não deixa de ser um indicativo da negociação que ocorre durante a produção das fotografias. Primeiramente, as informações que acompanham as fotografias (Imagens 3 e 4) evidenciam o desejo das famílias de afirmar a condição de privilégio das crianças e, em consequência, reforçar seu prestígio frente à sociedade: “Claudio, vivaz filhinho do coronel Thomé Odorico de Macedo, conferente da Alfandega e que fez annos a 21 do corrente” (Imagem 3)362. E, “Fez annos hontem o travesso abê, interessante filhinho do deputado Sr. Abelardo Condurú e de sua distincta esposa Sr.ª Celecina Carneiro Condurú. O garôto recebeu tantos ‘bon bons’ e brinquedos, que pôs em reboliço o lar daquelle nosso prezado amigo” (Imagem 4)363. Se, para os adultos, a ostentação pública de joias demonstra o “status” do indivíduo, exibir as crianças com brinquedos sofisticados pode revelar um significado semelhante, ao realçar as possibilidades de compra da família como meio de reforçar sua condição social abastada. Nessa perspectiva, a infância é novamente percebida como um período marcado pela felicidade, porém, sinalizando o consumo como condição para isso364. A escolha do brinquedo a ser mostrado, ademais, não é feita ao acaso. Ele também desvela as pretensões de ser moderna das elites. A bicicleta, o carro, o trem, todos os brinquedos que aludem a velocidade, o domínio da tecnologia. Objetos que ganham os quartos das crianças desde o século XIX, quando a indústria especializada em brinquedos ganha cada vez mais terreno365. Essa “modernização” não ficou restrita aos brinquedos comumente identificados aos meninos, pois bonecas “realistas”, com rosto e formas corporais cada vez mais semelhantes às características humanas, passaram a ocupar maior espaço nas lojas de brinquedos. O mesmo pode-se dizer dos bichos de 362 A Semana, n. 275, 23 de julho de 1923.

363 A Semana, n. 337, 04 de outubro de 1924.

364 BRITES, Olga. Crianças de Revista. Educação e Pesquisa. São Paulo, v.26, n.1, p.161-176, jan./ jun. 2000.

365 BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Duas Cidades, Ed. 34, 2007, p. 92-98.


Fotografias de crianças em revistas ou folhear a infância: elite, representação e lugar social...

pelúcia que aparecem nas fotografias, gatos e cães, que remetem à domesticação dos animais e, assim, ao domínio do homem sobre a natureza366. Contudo, além de brinquedos sofisticados, encontram-se também a boneca de pano, o soldado e o cavalo de madeira. Walter Benjamin, ao analisar a nascente indústria de brinquedos no século XIX, chama a atenção para a falsa simplicidade do brinquedo moderno, que não necessariamente reside em suas formas, mas na transparência de seu processo de produção, visando emular certa “autenticidade” artesanal e um aspecto familiar e nostálgico dos brinquedos de outrora367. Assim, brinquedos menos elaborados, ao serem mostrados com as crianças, não desfazem os ares de modernidade que permeiam as imagens da infância em revistas. Seja comprado de uma marca especializada ou encomendado dos artesões da cidade, a presença do objeto nas fotografias colabora para idealizar a infância como momento marcado pela alegria e diversão. Ao mesmo tempo, os brinquedos em cena oportunizam perceber como “Os adultos estão na verdade interpretando a seu modo a sensibilidade infantil”368 e o que gostam de conceber como brinquedo. Afinal, o requinte e a atualidade das peças dizem mais sobre o êxtase das elites com as novidades do mercado do que quanto as exigências da criança em seu momento de brincar. Ainda segundo Benjamin, “Os seus brinquedos não dão o testemunho de uma vida autônoma e segregada, mas são o mudo diálogo de sinais entre a criança e o povo”369. A exposição de brinquedos e o destaque aos nomes dos pais das crianças contribuem, assim, para percebemos o lugar social das crianças, ao constituírem “marcas de distinção” que as famílias pretendem afirmar, que atuam como signos de uma visualidade infantil em revistas, pois os elementos presentes no registro fotográfico resultam de escolhas que visam interferir diretamente nas leituras feitas sobre as imagens. “Marcas de distinção” que integram o que Pierre Bourdieu denomina de capital simbólico, conformado por valores que vão desde padrões de comportamento e educação a certas maneiras de vestir e falar, que exprimem e, ao mesmo tempo, constituem, para os indivíduos e para os outros, a posição 366 Ibidem, 2007, p. 92-98.

367 Ibidem, 2007, p. 92; 98. 368 Ibidem, 2007, p. 92. 369 Ibidem, 2007, p. 94.

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que possuem dentro da estrutura social e a relação que estabelecem com a mesma. Ao pretenderem naturalizar uma condição de privilégio, as fotografias de crianças carregam em si o desejo de distinção das famílias, ou melhor, os princípios de hierarquização social370, trazendo, assim, inscritas as leituras dos partícipes sobre as divisões sociais existentes, bem como a posição que ocupam e, como corolário, quais condutas de comportamento entendem como as mais adequadas à sua condição. Assim, ainda seguindo as reflexões de Pierre Bourdieu, as escolhas efetuadas pelos sujeitos na construção das cenas captadas tentam infundir uma integração das camadas mais abastadas enquanto uma elite coesa, reforçando sua distância daqueles que não ocupam o espaço das revistas e que, nesse sentido, também não dispõem do mesmo acesso aos bens simbólicos da cultura letrada, como as políticas de alfabetização, por exemplo371. Ou seja, ao mesmo tempo em que as fotografias dão visibilidade às marcas de distinção das famílias, tornam também latentes suas formas de apreensão da ordem estabelecida, naturalizando através da imagem bela e asseada das crianças formas de classificação, ajustadas, portanto, aos seus interesses de projeção social. Se as fotografias de crianças acabam por consolidar as marcas de distinção da elite que se exibe nas páginas das revistas, faz-se necessário considerá-las enquanto representações. Segundo Roger Chartier, as representações resultam da leitura que os sujeitos empreendem sobre a realidade. Usando as palavras do autor, essa leitura não é desencarnada, mas, sim, compartilhada, fruto das operações de produção de sentido efetuadas em determinado contexto, e que, por conseguinte, possuem uma historicidade372. A noção de representação, no entanto, remete a duas famílias de sentido, aparentemente, contraditórias: em primeiro lugar, representação alude à ideia e à memória de objetos ausentes, o que pressupõe uma diferença entre o que representa e o que é representado; por outro lado, representação significa a exibição de uma presença, a apresentação pública de uma coisa ou uma pessoa. Esse duplo viés das representações, a correlação de uma imagem presente e de um objeto ausente, uma valendo pelo outro, impõe a investigação histórica 370 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, p. 10. 371 Ibidem, p. 14-15.

372 CHARTIER, Roger. A História ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2009, p.36; CHARTIER, Roger. Op. Cit., p. 183.


Fotografias de crianças em revistas ou folhear a infância: elite, representação e lugar social...

desnaturalizar as modalidades, os meios e os procedimentos de apresentação da representação que se produzem ao longo do tempo373. É justamente por isso que não podemos pensar as fotografias de crianças descoladas de sua superfície, ou seja, das revistas e, consequentemente, das expectativas que são construídas sobre elas. Isso implica tanto a compreensão do veículo como espaço fundamental para a divulgação dos valores de elite na época, quanto a consideração das convenções de leitura e da intertextualidade entre os elementos que compõem as revistas. A análise das fotografias, mas também a de artigos, crônicas e peças publicitárias que elegem a criança como tema, enquanto representações, tem por fito aprofundar o estudo acerca dos dispositivos utilizados por determinado grupo para assegurar o monopólio do poder simbólico. Adotando uma interpretação semelhante à de Bourdieu, Roger Chartier afirma que, ao estabelecerem relações com o mundo social, ao “representarem”, em um duplo movimento, em que leem a realidade e engendram performances, ou vice-versa, produzindo representações de práticas e práticas de representações, os sujeitos elaboram classificação e hierarquização social, ao mesmo tempo em que objetivam exibir uma maneira própria de ser no mundo, a significar simbolicamente uma categoria social, um status. Ao divulgarem imagens de crianças em revistas, os sujeitos engendram imagens perfeitas de infância, signos visíveis que devem fazer reconhecer como tal um poder ou uma identidade. Como o autor arremata: “As representações possuem uma energia própria, e tentam convencer que o mundo, a sociedade ou o passado é exatamente o que elas dizem que é”374. Portanto, as fotografias de crianças publicadas nas revistas integravam as tentativas de afirmação das famílias de elite locais, visando transparecer uma imagem bem-sucedida perante a sociedade. Para isso, há uma seleção daquilo que se pretende tornar público através das imagens infantis que não pode ser desconsiderada, sugerida, inclusive, por um ambiente de estúdio nas fotografias. A presença de certos objetos, o uso de determinadas roupas e a vinculação ao sobrenome dos pais, embora sejam signos diferentes, interagem com uma figura higiênica e saudável das crianças nas fotografias. Ao corroborarem uma imagem de bem-nascidos, as fotografias constroem representações de infância, que, em acordo com os objetivos das famílias, acabam reforçando uma condição de privilégio frente aos leitores da revista. 373 CHARTIER, Roger. Defesa e ilustração da noção de representação. Fronteiras, Dourados, v. 13, n. 24, p. 15-29, jul./dez., 2011. 374 CHARTIER, Roger. 2011, p. 23.

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CAPÍTULO 7

PARA NOSSOS PEQUENOS LEITORES: HISTÓRIAS DA AMAZÔNIA NA REVISTA O TICO TICO [1914-1945]375

Isadora Bastos de Moraes

Resumo: O objetivo deste texto é entender como se deu a construção de imagens sobre a Amazônia por meio da revista infantil O Tico Tico no período de 1914 a 1945. O Tico Tico, cuja duração data de 1905 a 1962, foi criado pelo jornalista Luis Bartolomeu de Souza e Silva, responsável pela editora S. A. O Malho, localizada no Rio de Janeiro. Os principais objetivos desse impresso consistiram em “instruir e divertir” as crianças brasileiras através da publicação de textos e imagens igualmente atrativos e educativos. Nesse sentido, trata-se de entender os muitos significados presentes nas histórias publicadas nesse impresso voltado para as crianças, tendo como foco a Amazônia. Palavras-Chave: Revista; Tico Tico; Amazônia; crianças; natureza.

375 Este texto discute algumas considerações abordadas em minha Dissertação de Mestrado – Para Ler e Ver: Narrativas sobre a Amazônia na Revista O Tico Tico (1914 - 1945) - Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Pará, Belém, 2019.


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Considerações iniciais A Amazônia é a terra das maravilhas. A opulencia de sua natureza tem um vigor inexcedivel e, por isso, ninguem ficou admirado quando se falou pela primeira vez na arvore do querosene. Esta descoberta, como foi relatado, foi feita por um italiano, verificando que a arvore produz oleo finissimo. Segundo experiencias feitas, verificou-se que poderá fornecer luz identica ao querosene, a toda a região do Tapajós, em abundancia. Existe, ainda, no alto Tarauacá, no Acre, produzindo 23 litros de alcool. A planta, com a extracção nada soffre pois que, decorrido certo tempo, o golpe dado na arvore torna a fechar, produzindo assim uma nova extracção desse precioso producto. Já se cogita do aproveitamento industrial da nova riqueza amazonica376.

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texto destacado, intitulado A Amazonia grandiosa377, foi publicado em 1934 na revista infantil O Tico Tico, e nos aproxima da forma como essa região costumava ser apresentada para crianças brasileiras por meio desse impresso. De fato, quando se trata da Amazônia, observamos que a natureza surge como tema privilegiado por entre as páginas da revista. Os articulistas destacavam, principalmente, o ambiente (rios, árvores, flores) e os animais (jacarés, pássaros e peixes) nas histórias da Amazônia transmitidas aos pequenos leitores de todo o Brasil. Desse modo, por meio d’O Tico Tico, conforme veremos ao longo do texto, chegava às crianças a ideia de uma Amazônia de natureza exótica, com animais e plantas que quase não conseguiam ser dominadas pelas pessoas. Era como se esse espaço, por meio das crônicas e histórias infantis, presentes nas páginas da revista, carecesse de civilização e progresso. Por essa perspectiva, desvalorizava-se a cultura dos moradores dessa região brasileira. Ainda que personagens humanos tenham tido pouco espaço em O Tico Tico, quando comparados à natureza, eles não deixaram de se fazer presentes nas histórias e ilustrações. Assim como os “pequenos leitores” residentes em 376 Revista O Tico Tico. Edição 1477. Ano: 1934.

377 A árvore de que trata o texto é a Copaíba, cientificamente reconhecida como Copaifera Officinalis; por ser uma fonte rica de hidrocarbonetos é utilizada na produção de combustível quando misturada ao óleo diesel.


Para Nossos Pequenos Leitores: Histórias da Amazônia na Revista O Tico Tico [1914-1945]

cidades localizadas na região amazônica apareceram na revista por meio das fotografias, desenhos e textos publicados em seções como “Os nossos amiguinhos”, “Album d’O Tico Tico”, “Dr. Sabe tudo” e o encarte “Meu Jornal”.

A criação e o conteúdo da revista O Tico Tico A virada do século XIX para o século XX no Brasil se configurou como período de profundas transformações políticas, econômicas e/ou sociais com a substituição da mão de obra escrava pela assalariada; a criação e o desenvolvimento de mercados consumidores internos; e a transição de Monarquia para República em 1889. Em grande medida, esses processos sobrepostos refletiram na imprensa brasileira, assim como criaram novos olhares sobre a infância, projetando nela a promessa de uma verdadeira regeneração do país baseada nos ideais republicanos378. A representação do que podia ser o Brasil do/no futuro, muitas vezes, revelou-se na preocupação relacionada à formação das crianças brasileiras e nas imagens379 que delas e para elas se produzia. Nesse contexto, a revista infantil O Tico Tico380, semanário das crianças, (1905-1962), foi idealizada pelo jornalista e caricaturista Renato de Castro, o poeta Cardoso Junior, e o professor e jornalista Manuel Bonfim. Entretanto, quem concretizou o projeto381 foi Luís Bartolomeu de Souza e Silva382, respon378 Segundo Angela de Castro Gomes, “A proposta era de que a República se dedicasse a um trabalho sistemático e incessante no campo da educação, com claro sentido político: a formação dos futuros cidadãos”. p. 9. Ver mais em: GOMES, Angela de Castro. República, educação cívica e história pátria: Brasil e Portugal. ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009. Disponível em: http://anais.anpuh.org/wp-content/uploads/mp/pdf/ANPUH. S25.0009.pdf. 379 RODRIGUES, Adnê Jefferson Moura. Infâncias Revistas: representações de crianças, saúde e educação infantis em revistas ilustradas (Belém, 1919-1930). Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia. Belém, 2017.

380 Existem duas versões sobre o nome da revista. A primeira é de que O Tico Tico seria um dos pássaros criados na casa do editor Souza e Silva. A segunda diz que o nome foi colocado por Bonfim, em referência as escolas primárias que eram chamadas de escolas “tico tico”. Ver em: JUNIOR, Gonçalo. Paixão Juvenil. “Revista Nossa História”. Ano 2/ n° 24. Outubro, 2005.

381 Patroclo faz uma discussão complexa sobre o contexto de criação da revista e o papel de cada um desses articulistas para o nascimento deste impresso infantil. Ver em: PATROCLO, Luciana Borges. As mães de famílias futuras: a revista o tico-tico na formação das meninas brasileiras (19051921). Tese (doutorado), Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Educação. 2015.

382 No que diz respeito à trajetória de Souza e Silva, ressalta-se a passagem pela Escola Militar de Praia Vermelha e o ingresso no Batalhão dos jovens republicanos. O jornalista escreveu vários

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sável pela editora Sociedade Anônima O Malho383, com sede no Rio de Janeiro. O modelo jornalístico que O Tico Tico incorporou foi o de revista ilustrada ou de variedades. O Tico Tico teve como fonte de inspiração a revista francesa La Semaine de Suzette (1905-1960)384. Tal formato se evidenciou aprovado pela recepção do público e, ao mesmo tempo, atendeu à carência em relação às publicações destinadas ao público infantil. Segundo Patrícia Alencar, o suporte das revistas ilustradas, como é o caso da revista O Tico Tico, tinha como algumas de suas principais características: veicular ampla variedade de temas, possuir formato leve e, além disso, utilizar constante e intensamente ilustrações, fotografias, dentre outros recursos imagéticos385. Roger Chartier afirma que “Não há texto fora do suporte que lhe permite ser lido (ou ouvido) e que não há compreensão de um escrito, qualquer que seja, que não dependa das formas pelas quais atinge o leitor”386. Nesse sentido, tanto o texto quanto o suporte são criados para atender a diversas utilizações, desde a mais simples como o manuseio até na construção de práticas culturais. Portanto, nesse momento, trataremos não só da materialidade387 na qual artigos criticando o regime de 15 de novembro, o que fez com que fosse preso no episódio da Revolta Armada. Segundo Guilherme Tenório, a Escola Militar de Praia Vermelha era “O local de gestação de uma cultura política centrada na ideia do soldado-cidadão, responsável por liderar o processo de inclusão do povo de forma disciplinada”. Ver mais em: TENÓRIO, Guilherme Mendes. Ze Povo Cidadão: humor e políticanas páginas de O Malho. Dissertação (Mestrado), Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Pós-Graduação em História, 2009.

383 O malho é também o nome de outra revista da Editora. A revista ilustrada O Malho era, assim como O Tico Tico, publicada semanalmente entre 1902 e 1954. Ficou reconhecida pelas charges e caricaturas que ironizavam o cenário político nacional da época. 384 VERGUEIRO, Waldomiro; SANTOS, Roberto Elísio dos (orgs.). O Tico-Tico: centenário da primeira revista de quadrinhos do Brasil. São Paulo: Opera Graphica, 2005. 385 ALENCAR, Patrícia Maria Garcia. A revista “O Tico-Tico” e a escrita infantil em circulação no encarte “Meu Jornal”: seus autores e leitores (1935-1940). 153 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de Maringá. Maringá, 2015. p. 35.

386 CHARTIER, Roger. O mundo como representação. “Revista Estudos Avançados”. V.5, n. 11. Abril, 1991. p. 11.

387 Segundo Tania de Luca, a apresentação física e a estruturação do conteúdo dos impressos estão relacionadas aos sentidos assumidos pelo periódico no momento de sua circulação. Para essa autora, “Historicizar a fonte requer ter em conta, portanto as condições técnicas de produção vigente e a averiguação, dentre tudo que se dispunham, do que foi escolhido e por quê”, pois a materialidade dos impressos e de seus suportes são permeados de intenções. LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos (1a ed. 2005; 2a ed. 2006, 2a ed. 1a reimpressão 2008). In: PINSKY, Carla Bassanezi. (Org.). “Fontes Históricas”. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2008, v. 1, p. 111-153. p. 132.


Para Nossos Pequenos Leitores: Histórias da Amazônia na Revista O Tico Tico [1914-1945]

era apresentada a revista O Tico Tico, mas das múltiplas características desse impresso infantil: publicado sempre às quartas-feiras para as crianças de todo país. A revista era impressa em papel tipo jornal, e o formato utilizado correspondia ao adotado pela revista Caras, tamanho 22,5x31,5, por ser adequado para o uso de fotografias, permitindo, assim, qualidade de visualização das imagens388. O Tico Tico, durante um longo tempo, manteve seções diversificadas que agradavam a todos os gostos, veiculando: literatura, histórias em quadrinhos, passatempos, concursos, propagandas, dentre outros conteúdos; preenchidos de informações sobre conhecimento histórico, geográfico, artístico, matemático, artesanal, abrangendo ao máximo os aspectos pertinentes à educação de meninas e meninos brasileiros. As lições idealizadas pelos articulistas se voltavam para a formação das crianças, independente da sua classe social, por buscarem inculcar valores morais e cívicos, considerados fundamentais para a disciplina infantil e para o respeito à pátria. Contudo, tais leitores, não raro, foram de grupos mais privilegiados, uma vez que teriam mais possibilidades de adquirir a revista, comprando-a. Igualmente, conforme já mencionado, as informações sobre a região, veiculadas nas crônicas do Tico Tico, reforçavam as representações da Amazônia como um espaço vazio, isolado, quase sem a presença humana, dada a própria magnitude da natureza marcada por Vitórias-Régias gigantes, infinidade de jacarés e mosquitos a proliferarem por todos os lugares. Cremos que faltou aos articulistas enfatizar mais como os moradores dessa parte do Brasil, construíram modos de trabalhar, de se manifestar, de identidade, e de cultura que lhes permitiam entender e conviver com a natureza. E, portanto, demonstrar que suas práticas cotidianas eram traçadas de maneira a lhes permitir viver bem no seu espaço.

388 A referência aqui é a Revista Caras, popular no Brasil na década de 1990 do século XX, mencionada na dissertação de Patrícia Alencar, para que o leitor tenha um exemplo mais concreto da materialidade e do tamanho da revista O Tico Tico. ALENCAR, Op.Cit. p. 36.

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Os articulistas O Tico Tico apresentou aos pequenos leitores o trabalho de múltiplos artistas, das imagens e das letras. Entre os ilustradores, pode-se citar nomes como os de: Ângelo Agostini; Alfredo Storni e o filho Oswaldo Storni; Leonidas Freire; Augusto Rocha; José Carlos; Carlos Thiré; Paulo Affonso; Seth. Em se tratando de escritores: Coelho Neto; Olavo Bilac; Trancoso; Osvaldo Orico; Carlos Manhães; Estágio Wanderley. De fato, foram muitos artistas brasileiros ou estrangeiros residentes no Brasil que colaboraram com a revista O Tico Tico. Entretanto, poucas são as seções, textos “avulsos”, histórias, assinados pelos articulistas. Para nossos objetivos, vale mencionar que a revista contou com a colaboração de escritores nascidos na Amazônia. Dentre eles, Osvaldo Orico389, cujos livros foram constantemente anunciados pela seção Biblioteca d’O Tico Tico390, bem como contos avulsos publicados na revista. Além de Orico, o escritor Inglês de Souza, natural de Óbidos, mas residente no Rio de Janeiro, teve o texto O Caboclo do Amazonas391 publicado na década de 1920. Esse texto é permeado de palavras como “melancolia”, “apatia”, “monotonia”, para caracterizar tanto os indivíduos quanto o espaço, olhando-os, portanto, de modo etnocêntrico, sem se perceber a cultura e as práticas do grupo: Os seus pensamentos não se manifestam em palavras, por lhes faltar, a esses pobres tapuyas, a expressão comnunicativa, atrofiada (sic) pelo silêncio forçado da solidão. [...]dessa melancolia contínua dão mostra principalmente as mulheres, por causa da vida que levam. Os homens sempre andam, vem uma ou outra vez gente e cousas novas. As mulheres passam toda vida no sítio, no mais completo isolamento392.

Inglês de Souza é considerado um dos principais representantes do naturalismo literário no Brasil. Mesmo que tenha como foco a descrição de homens e mulheres da Amazônia, não deixa de apresentar o meio natural descrevendo 389 Revista O Tico Tico. Edição 1887. Ano: 1943.

390 “Historias de Pae João” e “Contos da Mãe Preta”, são exemplos de livros infantis de autoria de Osvaldo Orico, publicados e divulgados pela Biblioteca d’O Tico Tico, respectivamente em: Revista O Tico Tico. Edição 1552. Ano: 1935; Revista O Tico Tico. Edição 1711. Ano: 1938. 391 Revista O Tico Tico. Edição 0774. Ano: 1920. 392 Ibid.


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o Amazonas como um espaço “isolado” e distante de “agitação social”. Assim, pelas compreensões do autor, expressas na revista, não é descabido pensar que muitos brasileiros tiveram uma visão equivocada e, quem sabe, até mesmo preconceituosa, dos moradores da Amazônia. Foram múltiplas as fontes de conhecimento apreendidas pelos colaboradores d’O Tico Tico utilizadas para construção de seus textos e imagens. A matéria presente em uma edição do ano de 1941, sobre a planta aquática Vitória-Régia, nos dá pistas de pesquisas realizadas ou utilizadas pelos articulistas para escrever acerca da região, ainda que seja apresentada por uma “voz anônima”. Uma vez que se explica que as informações sobre essa planta têm como fonte o “Condensado de um estudo do Tte. Cel. Azarias Silva em GAZETA MAGAZINE”393. O conhecimento de que as informações apresentadas têm como fonte o referido estudo do Tenente-coronel Azarias Silva nos aproxima de como eram apropriadas pelos articulistas as referências sobre o espaço amazônico. No texto, o autor afirmou que um dos objetivos de sua excursão pela Amazônia, em 1937, era o de chegar ao habitat da Vitória-Régia e, dando prosseguimento a narrativa, relatou aos pequenos leitores d’O Tico Tico que: Estando o lago Manium394 infestado de jacarés e puraquês (peixe elétrico), principalmente sob as folhas da Vitoria Regia, desisti de arrancar uma raiz solidamente fixada no fundo. Também não pude colher um fruto, por estar enterrado no lodo395.

A narrativa corrobora com visões sobre a Amazônia propagadas em outros tempos históricos, pois, assim como foi revelado na revista O Tico Tico o encontro do articulista com a referida planta, o naturalista inglês Alfred Russel Wallace, que viajou pelos Rios Amazonas e Negro em meados do século XIX, igualmente havia comentado seu encanto ao deparar-se com a planta VictóriaRégia, e sobre a presença de jacarés na região. Nos relatos da viagem registrados pelo naturalista Alfred Wallace em meados do século XIX, consta a 393 Revista O Tico Tico. Edição 1872. Ano: 1941.

394 O “lago Manium”, citado na revista é formado pelo Rio Solimões (o Amazonas antes de receber o Negro). 395 Revista O Tico Tico. Op. cit. p. 8.

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experiência de chegar a “Um trecho onde inúmeros jacarés de grande tamanho nadavam à flor da água”396. Desse modo, entendemos que os discursos propagados possuem raízes em imagens antigas sobre o espaço amazônico, divulgadas em outras materialidades e por outros autores. Não raras vezes, ao longo da história, os olhares e as representações acerca da Amazônia se mostraram conflitantes, já que se conformava o espaço ora como inóspito, devido a presença de animais selvagens ou insetos portadores de doença. Ora, como um paraíso de belezas naturais. Por exemplo, no livro Por que me ufano de meu país?, de Afonso Celso, o Rio Amazonas foi descrito da seguinte forma: Pulula a vida ali. Habitam as florestas das ilhas e margens, florestas formadas de preciosíssimas madeiras, populações inumeráveis de insetos, reptis, mamíferos, maravilhosos pela variedade, originalidade e beleza das formas, brilho e cor. Centenas de famílias de pássaros, alegram a solidão. Enumeram-se duas vezes mais classes de borboletas do que em toda a Europa397.

O conhecimento dos leitores d’O Tico Tico, advindo de livros como o de Afonso Celso, entrava em conflito com outras imagens difundidas sobre a região. Júlio Schweickardt e Nísia Lima discutem a partir de diferentes perspectivas sobre a natureza e sociedade no Estado do Amazonas, refletindo sobre representações criadas sobre a região e, principalmente, no que diz respeito às políticas públicas relacionadas à saúde, acionando debates científicos relativos à medicina tropical no estudo e tentativa de combate de doenças, como a malária e a febre amarela398. E esse tema não deixou de ser apresentado na revista O Tico Tico, no texto de título “Quem levou os mosquitos para a Amazônia?

396 WALLACE, Alfred Russel. Viagens pelos rios Amazonas e Negro. São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1979. p. 102. 397 CELSO, Afonso. Por que me ufano do meu país. ebooksBrasil, 2002. Disponível em: http://www. ebooksbrasil.org/eLibris/ufano.html. Acesso: 19/02/2021. p. 28.

398 SCHWEICKARDT, Julio César. LIMA, Nísia Trindade. ‘Do inferno florido’ à esperança do saneamento: ciência, natureza e saúde no Estado do Amazonas durante a Primeira República (18901930). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 5, p. 399-415, 2010. Revista O Tico Tico. Edição 0739. Ano: 1919.


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Já elles existiam lá ou foi a civilisação que os carregou à proporção que entrava nas brenhas amazônicas?”399, por exemplo.

Os leitores e as leituras da Amazônia Consoante Gonçalo Junior, entre leitores d’O Tico Tico, alguns nomes se tornaram conhecidos no Brasil, assumindo profissões de destaques, como: artistas, escritores e jornalistas, dentre outras. Como exemplo, podemos citar Erico Veríssimo, Lígia Fagundes Telles, Jorge Amado, Dorival Cyammi400. Provavelmente parte do sucesso d’O Tico Tico se deve ao fato de que esse impresso oferecia formas de interação entre os leitores e a redação. Assim, diversas seções permitiram que os leitores contribuíssem de alguma forma com o impresso. Encontramos, entre as páginas da revista, mensagens, poesias e desenhos enviados pelas crianças. Além disso, muitas curiosidades e dúvidas eram sanadas nessa interação. Foi o caso da sessão Dr. Sabetudo, que permitia um diálogo entre os leitores e articulistas da revista. No ano de 1922, a referida seção dissertou sobre o tema da fotografia, uma vez que a leitora d’O Tico Tico, Edeluza Ribeiro de “Belém do Pará”, solicitou explicações sobre a arte de fotografar401. Contudo, Dr. Sabetudo, voz anônima, que representava a revista, afirmou que não havia espaço para “tanto” no periódico, mas que a pequena leitora poderia adquirir o Manual Photographico de Veiga, que era vendido pela editora O Tico Tico. O universo infantil, por meio da linguagem fotográfica, esteve ligado constantemente a temas, como: religiosidade, moda, lazer e saúde. Olga Brites, em sua análise sobre crianças de revistas, destaca que as imagens da infância em revistas eram construídas por meio de poses, roupas e adereços402, pois esses elementos ajudavam a compor a imagem da criança bem-nascida. Nesse sentido, roupas elegantes, bons sapatos, cabelos arrumados, seriam símbolos 399 Revista O Tico Tico. Edição 0739. Ano: 1919.

400 JUNIOR, Gonçalo. Paixão Juvenil. “Revista Nossa História”. Ano 2/ n° 24. Outubro, 2005. Além destes, Carlos Drummond de Andrade afirmou em seu livro de “memórias” que O Tico Tico foi sua primeira emoção literária. In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Tempo Vida Poesia – Confissões no Rádio. São Paulo: Record, 1986. 401 Revista O Tico Tico. Edição 862. Ano: 1922.

402 BRITES, Olga. Crianças de revistas (1930/1950). Educação e Pesquisa, São Paulo, v.26, n.1, p.161-176, jan./jun. 2000. p. 166.

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das condições privilegiadas dos familiares das crianças fotografadas e, por conseguinte, motivos de orgulho. Adereços da vida escolar, animais domésticos e brinquedos também compunham o universo da fotografia infantil. As poses eram pensadas junto aos objetos de consumo, que muitas vezes eram propagandeados pela revista. A seção Os amiguinhos do Tico Tico, composta em duas páginas, exibiu um mosaico de fotografias. Entre as fotos publicadas em 1919, esteve a da Nathalia dos Santos Pereira do “Estado do Pará”. Recorte da Revista O Tico Tico. Edição: 0702. Ano: 1919.

Nathalia, elegantemente vestida, posa carregando uma das edições d’O Tico Tico e, ao lado, uma boneca, sugerindo a leitura da revista na capital paraense. De fato, o jornal Estado do Pará: Propriedade de uma Associação Anonyma403 noticiava, em 1914, que havia recebido da “Agencia Martins” as seguintes revistas do Rio: “O Malho, Careta, Fon Fon, Revista da Noite, Tico Tico e O Amiguinho”. Darlene Santos, em sua dissertação intitulada “A arte de civilizar: A educação cívico patriótica na revista A Escola e na Revista do Ensino no Pará republicano (1900-1912)”, aponta que: 403 Estado do Pará: Propriedade de uma Associação Anonyma. Edição 01271. Ano: 1914.


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As duas primeiras décadas da República no Pará foram decisivas para que a imprensa paraense divulgasse os discursos de regeneração social para as camadas populares, logo, os jornais e os impressos foram decisivos para o crescimento e conquista de um mercado e de um público leitor que consumia diariamente o que a imprensa produzia404.

Portanto, podemos dizer que os leitores da Amazônia, ainda que distantes geograficamente, da Capital Federal (RJ) em que a revista O Tico Tico era editada, não deixaram de estar conectados ao modelo de infância propagado por esse e outros impressos infantis; tal modelo deveria preparar as crianças para serem futuramente os adultos “bem-sucedidos”, desejados pelo regime republicano. Diante disso, as representações imagéticas e textuais da/para infância, muitas vezes, acompanhavam a forma como o adulto desejava que a criança percebesse e vivenciasse o mundo, e na Amazônia tal perspectiva também se apresentava. Entretanto, conforme mencionamos anteriormente, nas histórias veiculadas em O Tico Tico, o rio, as árvores, as plantas, a vegetação, e os animais da Amazônia foram os elementos mais utilizados para construir a imagem da região. Por vezes, na intenção de fomentar um sentimento nacionalista. A análise de tradições inventadas proposta por Hobsbawm405 não pode ser realizada separadamente da história da sociedade, pois toda a invenção das tradições utiliza a história como legitimadora. O corte temporal desse texto, 1914-1945, compreende as duas grandes guerras. Elas se revelam como períodos de conflito nos quais normalmente são exaltados os sentimentos patrióticos. Nesse sentido, a seção “Lições do vovô”, publicada em uma edição de 1943, “recordou” às crianças do Brasil que o país estava em guerra. Diante desse fato, foi posto que elas, “chefes e dirigentes do Brasil de amanhã”, deveriam meditar sobre o que isso significava. Em grande medida, ainda dentro no contexto da Segunda Grande Guerra, O Tico Tico não deixava de explicar aos seus jovens leitores o fato de que o Brasil “Foi levado a essa guerra por ter sido provocado e ofendido em 404 SANTOS, Darlene da Silva Monteiro dos. A arte de civilizar: A educação cívico patriótica na revista A Escola e na Revista do Ensino no Pará republicano (1900-1912). Mestrado (Dissertação), Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade do Estado do Pará. Belém, 2018. p. 42.

405 HOBSBAWM, Eric. RANGER, Terence. A invenção das tradições. 2 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2012. p. 21.

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seus brios de nação livre”. Essas narrativas nos possibilitam verificar que, para compor um tipo de criança disciplinada, temas de ordem para a nação eram transmitidos aos leitores desse impresso infantil. Ao mesmo tempo, ajudam a perceber que um sentimento patriótico deveria ser fomentado no público. Nesse sentido, o discurso utilitário da flora amazônica é constante. Nas imagens a seguir, temos retratado o homem diante da árvore, e, através das ilustrações, percebemos a figura humana em diminuta presença. São os trabalhadores da floresta: o seringueiro e o castanheiro com sua presença pormenorizada quando comparados as árvores que dão significado ao seu trabalho. Recortes da revista O Tico Tico. Edição 1875. Ano: 1942.

Sobre a presença de personagens amazônicos nos recortes apresentados, entendemos que a palavra “sertão” comporta muitos significados. Um deles diz respeito a áreas despovoadas do “interior” do Brasil. Mas o “despovoado” não se refere à ausência de qualquer habitante em determinada terra, mas à falta


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de homens “civilizados”406. Sendo assim, esse impresso faz crer que a natureza é sem-fim, “as árvores são enormes” foi a impressão do naturalista Gustavo Wallis, segundo O Tico Tico – uma vez que Wallis “Descobriu uma árvore cuja sombra tinha 158 metros de circunferência, podendo abrigar 25 mil pessoas”407, localizada em afluente do Rio Negro. A grandeza das árvores é uma constante entre as representações da região. No livro A Amazônia em 1893, de Luiz Rodolpho Cavalcante de Albuquerque, as árvores do Pará são comparadas às catedrais da Espanha. Tal afirmação teria sido proferida por um imigrante espanhol, ao deparar-se com a natureza que margeava os caminhos da Estrada de Ferro de Bragança, distantes àquela altura uns 70 quilômetros da capital paraense, Belém. O autor toma, então, essa possível afirmação e as impressões de estudiosos que passaram pela região para demonstrar sua contrariedade à construção dessa ferrovia. Ao voltar-se para tal questão, acaba por reforçar a ideia de uma natureza difícil de ser controlada pelas ações humanas: Bem ponderado acho eu quanto disseram Agassiz, Humboldt, José Verissimo e demais eruditos escriptores sobre as vantagens de fazer explorar os rios da Amazonia e povoa-los de farta emigração, é loucura tentar estender trilhos através de suas maltas seculares, onde se encontram arvore maiores que as cathedraes de hespanha...408.

Segundo Magali Franco Bueno, o Brasil no século XIX foi visitado por vários naturalistas, e a Amazônia era um dos roteiros preferidos. No curso dessas viagens, “Além do interesse científico, a busca por riquezas era um catalizador importante dessas viagens”409. A revista O Tico Tico – enquanto fonte de informação – publicou, de tempo em tempo, dados apreendidos sobre o mundo 406 AMADO, Janaína. Região, Sertão, Nação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 15, 1995, p. 145-151. 407 Revista O Tico Tico. Edição 1891. Ano 1943.

408 ALBUQUERQUE, Luiz Rodolpho Cavalcante de. A Amazônia em 1893. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1894. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/221734. Acesso 08/01/2019.

409 BUENO, Magali Franco. O imaginário brasileiro sobre a Amazônia: uma leitura por meio dos discursos dos viajantes, do Estado, dos livros didáticos de Geografia e da mídia impressa. Dissertação (Mestrado), Programa de Pós Graduação em Geografia Humana, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2002. p. 47.

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natural, coletados por naturalistas que passaram pela Amazônia – ainda que de experiências advindas do passado. Isso, por vezes, conformou a região como espaço inerte, que não sofre mudanças, no campo das representações. Os animais também compõem o mosaico de informações sobre a região. Estão presentes nas histórias, e a eles são atribuídos diversos significados e adjetivações. Em As Licções do Vovô, informa-se sobre a indústria da pecuária, e aponta-se a Amazônia como um dos locais onde encontra-se o melhor gado do País. Entretanto, alguns animais selvagens eram considerados como um empecilho para criação de gado, entre eles o Jacaré. Sem dúvida, o jacaré foi um personagem frequentemente utilizado quando se quis representar animais da Amazônia na revista. Até porque, conforme um dos artigos publicados pela revista, “Se alguém lhes perguntar onde estão localizados os jacarés do Brasil, respondam com segurança que respondem acertadamente: - no Amazonas”410. Era presente e, de certa forma, permanece no imaginário não só um olhar exótico em direção à região amazônica como, também um discurso degenerativo do clima e do ambiente, apresentando animais selvagens e indivíduos “incivilizados”, quando não se introduz a ideia de que o homem precisa traçar uma verdadeira guerra contra a fauna e a flora411. Os jacarés, normalmente, eram adjetivados como “perigosíssimos”; “ferozes”; “brutais”. Desse modo, as matérias apresentavam como banal a matança desses anfíbios. A seção Viagens e aventuras, que tem como premissa apresentar aos leitores casos verídicos de atos de heroísmo, dedicação humana ou costumes e singularidades, trouxe o texto Nas Mattas do Amazonas, que naturaliza a matança desses animais, conforme nos referimos anteriormente.

410 Revista O Tico Tico. Edição 0797. Ano: 1921.

411 O “mito” das Amazonas, como forma de definição inicialmente do Rio Amazonas, utilizada pelo europeu ibérico, foi marcante para construção das formas de representar a região que seria no século XIX denominada: “Amazônia”. Segundo Romero Ponte desde o século XVI este espaço é conceituado como lugar de natureza rica e de habitante monstruoso. Assim, a Amazônia é definida de forma hiperbólica positiva e negativamente. Ver mais em: PONTE, Romero Ximenes. Amazônia – A Hipérbole e o Pretexto. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal do Pará, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Belém, 2000.


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Revista O Tico Tico. Edição: 0548. Ano: 1916.

Nesse sentido, após ser fotografado, o jacaré presente na imagem, que era “um dos habitantes do lago innocencia”, foi abatido com um “tiro na bocca aberta”412. Tais textos, divulgados entre as crianças e adolescentes brasileiros, nas primeiras décadas do século XX, dado seu contexto, revelam a falta de preocupação com a preservação de espécies animais. De outro lado, tem-se um olhar sobre a infância, em que quase não há apreensões com cenas de violência, com a caçada aos bichos. Desse modo, a morte de animais pensados como ofensivos ao ser humano é tomada como a melhor solução, para a proteção das pessoas. E as crianças aprendiam tal lição por meio de um periódico voltado para sua formação. Por outro lado, os animais domésticos mereciam proteção, por ter mais utilidade que os selvagens. Segundo David Vieira, no estado do Pará, no Marajó, “Esse era o caso do gado bovino, defendido pelo poder público contra o ataque de jacarés, onças e morcegos”.413 Assim, por meio dos textos divulgados, ensinava-se aos pequenos que a utilidade dos animais não pairava somente na força econômica. Enquanto domésticos, eles poderiam adquirir outros atributos. Como exemplo, podemos citar o Uirapuru, que é considerado uma espécie de amuleto de caboclos e 412 Revista O Tico Tico. Edição 0548. Ano: 1916.

413 VIEIRA, David Durval Jesus. A cidade e os “bichos”: poder público, sociedade e animais em Belém (1892-1917). Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, Universidade Federal do Pará. Belém, 2015. p. 65.

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índios da Amazônia, conforme faz crer uma das narrativas d’O Tico Tico: “Não há tapuio que não tenha o seu, não há cunhatã que não o invoque nos momentos difíceis e não há curumim que não o conheça”414. Outro animal ao qual foi atribuído um caráter mítico em O Tico Tico é o Puraquê, que: “Apanhado vivo, facilmente se domestica, em um tanque ou aquario”. Segundo a narrativa do famoso Vovô d’O Tico Tico, o poraquê (ou peixe-elétrico) não só tem a carne muito apreciada, como também existe a “superstição” entre caboclos da Amazônia de que ele dá força elétrica a quem o come, “Tornando a pessoa viva, esperta e feliz ou ‘maruapiára’”, que quer dizer cheia de sorte. Tem-se aqui, mais uma vez, uma percepção da natureza, bem como das pessoas da região como marcados por superstições e misticismo, vistas como algo pouco civilizado, o que talvez pudesse transmitir aos leitores da revista uma ideia distorcida das práticas dos sujeitos sociais. A revista por nós analisada faz alusão à ave de pequeno porte conhecida popularmente como passarinho. Assim, nesse periódico infantil, diversos pássaros amazônicos serão contemplados: o jacamim, o Martim-pescador (na Amazônia chamado de ariramba), o gaturamo, o matirão, o bacurau, o urubu, dentre muitos outros415. Na seção Pássaros e aves do Brasil, assinada por Joaquim Silveira Thomaz, apontou-se que a “cigana”, também chamada de aturiá ou catingueira, “É a ave mais cursiosa que existe na Amazônia”416. Diz-se que ela possui garras em dedos individualizados, o que permite que subam em árvores com facilidade. Além disso, revelou-se que a carne desse pássaro não é adequada para alimentação, por exalar forte odor semelhante a “môfo”. Quanto aos seus ovos, eram considerados saborosos417. Partindo desses perfis de “exostismo” e/ou “utilidade”, alguns elementos da fauna e da flora receberão mais destaque nos discursos da imprensa sobre a região dependendo do período; uma vez que entendemos que a forma como essas imagens procuravam retratar a Amazônia dependia muito dos interesses do governo vigente, e do contexto econômico e político no qual o Brasil estava 414 Revista O Tico Tico. Edição 1873. Ano: 1941.

415 Respectivamente: Revista O Tico Tico. Edição 1886. Ano: 1943; Revista O Tico Tico. Edição 1880. Ano: 1942; Revista O Tico Tico. Edição 1878. Ano: 1942; Revista O Tico Tico. Edição 1905. Ano: 1944 Revista O Tico Tico. Edição 1201. Ano: 1928; Revista O Tico Tico. Edição 1880. Ano: 1943. 416 Revista O Tico Tico. Edição 1888. Ano: 1943. 417 Idem.


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inserido. De fato, a construção das representações do mundo social segundo Chartier, “São sempre determinadas pelos grupos que a forjam”418. A seção As maravilhas de nossa terra, da revista Tico Tico do ano de 1914, trouxe como ilustração a pesca do Pirarucu. Tal imagem pode ser considerada muito significativa, visto retratar a caça inerte ao solo, abatida pelo pescador e, frente à presa, o homem em pé segurando os apetrechos de pesca com os quais abateu o imponente peixe da região. A presença do pescador na gravura da revista nos mostra novamente que os sujeitos históricos e, mais especificamente, os trabalhadores da região não deixaram de compor a revista Tico Tico, ainda que em cenas ao lado de plantas e animais, que não deixavam de corroborar com uma imagem preconceituosa e exótica dos trabalhadores. Na legenda da fotografia, descreveu-se essa prática como uma das mais importantes para região do ponto de vista comercial. Além de apresentar uma paisagem ribeirinha – retratando, com certa coerência, a visualidade espacial amazônica para crianças brasileiras. Revista O Tico Tico. Edição: 0586. Ano: 1916.

418 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. p. 17.

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Se em muitas edições o que se nota é um convite à exploração desordenada dos recursos da Amazônia, quando se tratou da caça de tartarugas, temos uma matéria que vai de encontro a esta prática. É relevante enfatizar que poucas narrativas se desenrolam tendo como objetivo fomentar a preservação da natureza. Assim, em edição de 1921, afirmou-se que na região amazônica há grandes populações de tartarugas, que em certas épocas do ano desovam na areia das praias do Amazonas. Entretanto, relata-se que “os filhos da Amazônia” fazem uma “tremenda” caçada desses animais, apanhando seus ovos de forma tão intensa que as tartarugas da região “já vão escasseando”; pois “Até hoje ninguém por lá se lembrou de crear tartarugas para que a espécie não se extingua”, ainda que, segundo informa O Tico Tico, esse seja um dos principais alimentos do povo do Amazonas. Ainda quando as crianças se deparavam com certa preocupação com a extinção desses animais, o morador da região é tomado como incauto que não aprendeu que se podia criar em cativeiro tais animais. Desse modo, muitos dos textos que chegavam até às crianças construíram imagens depreciativas dos trabalhadores e de suas práticas. De fato, o artigo segue informando que os “japoneses” – povo prático e inteligente, segundo O Tico Tico –, cultivam a espécie trionia japonicus em grandes viveiros, também para fins de alimentação. E que, diferente dos caçadores da Amazônia, os japoneses racionalizam etapas de cultivo e consumo, uma vez que sabem que “De onde se tira e não se bota o fim é triste”419. A leitura atenta sugere que o texto queria ensinar às crianças mais sobre a importância da reprodução dos animais para a produção econômica, do que propriamente indicar uma prática para que esses animais não sejam extintos. Contudo, certamente, o maior foco de riquezas amazônicas apresentado pela revista O Tico Tico para os pequenos brasileiros consistiu na possibilidade de cultivar e explorar a terra, as árvores, os insumos e frutos que poderiam ser produzidos e extraídos, conforme o exemplo a seguir: Vocês aqui do Sul, não sabem o que há pelo norte do Brasil. Quantas riquezas temos por lá! A borracha e as madeiras do Amazonas e do Pará. […] 419 Revista O Tico Tico. Edição 0808. Ano: 1921.


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Lá só uma coisa nos falta, como diz meu pae: falta-nos gente! As terras são immensas! De gente é que precisamos.420

A citação destacada se refere ao artigo publicado no ano de 1937. Com o título Cada um pela sua terra, trata-se de uma narrativa enviada por um leitor que se apresentava como paraense, constatando na matéria, junto ao seu pai, que nessa terra faltava gente que trabalhasse “para maior prosperidade”. Mais uma vez, as crianças se deparavam com a ideia de uma terra sem gente, que não se desenvolvia pela ausência das ações humanas. Muitas edições vão informar sobre a necessidade de exploração dos recursos naturais presentes em todo território brasileiro. Vale ressaltar que histórias e imagens sobre o extrativismo da borracha foram recorrentes durante o período compreende a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Por exemplo, trabalhadores da região nordeste que se deslocaram rumo à Amazônia para os seringais foram representados em texto duplicado: primeiro em 1930, no almanach421, e, após 10 anos, em 1940, na revista422. Essa narrativa, de título Um veterano do Acre, dissertou acerca da História de um “Cabo Velho”, o qual lutou na guerrilha “gloriosa do Acre”, mas que antes tinha sido seringueiro na Amazônia, “Cortando a árvore do ‘ouro negro’, levando a sua contribuição pessoal em favor da civilização aos extremos limites de nossa selva”. O trabalho foi descrito como árduo, fazendo com que este personagem envelhecesse antes do tempo, ao passo que “A natureza hostil tomava terreno, sobre seu organismo gasto e desprevinido”423. Portanto, representou-se para as crianças a figura humana vencida pela natureza, reforçando, ainda que não se destaque explicitamente isso, as mesmas imagens euclidianas construídas sobre a região e seus moradores no início do século XX424. Foi descrito que o Cabo Velho, desanimado com a vida que estava levando, pensava em retornar às praias nativas do Ceará, quando ocorreu o chamado patriótico e este alistou-se. Segundo a narrativa: “Afligia-o a ideia de nada ter 420 Revista O Tico Tico. Edição 1642. Ano: 1937. 421 Almanach d’O Tico Tico. Ano: 1930.

422 Revista O Tico Tico. Edição 1818. Ano: 1940. 423 Revista O Tico Tico. Edição 0650. Ano: 1918.

424 CUNHA, Euclídes da. [1999]. “Terra sem história”. In: À Margem da História. MINISTÉRIO DA CULTURA Fundação da Biblioteca Nacional Departamento Nacional do Livro, pp. 1-10.

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feito, de nada ter podido fazer na vida”. Essa visão vai ao encontro de uma ideia que, por muito tempo, foi perpetuada quando se tratou dos seringueiros, principalmente dos migrantes da região do nordeste na historiografia e literatura. Segundo Franciane Lacerda, os seringueiros não podem ser vistos apenas sob a alcunha de “semi-escravos” ou “flagelados”425, uma vez que os estudos sobre suas ações no espaço urbano, a busca pelo lazer e as transgressões na cidade sugeriam formas de resistência diante da dificuldade do trabalho. De outro lado, a matéria A borracha, assinada por José de Camargo, apresentou o tema por meio d’um diálogo no qual o avô revelava ao neto informações sobre a extração e usos da borracha. O personagem do neto também expõe, durante a narrativa, informações que possuía acerca do produto, bem como revelou-se no texto com entusiasmo diante do assunto, tal foi expressada dentro da narrativa a imaginação pungente do menino: “Uma confusão de máquinas reais e imaginárias, donde deviam sair blocos de borracha, pneus, assentos, gorros, chapéos, malas, fios, uma cidade, enfim, de borracha”426. Todo o “bate papo” narrativo, conforme provavelmente queria demonstrar O Tico Tico, era interessante para o menino pelas possibilidades de criação com produto final. A representação da borracha na revista infantil O Tico Tico ocorreu em diversos momentos. Grosso modo, pode ser visto como um dos principais assuntos tratados na publicação no que se refere à região Amazônica entre os anos de existência desse impresso (1905-1962). Entretanto, corroborando com essa ideia de que faltava gente que trabalhasse na região, em O Discurso do Rio Amazonas (1940), o presidente Getúlio Vargas pronunciou o seguinte: É tempo de cuidarmos, com sentido permanente, do povoamento amazônico. Nos aspectos atuais o seu quadro ainda é o da· dispersão. [...] Nada nos deterá nesta arrancada que é, no século XX, a mais alta tarefa do homem civilizado: conquistar e dominar os vales das grandes torrentes equatoriais, transformando a sua fôrça cega e a sua fertilidade extraordinária em energia disciplinada. O Amazonas, sob o impulso fecundo da nossa vontade e do nosso trabalho, deixará de ser, afinal, um simples capítulo da história 425 LACERDA, Franciane Gama. Migrantes cearenses no Pará: faces da sobrevivência (1889 – 1916). 1. Ed. Belém: Açaí – Centro de memória da Amazônia / PPHIST – UFPA, 2010. 426 Revista O Tico Tico. Edição 1708. Ano: 1938.


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da terra e, equiparado aos outros grandes rios, tornar-se-á um capítulo da história da civilização427.

Assim, entendemos que a pouca representação dos sujeitos amazônicos em comparação à natureza – fauna e flora, desse espaço – se deu pelo fato de que a própria sociedade brasileira, especialmente os representantes políticos e o próprio editorial e articulistas da revista, entendiam a Amazônia como um espaço vazio. Consequentemente, esse entendimento, pode ter alimentado os imaginários e os conhecimentos de gerações de meninas e meninos que se depararam com essa publicação nas primeiras décadas do século XX.

Considerações finais No período entre guerras (1914-1945), de maneira geral, imagens e discursos canalizados na revista foram utilizados para consolidar e reafirmar ideias próprias dos atores que a compunham: editores, articulistas e público (adulto e infantil); valores importantes para o universo coletivo burguês e letrado. Ou seja, os que tinham poder de compra e acesso à leitura. Os discursos eram em prol do conservadorismo, do patriotismo e do trabalho. As temáticas que tratavam especialmente da Amazônia não fugiam dos objetivos primordiais da revista, que atuou como importante veículo de educação moral e cívica. Tendo assim se voltado para a formação de crianças, adolescentes e jovens brasileiros. Em 1914 a imprensa era um atrativo aos alfabetizados e, ao mesmo tempo, tentava satisfazer “os semi-alfabetizados com ilustrações e histórias em quadrinhos, ainda não admiradas pelos intelectuais, e desenvolvendo uma linguagem muito colorida, apelativa e pseudodemótica, que evitava palavras de muitas sílabas”428. A evolução dos meios gráficos modificou o formato visual da revista O Tico Tico. Aos poucos, adicionou-se mais cores e, principalmente, ampliou-se a presença de ilustrações por entre as páginas; o que não interrompeu o seu declínio com a introdução das comics norte-americanas no mercado

427 O Discurso do Rio Amazonas. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/115/rbg_1942_v4_n2.pdf. Acesso: 13/11/2020. 428 HOBSBAWM, Eric J. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 155.

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entre as décadas de 1930 e 1940429. A incorporação de elementos gráficos mais atrativos e de novos personagens não modificou, entretanto, a forma como se falou da Amazônia e de seus moradores para os pequenos e jovens apreciadores do impresso. A revista O Tico Tico exaltava as riquezas naturais brasileiras. Nesse processo, duas perspectivas moldaram a forma como a Amazônia era grafada e descrita na revista. Se de um lado, a região permanecia vislumbrada pelas lentes do exotismo – reverberando construções imagéticas que dialogavam diretamente com as representações presentes em relatos de viajantes desde o período colonial –, de outro, as narrativas também coincidiam com as estratégias econômicas do Brasil, visto que os conteúdos apresentados destacavam o potencial dos produtos da região, de acordo com as necessidades do momento. De fato, a revista O Tico Tico veiculou discursos estereotipados construídos historicamente em relação à região que ainda circulam na atualidade. No entanto, ainda que a Amazônia tenha sido apontada como um espaço predominantemente “natural”, devido à pouca representação dos espaços e práticas urbanos locais, os sentidos dados pelos “pequenos leitores” às informações que receberam por meio desse periódico são múltiplos e certamente se reinventaram ao longo do tempo.

429 Dos anos 1930 até a Segunda Guerra Mundial temos a penetração no mercado francês de traduções e adaptações de comics norte-americanos e no Brasil não foi diferente. “seu preço muito baixo permite uma divulgação incomum, se comparada à da imprensa infantil de antes da primeira guerra mundial” CHARTIER, Anne Marie; Hébrard, Jean. Discursos sobre a leitura – 1880-1980. São Paulo: Editora Ática, 1995. p. 85.


CAPÍTULO 8

EDUCAÇÃO E SAÚDE DAS CRIANÇAS: A ATUAÇÃO DO SESP NA AMAZÔNIA PARAENSE (1942-1945)

Edivando da Silva Costa

Resumo: Recuperar a atuação do SESP – Serviço Especial de Saúde Pública – e as atividades desenvolvidas para as crianças, moradoras de cidades do interior da Amazônia é a proposta do presente artigo. Criado durante a Segunda Guerra Mundial, o serviço fazia parte de um programa de cooperação assinado entre o Brasil e os Estados Unidos, e tinha como objetivo atuar no saneamento e educação sanitária na Amazônia. Nesse projeto, as crianças em idade escolar tornaram-se alvos das atividades do Serviço, uma vez que eram entendidas como a futura geração da região, e, a elas, deveriam ser ensinados o que se entendia por boas práticas de saúde. A escola tornou-se lugar de intervenções na área da educação sanitária, visando, sobretudo, a formação das professoras e o desenvolvimento de associações, como os Clubes de Saúde, que, embora atuando com as crianças, buscavam alcançar as famílias. Ao analisarmos esse contexto, podemos compreender um pouco sobre o Pará no período da guerra e as ações de uma agência de saúde na formação de meninos e meninas do interior. Palavras-chave: SESP; Educação Sanitária; Criança; Pará.


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A educação sanitária: O SESP e as escolas primárias rurais

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criação do SESP – Serviço Especial de Saúde Pública – está intimamente ligada às reuniões ocorridas na cidade do Rio de Janeiro durante o ano de 1942. Nascida durante a 2ª Guerra Mundial, a nova agência atuaria na área de saúde e no saneamento da região amazônica. Segundo Campos, “Para os Estados Unidos, a adesão do Brasil à causa dos Aliados tornou-se imperativa, sendo o projeto de saúde e saneamento vital para os interesses norte-americanos no Brasil”430. A Amazônia voltava a ser destaque no cenário nacional e internacional, tendo a borracha como figura central e o produto regional a ser explorado. Se no final do século XIX e início do XX, cidades como Belém e Manaus experimentaram “A riqueza criada pelo látex e a contribuição para uma reorganização do espaço urbano, sempre em função do mercado especializado da borracha”431. A década dos anos 40 do século XX vai assistir os esforços de uma política pública voltada sobretudo para as cidades do interior da Amazônia. Era necessário, diante de um quadro de doenças, cuidar da saúde dos trabalhadores envolvidos na extração do látex e também dos moradores locais. Tão logo iniciou suas atividades, o SESP projetou o espaço escolar como lugar privilegiado para a formação das novas gerações e ambiente de difusão dos princípios de educação sanitária. De acordo com o Serviço, “O uso de cartazes e boletins de propaganda como grande valia, [...] e as professoras transmitiriam numa linguagem mais acessível aos seus alunos, aproveitando a grande ascendência moral que têm, sobre os alunos e os pais”432. Ao perceber a importância estratégica das escolas para o projeto de educação sanitária, os representantes do SESP buscavam conhecer as atividades desenvolvidas pelos órgãos educacionais. Em visita ao INEP – Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos -, do Ministério da Educação, o Dr. Clair Turner, da Divisão de Saúde do coordenador de Negócios Inter-Americanos, “Deteve-se em examinar, com o diretor do INPE, os processos utilizados pelas escolas 430 CAMPOS, André Luiz Vieira de. Políticas internacionais de saúde na era Vargas: o Serviço Especial de Saúde Pública. GOMES, Angela de Castro. (organizadora) Capanema: o ministro e seu ministério. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. p. 201. 431 SARGES, Maria de Nazaré. Belém: Riquezas produzindo a Belle Époque (1870-1912). 3ª edição. Editora Paka-Tatu. Belém, 2010, p. 114. 432 BOLETIM DO SESP. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro. Nº 6, 1944, p. 5.


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primárias brasileiras para a educação sanitária”433. Tal ação, certamente, não estava desprovida de interesses, visto que a escola e as professoras pareciam ser elementos centrais dentro do projeto do SESP. Nesse contexto, o que seria, então, Educação Sanitária, e quais as suas ações? De acordo com o assistente técnico da Divisão de Educação Sanitária, Dr. Orlando José da Silva, ela teria o objetivo de “Ensinar o povo a conservar a saúde e defender-se da doença, bem como preparar técnicos em saúde pública”. Além disso, por abranger todos os indivíduos, e havendo, ainda, a necessidade de formar profissionais, também a entendia como uma “atividade sistematizada”. Para completar o seu raciocínio sobre a questão, o assistente se apropriou da ideia defendida pela American Phisical Education Association, para quem seria “A soma de todas as experiências que influenciaram favoravelmente os hábitos, as atitudes e conhecimentos relativos à saúde do indivíduo, da comunidade, e da raça”434. Tais ações visavam as práticas cotidianas da população com atividades sugestivas para “ensinar” atitudes e hábitos entendidos como saudáveis. Nas páginas do Boletim do SESP, podemos pôr em relevo a percepção dos representantes do Serviço sobre os costumes da população local. Para o Dr. Gastão de Andrade, Diretor do SESP, “O nosso povo, em geral, anda descalço e mal vestido; [...] não sabe alimentar-se; e vive em casas miseráveis. Temos que ensinar-lhes hábitos de higiene e de proteção à saúde, sobre uma boa alimentação e habitação adequada”435. Da mesma forma, Charles Wagley concebia-os como “Indivíduos que não usam os alimentos a seu dispor, porque seus hábitos ou costumes tradicionais lhe ensinaram de maneira diferente. [...] E constituem em certas ocasiões barreiras no caminho do processo educativo”436. Ao buscar impor o seu modelo de atenção à saúde, os representantes do SESP apresentam os modos de vida da população de maneira depreciativa, desqualificando culturas locais e suas formas de viver, vestir e se alimentar. Segundo Violeta Loureiro, “Índios, negros (quilombolas) e caboclos têm sido considerados nos planos e nos projetos econômicos criados para a região como 433 CORREIO DA MANHÃ. Rio de Janeiro. 13 de dezembro de 1944. Nº 15374, p.3.

434 BOLETIM DO SESP. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro. Nº 24, 1945, p. 10. 435 BOLETIM DO SESP. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro. Nº 24, 1946, p. 7. 436 BOLETIM DO SESP. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro. Nº 25, 1945, p. 5.

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sendo portadores de uma cultura pobre, primitiva, tribal e, portanto, inferior”437. Ao inferiorizar os moradores, o SESP justificava suas ações como responsáveis por instruir e orientar comportamentos e hábitos locais, elencando a escola como lugar propício para as novas práticas de saúde e de higiene. Essa questão pode ser entendida a partir do posicionamento do antropólogo Charles Wagley438, para quem “A escola era a melhor época para formar hábitos e atitudes corretas no indivíduo. Trabalhando através das escolas, especialmente as primárias, estamos determinando as crenças, as atitudes e os hábitos, numa grande parte de uma grande geração”439. A escola seria um ponto de partida, lugar da divulgação dos bons hábitos de saúde. Aliás, os discursos ecoavam para além dos prédios escolares, pois, para o norte-americano, “Através da criança, as ideias são levadas para as famílias. Sanitaristas e educadores estão de acordo que o programa de saúde na escola é o método mais eficiente de educação sanitária”440. Tais discursos pretendiam justificar a necessidade e urgência de intervenções no cotidiano, as quais não se limitavam ao espaço escolar, assim também ampliando o processo educativo para as famílias e, com isso, orientando a população para a aquisição de novas formas de comportamentos. Jornais em circulação pelo país creditavam à escola e às professoras rurais papéis fundamentais na difusão dos novos hábitos para as crianças. Ao falar sobre a “renovação cultural do magistério”, O Jornal, periódico publicado no Rio de Janeiro, louvava as ações da Divisão de Educação Sanitária do SESP com a criação de cursos intensivos para professoras primárias. Também, chama a atenção o fato de a notícia reconhecer a importância da parceria existente entre o Posto de Saúde e a Escola, e informar que “Se a repartição oficial do Ministério da Educação não cuidou disto como deveria, o SESP vinha 437 LOUREIRO, Violeta Refkalefsky. Amazônia: uma história de perdas e danos, um futuro a (re) construir. Estudos Avançados. 16. (45), 2002, p. 114.

438 Antropólogo norte-americano, veio ao Brasil em 1939 realizar pesquisas no âmbito do programa institucional articulada entre o Museu Nacional do Rio de Janeiro e a Universidade de Columbia, visando fortalecer a antropologia no Brasil. Em 1942, ingressou no Instituto de Assuntos Interamericanos – IAIA – passando a colaborar com o SESP. Na agência, ocupou o cargo de Assistente do Superintendente, Diretor do Programa de Migração e Diretor da Divisão de Educação Sanitária. Conferir: FURTADO, Gabriela Galvão Braga. SILVA, Lenita Pantoja. LEITÃO, Wilma Marques. Charles Wagley e a saúde pública na Amazônia. Anais da 30ª Reunião Brasileira de Antropologia. Agosto de 1016, João Pessoa, Paraíba. 439 BOLETIM DO SESP. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro. Nº 25, 1945, p. 5 e 6. 440 Idem.


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realizando um trabalho digno de ser imitado e de ser reconhecido por todo o povo brasileiro”441. Ao tecer críticas à pasta responsável pela educação no país, enaltecia as iniciativas propostas pelo SESP e as inúmeras estratégias utilizadas pelo Serviço. Aliás, foram os jornais importantes divulgadores dos projetos do SESP na região amazônica. De acordo com O Jornal,“Na comunidade rural brasileira, apesar das suas deficiências, a escola é ainda um centro irradiador de atividades”442. Um dos problemas apontados pelo editorial era a precariedade das escolas rurais. Presumivelmente, as escolas possuíam um padrão de construção e, sem levar em consideração as diferenças climáticas regionais, sua estrutura poderia ser um problema para a realização das atividades. Destacava o noticiário a existência de “Casos em que as janelas basculantes transformam as salas de aulas em verdadeiros fornos, porque não se cuidou de estudar se o local permitia aquilo”443. Mesmo apontando as limitações das instituições, a matéria reconhecia os métodos do serviço em utilizá-las como um aliado, pois “A escola pública rural foi, como não podia deixar de ser, um dos alvos do SESP na sua campanha. O Posto e a Escola realizam um trabalho tão comum, tão igual nos seus objetivos, sendo impossível dissociar a ação dos sanitaristas e professores”444. Saúde e educação seriam atividades complementares, e a saúde do corpo estava associada ao repasse dos novos hábitos de comportamentos. Metelski e Caraminati sugerem a formação de hábitos como uma grande atividade da campanha higienista instaurada no início do século XX. A partir de então, no Brasil, ampliou-se a noção de higiene para a escola e para a sociedade”445. Apresentadas como uma espécie de porta-voz no processo de transmissão dos novos hábitos, as professoras primárias receberiam várias formações, teóricas e práticas, sobre educação sanitária. As primeiras iniciativas organizadas pelo SESP para a implantação de um curso na região amazônica ocorreram ao longo do ano de 1943. De acordo com as informações oficiais, “O Dr. 441 O JORNAL. Rio de Janeiro, 11 de novembro de 1945, Nº 7835, p.1. 442 O JORNAL. Rio de Janeiro. 17 de abril de 1945. Nº 07658, p.1. 443 Idem. p. 2. 444 Idem;

445 METELSKI, Michele. CARMINATI, Celso João. As prescrições higienistas de leitura e escrita para a escola: 1917 – 1953. Educ. foco, Juiz de Fora, v. 22, nº 3, 2018, p. 97.

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Marcolino Gomes Candau esteve na Amazônia, onde estudou os problemas de educação sanitária. Juntamente com as autoridades dos Estados do Pará e Amazonas organizou dois cursos para professoras públicas rurais, em Belém e Manaus”446. No entendimento do SESP, caberiam às professoras primárias a responsabilidade em “Ensinar as crianças princípios de higiene”447. Essas questões seriam, segundo o Serviço, vantagens importantes na atenção aos cuidados com a higiene e com a saúde, principalmente direcionadas aos pais e alunos. Esses indicadores não eram novidades no Brasil, pois já nas primeiras décadas do regime republicano surgiram as primeiras ações do poder público, no sentido de sistematizar e institucionalizar as práticas de educação sanitária no país. Érica Souza atenta para a criação do Serviço de Propaganda e Educação Sanitária (SPES) no início do século XX, por volta de 1923, como política de saúde pública voltadas para a educação sanitárias448. Alguns anos depois, em 1927, o Instituto de Hygiene, de São Paulo, “Fez a cerimônia de entrega de diplomas à primeira turma de educadoras sanitárias. [...] Saúde, instrução e moral, seria o tripé sobre o qual se deveria alicerçar a atuação das novas mensageiras da saúde [...]”449. É nesse período que Lina Faria enfatiza a entrada em cena das professoras primárias, “Vistas como importantes aliadas na obra de divulgação das noções de higiene. [...] A justificativa para a opção das professoras primárias pôs em destaque a importância da formação pedagógica”450. Entendemos o quanto a escola se consolidava como um lugar privilegiado, espaço de formação e divulgação do que se considerava novos hábitos de saúde; e, por consequência, as professoras primárias foram projetadas como protagonistas do processo da educação sanitária. A importância das professoras dentro do projeto do SESP foi sugerida por Nilo Bastos. Profissional que atuou no serviço, Bastos deixou um 446 BOLETIM DO SESP. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro. Nº 1, 1943, p. 8. 447 Idem.

448 SOUZA, Érica Mello de. Educação Sanitária: orientações e práticas federais desde o Serviço de Propaganda e Educação Sanitária ao Serviço Nacional de Educação Sanitária. (1920-1940). Dissertação. Casa de Oswaldo Cruz – Fiocruz. Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. Rio de Janeiro, 2012, p. 11. 449 ROCHA, Heloísa Pimenta Rocha. A higienização dos costumes. Educação escolar e saúde no projeto do Instituto de Hygiene de São Paulo (1918–1925). Campinas, SP: Mercado de Letras; São Paulo: Fapesp, 2003, p. 140 – 141. 450 FARIA, Lina. Educadoras sanitárias e enfermeiras de saúde pública: identidades profissionais em construção. Cadernos Pagu (27), jul./dez. 2006, p. 187.


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importante registro memorialista sobre as etapas e funcionamento das ações. Sobre o tema, expressou que “O SESP, logo de início, sentiu ser necessário desprofissionalizar a Educação para a Saúde, isto é, tirá-la do ambiente limitado dos serviços de saúde e levá-los para todos os meios possíveis para o povo”451. O autor reforçava a necessidade de expandir o conhecimento médico sanitário para outras áreas, dadas as necessidades, apresentadas no contexto. Sobre as professoras primárias, pontuava que “Exerciam uma grande influência sobre os líderes e grande parte da população, tornando-se assim o centro irradiador para os lares e a comunidade em geral”452. Dentro do projeto do SESP, as professoras, além de serem responsáveis pelo ensino, leitura e escrita das crianças, eram evocadas como uma espécie de mensageiras da saúde e da higiene. Quanto à formação oferecida pelo SESP, coube ainda ao Dr. Candau, na época diretor do Programa de Educação Médica, durante sua estadia nas capitais dos estados onde ocorreriam os cursos, “Permanecer por dez dias, de maneira a dar as dez primeiras aulas de cada curso, devendo estar de regresso ao Rio em princípios de fevereiro”453. Ao ministrar aulas454 para formação das professoras, o diretor do Programa buscava demonstrar a importância do curso e também da escola como lugar privilegiado para a execução do projeto. A justificativa sugeria existir na escola pessoas mais aptas ao entendimento, e também para a divulgação das ideias defendidas pelo SESP. Para o Superintendente, “Palestras feitas para funcionários, professores e clubes são mais bem recebidas, pois em geral se obtém assim um grupo mais inteligente. As palestras deveriam ser simples, curtas, e despidas de termos técnicos”455. Nas observações do Serviço, as profissionais da educação, por serem formadas e instruídas, facilitariam a divulgação dos novos conhecimentos para a população local. 451 BASTOS, Nilo Chaves de Brito. SESP/FSESP: 1942 – Evolução histórica – 1991. 2ª edição. Brasília: Fundação Nacional de Saúde, 1996, p. 333. 452 Idem. p. 333.

453 BOLETIM DO SESP. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro. Nº 2, 1943, p. 4.

454 O Dr. Candau iniciou o curso com aulas sobre as seguintes matérias – Instalação da escola: edifício, mobiliário, material escolar; Problemas gerais de saneamento: água e esgotos; Desenvolvimento mental do escolar: Educação sanitária na escola; Higiene corporal; Higiene da boca; Doenças transmissíveis. BOLETIM DO SESP. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro. Nº, 8, 1943, p. 8. 455 BOLETIM DO SESP. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro. Nº 5, 1943, p. 3.

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Os cursos para professoras rurais se estenderam para outros estados brasileiros, como Manaus, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Em Manaus, no dia 15 de janeiro de 1945, as professoras primárias do interior do estado iniciaram a capacitação. Segundo o Boletim, o curso fora “Planejado pelo Dr. Turner, especialista em assuntos de educação sanitária, e o Dr. Orlando Silva, assistente da divisão sanitária do SESP, o curso teria a duração de duas semanas e destinava-se a 20 professoras”456. Além do curso ser gratuito, as professoras recebiam incentivo financeiro, pois o SESP concederia “20 bolsas, no valor de Cr$ 1.000,00 cada uma, para distribuir entre as mesmas”457. Ao se tornarem alvos prioritários do programa, presumimos que o incentivo financeiro para as professoras participarem dos cursos poderia ser uma forma de atraí-las. Sobre as bolsas de estudos concedidas pelo SESP, os jornais informavam “Ser bem atraentes, tendo em vista os modestos salários recebidos pelas professoras nos seus cargos”458. Por haver certa resistência, ou mesmo uma necessidade financeira, a demanda pela formação delas na área parecia ser imprescindível, em virtude das ações essenciais no trabalho de educação sanitária. Ao longo dos anos, as formações se intensificaram em Manaus. Segundo o noticiário local, o SESP promoveria, em colaboração com o Departamento de Educação e Saúde, um curso “De caráter intensivo, durante três semanas, para vinte professoras e deveria ser orientado pelo Dr. Catete Pinheiro, Diretor do Serviço de Educação e Propaganda do SESP”459. Teria ainda a cidade recebido outras professoras, quatro do Rio Branco e uma de Xapuri, do estado vizinho, Território do Acre, para participarem dos cursos de formações. De acordo com o governo acreano, “Estimular e favorecer as professoras na frequência de outras fontes de conhecimento, tornaria a escola mais proveitosa, eficiente [...], graças a feliz iniciativa do SESP, compensação justa ao prêmio que lhes é atribuído”460. Se os problemas de saúde eram atribuídos à falta de higiene, coube ao serviço, em parceira com os governos locais, apostar na formação das professoras primárias. Como se pode notar, aliada à função de educadora do magistério, caberia a elas a missão de divulgar os preceitos higiênicos nas 456 BOLETIM DO SESP. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro. Nº 20, 1945, p. 7. 457 Idem.

458 O JORNAL. Rio de Janeiro. 11 de novembro de 1945. Nº 7835, p.1.

459 JORNAL DO COMERCIO. Manaus. 6 de janeiro de 1946. Nº 14025, p. 8. 460 JORNAL O ACRE. Rio Branco. 1º de dezembro de 1946. Nº 796, p.1.


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escolas pelo interior do país, em nome daquilo que o SESP considerava como boas práticas de saúde. Já em Belo Horizonte, o curso foi inaugurado em dezembro de 1944, para as professoras rurais da área do Rio Doce, “Por iniciativa do SESP em cooperação com a Secretaria de Educação, a Diretoria Geral de Saúde e Assistência e o Comitê Regional do Coordenador de Assuntos Inter Americanos”461. Durante as aulas, as professoras teriam acesso a conhecimentos sobre “Educação sanitária na escola, doenças transmissíveis, problemas de saneamento, higiene corporal e da boca, alimentação, envenenamento e socorros de urgência”462. A formação recebida orientava os novos rumos que o serviço buscava imprimir no cotidiano dos alunos e familiares, com noções fundamentais de higiene e medicina preventiva. As estratégias utilizadas pelo SESP nesse período já eram desenvolvidas pelo governo mineiro. Na primeira metade do século XX, em Minas Gerais, entre os trabalhos de divulgação e propagandas de educação sanitária, as escolas e as professoras primárias eram os principais focos463. Após a realização do curso na cidade mineira, uma professora da área rural escreveu uma carta dirigida ao Dr. Orlando José da Silva, Assistente do Diretor da Divisão de Educação Sanitária, e informava “Estar pondo em prática o que tinha aprendido no curso. Fez e colocou nas varandas, por ser o lugar mais frequentado da escola, vários cartazes sobre higiene, alimentação, valor das vitaminas, asseio corporal, etc.”464. Além de se tratar de uma iniciativa existente em vários estados do país, as professoras e as escolas rurais tornavam-se difusoras das atividades de educação sanitária, voltadas especialmente para as crianças escolares. Ainda em Belo Horizonte, após a conclusão do curso de educação sanitária, o SESP buscou divulgar os relatórios apresentados pelas professoras participantes, com o objetivo de propagandear os benefícios trazidos pelas formações e assim legitimar suas estratégias. Em seu boletim, citou o relato da professora Ana Letro, segundo a qual, “Muitas crianças dormiam durante 461 BOLETIM DO SESP. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro. Nº 17, 1944, p. 9. 462 Idem.

463 ABREU, Jean Luiz Neves. Educação sanitária e saúde pública em Minas Gerais na primeira metade do século XX. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 17, nº 1, jan-mar 2010, p. 205. 464 BOLETIM DO SESP. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro. Nº 23, 1945, p. 12.

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a lição, e depois que se tratou de curar a opilação dos meninos ficaram vivos, ninguém mais dormia na escola e alguns ficaram ativos demais, dando trabalho às professoras”465. Ao demonstrar os cuidados com a saúde das crianças e os efeitos obtidos com maior atenção desses nas aulas, as narrativas prosseguiam e, como forma de exaltar a atuação do Serviço, explorou o diagnóstico de outra professora. Para Maria Tancredina “O SESP com seus relevantes serviços prestados à coletividade ao se espalhar nas zonas beneficiou material e espiritualmente, os ensinamentos de sanidade de seu povo”.466 Embora os cenários educacionais das zonas rurais pelo país apresentassem uma situação precária, o SESP buscava realçar uma imagem positiva de suas atividades como estratégia de validar o seu projeto de educação sanitária. Através dos registros nos boletins do SESP, é possível ainda inferir como as propostas das atividades de educação sanitária foram percebidas de maneira diferentes por parte dessas profissionais a quem os projetos se direcionavam. Após finalizar um curso pelo Programa da Amazônia,uma professora mencionou a subnutrição dos alunos, e relatava “Apesar de grande esforço, no ano a expirar, foi sem aproveitamento algum, nada consegui, nada melhorei e por vezes desanimei ante a inanição dos alunos, provocada pela deficiência alimentar”467. Ao apontar a má alimentação como um dos principais problemas enfrentados pelos alunos, a professora as descreviam como “Crianças anêmicas, raquíticas, devido à má alimentação, nunca poderão tirar proveito das aulas, pois que já a elas vêm obrigadas. A tais crianças até o brincar é enfadonho, quanto mais o estudar”. Mesmo recebendo os cursos de capacitação, inclusive sobre práticas alimentares468, advertia e questionava as condições de vida das crianças e as estruturas das escolas, pois, “Pedir, ensinar que se alimentem bem? Coitados! Não podem e nem todos os dias têm seu peixinho e farinha, o seu único e principal alimento. Pelo exposto verá a situação precária e higiênica das nossas escolas do 465 BOLETIM DO SESP. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro. Nº 26, 1945, p. 7. 466 Idem.

467 BOLETIM DO SESP. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro. Nº 49, 1947, p. 9.

468 Aulas sobre alimentação – a segunda parte do Curso foi iniciada pela Dra. Clara Sambaquí, médica do Food and Nutrition Departament, com as seguintes aulas teóricas: Importância da Alimentação; Alimentos de origem animal; Vitaminas; Erros a corrigir na alimentação do brasileiro; Noções gerais sobre a organização de lista de alimentos, de compras e preços; Alimentação de crianças até aos 2 anos de idade; Alimentação dos escolares e diversos tipos de merenda. A parte prática constará da preparação de pratos, visando o aproveitamento do valor nutritivo de cada alimento. BOLETIM DO SESP. Ministério da Educação e Saúde. RJ. Nº 5, 1943, p. 8.


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interior”469. O cotidiano de muitas crianças pobres demonstrava um distanciamento entre as projeções feitas pelo SESP, e a realidade vivenciada por parte da população do interior da Amazônia. Recomendar uma alimentação saudável para os alunos, quando muitos não dispunham do básico, poderia ser um dos motivos pelas quais as professoras não se interessassem pelos cursos ofertados. A teoria parecia estar muito longe daquilo que a realidade prática apresentava. Além do mais, muitas dessas mulheres professoras associavam o trabalho no magistério às atividades de mães e donas de casa. Apesar de haver toda uma logística para a formação de profissionais da saúde e professoras, com o objetivo de impor novas práticas sanitárias, tais ações poderiam esbarrar nas difíceis condições de vida da população. Mandar tomar banho, usar calçados, comer alimentos nutritivos, etc., a partir de orientações impositivas, poderia encontrar muitas resistências, principalmente por se tratar de hábitos diferentes do que de costume, e muitas famílias apresentarem condições financeiras desfavoráveis. A atuação das profissionais da educação na área da saúde e as iniciativas do SESP na realização de cursos de formação não poderiam surtir os efeitos esperados. Sem conhecer a realidade dos moradores locais, em que muitos não tinham acesso a necessidades básicas de sobrevivência, como a alimentação e moradias dignas, qualquer programa estaria fadado ao fracasso. O relato da professora deixa a entender que os cursos não eram atrativos, provavelmente por estarem desconectados da realidade das escolas e dos alunos. Participar de uma formação sobre alimentação, contendo orientações para manter uma vida considerada saudável, e repassá-la aos alunos, parecia ser uma tarefa árdua, principalmente por se tratar de crianças que se alimentavam, segundo os relatos, de “peixe e farinha”. Se, por um lado, as atividades escolares e o discurso de educação sanitária não eram novidades no Brasil, questão demonstrada pela vasta literatura existente sobre o tema470, por outro, 469 BOLETIM DO SESP. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro. Nº 49, 1947, p. 9.

470 Ver A higienização dos costumes: educação escolar e saúde no projeto do Instituto de Hygiene de São Paulo (1918-1925). Campinas, SP: Mercado de Letras; São Paulo: Fapesp, 2003. CASTRO, M. A. Educação sanitária nas escolas. In. RICARDO, A. e colaboradores. Educação sanitária: divulgação de conhecimentos básicos de Higiene para professores normalistas. São Paulo: Departamento do Serviço de Saúde Escolar, 1947. LIMA, G.Z. Saúde escolar e educação. São Paulo: Cortez, 1985. STEPHANOU, M. Formar o cidadão física e moralmente: médicos, mestres e crianças na escola elementar. Educação, subjetividade e poder. Vol. 3, 1996.

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em tempos de guerra, destacou-se a atuação do SESP e o uso das escolas e das professoras rurais dentro do projeto de interiorizar a saúde pública no Brasil, sendo a região amazônica um desses espaços contemplados. Ao acessar os relatórios escritos pelas professoras, o editorial de O Jornal apontou alguns problemas destacados pelas cursistas. Entre os relatos, cita “Lugares em que existem fossas em determinadas casas particulares, mas nas escolas isto seria luxo”. Prosseguia apontando “Haver escolas onde as crianças sentavam-se em caixotes velhos, onde não existiam filtros ou talhas de barro, e os alunos eram obrigados a trazer um vidrinho cheio d’água de casa”471. Ao analisar a situação das escolas rurais mineiras na década de 1940, Betânia Ribeiro et al. informam a existência de “Escolas improvisadas, docentes sem formação específica escolhidos por vínculo político e com salários defasados marcavam a precariedade e a realidade das escolas rurais”472. Mesmo as escolas do interior apresentando estruturas precárias, com mobílias improvisadas e a ausência de condições de higiene satisfatórias, o jornal buscava reforçar as atividades do Serviço, para quem, “Por intermédio das autoridades estatais, levou a colaboração da saúde para a obra de educação das professorinhas brasileiras do interior, e delas vem recebendo a mais preciosa colaboração na cruzada contra as doenças”. Para as adversidades apresentadas, os leitores dos jornais eram induzidos a crer nas ações de saúde que o SESP fazia no interior do país, além de buscar credenciar a agência e celebrar a parceria existente entre o Brasil e os Estados Unidos em tempos de guerra. Além das professoras primárias, outras funcionárias do SESP atuaram junto aos escolares, com o intuito de orientar as práticas de educação sanitária. Coube às visitadoras sanitárias o papel de proceder “Um intensivo trabalho de campo, relacionado com o saneamento básico da redondeza, higiene maternal e infantil (inclusive higiene pessoal das parteiras), e higiene escolar no que se refere à educação sanitária ministrada pelas professoras primárias”473. No lar e nas escolas, junto com outras mulheres, mães e professoras, nos cuidados cotidianos com a casa, com a alimentação e com as crianças, seriam as principais 471 O JORNAL. Rio de Janeiro. 17 de abril de 1945. Nº 07.658, p.2.

472 RIBEIRO, Betânia de Oliveira Laterza. SILVA, Leila Aparecida Azevedo. QUILLICI NETO, Armindo. Educação Rural em Minas Gerais: gênese das escolas municipais de Ituiutaba (anos 1940). Revista HISTEDBR On-line, Campinas, nº 46, jun. 2012, p. 81. 473 BOLETIM DO SESP. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro. Nº 19, 1945, p. 2.


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tarefas das visitadoras. A atuação se daria em contato direto com as famílias, frente de trabalho, encarada pelo serviço como uma das mais estratégicas das ações. Visitadoras sanitárias em uma escola em Santarém no Pará, 1944.

Figura 1. FONTE: Fundo I - Administração. Seção 3 - Cursos e Treinamentos. Curso de Visitadoras Sanitárias. Programa da Amazônia. Santarém - Pará. 15/06/1944. Fiocruz - RJ.

A foto captura um momento em que as crianças das escolas estão aprendendo a lavar as mãos, praticando com as visitadoras o procedimento. Como destaca Mauad, “Sem jamais esquecer que todo documento é monumento, se a fotografia informa, ela também conforma uma determinada visão de

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mundo”474. Mesmo se tratando de uma atividade simples, o SESP registra a ação mostrando alunos e alunas receptivos, recebendo instruções das visitadoras. Demonstrar que tinha o respeito, a confiança e a simpatia da população local poderia apresentar uma realidade muito distante do pretendido, pois, longe da observação das visitadoras, ou mesmo em suas casas sem estrutura adequada e com a ausência de produtos de limpeza, poderiam ser para as crianças entraves para sua limpeza pessoal. Na falta das enfermeiras de saúde pública habilitadas, recaíam sobre as visitadoras sanitárias475 o atendimento nos Centros de Saúde476 e o cuidado com a saúde pré-natal e das crianças do interior477. Quando formadas, deveriam atuar diretamente junto às famílias, “Não apenas reconhecer os primeiros sinais de doenças, mas instruir e demonstrar os cuidados higiênicos durante a gravidez e o parto, e os cuidados com o bebê e as crianças maiores”478.

474 MAUAD, Ana Maria. Através da imagem: fotografia e história interfaces. Tempo. Rio de Janeiro, vol. 1, nº 2, 1996, p. 8.

475 Em 1944, o SESP deu início à formação de diversos agentes de saúde. Santarém no Pará foi a cidade que recebeu dois cursos de formações para moradoras locais que pretendiam ingressar na carreira de visitadora sanitária. BOLETIM DO SESP, Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro. Nº 19, 1945, p. 2.

476 Como parte do Programa da Amazônia, o SESP realizou inquéritos sobre as condições sanitárias em algumas cidades do interior do Pará. Em 1944, construiu postos de saúde em Abaetetuba, Altamira, Cametá, Gurupá, Monte Alegre e dois hospitais, um em Santarém e outro em Breves. O JORNAL, 6 de maio de 1945, p. 6. 477 BOLETIM DO SESP. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro. Nº 7, 1944, p.1. 478 Idem. p.2.


Educação e saúde das crianças: a atuação do SESP na Amazônia paraense (1942-1945)

Figura 1: Visitadoras sanitárias orientando os cuidados com um recém-nascido.

Fonte: Fundo I - Administração. Seção 3 - Cursos e Treinamentos. Curso de Visitadoras Sanitárias. Programa da Amazônia. Santarém - Pará. 15/06/1944. Fiocruz - RJ.

A imagem busca demonstrar a atuação das visitadoras sanitárias e os cuidados dispensados as crianças. Conforme o programa sugeria, tratava-se de uma atividade minuciosa em que se privilegiava o pré-natal, a higiene pessoal, os cuidados com os olhos, umbigo, peso, alimentação, desmame, etc. Juliane Araújo et al. apontam já existir no país atividades de atenção à infância, pois, “Entre 1930 e 1940, iniciaram-se os programas de proteção à maternidade, à infância e à adolescência [...], com ações de vigilância e educativas, [...] com caráter curativo e individualizado, sendo desenvolvidos em hospitais

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privados [...]”479. Em 1940, com a criação do Departamento Nacional da Criança (DNCr), pelo então presidente Getúlio Vargas, as atividades foram repassadas a esse órgão, com orientações “Para a implantação, nas esferas estadual e municipal, de serviços públicos e privados de proteção a esses grupos populacionais”480. Os discursos em torno da saúde e da higiene já estavam presentes desde os anos iniciais do regime republicano. Na capital paraense, “Os discursos das autoridades pareciam denotar uma necessidade de praticar ações diretas baseadas em vacinações, visitas domiciliares, limpezas das ruas, e campanhas de combates as doenças”481. Tais questões perpassavam diretamente pelo “Envolvimento da população, seus costumes, suas moradias e práticas de higiene, tanto dos espaços públicos como privados [...]482. Outras estratégias foram utilizadas pelo SESP, com o intuito de instruir as crianças escolares nas práticas de educação sanitária. A isso, podemos sugerir a criação dos Clubes de Saúde: “Os Clubes de Saúde, como o nome indica, destinam-se a despertar nas crianças, através do espírito associativo, o sentimento da necessidade de defender a saúde. Graças a essas entidades, a educação sanitária pode ser conduzida com maior eficiência do indivíduo à família, à comunidade e à pátria, criando-se entre as novas gerações hábitos de vida sadia. Ao mesmo tempo, desenvolve-se nas crianças o senso da solidariedade e da responsabilidade comum na resolução dos seus problemas. Aprendendo a fazer coisas por si mesmas, na base da cooperação mútua, elas concorrem também para tornar mais fácil a assimilação dos princípios de educação sanitária pelas demais pessoas da família”483.

479 ARAÚJO, Juliane Pagliari. SILVA, SILVA, Rosane Meire Munhak. COLLET, Neusa. NEVES, Eliane Tatsch. TOSO, Beatriz Rosana Gonçalves de Oliveira. VIERA, Cláudia Silveira. História da saúde da criança: conquistas, políticas e perspectivas. In: Revista Brasileira de Enfermagem – RBEn – 2014, nov-dez, 67(6), p. 1002. 480 BRASIL GOVERNO FEDERAL. Ministério da Saúde. Gestões e gestores de políticas públicas de atenção à saúde da criança: 70 anos de história. Série I. História da Saúde. Brasília – DF, 2011, p. 10. 481 GOMES, Elane Cristina Rodrigues. Vida material: entre casas e objetos, Belém 1920-1945. 2009. 183 fls. Dissertação (Mestrado em História Social da Amazônia). UFPA, Belém, p. 40. 482 Idem. p. 40.

483 BOLETIM DO SESP. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro. Nº 28, 1945, p.12.


Educação e saúde das crianças: a atuação do SESP na Amazônia paraense (1942-1945)

O alvo principal dos Clubes de Saúde na Amazônia seriam as crianças. A elas caberiam o papel de levar as mensagens de educação sanitária para as famílias, além de representarem o futuro da região. Através da aquisição dos hábitos repassados pelo SESP, contribuiriam para a construção de uma nova nação. Desde os primeiros anos do governo Vargas, já se impunha um modelo de controle sobre as pessoas. Ao abordar em suas pesquisas sobre a infância em Manaus nos anos 30 e 40 do século XX, Alba Pessoa sugere proteção às crianças como algo revestido de interesses. Segundo a autora, a política governamental visava o resguardo da infância, diante do grande número de óbitos, mas, por trás dos discursos, estava o interesse na manutenção indispensável da mão de obra das crianças, futuros trabalhadores484. De acordo com as instruções do SESP, os clubes atuariam em parceria com as escolas rurais, e desenvolveriam atividades relacionadas à prevenção de doenças, educação alimentar, recreação e economia doméstica. Para os alunos, consideravam-se como bons hábitos de saúde, os “Banhos diários, unhas limpas, escovação de dentes, cuidados com os cabelos, cuidados com os olhos e nariz, asseio das mãos, asseio do vestuário, uso do calçado, copo individual, uso do lenço, objetos de uso pessoal”485. As ações visavam cuidados individuais permeados por diversos aspectos, como saúde, higiene e prevenção. A priori, deveriam ser inseridos na rotina diária dos estudantes no contexto escolar. Nas publicações do periódico carioca O Jornal, era informada a estratégia traçada para as escolas primárias e os clubes, pois, “Através dos meninos e meninas das escolas, muita vez, tornam-se mais fáceis atingir o pai e a mãe”. Ainda segundo o noticiário, “Trazendo os pais para as escolas, as professoras colaboram inestimavelmente não apenas na cruzada contra a doença, mas na cruzada pela educação nacional”486. Teriam sido as famílias incorporadas às políticas públicas governamentais. Conforme apontado por Alba Pessoa, elas seriam “Como espaço de modelagem, de posturas, de hábitos e costumes, a

484 PESSOA, Alba Barbosa. Pequenos construtores da nação: disciplinarização da infância na cidade de Manaus (1930-1945) Tese. Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal do Pará, Belém, 2018. 485 FUNDO FSESP – Assistência Médico-sanitária. BR.FIOCRUZ-COC – FSESP/AM/00/ TM/AM/06. Dossiê 6, caixa 139. 486 O JORNAL. Rio de Janeiro. 17 de abril de 1945. Nº 07658, p.2.

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família passou a ser alvo da ação intervencionista estatal”487. As atividades nos chamados Clubes eram estratégias, e refletiam as ações políticas pretendidas pelo SESP, utilizando-se de mecanismos para alcançar as famílias e na prescrição das ações que deveriam ser postas em prática. Para Nilo Bastos, os Clubes eram “Inspirados nas experiências de Carlos Sá com o Pelotão de Saúde488 nas escolas do Rio de Janeiro, bem como nos Clubes 4 H489, muito difundidos nos EUA. Estes, no entanto, dirigidos por adultos e, aqueles, por menores”490. Assim, tanto o Pelotão de Saúde, como os Clubes 4 H, serviram como modelos para os Clubes de Saúde do SESP, presumivelmente por abordarem atividades desenvolvidas tendo como público-alvo os jovens do interior. Tratava-se de propostas inspiradas nos modelos norte-americanos e, no Pará, teve a primeira experiência na cidade de Santarém, “Pelo Dr. Eduardo Catete Pinheiro, diretor da seção de Educação Sanitária. A fundação do Clube de Saúde de Santarém teve lugar no teatro local, com a presença de 129 crianças de ambos os sexos”491. Em 1945, o boletim do SESP destacou uma reportagem do jornal paraense A Vanguarda. Além de informar sobre a criação do primeiro Clube, na cidade de Santarém no Pará, noticiava a sua destinação para as crianças escolares, “No sentido de ministrar-lhes, em coletividade, os ensinamentos de educação sanitária, [...] visando à instrução higiênica no sentido de criar uma 487 PESSOA, Alba Barbosa. Pequenos construtores da nação: disciplinarização da infância na cidade de Manaus (1930-1945). Tese. Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal do Pará, Belém, 2018, p. 85.

488 Trata-se de uma experiência em educação e saúde criada por Carlos Sá e Cesar Leal Ferreira, em 1924, no município de São Gonçalo-RJ, e tinha como objetivo divulgar noções de higiene para alunos de escolas primárias estaduais. Ver: SILVA. João José Cândido da. Educação em Saúde: histórico, conceitos e propostas. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Diretoria de Programas de Educação em Saúde. Disponível em: http://www.reprolatina.institucional.ws/site/respositorio/materiaisapoio/textosdeapoio/Educacao_em_saude.pdf 489 Refere-se à experiência norte-americana que significava Head, Heart, Hands e Health, ou seja, Cabeça, Coração, Mãos e Saúde. Desenvolviam-se trabalhos de articulação teórico-prática da Sociologia Rural e serviam como um elo entre saber científico e a agricultura de subsistência. No Brasil, um modelo similar eram os 4-S – Saber, Sentir, Saúde e Servir –, que se constituíam em um espaço de trabalho “pedagógico-educativo”, voltado especialmente para os jovens, filhos de produtores rurais. Conferir: WOLFART, Cintia. “O novo já nasce velho”: os clubes 4-S e a modernização da agricultura no Oeste do Paraná (1950-1980). Dissertação. Programa de PósGraduação em História. Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. Marechal Cândido Rondon/Paraná, 2017. 490 BASTOS, Nilo. Op. Cit. p. 333.

491 BOLETIM DO SESP. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro. Nº 28, 1945, p. 12.


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consciência coletiva indispensável ao progresso das comunidades localizadas na Amazônia”492. Enquanto espaço de agrupamento de meninos e meninas, a escola tornou-se alvo fundamental dentro do processo de educação sanitária, e lugar propício para o SESP difundir as propostas de educação sanitária e as práticas de higiene entre os infantis, pois julgava ser mais difícil modificar os hábitos dos mais velhos. Estudos sugerem que, desde o início do século XX, os discursos médicos buscavam enfatizar a necessidade de conectar temáticas de medicina e educação como forma de estabelecer uma sólida educação sanitária, e, para isso, nada melhor do que iniciar pela educação escolar, desde a mais tenra idade”493. A justificativa para a criação do Clube de Saúde na região, de acordo com os registros, ocorria, a priori, por dois fatores, tidos como “grandes problemas da Amazônia”, sendo eles “A dispersão da população” e, como consequência, “A falta de conhecimento do espírito coletivo”494. A extensão da região e o fator demográfico têm sido objetos de estudo de muitos autores, focando presença humana e o povoamento da Amazônia. Segundo Araújo Lima na Amazônia, “O homem se tornava muito vulnerável pela insuficiência numérica. Não estava em causa a qualidade da terra, mas a quantidade de gente”495. Na mesma linha de pensamento, Anunciada Chaves cita “A Amazônia, como vasta e complexa, onde o homem se encontra em situação desfavorável. [...] A grandeza da região e a exuberância de sua flora e de sua fauna contrastam com a insuficiência do elemento humano”496. Atribuía-se ao homem amazônico os problemas ocorridos na região, sem levar em consideração que parte da sua população, formada por índios e caboclos, foi alijada historicamente das políticas públicas nacionais. Visando expandir as atividades dos Clubes para outras cidades, o SESP organizou um Estatuto composto de 23 artigos, contendo questões sobre 492 BOLETIM DO SESP. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro. Nº 29, 1945, p. 7.

493 STEPHANOU, Maria. Saúde pela educação: escolarização e didatização de saberes médicos na primeira metade do século XX. Disponível em: http://www.sbhe.org.br/novo/congressos/ cbhe1/anais/114_maria_ste.pdf. Acesso em: 25 abr. 2020. 494 BOLETIM DO SESP. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro. Nº 29, de 1945, p. 7.

495 LIMA, Araújo. Amazônia: a terra e o homem. Série 5ª. Brasiliana. Vol. 104. Biblioteca Pedagógica Brasileira. Companhia da Editora Nacional. São Paulo, Rio de Janeiro, Recife. 1937. p. 101. 496 CHAVES, Maria Anunciada. Notas sobre o povoamento da Amazônia. Revista Estudos Amazônicos. Vol. IV, nº 2, 2009, p. 153.

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reuniões, finalidades, direitos e deveres dos membros associados e da diretoria. De modo geral, a finalidade proposta consistia em “Estimular o conhecimento e a prática dos hábitos de higiene, [...] a saúde do indivíduo e coletiva, [...] criar o espírito coletivo, [...] estimular a educação moral e cívica, [...] e criar nova geração com noções de responsabilidade”497. Esses ideais eram premissas importantes dentro da agenda do Estado Novo, ao visar a difusão de valores, como a disciplina e o patriotismo. Segundo Prado, “A tarefa de construir um Estado novo e um homem novo identificado com os ideais nacionais fez com que os intelectuais colocassem sua inteligência a serviço do projeto oficial, em que o problema nacional passava, pela questão da identidade e unidade nacional”498. Entre os requisitos para participar do Clube, exigia-se do candidato, estar “Matriculado, apresentar certificado de vacinação antivariólica e antitifoidica, [...] e comparecer às reuniões semanais. [...] Não havia contribuição monetária do associado”499. O Clube cumpriria uma agenda com orientações de estabelecer uma consciência sanitária, ao buscar difundir para crianças e adolescentes questões relativas à moral e ao civismo. Para tanto, apostava no “Estímulo aos verdadeiros ideais de solidariedade humana, amor à Pátria e cooperação para o trabalho em bem da comunidade”500. Tal intento não era uma prática isolada, pois, durante o Estado Novo, foi construída uma política de proteção à família e ao trabalho, visando a formação do homem do presente e do futuro501. Ângela de Castro Gomes afirma caber à educação “Construir um povo integral, adaptado à realidade social de seu país e preparado para servi-lo [...]. Os postulados pedagógicos tinham em vista uma série de valores dentre os quais o culto à nacionalidade, à disciplina, à moral e também ao trabalho”502. Embora o projeto tivesse como público-alvo crianças em idade escolar, “Entre 7 e 14 anos”, seria uma forma de, a partir deles, buscar a adesão dos 497 BOLETIM DO SESP. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro. Nº 31, 1946, p. 10.

498 PRADO, Adonia Antunes. Intelectuais e educação no Estado Novo (1937/1945): o debate sobre a formação do professor primário rural. Teias, Rio de Janeiro, ano 1, jan./jun. 2000, p. 4. 499 BOLETIM DO SESP. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro. Nº 31, 1946, p. 10. 500 BOLETIM DO SESP. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro. Nº 34, 1946, p. 6.

501 GOMES, Ângela de Castro. A construção do homem novo: o trabalhador brasileiro. In: OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Velloso, Mônica Pimenta. GOMES, Ângela de Castro. Estado Novo: Ideologia e Poder. Zahar Editores. Rio de Janeiro, 1982. p. 158. 502 Idem. p. 158.


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familiares, em razão dos princípios básicos das atividades do clube orientarem os “Professores, pais e líderes dentro de uma grande cadeia de cooperação com os escolares, manter bem vivo o entusiasmo e o interesse pelo clube”503. Ao buscar extrapolar os muros da escola e atingir o maior número possível de pessoas da comunidade, as ações do Clube assemelhavam-se muito às experiências dos Pelotões de Saúde, apontadas por Nilo Bastos como referência para o SESP. Autores, como Michele Metelski e Celson Carminati, alertam para a finalidade desses pelotões no ensino da higiene e da educação sanitária, com a participação ativa dos próprios alunos dentro e fora da escola, de modo a se propor e adquirir hábitos sadios de higiene504. Havia uma nítida preocupação com o caráter educativo, sem considerar as crianças e suas famílias, moradoras do interior, e as dificuldades financeiras para seguir os ensinamentos proporcionados pelas ações do Serviço. A isso, soma-se o fato das diferentes percepções sobre as doenças entre o Estado e os moradores locais. Andar descalço, por exemplo, para a população pobre do interior, poderia ser uma imposição social, pois muitas das vezes não tinham condições de comprar uma sandália. Já na interpretação do SESP, seria um ato irresponsável, uma falta de higiene que poderia ocasionar uma série de doenças. Outra maneira utilizada pelo clube para atrair a atenção dos moradores estava ligada à construção de símbolos. Elegeu-se a Vitória-Régia, planta nativa da Amazônia, como modelo ideal para o clube, devido “Se destacar pela beleza, na região amazônica. As suas folhas sempre verdes simbolizavam a vida, o crescimento e a juventude; o branco de sua flor, a desejada pureza física e mental”505. As representações em torno do vegetal buscavam se aproximar da pretensão de orientar os escolares, em razão de serem os jovens, no início da vida, os responsáveis pela construção de uma sociedade higiênica e pautada nos valores morais e éticos. Ainda no caso da Amazônia, a Vitória Régia, para além de ser uma planta nativa existente na paisagem da região, estava presente também no imaginário local através de uma lenda, fazendo-se elemento corrente nas identidades e culturas locais. Muitas dessas narrativas míticas, por 503 BOLETIM DO SESP. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro. Nº 34, 1946, p. 7.

504 METELSKI, Micheli. CARMINATI, Celso João. Saúde, Força e Alegria: os pelotões de saúde e as cruzadas higienistas em tempos de nacionalismo (1941-1953). Revista Triângulo. Uberaba MG, Vol. 11, nº 2, maio/ago. 2018, p. 117. 505 BOLETIM DO SESP. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro. Nº 34, 1946, p. 7.

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exemplo, são encontradas nas obras do paraense Waldemar Henrique e do amazonense Milton Hatoum, para quem “Os mitos e as lendas, mesmo sendo compreendidas como produto do imaginário, interferem na realidade daqueles que nelas acreditam e marcam a caracterização da identidade amazônica”506. Conectar elementos do cotidiano amazônico aos símbolos e ideais do Clube parecia fazer parte do enredo construído pelo SESP, não apenas para dar visibilidade ao projeto, mas associar uma imagem familiar, algo que não soasse estranho e suscitasse uma ideia de pertencimento ao grupo. Aparentemente, foi assim também no procedimento para a criação do lema e da bandeira do Clube. Esta seria “Branca tendo no canto esquerdo, em verde, uma Vitória Régia no centro de cuja folha estava colada em branco as letras CS”. Já o lema escolhido teria sido “Saúde, trabalho, alegria para viver melhor o dia a dia”507. Os símbolos criados reforçavam a necessidade de agregar o espírito coletivo dos participantes e refletiam os interesses das políticas públicas de saúde que se interiorizavam na Amazônia, sobretudo na divulgação e orientação de novos hábitos e costumes para as crianças. Se a criação dos Clubes de Saúde é do período final da guerra, em 1945, na década seguinte, mostram-se ativos e ainda sendo instalados em algumas cidades da Amazônia. Assim aponta o jornal O Acre, de 1948, no qual anuncia a instalação do Clube de Saúde no município de Tarauacá, no estado do Acre. Contando com a presença das altas autoridades locais, da imprensa, do funcionalismo público, de familiares e escolares, dentre outros segmentos da sociedade local, a festejada solenidade ofereceu aos estudantes uma sessão cinematográfica gratuita no Teatro Municipal de Taraucá508. Em Santarém, através de uma circular do SESP endereçada ao Dr. Walemar Penna, chefe do centro médico de Santarém, era recomendado especial atenção aos Clubes, pois “Constituíam grupos de trabalho muito importante em atividades de saúde pública”509. Tal importância estava assentada na ideia dos seus partici506 FERREIRA, Lourdes Nazaré Sousa. Narrativas míticas nas obras “Série Lendas Amazônicas” de Waldemar Henrique e “Orfãos do Eldorado” de Milton Hatoum: Marcas Identitárias Amazônicas. Dissertação. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. SP, 2012, p. 9. 507 BOLETIM DO SESP. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro. Nº 34, maio de 1946, p. 7. 508 Jornal O Acre. Rio Branco. 8 de agosto de 1948. Nº 884, p.7.

509 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E SAÚDE. SERVIÇO ESPECIAL DE SAÚDE PÚBLICA. Fundo III, Engenharia Sanitária. Programa do Pará. Ano referência 1954/1961.


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pantes, “Cuja fase de desenvolvimento era propícia à formação de bons hábitos de saúde, dando-nos oportunidade de influir na formação de uma consciência sanitária para os dias do amanhã”. Ao longo de sua atuação, os clubes mantiveram seus objetivos, direcionados às práticas de saúde defendidas pelo SESP e voltados para um público específico, crianças e adolescentes escolares. Através da documentação, recomendava-se durante as reuniões priorizar atividades práticas, como a “Demonstração de atitudes favoráveis à saúde e a realização de trabalhos manuais”. Reiterava ser mais produtivo ensinar as crianças a “Lavarem as mãos, escovar os dentes, usar o seu copo individual e o seu lenço, plantar uma hortaliça, improvisar utilidades domésticas, etc.”. As ações pretendidas no início do projeto, e o entendimento do Serviço de como se deveria proceder a educação sanitária, ainda perduravam nos anos seguintes, demonstrando um pouco como os discursos e as práticas de saúde pública tinham como alvo a formação de meninos e meninas em idade escolar.

Considerações finais Durante a Segunda Guerra Mundial, Brasil e Estados Unidos formalizaram uma série de acordos diplomáticos e, como consequência, a criação de agências que atuariam no nosso país, celebrando a parceria dos discursos da política de boa vizinhança. Em 1942, surge o SESP – Serviço Especial de Saúde Pública, órgão responsável pelo saneamento e educação sanitária em áreas estratégicas dentro dos esforços de guerra. A região do Vale do Rio Doce, rica em minérios e a Amazônia, produtora natural de borracha, foi alvo dessas ações e experimentou uma série de intervenções. Se, a priori, havia o interesse pela extração das matérias-primas, era necessário cuidar da saúde dos trabalhadores. Uma série de ações foram postas em prática, como a formação de profissionais de saúde, construção de postos e hospitais, construção de privadas e melhorias no abastecimento de água. Com o intuito de obter melhores resultados, buscou-se abarcar os moradores locais, entendidos pelo serviço como portadores de péssimos hábitos e costumes e responsáveis pela proliferação das doenças. As escolas primárias rurais e os clubes de saúde tornaram-se locais estratégicos para alcançar o público-alvo, meninos e meninas escolares, e através Folha avulsa.

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desses chegar aos adultos. Para o SESP, “As atividades nas escolas deveriam ser combinadas com intenso trabalho fora da escola e, pais e filhos recebessem noções de higiene ao mesmo tempo”510. Não bastava o trabalho no interior das salas de aula, era necessário, segundo a agência, que as atividades de educação sanitária se estendessem para outros lugares e alcançassem também os pais. De acordo com o SESP, “A maior parte das doenças eram resultados diretos da falta de saneamento e higiene. Para melhorar a saúde das massas seria necessário transformar seus hábitos de vida, hábitos muito frequentemente velhos de séculos”511. Caberia, naquele momento, apostar na formação e educação das gerações futuras. Crianças em idade escolar foram alvos da política educacional sanitária proposta pela agência. Para o projeto surtir efeitos positivos, as professoras primárias receberam formações complementares sobre conhecimentos na área da educação sanitária. Nutrição, alimentação e higiene do corpo eram temáticas presentes nos conteúdos estudados pelas professoras e deveriam ser repassados para os alunos, durante as aulas, ou mesmo através de cartazes e outros materiais produzidos e afixados nos corredores das escolas. Na mesma linha de ação, os Clubes de Saúde buscavam estimular o desenvolvimento de práticas de higiene entre os escolares e criar o interesse por questões sobre saúde do indivíduo e da coletividade, educação moral, cívica e social, além de produzir nas novas gerações espírito de responsabilidade nos seus trabalhos. Havia uma nítida preocupação com o caráter educativo das crianças e suas famílias, sem, contudo, levar em considerar que muitos eram moradores do interior e não possuíam o necessário para seguir os ensinamentos de educação sanitária proposto pelo SESP. Soma-se a isso o fato de a doença e a condição de sadio serem percebidas de maneiras diferentes entre o estado e os moradores locais. Andar descalço, para a população mais pobre do interior, poderia ser uma imposição social, muitas vezes por não ter como comprar calçados, já para o estado, um costume causador de doenças. Ter aulas e palestras sobre práticas alimentares e nutrição talvez não fizessem muito sentido para as crianças, já que as condições financeiras impunham limites ao direito de uma casa com boa estrutura, com água encanada, banheiro, pias, materiais de limpeza, etc., e acesso a uma variedade de alimentos. Na falta de políticas públicas efetivas, capazes de sanar as deficiências sanitárias dessas regiões, tentava-se 510 BOLETIM DO SESP. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro. Nº 5, 1944, p. 3. 511 Idem. p. 1.


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remediar os problemas causados por tal ônus social, da propagação de moléstias, por meio da instrução e conhecimento de uma população historicamente esquecida, cuja mão de obra deveria ser preservada para melhor ser explorada.

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CAPÍTULO 9

INFÂNCIA E CONFLITOS AGRÁRIOS NA AMAZÔNIA: MEMÓRIA DE UM FILHO DE UMA LIDERANÇA SINDICAL ASSASSINADA EM MOJU/PA NA DÉCADA DE 1980

Elias Diniz Sacramento

Resumo: O presente artigo trata da memória do autor deste texto e de uma infância vivida em dois momentos. A primeira parte mostra essa memória ainda com a presença do pai, em que a vida tinha uma dinâmica. Essa infância era muito mais voltada para as brincadeiras com os irmãos e colegas da comunidade onde eu vivia, com momentos de lazer nos igarapés, nos ‘matos’ atrás de frutas, passarinhos. Essa primeira fase de minha vida era de um tempo de alegrias e sonhos. A segunda parte de minha infância, entrando na adolescência, foi diferente. Com a perda de meu pai, em 1987, aos 12 anos, tive que deixar de lado as brincadeiras para ajudar minha mãe no sustento familiar. Foi um momento da infância que precisei em alguns momentos me apropriar de um ‘isopor’ para vender ‘chopp’ de frutas nas ruas da cidade de Moju/PA, vender café e laranja em praça, entre outras atividades. Assim, o texto de caráter memorialístico procura demonstrar algumas lembranças dessa infância dividida nesses dois momentos, levando em consideração as dores e percalços que a vida apresentou. Palavras-Chave: Infância; Moju; Brincadeiras; Trabalho.


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Apresentação Mas, apanhar pimenta na terra de Virgílio era para nós uma diversão cheia de calor humano. À noite, após o jantar amarrávamos logo as redes, alguns no quarto do Virgílio e de dona Maria, na sala e no corredor, com as portas internas escancaradas. O motivo é que nós queríamos conversar, contar piadas, rir e sonhar juntos. Os filhos e filhas do Virgílio adoravam esses momentos de aconchego e de alegria e pouco a pouco um por um iam dormindo, não sem antes tomar o café plantado, colhido, torrado e moído pela família. Quem fazia o café? Não pensem que era Dª. Maria, ou Dª. Ana, mãe de Virgílio, pois era o menino Elias Sacramento, que nos trazia, numa bandeja bonita, os copos com o café cheiroso misturado com muita risada. Obrigado, Elias! (Rosa Figueiredo, 2018, p. 92).

A

citação acima foi feita pela missionária do Coração Eucarístico, Rosa Figueiredo (2018)512, no livro “Caminhos de vida, caminhos de fé: a trajetória de luta, fé e amorosa esperança de Pe. Sérgio Tonetto com os empobrecidos da terra e da água na região Guajarina”. A obra trata da vida de Padre Sérgio Tonetto, um italiano de Iesolo, que chegou em Moju nos fins da década de 1970 e mudou os rumos da igreja naquele município, principalmente com a presença da “Teologia da Libertação”. A referência na citação à família de Virgílio Serrão Sacramento estava relacionada à amizade que tiveram com o padre Sérgio Tonetto, as missionárias Rosa e Adelaide. Além da parceria nos movimentos que se formariam entre eles, a ajuda no trabalho na agricultura era uma outra prática. Virgílio e Dona Maria, os mencionados, tiveram muitos filhos, doze, no total, tendo uma falecida pequena. A menção a quem fez o café e o levava na bandeja era ao Elias Sacramento, o autor deste artigo. Eu fazia isso com meus oito, nove anos de idade. Fazia o café e levava para eles, era fascinante ter essas pessoas em nossa casa. Eles eram muito animados. A ‘equipe’ da Igreja de Moju, na pessoa de padre Sérgio Tonetto, irmãs Rosa e Adelaide, como eram chamadas, foi muito importante nos idos de

512 FIGUEREDO, Rosa Paes. Caminhos de vida, caminhos do reino: a trajetória de luta, fé e amorosa esperança de Pe. Sérgio Tonetto com os empobrecidos da terra e da água na região Guajarina. Belém: Graphite, 2018.


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1980, não só para nossa família, mas para a construção e trabalho metodológico junto às comunidades, principalmente do campo. A equipe era muito animada. Levavam maneiras fascinantes de se entender a teologia cristã por outro olhar. A “Teologia da Libertação”, em que eles buscavam fazer com que as pessoas não só ouvissem, mas participassem. Precisavam compreender o ‘evangelho’, questionar a sociedade atual, procurando se ver nas figuras ‘perseguidas’ nos tempos de Cristo. E isso foi muito importante para uma Moju que começava a viver momentos de tensão e perseguição no campo, sobretudo pela presença de diversos projetos agroindustriais que ali começavam a se instalar, como era uma realidade em diversas partes do estado do Pará.

Introdução A luta pela terra na Amazônia, depois do golpe militar em 1964, tornou-se uma grande realidade. Desde o fim do período da ‘Belle Époque’ que a região amazônica não tinha um movimento tão intenso de pessoas. Durante boa parte do século XX, a calmaria havia tomado conta dessas terras, uma vez que o principal produto econômico, a borracha, havia entrado em declínio, e grandes donos de casas comerciais, mercadores, faliram, muitos indo embora. No entanto, com os militares no poder a partir de 1964, a Amazônia sofreu a investida. Olharam para a região como uma ‘selva’ sem povoação. Deixaram de levar em consideração as populações tradicionais, como indígenas, quilombolas, ribeirinhas que viviam há séculos nessas bandas. Uma das frases que marcaram o período de investida foi esta: “Terra sem homens para homens sem-terra”. Um discurso ufanista no sentido de incentivar a vinda de milhares de homens e mulheres de outra parte do Brasil para esse espaço. O projeto pensado ‘de cima para baixo’ foi trágico, e os conflitos pela terra não demoraram a acontecer. Em todas as regiões em que iam chegando novos migrantes, sobretudo os do sul e sudeste do Brasil, pois eram os que vinham com a intenção de se apossar das melhores terras, foram gerando-se os imbróglios. O estado do Pará sofreu os impactos dessa investida. Regiões, como nordeste, oeste e principalmente sul e sudeste paraense, foram os que sofreram maior impacto. Estradas cortaram essas áreas, uma vez que a rodovia Belém-Brasília havia sido construída em fins da década de 1950, ligando a capital paraense ao restante do Brasil. Até então, antes da construção da

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extensa rodovia, as viagens eram basicamente pela via fluvial. Depois de pronta, dezenas de outras estradas foram abertas no estado paraense, o que facilitou a chegada de grandes levas de pessoas de outras regiões. Não bastasse a presença dos militares em diversas dessas áreas, principalmente no sul do Pará, onde o Exército havia aniquilado com a guerrilha do Araguaia, e se via posteriormente a presença deles circulando por várias localidades, cidades, também se tornava comum a presença de fazendeiros com seus chapéus clássicos, que mostrava com clareza que eram homens de outros estados, goiano, mineiro, baiano. O mais atemorizante eram os ‘mal-encarados’, que passavam a sensação de serem os famosos ‘pistoleiros’. E, assim, aos poucos, a Amazônia foi se tornando um verdadeiro ‘velho oeste’. Os conflitos passaram a se tornar uma realidade, e as mortes em decorrência disso não tardaram a surgir. Em 1964, foram quatro mortes, sendo a mais conhecida delas a de Benedito Serra. Ele era Presidente da União dos Lavradores da Zona Bragantina, município de Castanhal. Foi preso nesse município e recolhido pelas forças armadas em Belém, por ocasião do golpe, sob acusação de pertencer ao PC do B. O lavrador apareceu morto no hospital Militar a 18 de maio, tendo, como justificativa de sua morte, hepatite aguda. Os outros três foram Pedro Alves Monteiro, morto em Viseu, Antônio da Silva, morto em São Miguel do Guamá, e um lavrador, que não foi identificado que foi assassinado em São Geraldo do Araguaia 513. Violeta Loureiro, no livro “Estado, bandidos e heróis: utopia e luta na Amazônia”, mostra-nos que sua personagem central é a figura mítica de Armando Alves Lira, mais conhecido por ‘Quintino’, o matador de ‘Cabra Safado’ 514. O caso estudado pela autora se refere aos conflitos pela gleba CIDAPAR, um consórcio de empresas que se instalou no município de Viseu, região nordeste paraense, onde a todo custo as firmas, como PROPARÁ e outras, tentavam expulsar colonos de suas terras, surgindo, então, ‘Quintino’, que, depois de ter suas terras expropriadas, tornou-se um ‘Hobin Hood’ amazônico, defendendo os posseiros com seu bando criado. Quintino ganhou fama e era ‘amado’ pelos moradores das diversas comunidades locais, mas também 513 SACRAMENTO, Elias Diniz. Grilagem de terras e assassinatos: a revolta camponesa em Moju/PA na década de 1980: Margens, 2019.

514 LOUREIRO, Violeta Refkalefsky. Estado, bandidos e heróis: utopia e luta na Amazônia.. – 2. Ed. – Belém; Cejup, 2001.


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passou a ser ‘odiado’ pelos donos dos empreendimentos. Organizado uma ‘caçada’, a polícia militar do Pará conseguiu chegar até ele no dia 5 de janeiro de 1985. Sem chance de fugir, Quintino foi morto, sendo seu corpo levado em carro aberto, “desfilando” por várias cidades da região nordeste paraense. ‘Quintino’ tinha filhos, e eles não aparecem no trabalho de Violeta Loureiro. Assim como não aparecem os filhos de Paulo Fonteles, em Luis Maklouf515, no livro intitulado “Contido a bala: a vida e a morte de Paulo Fonteles, advogado de posseiros no Sul do Pará”, que narra a trajetória do ativista, advogado, comunista Paulo César de Lima Fonteles, assassinado na região metropolitana de Belém no dia 11 de junho de 1987. Assim, como ‘Quintino’, que tinha três filhos, Paulo Fonteles deixou cinco órfãos. João Batista, comunista, advogado e deputado estadual em 1988 também assassinado em Belém, deixando dois filhos. Também não consta a história desses no livro organizado por seu irmão Pedro Batista, “João Batista: mártir da luta pela reforma agrária, violência e impunidade no Pará”516. Igualmente, não aparecem os casos dos familiares de Raimundo Ferreira Lima, o ‘Gringo’, assassinado em Araguaína no dia 30 de maio de 1980, quando deixara seis filhos. Parte da história de ‘Gringo’ foi descrita em livro por Ricardo Rezende Figueira, “A justiça do lobo”517. Ausentes também ficaram os filhos de João Canuto e Expedito Ribeiro, dois líderes sindicais que foram mortos em Rio Maria, na região do sul do Pará, a mais sangrenta que se tem notícias. Ambos deixaram vários filhos, o primeiro, seis filhos, e o segundo, nove filhos. Existiu um esquecimento em relação às viúvas e, mais especificamente, aos filhos dessas lideranças. É importante frisar que todos os assassinados no campo amazônico, e principalmente paraense, tiveram uma importância muito grande na história. Cada homem e mulher que se dispuseram a fazer o enfrentamento junto aos fazendeiros, grileiros e latifundiários, foram mortos por

515 CARVALHO, Luiz Maklouf. Contido a bala: a vida e a morte de Paulo Fontelles, advogado de posseiros no Sul do Pará”. Belém. – Editora Cejup, 1994.

516 BATISTA, Pedro César. João Batista: mártir da luta pela reforma agrária, violência e impunidade no Pará. Belém. 1. ed. – São Paulo: Expressão Popular, 2008.

517 FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Rio Maria: Canto da terra. 1ª Edição. – Petrópolis: Editora Vozes, 1993.

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uma causa justa, nobre, uma vez que as autoridades não tomaram providencias e esses não fugiram da luta. Porém, a ausência de estudos sobre os familiares causa um sentimento de esquecimento ou abandono dos ‘órfãos’ dessas vítimas. Também é necessário buscar saber o que aconteceu depois da morte, que rumo tomaram, como foi a vida, que lembranças permaneceram, ficaram com algum trauma, há uma memória de orgulho, de raiva, de dor? Qual o sentimento que possuem em relação aos movimentos sociais, a Igreja, ao estado, aos fazendeiros, grileiros, latifundiários? São perguntas que procurei fazer como pesquisador a partir do momento em que entrei para o mestrado em História Social da Amazônia no ano de 2005, e depois dei prosseguimento no doutorado. Como filho de uma liderança sindical assassinada em Moju, no estado do Pará, em 1987, ao ingressar no mestrado, desenvolvi a pesquisa sobre os conflitos pela posse da terra nessa região, a partir dos fins da década de 1970, quando chegaram ali diversos projetos agroindustriais. Esses projetos foram de imediato a causa para uma série de brigas pela posse da terra. De um lado, os donos de fazendas, serrarias, agroindústrias entre outros, tentando se apossar de mais terras, de outro, colonos antigos, ribeirinhos, comunidades remanescentes de quilombos se defendendo da ‘confusão’ armados no campo. Frente a isso tudo, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Moju assistia inerte. Em 1983, a direção mudou. A oposição sindical venceu as eleições nesse ano e passou a fazer a defesa dos que pediam socorro. A luta foi intensa, ganhos e perdas para todos os lados. Para os grileiros e latifundiários, uma ‘baixa’ foi a morte do gerente de uma firma de dendê, chamada Reasa, o vereador Edmilson Soares, no dia 07 de setembro de 1987. Para os trabalhadores rurais, a pior derrota foi o assassinato do líder sindical, Virgílio Serrão Sacramento, ocorrido no dia 05 de abril de 1987. Esses acontecimentos foram descritos no artigo de Elias Diniz Sacramento, “Grilagem de terras e assassinatos: a revolta camponesa em Moju/ PA na década de 1980”518. No referido texto, procurou-se discutir os principais acontecimentos relacionados aos conflitos pela terra, que terminaram na morte do lavrador “Canindé”, no início de janeiro de 1988, e, consequentemente, na 518 SACRAMENTO, Elias Diniz. Grilagem de terras e assassinatos: a revolta camponesa em Moju/PA na década de 1980: Margens, 2019.


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‘invasão’ da cidade por um grupo de 78 homens com o rosto pintado de carvão e com suas armas, ‘cartucheiras’ para expulsar a polícia corrupta e os pistoleiros que dominavam a zona urbana e rural. Em 2015, ao ingressar no doutorado, apresentei uma proposta, que seria trabalhar com a memória dos familiares de dez famílias de lideranças assassinadas no estado do Pará, face à necessidade de saber os rumos tomados depois das mortes. Seriam os seguintes casos: Raimundo Ferreira Lima, o ‘Gringo’, João Canuto, Expedito Ribeiro, Avelino, Armando Alves Lira, ‘Quintino’, Benedito Alves Bandeira, o ‘Benezinho’, Gabriel Pimenta, João Batista e Paulo Fonteles. No entanto, no decorrer da pesquisa, foi observado a dificuldade em dar conta da proposta, ficando reduzido a três, sendo o caso dos familiares de ‘Gringo’, ‘Benezinho’ e Paulo Fonteles. A tese final ficou com o título “É muito triste não conhecer o pai: a herança da violência e a memória dos familiares de ‘Gringo’, ‘Benezinho’ e Paulo Fonteles519”, em que foi possível falar dos defensores dos trabalhadores rurais, colonos, lavradores, mas, em grande parte, a pesquisa dedicou-se à memória desses órfãos, porque acredito ter uma importância para a história social da Amazônia a compreensão acerca de como continuaram suas vidas posteriormente a esses eventos de violência. É isto que tratarei no presente texto: a memória de um filho de uma liderança que foi assassinada pelos conflitos de terra no estado do Pará, mais especificamente no município de Moju. Será minha memória que irei aqui apresentar. A memória de uma infância que foi de momentos alegres, felizes, enquanto meu pai era vivo, quando tínhamos seu carinho, seu amor, sua presença. E também apresentarei a memória da dor por sua morte trágica, tão repentina, e o que essa partida provocou em mim e em meus irmãos. Vou procurar mostrar através de algumas lembranças como era a vida na vila que morávamos, a Vila do Sucuriju, o trabalho que existia, as brincadeiras, a convivência em família, e também como tivemos que nos reinventar depois da morte de meu pai, passando por situações adversas, que só quem viveu sabe a realidade difícil que foi conviver com sua ausência.

519 SACRAMENTO, Elias Diniz. É muito triste não conhecer o pai: a herança da violência e os familiares de ‘Gringo’, ‘Benezinho’ e Paulo Fonteles. Belém: PPHIST/UFPa, 2020.

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De Limoeiro do Ajuru a Moju: o nascer de uma liderança sindical Ouço passos na estrada, da libertação, São teus passos, Virgílio, e de tantos irmãos, Que como tu enfrentaram a caminhada E não olharam para trás, Como bagagem, só a sede de justiça O evangelho e pra que mais?

O trecho do poema acima, que depois se tornaria uma canção, foi escrito por Rosa Figueiredo, freira da Ordem do Coração Eucarístico, que, durante mais de dez anos, morou e trabalhou em Moju nas missões religiosas. Desde sua chegada, conheceu Virgílio, tendo construído uma amizade e parceria nos trabalhos que eram feitos, principalmente no campo das comunidades. Virgílio Serrão Sacramento era o nome de batismo dado por seus pais, Ana Serrão Sacramento e Virgílio Sacramento Filho. Em Moju, passou a ser chamado de ‘Seu Virgílio’. Sua história começa no interior de Limoeiro do Ajuru, na localidade do rio Turuçú, região pertencente ao baixo Tocantins. Quando Virgílio nasceu, em 1942, ali pertencia ao município de Cametá. Virgílio começou cedo a trabalhar com seus pais junto ao extrativismo. No período de infância, estudou até a quarta série. Se quisesse continuar os estudos, precisaria ir pra Cametá ou Belém, e os pais não tinham condições. Então, restou o trabalho na extração da seringa, a coleta do muru-muru, a pesca, e o açaí, que era retirado para o consumo alimentar. De acordo com suas memórias, não existia nada que fizesse com que algum tipo de dinheiro circulasse na região dos vários rios que ficavam em frente à grande baia com uma bela paisagem. Na metade dos anos de 1960, alguns jovens ficaram sabendo da atividade econômica da pimenta nas terras de imigrantes ou descendentes de japoneses, localizadas em Tomé-Açú, região nordeste paraense, e que precisariam de três dias de viagens para chegar até lá. Virgílio foi um dos que se animou, e, reunido com mais outros amigos, foram ver de perto o que se comentava. Passou a temporada da coleta da pimenta, período que durava uma média de dois meses, eles retornaram para o lugar de origem, contando as ‘maravilhas’. No ano seguinte, retornou com os pais e vários irmãos.


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No retorno, mais uma vez, Virgílio se casou com Maria do Livramento520. Dessa vez, além de seus pais terem ido para as terras tomesuense, Virgílio foi junto com sua esposa e seu filho menor, Dorival. Trabalhou ‘catando’ a pimenta, como se dizia na época. Mais uma vez, passada a safra, os trabalhadores voltavam para seus lugares de origem. Virgílio foi para a região do baixo Amazonas, trabalhar na extração da juta. Não deu certo, retornou para a colônia japonesa. Já com mais uma filha, além de Dorival, agora tinha a Dinalva. Com sua esposa, trabalharam nas terras dos japoneses extraindo pimenta, cuidando da limpeza dos pimentais, cortando mais ‘estaca’ para novas plantações. Trabalhou muito e, aos poucos, foi se firmando. O trabalho deu resultado. Em 1976, Virgílio já tinha sua própria terra, um trator e mais três filhos tinham chegado, além dos mais velhos, Edna, Sandra e Elias. As coisas estavam indo bem, até que, em 1977, as pimenteiras sofreram um ataque de uma doença que devastou muitas plantações. As de Virgílio foram atingidas e, desgostoso, resolveu vender as terras e procurou outra, que encontrou no município de Moju. Chegaram em fins de 1977 na vila do Sucuriju, onde compraram um lote de terra medindo 250 metros de frente por mil metros de fundo. As terras eram uma parte sua e outra de seus irmãos e seus pais. Na ocasião da chegada de Virgílio, sua esposa veio grávida do filho João, que nasceu em dezembro daquele ano. Ali, Virgílio voltou ao trabalho pesado, retornando para a atividade da pimenta do reino. Aos poucos, foi se recuperando e dando uma vida estável aos seus familiares. Em Moju, começa a participar da comunidade, primeiro participando das celebrações aos domingos. Descobriu que havia o Sindicato dos Trabalhadores Rurais e se sindicalizou. Conheceu o padre recém-chegado da Itália, Sérgio Tonetto, e se tornaram grandes amigos. Ambos foram vendo a chegada de diversos projetos agroindustriais se instalando no município Mojuense, em diversas regiões, como a do alto Moju, baixo Moju, Jambuaçú. Eram projetos dos mais diversificados, como de fazendas de criação de gado, indústrias madeireiras, plantação de coco, de dendê. Tais projetos eram incentivados pelos governos militares. Essa região fez parte desse processo de escolha por conta de sua localização geográfica e de suas 520 Maria do Livramento Diniz Sacramento era filha de Ludugero Diniz e Luduvina Diniz. Maria do Livramento não conheceu sua mãe, faleceu quando ainda era criança, sendo criada junto com mais cinco irmãos por seu pai. Era vizinha de Virgílio.

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terras. Vejamos outras empresas que se fixaram em Moju, de acordo com o relato de Rosa Figueiredo: Reasa, Dempasa, Serruya, Universal, projeto seringueira, Banco Real, Franciozi, Salame, Crai, Sococo, Banco Bandeirantes, Parquet Paulista, Cutia, Santa Rosa, Maísa, Yamada, Vila Flor, Cargil, Costa Rica, Salame, Santo Antonio, Agromendes (Figueiredo, 2018: p, 22).

De repente, o município de Moju estava com seu mapa completamente modificado. E os conflitos pela terra não demoraram para ocorrer. Virgílio, que já era sócio do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, esperava que sua entidade fosse defender aqueles que estavam tendo suas terras tomadas pelas agroindústrias que iam se instalando. Mais o STR nada fazia. Incomodado com esta situação, Virgílio reuniu um grupo de trabalhadores rurais para tentar ajudar os que pediam socorro. E, assim, nasceu a Oposição Sindical. Em 1983, formaram uma chapa para as eleições sindicais, a chamada ‘Chapa 2’, ou Oposição Sindical. Depois de grandes atribulações no processo eleitoral, a Chapa 2 sagrou-se vitoriosa, tendo tido o apoio da igreja católica, com o então padre Sérgio Tonetto e as irmãs missionárias apoiando e contribuindo de forma significativa para a grande conquista. Virgílio foi escolhido como presidente. Um documento produzido pela Associação Brasileira de Informação (SNI)521, órgão ligado aos militares, assim descreveu o processo que culminou com a vitória da chapa dos opositores em Moju. Vejamos: Realizou-se no dia 06 de março de 1983, as eleições para o Sindicato Rural de Moju/PA, com a participação de 04 chapas concorrentes. Saiu vencedora a chapa 2 (oposição), apoiada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), “clero Progressista”, Federação dos Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) e do Partido Comunista do Brasil (PC do B) representado pela militante Isabel Marques Tavares da Cunha; além da militância ativa na Comissão Pastoral da Terra que unidas somaram forças visando tomar a direção do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Moju. 521 Serviço Nacional de Informação. ACE nº 3045/1983. Eleições no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Moju. Ministério da Justiça/ Departamento de Polícia Federal/ Superintendência Regional no Estado do Pará: Serviço de Informações. In: Arquivo Nacional.


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A estratégia adotada pela chapa 2, consistiu em pôr em prática as articulações que vem sendo desenvolvidas nos últimos quatro anos pelo PT, Clero Progressista, CPT, FASE e PC do B. Referidas entidades esquerdistas vêm desenvolvendo intenso trabalho de base, no campo, junto aos trabalhadores rurais; aos pequenos agricultores, pesqueiros, com o objetivo de formar uma consciência política que reúna os trabalhadores rurais e para tanto, o primeiro passo é a tomada do controle dos Sindicatos Rurais. No caso do Sindicato de Moju/PA, o Clero Progressista, na pessoa do Padre Sávio Corinadelsi, filho de Ulderico Corinadelsi e Irma Gagliardini, nascido aos 01 de dezembro de 1936, Jesi/Itália e Sérgio Tonetto, filho de Erminio Tonetto e Ema Sgorlon, nascido aos 18 de fevereiro de 1946 Iesolo/Itália, que aproveitando-se do indivíduo Manoel Ferreira dos Santos (Manoel Libório), ligado a CPT e filiado ao PT (concorreu as eleições de novembro/1982, ao cargo de vereador, em Moju/PA, obtendo apenas 56 votos), recentemente infiltrado no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Moju, tendo participado da Chapa 2, como representante, para pôr em, prática a estratégia política visando tomar a direção do Sindicato. A diretoria Efetiva ficou com a seguinte composição: Presidente: Virgílio Serrão Sacramento; Vice: Aldenor dos Reis e Silva, Secretária: Rosalina dos Santos Silva (ACE, 3045/83: Eleições no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Moju).

O Serviço Nacional de Informação (SNI), órgão ligados aos militares, tinha como objetivo fazer levantamento da vida daqueles que eram entendidos como subversivos, ou que eram simplesmente suspeitos de atos contrários aos governos militares. Mesmo em fins do regime, no início da década de 1980, agentes procuravam se infiltrar nas organizações sociais de esquerda, ou mesmo nas questões que dizia respeito ao clero religioso, como ocorreu nas eleições do STR de Moju, em que se pode ver claramente que eles tinham as informações precisas de cada um dos envolvidos no pleito. Virgílio teve uma participação muito intensa na luta e defesa dos trabalhadores rurais de Moju. Era incansável. Os documentos e matérias de jornais descritos no livro “As almas da terra: a violência no campo mojuense”, de Elias Diniz Sacramento522, mostram com clareza como o líder sindical vivia nas

522 SACRAMENTO, Elias Diniz. As almas da terra: a violência no campo mojuense (1980). Belém. – PPHIST-UFPA, 2007

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localidades conflituosas, depois indo para Belém fazer as denúncias nos órgãos competentes, na imprensa. Em 1986, Virgílio deixou a presidência do STR Mojuense, passando então a direção para o novo presidente, o jovem Aventino Rodrigues. Virgílio continuou na entidade como delegado representante, e acompanhava o novo representante dos trabalhadores rurais. Porém, o ex-presidente já estava ocupando outros cargos também. Era tesoureiro da Central Única dos Trabalhadores (CUT Guajarina), era membro do diretório estadual do Partido dos Trabalhadores (PT), era membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT – Guajarina) e, no mês de março de 1987, foi eleito membro do Conselho Fiscal da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Pará (Fetgri/ PA). Quando chegou em Moju, vindo de Tomé-Açú em 1977, Virgílio e sua esposa, Maria do Livramento, contavam com cinco filhos, mais o que estava por chegar, em dezembro daquele ano, totalizando seis. Em outubro de 1986, nasceu a caçulinha Noemi, completando o time de onze filhos do casal. Era uma felicidade imensa para os dois. Felicidade essa que foi interrompida no dia 05 de abril de 1987, às 16h, quando esse voltava para sua casa, trazendo alimentos para o jantar. Não deu tempo de chegar. Faltando um quilometro, foi atropelado por um caminhão madeireiro, tendo o motorista manobrado para que as rodas passassem sobre seu corpo, não dando chances de vida. As descrições sobre esse acontecimento, muito doloroso, bem como as boas lembranças da infância, eu destacarei daqui para frente. Quero que as leitoras e os leitores saibam que, embora seja muito importante retratar esses fatos, eles sempre trazem à tona uma carga emocional muito forte, mas que tenho a consciência da necessidade de se fazer, uma vez que há sofrimento, mas também há muito orgulho por trás desse passado dolorido, e de quem foi meu pai.

Memórias de uma infância alegre e feliz Nasci em Tomé-Açú, no dia 17 de abril de 1975. Fui o sexto filho. No entanto, minha mãe, Maria do Livramento, e meu pai, Virgílio Serrão Sacramento, já tinham perdido uma filhinha que nasceu com problemas de saúde. Com poucos recursos, faleceu com sete dias de vida. Então, acabei


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ficando como o quinto filho vivo. Antes de mim, tinha o Dorival, que havia nascido em Limoeiro do Ajuru, Dinalva, que tinha nascido em Almerim, e Edna e Sandra, que, como eu, eram nascidas no mesmo município. De Tomé-Açú, não tenho lembranças. Quando eu estava com dois anos, meus pais se mudaram para Moju. Como no município anterior trabalhavam com pimenta, essa foi atingida por uma praga. Desgostosos, venderam as terras e compraram outra em Moju, na vila do Sucuriju, distante 8 quilômetros da cidade. Ali, tinham algumas famílias. Acho que, naquela época quando meus pais chegaram, eram umas dez famílias – do seu Messias, seu Eugenio, seu Ricardo, seu Osvaldo, seu Lúcio, seu Luís, seu Tião, seu Luisão e de Dona Cota. Minhas primeiras lembranças do lugar datam aproximadamente de meus seis, sete anos de idade. Recordo-me de como era a estrada que ligava o município de Moju ao município de Acará. Era uma estrada de chão batido, ou, como se dizia na época, de ‘piçarra’. Não existia praticamente movimento nessa estrada. Carros eram raríssimos no início dos anos de 1980. Quando alguém precisava ir até à pequena cidade, ou ia de bicicleta ou a ‘pé’ mesmo. Lembro de algumas vezes ter ido com minha avó, alguns irmãos. Íamos e voltávamos do mesmo jeito. Porém, era fascinante fazer a caminhada, olhando as estrelas de madrugada. A volta era mais difícil, devido ao sol forte. Depois, acho que por volta de 1983, 1984, colocaram dois ônibus ‘velhos’, um era do seu Humberto e o outro era do ‘Grampo’. Um fazia a linha da vila do Jupuúba, e o outro não sei de onde vinha. E sempre passam ‘lotados’, cheio de passageiros, que iam misturados com produtos dos agricultores, principalmente a farinha. No período de “inverno”, isso é, mais chuvoso, a situação era precária, muita lama, buracos na estrada. Para quem ia nos tais ônibus já era difícil, imagina para quem ia de bicicleta. Na vila do Sucuriju, meus pais, desde que chegaram no fim de 1977, começaram a trabalhar com a pimenta do reino e com a plantação de roças para fazer a farinha. Em alguns momentos, trabalhavam com a juta, uma matéria-prima tirada da malva, como um ‘cipó’, que depois de molhada por alguns dias, era colocada para secar, e ficava parecendo um ‘tecido’. Lembro que em algumas dessas ocasiões, pequeno que era, com meus sete, oito anos, íamos para ajudar a pegar os ‘peixinhos’ que ficavam presos junto aos ‘feixes’ de malva.

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E aproveitávamos para ‘assar’ e comer com farinha. Além de divertido, enchia a barriga da gente, as crianças. A casa onde morávamos, na vila do Sucuriju, era de madeira e muito simples. Tinha dois compartimentos. Uma sala, que servia de quarto para os filhos, e a cozinha, que também fazia o papel de quarto para meus pais. A sala parecia um barco à noite, era rede para todos os lados. Lembro-me que, por volta de 1985, foi comprado um colchão, e meu irmão mais velho fez uma armação de madeira improvisada, e ali dormiam umas três irmãs, os demais continuavam nas redes. A sala/quarto também não tinha um móvel, não tinha guarda-roupas, muito menos um televisor. A cozinha em que meus pais dormiam não era diferente. Também se dormiam nas redes ali. Havia uma mesa com dois bancos compridos. Não existia fogão a gás até por volta de 1986. Também não tinha geladeira, tinham, sim, dois potes, nos quais a água era fria e vinha de um poço com uma profundidade de aproximadamente dezessete metros. Não sabíamos o que era aniversário. A maior parte das vezes, as datas de nossos nascimentos passavam despercebidas. A situação era difícil, pois a plantação da pimenta demorava para dar resultados, e éramos muitos filhos. Quando tinha produção de farinha, os atravessadores queriam dar o preço que bem entendiam. Meu pai ficava muito aborrecido com isso. Porém, de qualquer forma, a gente procurava se ‘inventar’ também. Além dos ‘peixinhos’ que pegávamos nos igarapés dos vizinhos, eu e meu irmão menor, João Agnelo, fazíamos ‘baladeiras’ (estilingues) e íamos atrás dos passarinhos para ‘balar’. Quando conseguíamos pegar alguns, fazíamos uns ‘guisadinhos’, era uma delícia. E assim prosseguíamos a vida, procurando algum tipo de diversão, fosse buscando frutas pelo sítio, como nas árvores de ingá, manga, caju, laranja, bananas, que nos davam alimentos. Nossas brincadeiras de meninos eram as mais diversas. Não tínhamos ‘brinquedos’ da cidade, mas a gente criava. De latas de sardinha, a gente fazia carrinhos com carroça e tudo. Dos pneus velhos de bicicleta e dos aros, também a gente aproveitava. Meu irmão mais velho, Dorival, ensinou-nos a fazer paraquedas com algumas sacolas de plástico, que já existiam naqueles anos de 1980. Amarrávamos um pedaço de fio em cada ponta do plástico, que a gente cortava, e depois amarrávamos uma pedra. O


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ideal era um ‘soldadinho’, mas não tínhamos. Então dobrávamos, enrolávamos com o fio e jogávamos para cima, no retorno, ele se abria e vinha ‘bonito’ de se ver. Diversão garantida também eram as latas de leite ninho, que, quando ficavam vazias, fazíamos ‘tamancos’. A gente amarrava um fio por dentro da lata e chegava até o alcance da mão, e aí a gente saia andando, fazendo uns barulhos engraçados (poc-poc). Latas de óleo vazias eram amarradas por uns arames, umas três atrás das outras, e saíamos puxando. Tinha também a ‘perna de pau’, mas eu nunca aprendi a me equilibrar. Um momento muito fantástico de minha infância era o período em que tinha o uxí, uma fruta que dava em uma árvore que ficava em um terreno bem distante das casas do centro da vila. No período em que ficavam maduros, levavam dias caindo. Nesse momento, vários garotos iam pegar alguns. Eu e meu irmão, João Agnelo, também íamos. Era por volta de 1985, 1986. Saíamos ainda escuro de casa e caminhávamos por uns mil metros, até chegar onde estava a grande árvore. Ainda sem ver a luz do dia, íamos procurando os tais uxís. Sempre levávamos uns dois sacos. Em média, conseguíamos, no auge da safra, umas trinta frutas. Porém, quando o dia clareava é que a gente via quem eram nossos amigos que também estavam lá. Sempre eram os filhos do seu Aldenor, o Ivan, Udeilson, os filhos do ‘Bororó’, o Charles, o Rubens, filho do Anastácio e outros. Era uma festa. A gente chegava em casa muito alegre, guardávamos, e, depois, no outro dia, lá íamos novamente. Uxi, manga, banana, laranja eram algumas das frutas que nos alimentavam. Sempre tinha uma farinha por perto para a gente saborear com as delícias que a natureza nos dava. Uma outra maravilha da vila do Sucuriju era os igarapés. No nosso sítio, não tinha. Porém, nossos vizinhos ‘liberavam’ os seus. Tinha o da Dona Agostinha, o da Dona Vicentina, e a famosa ‘Gruta’, onde nos refrescávamos, brincávamos de ‘pira’. Éramos pobres, mas éramos muito felizes. Às vezes, no campo de futebol, no centro da vila, uma ‘arenga’ ocorria por conta de uma entrada mais ‘dura’. Às vezes, até chegávamos a ensaiar um ‘UFC’, mas, rápido, tudo se acalmava e voltávamos às brincadeiras, fosse com o futebol, fosse com a brincadeira da ‘bandeirinha’ ou da ‘queimada’.

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Na vila do Sucuriju, já por volta de 1985, um primo me deu o apelido de ‘Peludo’. Dizia ele que eu tinha mais pelos que meus irmãos. Pronto, pegou. Eu já não era mais o Elias para a rapaziada, mas, sim, o ‘Peludo’. Porém, não me importava, outros colegas também não eram chamados pelo nome. Tinha um amigo de que eu gostava muito, o Cláudio, era chamado de ‘Pau Furado’, o Genivaldo, ‘Sapo’, o Divon, ‘Fonca’. Os filhos da Tereza e do Dico, todos eram chamados por apelidos. Andrey, ‘Cati’; Anderson, ‘Juca’; André, ‘Baby’; Andrelino, ‘Chapola’. Do seu Aldenor, tinha o Udeilson, que era chamado de ‘Parepa’. Na Copa do Mundo de 1982, ele ficou com o nome do jogador ‘Careca’ na cabeça, e, como era muito criança, não sabia falar direito, falava ‘Parepa’, pronto, pegou e não saiu mais. E, assim, era a vida na Vila do Sucuriju, parecia ser difícil, e, por um lado, era mesmo, mas, por outro, tinha diversão também. À noite, por exemplo, sem muitas opções, às vezes, alguns vizinhos iam para a casa dos outros, e nós, crianças, aproveitávamos para fazer as brincadeiras. Eram as famosas piras que dominavam. ‘Pira pega’, ‘pira esconde’, ‘pira cola’, ‘pira alta’. E também tinha a brincadeira do ‘anelzinho’, “Guarde seu anelzinho e não diga nada a ninguém” era frase dita por alguém que tinha o tal anel e em uma mão fechada ele ficava. Depois alguém tinha que descobrir qual era a mão. Muito divertido. E ainda tinham as contações das histórias de ‘assombrações’, meio que inventadas. Quando os ‘causos’ eram contados nas noites de lua cheia, aí que ficava mais fantástico, pois dava um certo medo. Algumas dessas histórias versavam sobre as lendas da Amazônia, e que quem contava, jurava que elas ocorriam pela vila mesmo. Tinha o caso da “Matinta Perera”, que dizia que uma velha se transformava, à noite, em um pássaro ou em alguma ‘visagem’, algo meio fantasmagórico, e saia pedindo tabaco para quem encontrasse. Essa história dava muito medo na gente. Ficávamos logo a imaginar alguma ‘velha’ que morasse na vila. Nas histórias contadas, diziam também que a “Matinta Perera” dava uns ‘assobios’ bem feios à noite. Outro motivo para nosso pânico. Outra história que consigo lembrar era a do “Lobisomem”, que diziam que um homem se transformava na noite de lua cheia. Era cada história, mas, depois que o dia amanhecia, tudo voltava ao normal. A maior parte das casas na Vila do Sucuriju não tinha televisão, muito menos a nossa. Em algumas, porém, existia. Lembro bem da casa do Zé de Cota, do seu Ricardo e da professora Iva. Nessas três, tinha o aparelho. Por


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volta de 1984, a gente ia para casa da professora Iva assistir as novelas das “8”. Lembro de alguns momentos das novelas Roque Santeiro e Selva de Pedra. A sala da casa da professora Iva era o espaço que abrigava muitos jovens que iam lá ‘apreciar’ aquela maravilha. A imagem da televisão era em preto e branco, e o seu tamanho, acho que era menor que 14 polegadas, mas se transformava em uma tela de ‘cinema’. Era movida a bateria e, toda vez que entrava em comercial, tinha que ser desligada para economizar energia. Quando, às vezes, a carga ia embora antes do final da novela, era um desespero. E, quando voltava, a professora Iva pedia o máximo de silêncio para os telespectadores. Uma das recomendações que ela sempre fazia era a de que não acabassem com água do seu pote, algo que era inevitável. Todo mundo vinha de suas casas com a janta na ‘barriga’. Na Vila do Sucuriju, no início da década de 1980, existia uma escolinha que funcionava em um barracão da comunidade, feito de forma precária. A terra doada para ser o barracão da comunidade também funcionava como escola, capela, e, mais ao fundo, como campo de futebol. Era da família do seu Eugênio, moradores antigos do lugar. Havia duas professoras leigas, a professora Iva e a professora Nazaré. Como não tinham o segundo grau, a professora Nazaré ensinava do ‘Jardim’ até a primeira série, e a professora Iva ensinava da segunda à quarta série. Meus primeiros anos de estudo foram com a professora Nazaré. Enquanto meus irmãos mais velhos, Dorival, Dinalva, Edna e Sandra, eram mais ‘adiantados’. Eu, com minhas dificuldades, não conseguia me ‘desenvolver’. Tinha enormes dificuldades em aprender, inclusive a escrever meu nome. Só para ter uma ideia, em 1985, meu irmão mais velho concluiu o segundo grau, formando-se no Magistério. Dinalva e Edna também já estavam próximas de se formarem. Em 1987, quando eu estava prestes a completar 12 anos de idade, já havia conseguido ser aprovado para a terceira série. Nessa ocasião, meu pai tinha terminado a casa que havia iniciado a construção em 1985. Era uma casa melhor, de alvenaria, com dois quartos, uma sala, uma cozinha, um banheiro biológico, que não tinha sido terminado, e um vasto corredor. Já morávamos nessa casa desde fins de 1986. Além da casa praticamente pronta, meu pai tinha comprado uma pequena moto. Era nessa moto que eu e minha irmã, Sandra, a

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mais velha que eu, íamos para a cidade estudar no horário da tarde. Eu, na mencionada terceira série, e ela, já na oitava série. Como mencionei anteriormente, meu pai era muito envolvido nos movimentos sociais. Geralmente, quando ele chegava de uma viagem para as comunidades ou para outras cidades, era uma festa dos filhos, principalmente dos menores. Para mim, tinha a ‘bênção’ e um abraço. Com os menores, ele se divertia. A ‘brincadeira’ que meu pai fazia comigo, como João, além do Dorival, era quando íamos ‘capinar’ os pimentais. Ele transformava aquele trabalho em uma ‘festa’, incentivando-nos a darmos conta de cada ‘linha’ que precisava ser capinada. Em uma dessas ocasiões, meu irmão João me acertou no calcanhar com sua enxada. Fiquei em casa por uns dois dias me recuperando. Meu pai dizia que precisávamos estudar, mas também tínhamos que ajudar em casa. Ele mesmo se dividia com os trabalhos do sindicato e dos outros movimentos sociais, e com os da casa. Quando chegava das viagens, não perdia tempo indo para os pimentais, roçado. Solicitava um “relatório” para minha mãe sobre os dias em que esteve fora. Ele também trazia livros, jornais, informativos. Sempre pedia a noite que algum dos filhos mais velhos lesse para todos as notícias do que que estava acontecendo, fosse em nível nacional, fosse em nível internacional. Foi com meu pai que aprendemos o conceito de esquerda, marxismo, comunidade de base, partidos de esquerda. Essa parte da infância foi a melhor de toda a minha vida.

A morte de meu pai: memória de uma infância sofrida O dia 5 de abril de 1987 era um domingo, meu pai acordou cedo com minha mãe. Tomaram banho juntos e, depois do café, foram para cidade de Moju. Levaram a caçulinha Noemi, que tinha aproximadamente seis meses de vida. Nesse dia, meu pai iria participar de uma assembleia do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. O encontro terminou por volta das doze horas, com o almoço. Depois de conversar um pouco, meu pai voltou para casa trazendo minha mãe e a pequena Noemi. Quando chegaram em casa, eu e meu irmão, João Agnelo, estávamos para o ‘mato’ com um colega, o ‘Bidola’. Quando retornamos, meu pai já tinha saído de volta para cidade. Ele tinha esquecido a sua agenda e a janta desse dia. Caiu uma chuva, ainda era “inverno”. Depois que ela parou, decidimos ir para o


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centro da vila, íamos tomar banho no igarapé da Dona Agostinha. Indo devagar na estrada, a gente brincava com a água que descia pelos córregos ao lado da pista. Estávamos próximos do centro da vila, quando ouvimos um barulho. Olhamos para a frente e vimos bem distante, em cima da ‘ladeira’, uma descida, algo diferente. Ficamos olhando aquela cena, e vimos um caminhão vindo em direção ao ‘centro’, como chamávamos o lado oposto da cidade. Também vimos o que parecia ser alguém caído no lugar do barulho. Rapidamente, corremos em direção ao acontecido. Passamos pela vila, e muitas outras pessoas também corriam para o local. A uns quinhentos metros, vi a motinha que era do meu pai. A princípio, pensei que fosse meu irmão mais velho. Foi só a alguns metros que pude ver de fato que se tratava do meu pai. Quando me aproximei, já tinha várias pessoas ao redor. Ele estava caído próximo da pista de peito para cima. Havia bastante machucados nele. Eu me abaixei e coloquei as mãos em seu coração, e percebi que ele estava morto. O caminhão, além de ter causado um impacto tão grande na moto, o jogou a mais cem metros de distância, depois parou com uma freada brusca e passou por cima dele. A motinha estava parada na frente, sem praticamente grandes danos materiais. Aquele momento foi muito difícil. Eu não conseguia ficar de joelhos perto do meu pai, o asfalto das 16h ainda estava muito quente e, para mim, uma criança de doze anos incompletos, era muito difícil. Mais terrível ainda foi ver minha mãe chegar. Veio correndo junto com minha irmã Edna. Minha irmã Sandra ficou na casa cuidando dos irmãos menores. Dorival chegou depois, também tinha ido para a cidade pela manhã participar da assembleia. Minha irmã Dinalva estava em uma comunidade do lado oposto da cidade mojuense, e só conseguiria chegar no outro dia. Meu pai, aos 44 anos de idade, estava morto bem na minha frente. Uma aglomeração de pessoas se deu ali. Queriam levar o corpo para cidade, mas minha mãe pediu que o levassem primeiro para casa. E assim o fizeram. Colocaram em uma caminhonete e ele foi levado para lá. Ficou por um pequeno tempo, de aproximadamente uns trinta minutos, e depois foi levado para o hospital. De forma precária, não tinha médico legista, foi dado um laudo em que constatava a morte por traumatismo craniano e diversas escoriações. O corpo foi liberado por volta das

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20h da noite, sendo conduzido até a igreja matriz já por uma multidão, onde começaria o velório. O que consigo lembrar desse momento é de que eu e meu irmão João fomos dormir na sede do STR, que ficava atrás do sindicato. De manhã, ao acordarmos, fomos para a igreja. Porém, pela parte da manhã, não tenho lembranças de meus outros irmãos. Lembro que, em certo momento, fomos até o trapiche municipal que existia e, ali, vi minha madrinha que morava em Capitão Poço chegar. Ela comprou um lanche para nós. Depois lembro que, na missa de corpo presente, no final, minha avó me levantou para dar um beijo na testa de meu pai. Quando o corpo saiu em direção ao cemitério, a lembrança que tenho é de uma senhora que pegou em minha mão e foi me acompanhando. Ficou comigo o tempo todo no cemitério, naquele meio-dia, de um sol escaldante. Depois ela me levou até sua casa, onde me deu o almoço, mas lembro que não quis comer, tudo estava muito confuso. Depois eu disse que queria ir embora. Despedi-me e fui para a igreja, onde estava minha mãe com meus irmãos. Não lembro como foi a chegada lá. Lembro do final desse dia, em que um caminhão nos apanhou e nos levou para nossa casa. Foi o dia mais terrível da minha vida.

Vida que precisava seguir e as vitórias que vieram Depois da morte de meu pai, a vida precisava seguir. A tarefa não seria nada fácil. Minha mãe, agora viúva, teria uma grande responsabilidade. Para começar, alguns dias depois, acho que uma semana, fui acometido de uns problemas de saúde. Fui levado para a cidade de Moju, medicado, mas, sem surtir efeito, acabei sendo levado para Abaetetuba, o município mais próximo, onde existia melhor assistência. Fui diagnosticado com pneumonia, devido ao tempo que fiquei perto de meu pai morto recebendo aquele ‘vapor’ que saia do asfalto quente, somando-se isso ao abalo emocional. Fiquei uns dias na casa das irmãs missionárias, em Abaeté, onde iniciei um tratamento com a Pastoral da Criança, a ‘salvadora’ multimistura 523. Depois, voltei para Moju, onde fiquei mais uns dias na casa dos padres e, 523 Alimento produzido pela Pastoral da Criança para combater a desnutrição que atingia crianças e adultos. É feito a base da mistura de alguns alimentos, dentre eles, a farinha de trigo e casca de ovos.


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finalmente, pude regressar para casa. De dia, a situação era relativamente tranquila, mas, à noite, era de tormenta. Meu irmão mais velho chorava muito, e vários vizinhos chegavam para ajudar no ‘amparo’. Com a motinha sem conserto, por conta do ocorrido, minha irmã Sandra conseguiu uma casa de uma senhora para morar na cidade e continuar os estudos. Eu não tinha como ir. Uma professora de uma comunidade, chamada Ipitinga, pediu para minha mãe, e lá fui eu morar com ela no segundo semestre daquele ano de 1987. Foi uma experiência boa e ruim. Boa, porque não perdi o ano letivo. Ruim, porque fiquei longe de minha mãe e meus irmãos. No ano seguinte, 1988, com treze anos de idade, retornei para casa de minha mãe, já pronto para cursar a quarta série. A motinha tinha sido vendida, e as coisas estavam difíceis para estudar na cidade. Minha mãe já tinha comprado uma casa na cidade. Era uma casa muito deteriorada, mas habitável. A princípio, não fui morar lá. Ia e voltava para cidade, às vezes, indo de bicicleta, outras vezes, arriscando pegar caronas. No segundo semestre de 1988, fui morar na cidade, na casa da Dona Ana e seu Martinho, pais do Gaspar e da Raimunda. Os dois senhores mais velhos eram amigos de meus pais, desde a chegada deles de Tomé-Açú, em 1977. Minha morada lá se deu pelo fato de eu ter conseguido um curso de datilografia na escola em que estudava, Antônio de Oliveira Gordo. Então, precisava realizar o curso pela manhã e, à tarde, estudava o 1º grau escolar regular. Nos fins de semana, ia para casa da minha mãe ajudar um pouco nas tarefas da roça. Ela se desdobrava para dar conta da nossa criação. Com a pensão do governo, um salário mínimo, tinha que dar de comer aos filhos, principalmente os menores. Em 1989, eu já estava na quinta série, e fomos morar na casa da cidade, eu e Sandra. A casa era de madeira, como já mencionei, muito precária. Era velha e não tínhamos nada dentro, além de um fogão de duas bocas e um botijão. Tinha um quintal, mas era todo aberto. Acabava servindo de passagem para os pedestres, o que nos deixava com medo. Uma vez, acho que por volta do fim do ano de 1989, minha irmã acabou acordando com um homem olhando bem no rosto dela. Ela gritou com ele, disse que a gente não tinha nada, que éramos pobres, que não tínhamos mais pai. O homem foi se afastando, fazendo um sinal de silêncio para ela. Eu acordei com os gritos.

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Foi nesse período que precisei vender “chopp”524 pela cidade de Moju. Às vezes, não tínhamos o que comer, então, não restou alternativa a não ser conseguir um isopor e procurar uma casa que fizesse os “chopps” e repassasse para serem vendidos meio a meio. Era o tempo da balsa. Ainda não havia sido construído o complexo da ponte da alça viária. Todos os carros que vinham de Belém, de Abaeté, Barcarena, para irem para o sul do Pará, precisam atravessar pela balsa. Era a hora da felicidade quando a balsa chegava do lado do Moju. Nós, os “choppeiros”, corríamos com nossos isopores. Entre os vendedores, vários outros colegas: o Rosivan, o Célio, e outros que não me recordo agora. Era quase uma orquestra, ‘Vai um chopp aí tio’? ‘O meu é de frutas’, ‘O meu tem tapioca’, era uma disputa sadia entre nós. Ninguém precisava empurrar ninguém. Particularmente, eu ficava muito feliz quando encontrava algum conhecido que vinha de Belém para o sul do Pará, porque, além de comprarem meu chopp, ainda pagavam uma ‘merenda’. Na volta para casa, a parada já era certa em algum comércio para comprar alguns ovos e um litro de açaí. Pronto, estava garantido o almoço. Em outros períodos, eu e minha irmã Sandra inventamos de colocar uma barraca para vender os produtos que tinham no sítio, e que minha mãe mandava de manhã pelos irmãos menores. No começo, nossa banquinha era totalmente improvisada. Depois, mandamos fazer uma bem mais padronizada. Ficamos com essa banca por uns dois anos, assim como a venda do chopp foi por uns três anos também. Outra venda que eu fazia era do café em pó. Nos lugares das plantações de pimenta, no Sucuriju, meu pai, antes de morrer, fez uma série de plantações. Entre elas, estava a bacaba, o açaí e o café. Anos depois de sua morte, essas árvores começaram a dar frutos. O café, então, era colhido por minha mãe, preparado, e, depois de moído, ela embalava em sacolas de meio quilo, e mandava pelos irmãos menores, que ainda iam e voltava todos os dias para escola que ficava na cidade. Geralmente, eram dez pacotinhos que ela mandava, e eu andava pela cidade para vender. Dava um trabalho, no início, para achar os ‘clientes’, que 524 Suco de frutas congelado dentro de saco de plástico pequeno e estreito. Também conhecido como: sacolé, geladinho, gelinho, dindim, chope.


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ficavam meio desconfiados. Mas, depois de um tempo, era só chegar com os pacotinhos que eles compravam. Tinham alguns que eram clientes certos. O ‘Chibé’, o ‘Abelha’, a professora Yolanda, a Dona Rosalina. Depois que vendia todo o café, eu comprava uma carne melhorzinha para minha mãe e meus irmãos. Uma vez, acho que lá pelos anos de 1992, depois que vendi todo o café, comprei a carne e dei para minha irmã Lourdes levar de volta para casa. No ônibus, deixou bem na frente, perto do motorista e, na hora de descer, esqueceu. E a carne foi embora. Ficaram muito tristes, mas minha mãe deu um jeito e não ficaram com fome. Em 1993, vendia o café quando tinha, mas, já no início do Ensino Médio, eu só dormia na cidade. De manhã, pegava uma bicicleta que tinha e ia embora para Vila do Sucuriju, trabalhar na terra. Desde 1992, minha mãe estava vivendo uma nova experiência de vida com o senhor Pedro José de Araújo Brício525, que viria ser meu padrasto e de meus irmãos. ‘Seu Pedro’, como nós o chamamos, era muito simples. Tinha uma outra terra em um lugar chamado Conceição do rio Ubá. Quando a vimos pela primeira vez, nos encantamos. Dali, ele tirava peixe e levava para todos nós. Extrativista que era, coletava castanha e as vendia para ajudar minha mãe. Tinha muitos pés de laranja e, na época da safra, colhia e deixava em um ponto na beira do rio, em um ramal onde um caminhão da prefeitura ia buscar os moradores no sábado. Eu saía de madrugada da cidade, algumas vezes, e ia no caminhão buscar as laranjas e, quando chegava, íamos para a praça, eu e meu irmão, e passávamos a manhã lá vendendo. Repartíamos o dinheiro, uma parte dávamos para meu padrasto, e outra ficava para o açaí com os ovos. Na cidade, muitas vezes nossa refeição era nessa base, Ovos com açaí, açaí com mortadela, pão com chopp, coisas desse tipo. Seu Pedro, meu padrasto, tinha um animal, um cavalo. O nome dele era ‘Branquinho’. Era próprio para o trabalho da agricultura. Eu aprendi a domar o ‘bicho’. Pronto, os vizinhos me chamavam para fazer os trabalhos de carregamento de mandioca. Vira e mexe, eu passava o dia nessa lida. Ia até onde estava a roça, enchia o ‘caçuá’, e ia até o retiro de fazer farinha, de descarregar. Depois, 525 Pedro José de Araújo Brício, meu padrasto, viveu com minha mãe até 2011, quando faleceu aos 57 anos, vítima de um aneurisma cerebral. Ficamos muito triste com sua partida tão repentina.

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voltava novamente. No geral, isso levava o dia todo. À tardinha, retornava para a cidade para estudar e dormir na casa – para manhã seguinte repetir tudo de novo. Muitas vezes, a ‘farinhada’ já era em casa. E haja ficar o dia todo perto dos produtos da roça, mandioca, tucupi. No fim do dia, mesmo com um banho bem tomado, o cheiro não saia, e, quando chegava na escola, todos sabiam que eu tinha passado o dia todo nesse tipo de trabalho. Em 1994, a situação deu uma melhorada, então, com 19 anos, participei de uma seleção para Agente Comunitário de Saúde (ACS), que seria destinada para preenchimento de vagas para as comunidades da zona rural. Da Vila do Sucuriju, fui fazer o processo seletivo junto com Dona Eulandina. Foram dois dias de intensas provas. Primeiro, uma escrita. Depois, uma entrevista individual e, por último, uma entrevista coletiva. Dona Eulandina era mais experiente na vida da comunidade. Porém, eu também já tinha participação nela. Eu ajudava na Pastoral da Juventude, na Pastoral da Criança, participava das celebrações dominicais, ajudando nos cultos da Igreja Católica. Resultado, eu consegui a vaga. Foi uma imensa felicidade para mim, para minha mãe, meu padrasto e meus irmãos menores. Logo iniciei o treinamento para poder começar o trabalho na minha comunidade. Começamos, em março, a visitar as casas. Porém, nosso pagamento teve atraso, e só fomos receber o primeiro pagamento três meses depois, mas veio com retroativo. O pagamento era de um salário-mínimo. Quando recebemos a primeira vez, foram três salários, motivo de muita felicidade. Do que eu recebia, repassava para minha mãe quase tudo, ficava, para mim, uma espécie de dez por cento. E assim foi essa primeira fase de minha vida, quando fiquei trabalhando como ACS por mais dois anos, até o início de 1996, quando, então, formado pelo Magistério, iniciei minha caminhada na educação, sendo professor das séries iniciais, primeiro em Moju, depois em Santana no Amapá. Retornei para Moju em 1998, onde continuei como professor, tendo, em 1999, seguido para Tailândia, trabalhando na zona rural desse município, agora como professor concursado. Em 2000, tive a felicidade de me encontrar com a História, quando fui aprovado no vestibular que ocorreu no município de Tailândia, onde a UFPA,


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em parceria com a prefeitura, através do Fundef, levou três cursos. Eu me inscrevi e fui aprovado. Não tinha como, em meus trabalhos de pesquisa, que comecei ali, falar de outra coisa que não fosse dos conflitos pela terra, principalmente em Moju, onde vi de perto toda uma mudança no cenário, com dias terríveis que ali existiram, principalmente tendo meu pai como um personagem principal dos acontecimentos marcantes. Quando olho para trás e lembro dessa memória, vejo que existiu muita dor em minha vida de criança, bem como de meus irmãos, principalmente pela perda de nosso pai, pelas dificuldades que passamos, das atribulações que enfrentamos. Porém, levanto a cabeça e lembro de tantas coisas boas que passamos, principalmente antes de sua morte, da vida que tínhamos, simples, mas que era muito gratificante. O tempo passa, mas a memória fica, e a gente precisa tirar lições dela. Não sou o único que viveu a experiência da perda de um pai por conta dos conflitos pela terra. Muitos outros viveram essa situação, como nos três casos estudados por mim no doutorado. Os filhos de ‘Gringo’, ‘Benezinho’ e Paulo Fonteles. Quando fiz as entrevistas, muitas vezes me via neles. Alguns com uma memória de revolta, outros cobrando justiças, mas todos tiveram um mesmo sentimento, o orgulho dos pais, que eu também tenho. Mesmo com a perda de dois irmãos, Maria Dinalva (2016), Virgílio Júnior (2017), para os que ficaram, Dorival, Edna, Sandra, João, Lourdes, Marlene, Ilene e Noemi, nosso pai foi um ‘herói’. Sobretudo, para mim, a lição de tudo isso que aconteceu, acima de tudo, em minha infância e posterior a morte, é só uma, que traduzo da seguinte forma: ‘valeu a pena’.

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Imagem 1: Velório de Virgílio Serrão Sacramento com seu filho de boné, Elias Diniz Sacramento, no dia 06 de abril de 1987

Fonte: Arquivo Pessoal.


CAPÍTULO 10

FRAGMENTOS DE UMA HISTÓRIA DA INFÂNCIA ASSISTIDA NO ACRE NOS ANOS DE 1940

Giane Lucelia Grotti

Resumo: Este artigo apresenta um excerto da pesquisa realizada durante a atividade de doutoramento da autora. Seu objetivo é apresentar como foi realizada a assistência à criança pobre na capital do então território do Acre na década de 1940. O trabalho foi pautado na pesquisa historiográfica e utilizou, como fontes, periódicos que circularam à época, como o jornal “O Acre” e outros documentos. O debate nacional destacava o problema da infância, a necessidade de progresso, a busca pela civilidade e o higienismo, como elementos que o país deveria resolver/perseguir a fim de alcançar o status de nação forte e próspera. Daremos destaque aqui para as estratégias que foram instituídas para tratar do “problema da infância”. O Departamento Nacional da Criança (DNCr), órgão oficial do Governo, fez-se presente tornando-se uma das instituições que esteve à frente das soluções, determinações e ações, com vistas a sanar esse problema. A criança pobre que viveu em terras acreanas, no período, recebeu também assistência da Legião Brasileira de Assistência (LBA), dentre outras, que serão evidenciadas neste texto. Constatamos que houve grandes esforços para que o Acre acompanhasse as medidas que circularam nacionalmente em termos de adequar o padrão de assistência adotada como referência para o estado brasileiro. Palavras-chave: Assistência à criança; Problema da Infância; Acre anos 1940.


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INTRODUÇÃO

C

om vistas a contribuir com as pesquisas realizadas sobre a história da infância na região norte, fizemos um recorte de um trabalho de maior fôlego, e trouxemos para esse momento excertos sobre a constituição histórica da assistência à criança pobre na capital do então território acreano. Constatamos que foram encontradas nos programas de pós-graduação, até o ano de 2013526, sete teses, que nos chamaram a atenção, sobre temas relacionados à história da assistência às crianças. Elas estão geograficamente assim distribuídas por regiões: Norte (01) uma; Nordeste (01) uma; Centro-Oeste (01) uma; Sul (02) duas. Outras duas apresentam aspectos gerais sobre as políticas nacionais de atendimento e proteção à criança e ao adolescente, não considerando uma região, estado ou cidade específicos, mas abordaram a temática no Brasil (GROTTI, 2016, p. 22 e 23) 527.

A partir desse levantamento, verificamos que há pouca produção que registre as ações de assistência voltadas às crianças na região norte no período destacado. As temáticas das teses encontradas contemplaram objetos relativos ao abandono da criança; ações em relação ao modo como assisti-las; preocupação em moralizar os costumes; crianças sendo tratadas como menores infratoras, conforme prescrevia o Código de Menores de 1927, que vigorou até a década de 1970. Nessa perspectiva, ainda temos um campo bastante vasto para novas pesquisas que venham compor a história desse atendimento. Consideramos pertinente traçar breves considerações a respeito da região acreana, visto se tratar de um lugar singular, que dista em grandes proporções dos centros de referência, não só em termos de distanciamento territorial, como também em termos de referências em pesquisas acadêmicas, além dos 526 O ano de 2013 foi o marco temporal delimitado para o período de coleta de dados referente às produções relativas à temática, quando da escrita da tese apresentada em 2016 no Programa de Pós-Graduação em Educação – Doutorado da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em convênio estabelecido com a Universidade Federal do Acre (UFAC), Programa de Doutorado Interinstitucional (DINTER- UFPR/UFAC).

527 GROTTI, Giane Lucelia. História da Assistência à Criança em Rio Branco-Acre: instituições, sujeitos e ações na década de 1940. UFPR: Tese (Doutorado em Educação) Programa de Pós-Graduação em Educação – Linha de Pesquisa em: História e Historiografia da Educação. Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2016.


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aspectos econômicos, culturais e sociais. Posteriormente, apresentaremos algumas instituições que foram criadas no contexto nacional, com vistas a prestar algum atendimento aos necessitados, e encerramos com instituições, sujeitos e ações de assistência que se fizeram presentes na capital do Acre nos anos de 1940, a partir destas iniciativas nacionais.

1 Fragmentos históricos do Acre Como boa parte da região Amazônica, a exploração da hevea brasiliensis foi, durante algumas décadas, a principal atividade econômica do Acre. Segundo Silva (2010)528, grande parte da produção de borracha amazônica provinha da região acreana, isso nos anos entre 1879 a 1912, compreendendo o primeiro ciclo da borracha. No segundo e último ciclo, 1942-1945, o cultivo da gomífera tinha destino certo, abastecer os mercados europeu e americanos para produção de material bélico. Uma anedota muito contada diz que o Acre pertencia à Bolívia, e foi comprado dela por algumas moedas e um cavalo, mas a história não foi bem essa. Somente em 1903, com vários embates, inclusive sangrentos, que, por fim, um acordo, que deveria ser de cavalheiros, o Tratado de Petrópolis, foi assinado e colocou termo aos limites entre as fronteiras entre os dois países. O Acre foi incorporado ao Brasil a partir de uma negociação entre as duas nações. Antes, porém, houve grandes confrontos entre brasileiros e bolivianos, as chamadas Revoluções Acreanas. Durante essas batalhas, sem o apoio do governo brasileiro, os combatentes nos momentos em que a vitória parecia ser certa declaravam o Acre como um estado independente, A República do Acre. Somente em 1903 por meio do –Tratado de Petrópolis, negociação feita entre os dois países, pôs fim aos confrontos e como parte do acordo ficou estabelecido que o Brasil pagasse pelas terras litigiosas o valor de 2 milhões de libras esterlinas, mais a cessão de parte de algumas áreas localizadas na fronteira entre Mato Grosso e Bolívia e, a construção de uma estrada de ferro que ligaria a Bolívia ao Atlântico, a estrada Madeira-Mamoré. Há controvérsias sobre a efetivação desse pagamento 528 SILVA, Francisco Bento da. Acre, a “pátria dos proscritos”: prisões e desterros para as regiões do Acre em 1904 e 1910. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2010.

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até os dias atuais (CASTRO, 2005; BEZERRA, 2005; SILVA, 2010, apud GROTTI, 2016, p. 47)529.

Com promessas de riquezas, abundância e vida próspera, muitos nordestinos foram convocados a virem para essa região, mais conhecidos, posteriormente, como soldados da borracha. As imagens, a seguir, ilustram a campanha que o governo federal divulgava, com o intuito de “Convocar os soldados da borracha” para serem os guerreiros da Amazônia.

529 BEZERRA, Maria José. Invenções do Acre: de Território a Estado- um olhar social. Tese de Doutorado em História Social. Programa de Pós-Graduação em História. Instituto de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, 2005. CASTRO, Genesco de. O Estado Independente do Acre e J. Plácido de Castro: excertos históricos. Brasília: Senado Federal, Secretaria Especial de Editoração e Publicação 2005. Disponível em: http://www2.senado.leg.br /bdsf/bitstream/handle/id/1051/59. Pdf. sequence=4 Acesso em: 17/03/2021. SILVA, Francisco Bento da. Acre, a “pátria dos proscritos”: prisões e desterros para as regiões do Acre em 1904 e 1910. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal do Paraná - Curitiba, 2010. GROTTI, Giane Lucelia. História da Assistência à Criança em Rio Branco-Acre: instituições, sujeitos e ações na década de 1940. UFPR: Tese (Doutorado em Educação) Programa de Pós-Graduação em Educação – Linha de Pesquisa em: História e Historiografia da Educação. Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2016.


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Figura 1 e 2: Campanha para incentivar a migração dos nordestinos para a Amazônia Figura 1

Figura 2

Fonte: Acervo Jean Pierre Chabloz-UFC530.

Segundo Viana (2011)531, o governo federal fez ampla divulgação, com promessas de trabalho e assistência aos que para cá aceitassem vir e adentrar aos Seringais. No entanto, isso não foi cumprido pelas autoridades. As condições de trabalho, acomodação, compensação remuneração, o modo de vida em geral, eram bem diferentes daquelas opções que foram 530 Jean Pierre Chabloz nasceu em 1910, em Lausanne, Suíça. Estudou em várias instituições europeias de Artes Plásticas, tais como: Belas Artes de Genebra, Academias de Belas Artes de Florença e de Milão Academia de Brera, na Itália. Um razoável acervo de suas produções em grafite, crayon, bico de pena, podem ser encontradas no Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará. No ano de 1943, já morando no Brasil, foi convidado pelo governo de Getúlio Vargas a ser o responsável pela divisão de Propaganda do SEMTA durante a Campanha da Borracha. (MORAES, 2012). (GROTTI, 2016, p.109). MORAES, Ana Carolina Albuquerque. Rumo à Amazônia, terra da fartura: Jean-Pierre Chabloz e os cartazes concebidos para o Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais). Universidade Estadual de Campinas, 2012. 531 VIANA, Ana Paula Bousquet. Palácio Rio Branco: o palácio que virou museu. Dissertação (Mestrado em História). Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC – Fundação Getúlio Vargas, RJ, 2011.

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divulgadas nas propagandas que circularam em Manaus e Belém. Quando da chegada desses homens ao Acre, ainda tiveram que enfrentar as doenças tropicais, como o impaludismo. As condições de saúde eram bem precárias, visto que, naquele período, não havia assistência médica necessária, e muitos migrantes que para cá vieram perderam suas vidas por falta de medicação e cuidados especializados, devido as péssimas condições já mencionadas, como também devido ao desabastecimento alimentar, e, quando havia alimentos, eram de baixa variedade. O seringueiro precisava tirar da mata seu sustento alimentar também, através da caça de animais selvagens e de pequenos roçados, o que, ainda que por algumas vezes, era impedido de fazer para não perder tempo com essa atividade e deixar de cumprir com sua obrigação na coleta do látex e na defumação da borracha, conforme exigia seu patrão, o seringalista. O jornal O Acre, em 1946, divulgou uma fala do cronista Alberto Rangel, que dizia o seguinte sobre as condições de vida e de trabalho no Acre: O autor se reporta à região Amazônica como metáfora de – Inferno, devido às peculiaridades que a distinguem das outras regiões do país quanto às condições climáticas e localização geográfica. Durante as décadas seguintes, o termo passou a ser utilizado como sinônimo de um lugar perigoso, com alto risco de morte para aqueles sujeitos que se atreviam a viver nessa região, em virtude das doenças típicas, dos riscos de acidentes e das más condições de sobrevivência em geral. – Soldados da borracha que regressaram da Amazônia declararam que a doença, a distância e a crueldade dos seringalistas são os maiores inimigos daqueles que seguem para o inferno verde (O ACRE, 11/08/1946, ano XIV, nº 780, p. 4).

Como Brasil se aliou à Itália, Estados Unidos e Inglaterra na 2ª Guerra Mundial, a produção e exportação da borracha teve um aumento significativo, que acabou acarretando no que seria reconhecida como a segunda onda migratória de nordestinos para o Acre, no ano de 1942, ou o Segundo Ciclo da Borracha. A Batalha da Borracha, como foi conhecido esse período de incentivo à produção gomífera para atender ao mercado internacional, trouxe, além de novos migrantes nordestinos, suas famílias e, juntos, tomaram o rumo dessas plagas (GROTTI, 2016, p. 50).


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Junto com suas famílias, as crianças começaram a ser notadas no contexto das práticas sociais, tendo por trás a intenção explícita de ocupação dessas terras, a fim de torná-las economicamente viáveis. Esses fragmentos de partes da história da colonização acreana nos ajudam a compor o cenário das ações de assistência que algumas dessas crianças, bem como suas famílias tiveram acesso. Em 1943, também veiculado pelo jornal O Acre, quando da visita de Valentin Bouças ao território, o empresário, jornalista, economista, pessoa mui influente no governo Vargas, enfatizou que: Em um momento como este, em que temos de prestar atenção às necessidades do país, também não devemos esquecer aqueles que estão diretamente empenhados na Batalha da Borracha: as mulheres e os filhos que lutam na mata para dar ao Brasil aquilo de que o Brasil precisa: Borracha (O ACRE, 13/06/1943, ano XIV, nº 698, p.4).

Os discursos ecoavam emanados da preocupação com os seringueiros, demonstrando os cuidados com o seu bem-estar e com o de suas famílias. No entanto, o que houve foi um claro abandono às suas necessidades. O que se veiculava era a imagem de prosperidade em que o Acre estava entrando, ao pertencer ao projeto de construção de uma nação forte, dando sua contribuição com a exploração da borracha. [...] o Acre Novo - este Acre que não é mais um quadro de abandono no Brasil, este Acre que tem aviões, que tem govêrno organizado, que tem estatística, que tem emoção e sentido de brasilidade, enfim, este Acre de Epaminondas Martins, que é uma grandiosa realidade do Brasil moderno (O ACRE, 12/04/1940, ano XII, nº533, p.5).

Segundo Vieira (2007)532, essa concepção de moderno denotava uma necessária construção de civilidade, e, para Le Goff (1996)533, o novo e o 532 VIEIRA, Carlos Eduardo. Jornal diário como fonte e como tema para a pesquisa em História da Educação: um estudo da relação entre imprensa, intelectuais e modernidade nos anos de 1920. In: Oliveira, M. A. T. de (org.). Cinco Estudos em História e Historiografia da Educação. Authêntica, 2007. p. 11-40. 533 LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 1996.

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progresso são conceitos muito utilizados nesses tempos, com o sentido de deixar para trás o tradicional, que deveria ser ultrapassado, e o moderno seria a representação dessa ruptura. Sob esse viés de moderno, civilidade, progresso e higiene, a assistência foi se constituindo ao longo das décadas e tomando a forma de cada governo que teve em seus domínios. Vejamos um pouco de, em termos de Brasil, como a assistência foi compondo o cenário que se queria modernizar.

2 Fragmentos da assistência à criança pobre no Brasil O médico Carlos Arthur Moncorvo Filho, reconhecidamente, foi um dos pioneiros no Brasil a prestar as primeiras iniciativas de assistência às crianças pobres e suas mães. Suas ações, durante vários anos, não contaram com apoio governamental e, sim, com ações particulares da sociedade civil. Como atestam Freire e Leony (2001)534, a sede do Instituto de Assistência e Proteção à Infância (IPAI) foi criada em 1899, na cidade do Rio de Janeiro, com o propósito de proteger e amparar a maternidade e a infância necessitadas, como também estimular a criação de outros órgãos e instituições dessa natureza, além de exercer pressão para que o Estado ofertasse esse tipo de atendimento à população brasileira. Porém, um dos propósitos do IPAI era que cada unidade da federação tivesse uma representação desse instituto, ou algo similar, de modo que todas as crianças e mães pudessem contar com apoio e amparo.

534 FREIRE Maria Martha de Luna e LEONY, Vinícius da Silva. A caridade científica: Moncorvo Filho e o Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Rio de Janeiro (1899-1930). Revista Hist. Cienc. Saúde. Manguinhos - Rio de Janeiro, vol.18 supl.1, dez. 2011, p.199-225.


Fragmentos de uma história da infância assistida no Acre nos anos de 1940

Figura 3: Moncorvo Filho em gabinete de atendimento

Fonte: Acervo fotográfico da Casa Oswaldo Cruz – FIOCRUZ.

Todavia, afinal, qual a real intenção desse atendimento, o que Moncorvo e seus parceiros comungavam ao se unirem nessa empreitada de atendimento aos pobres? Segundo nos esclarecem Trindade (1998)535 e Rizzini (2009)536, Moncorvo deixava claro em suas aparições, seus discursos e entrevistas que o modelo de assistência que acreditava era inspirado em padrões estrangeiros, os quais, por sua vez, eram apresentados em congressos e exposições internacionais e universais, muito comuns nas décadas passadas. Dessa forma, a circulação das medidas científicas, higiênicas, profiláticas, em relação à saúde, eram difundidas mundialmente por meio desses eventos e também através de periódicos, de

535 TRINDADE, Judite Maria Barboza. Metamorfose: de criança para menor – (Curitiba - início do século XX). Tese. (Doutorado em História). Universidade Federal do Paraná, 1998.

536 RIZZINI, Irene. Crianças e menores- do pátrio poder ao Pátrio Dever. Um histórico da legislação para a infância no Brasil. In: PILOTTI, Francisco (orgs.). A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2009, p. 97- 149.

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modo que muitos países passavam a ter acesso aos eventos e/ou materiais e a seguir essas indicações. Moncorvo Filho assinalava que o “Problema da infância” seria combatido com investimentos em ações assistencialistas e filantrópicas, a fim de se alcançar uma nação próspera, forte e sadia, dentro de uma perspectiva político-social civilizatória, a qual deveria estar em pari passu com as ações de assistência voltadas às crianças pobres, vistas como o futuro da nação. Todavia, por que as crianças eram taxadas como um “problema”? Diante do quadro que se queira alcançar de nação moderna, civilizada, reconhecida internacionalmente, emergente, livre de doenças e de pobreza, sem altos índices de mortalidade infantil, a real situação brasileira não traduzia em nada a imagem que se queria transmitir aos países que serviam de modelo ao Brasil. Portanto, os altos índices de perdas de vida entre as crianças precisavam ser combatidos, visto que delas dependeria a mão de obra que ergueria/construiria a nação forte e pungente. Outro aspecto que estava agregado às funções do Instituto era o de cooperar para a divulgação de orientações quanto aos cuidados em relação à puericultura, à eugenia e à importância da realização de casamentos sadios, a ideia de perfectibilidade, do melhoramento da raça, aspectos esses que podem ser vistos com maiores detalhes nas discussões empreendidas por Sartor (2000)537, que revela estar presentes nos discursos da alta sociedade, que influenciavam sobremaneira o futuro das gerações. Em 1919 de acordo com Levy (1996)538 e Kuhlmann (2011)539, por iniciativa de Arthur Moncorvo Filho e seus parceiros, foi criado o Departamento da Criança, entidade responsável por coletar dados sobre o atendimento das crianças em todo o território nacional. Eles seriam colocados à disposição das autoridades federais com o intuito de traçar ações e políticas mais consistentes 537 SARTOR, Carla Daniel. Proteção e Assistência a Infância: Considerações sobre o 1º. Congresso Brasileiro de Proteção à Infância. In: RIZZINI, Irma (org.). Crianças Desvalidas, Indígenas e Negras no Brasil: cenas da Colônia, do Império e da República. Rio de Janeiro: USU Ed. Universitária, 2000, p. 143-173. 538 LEVY, Iete Cherem. A trajetória de Moncorvo Filho: puericultura e filantropia num projeto de assistência a infância. Dissertação (Mestrado em História) Programa de Pós-Graduação em História do Brasil. Universidade Federal do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro, 1996. Mime

539 KUHLMANN JR, Moysés. Educando a Infância Brasileira. In: LOPES, Eliane M. T.; FARIA FILHO, Luciano M. e VEIGA, Cynthia G. 500 anos de Educação no Brasil. Belo Horizonte: Authêntica, 2011, p. 469-517


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de assistência e proteção às crianças e seus familiares. Posteriormente, esses dados foram divulgados em Congressos de Proteção à Infância. Podemos afirmar, a partir das pesquisas empreendidas por Kuhlmann (2011), que as ações empreendidas, mesmo antes da criação do IPAI, já vinham sendo relacionadas à “puericultura intrauterina – maternidade e serviços de assistência domiciliares ao parto e puericultura extrauterina – gotas de leite, consultas de lactantes, creches, serviços de exames e atestação de amas deleite (KULHMANN, 2011, p. 480). Esse mesmo autor ainda descreve uma série de atividades que as crianças receberiam: [...] recolhimentos, em estabelecimentos de ensino etc.(asilos, orfanatos, casa dos expostos, colônias, escolas correcionais, escolas profissionais, 20 colégios, jardins de infância), infância doente (filiais do IPAI, dispensários e policlínicas, clínicas de doenças de crianças, hospitais infantis, sanatórios), profilaxia (institutos vacínicos, institutos Pasteur) e proteção à infância em geral (ligas de proteção à infância, sociedades de proteção direta ou indireta da infância) [...] puericultura intrauterina (maternidades e serviços de assistência domiciliares ao parto), puericultura extrauterina (gotas de leite, consultas de lactantes, creches, serviços de exames e atestação de amas de leite), recolhimentos, estabelecimentos de ensino etc. (KULHMANN, 2011, p. 480-481).

Tais aspectos evidenciam uma grande preocupação em assistir a infância pobre, e muitas vezes denominada desvalida, com medidas assistencialistas, que, na realidade, não tratavam o cerne das questões que tinham fundo social, político e econômico, visto que, durante décadas posteriores que sucederam à criação do IPAI, como pudemos constatar, não foram efetivadas políticas que garantissem/assegurassem a manutenção da dignidade da saúde e conservação do bem-estar das crianças, das mães de famílias mais necessitadas socialmente e economicamente. No entanto, o papel do IPAI, foi de fundamental importância, pois, a partir de suas iniciativas, outras tantas começaram a existir e ganharam forças e visibilidade social, e, em décadas mais tarde, mais precisamente nos anos de 1940, foi criado o Departamento Nacional da Criança o (DNCr). Esse, sim, de iniciativa governamental, criado pelo Decreto de nº 2.024 de 17/02/1940, e

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[...] subordinado ao Ministério da Educação e Saúde, sendo o primeiro órgão estatal a implantar um programa e fixar e coordenar atividades em nível nacional que trataram sobre a proteção à maternidade, à infância e à adolescência (GROTTI, 2016, p. 37).

Esse decreto foi composto de oito capítulos, dos quais daremos destaque apenas ao capítulo I, de mais interesse para o momento: CAPITULO I DA COORDENAÇO DAS ATIVIDADES NACIONAIS RELATIVAS À PROTEÇÃO À MATERNIDADE, À INFÀNCIA E À ADOLESCÊNCIA Art. 1º Será organizada, em todo o país, a proteção à maternidade, à infância e à adolescência. Buscar-se-á, de modo sistemático e permanente, criar para as mães e para as crianças favoráveis condições que, na medida necessária, permitam àquelas uma sadia e segura maternidade, desde a concepção até a criação do filho, e a estas garantam a satisfação de seus direitos essenciais no que respeita ao desenvolvimento físico, à conservação da saude, do bem estar e da alegria, à preservação moral e à preparação para a vida. Art. 2º Para o objetivo mencionado no artigo anterior, far-se-à, nas esferas federal, estadual e municipal, a necessária articulação dos órgãos administrativos relacionados com o problema, bem como dos estabelecimentos ou serviços públicos ora existentes ou que venham a ser instituidos, com a finalidade de exercer qualquer atividade concernente à proteção à maternidade, à infância e à adolescência. Art. 3º Os poderes públicos, para o mesmo objetivo, estimulação, em todo o país, a organização de instituições particulares que se consagrem, de qualquer modo, à proteção à maternidade à infància e à adolescência, e com elas cooperarão da maneira necessária a que tenham as suas atividades desenvolvimento progressivo e útil. (BRASIL, DECRETO-LEI Nº 2.024 DE 17/02/1940, gifros meus).

Segundo Mariano (2007)540, o Departamento Nacional da Criança foi um dos grandes investimentos do Governo, cuja função principal foi promover 540 MARIANO, Hélvio Alexandre. A Assistência à Infância e o Amparo à Maternidade no Brasil, 1927-1940. Tese. (Doutorado em História). Universidade Estadual Paulista, 2007.


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em toda a nação brasileira a organização da assistência e proteção às crianças, à maternidade e à adolescência. Esse Departamento teve como diretor o médico pediatra, professor Olinto de Oliveira. Foi por meio de outro periódico que esse médico trouxe à população a clareza das ações do Departamento, cabendo a esse departamento: orientar e organizar a defesa da creança, em todo o território nacional, na orbita federal, na estadual e municipal, tendo em vista das nossas creanças, inferiorizadas por tantos males; desnutrição, criação defeituoso, ignorância materna, sub alimentação permanente, abandono moral, fraca resistência às doenças etc. [...] para tanto o Departamento fomentará em todos os municípios a fundação de instituições adequadas à defesa da maternidade, da infância e da adolescência, como sejam Postos de Puericultura, Centro de Puericultura, Assistência às Mães, Juntas da Infância, Lactários, enfim uma série de organismos cuja planificação será effectuada. [...] Ao Departamento também cumprirá estudar a situação em que se encontra o problema no paiz pela realização de estudos e inquéritos, estimular e organizar a construção de instituições de amparo à maternidade, à infância e a adolescência, e intensificar a divulgação, pelos vários meios de comunicação com o público, dos conhecimentos e das medidas necessárias à formação de uma consciência nacional que trabalhe pela 73 creança, em todas as phases da sua vida (CORREIO DA MANHÃ, 08/03/1940, p.2).

Como podemos perceber, as ações em trono da assistência às crianças pobres e suas famílias foram tomando volume nas unidades da federação, ao menos é o que se deixa transparecer, circular nos meios comunicacionais da época. E o chamado “problema da infância” estava sendo colocado em debate, bem como medidas estavam sendo tomadas na intenção de combatê-lo. Em todo o território nacional, algum órgão entidade ou sujeito assumia tal responsabilidade e providenciava auxílio nessa direção. Será sobre esses pontos que abordaremos na próxima seção:

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3 Fragmentos históricos das instituições, ações e sujeitos da assistência no Acre nos anos 1940 A circulação de notícias e de documentos, como: pareceres, decretos, dentre outros, chegavam ao Acre com certo lapso de tempo, mas sempre em conexão com o que estava sendo veiculado nos estados de referência, a exemplo de Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, bem como provindos de países que serviam também de referência para que o Brasil tomasse algumas direções políticas, econômicas, administrativas, culturais e certamente educacionais. O Departamento Nacional da Criança (DNCr), por meio Decreto nº 214 de 20/12/1940, cria no Acre o Serviço de Proteção à Infância no Território. Esteve sob a responsabilidade da Diretoria do Departamento de Saúde. Suas finalidades, conforme o referido decreto, foram: a) realizar inquéritos e estudos sobre o problema social da maternidade, da infância e da adolescência no Acre; b) divulgar todas as modalidades de conhecimentos destinados a orientar a opinião pública sobre o problema da proteção à maternidade, à infância e à adolescência, já para o objetivo da formação de uma viva consciência social da necessidade dessa proteção, já para o fim de que aos que tenham por qualquer fórma, o mister de tratar a maternidade ou cuidar da infância e da adolescência; c) estimular e orientar a organização de estabelecimentos municipais e particulares, destina à proteção à maternidade, à infância e à adolescência. (DECRETO-LEI, nº 214, 20/12/1940, apud GROTTI, 2016, p.73).

A título de exemplo de ações, na direção de levar a cabo o cumprimento desse decreto, foram implantados em Rio Branco, Lactários, Postos de Puericultura, e realizados Concursos de Robustez, idealizados por Moncorvo Filho e implantados sob a direção da Legião Brasileira de Assistência (LBA), todos com o lema de cuidados e proteção à maternidade e à infância. A LBA surge no contexto da 2ª Guerra Mundial, mais precisamente em 1942, com o objetivo de prestar auxílio aos soldados que estavam participando


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dela e oferecer algum tipo de assistência às suas famílias. Como afirmam Sposati e Falcão (1989), a LBA não se limitou apenas a essa incumbência, quem dela precisasse, de alguma forma, foi atendido. Essa instituição passou a ser difundida nacionalmente e sua atuação em território acreano foi bastante notada. Subsidiada com verbas públicas e com doações de pessoas e entidades particulares, a LBA valeu-se durante todo o período de sua atuação de serviço voluntário, tendo como modelo, para isso, a esposa do então presidente da república, a senhora Darci Vargas. Na realidade, sua identidade, por vezes, tinha uma conotação dúbia, ora entendida enquanto órgão público, ora como agente agregador de assistência de iniciativas particulares. Tumerelo e Silva (2013)541 atestam que a função precípua da Legião Brasileira de Assistência caberia elevar a moral da população menos favorecida, oferecendo-lhe formas de organização familiar que abrangiam desde os modos de asseio corporal a comportamentos aceitos ou não em determinados lugares. As crianças, por sua vez, eram o foco principal de toda essa intromissão, e as mães, seguidamente. A educação cumpria muito bem o papel moralizador e higiênico pautado nos preceitos da eugenia e puericultura. Sposati e Falcão (1989)542 atestam que a LBA tratou da “Questão social basicamente como uma questão de polícia e não de política social” (SPOSATI e FALCÃO, 1989, p. 14). Tendo, nessa perspectiva, a inspiração em bases francesas, conforme vemos em Donzelot (1989)543, em sua obra, A Polícia das Famílias. O estado brasileiro, assim como o estado francês, queria intervir nas famílias, a fim de gerar uma qualidade positiva quanto aos papéis sociais, tanto no interior, quanto no exterior do eixo familiar. Tumerelo e Silva (2013) destacam que a as práticas da LBA [...] visavam moldar o corpo brasileiro às novas demandas de uma cultura urbana que se constituía. Buscavam-se, assim, estratégias que normalizassem e plasmassem a família dentro dos princípios da norma familiar burguesa (TUMERELO e SILVA, 2013, p. 340). 541 TUMERELO, Michele Rodrigues e Cristiane Bereta da SILVA. Legião Brasileira de Assistência e o – projeto civilizador instaurado em Chapecó/SC na década de 1940. Revista História Regional, v.18, n. 2, 2013, p.335-362. 542 SPOSATI, Aldaíza e FALCÃO, Maria do Carmo. LBA Identidade e Efetividade das Ações no Enfrentamento da Pobreza Brasileira. Educ/Puc – São Paulo, 1989. 543 DONZELOT, Jacques. A Polícia da Famílias. Rio de Janeiro. 2. e. Editora Graal, 1896.

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Conforme a pesquisa realizada por Grotti (2016) para o jornal O Acre, uma das primeiras instituições assistencialista que se tem registro no território acreano foi o Instituto de Amparo Social. De acordo com a pesquisa empreendida, esse instituto era uma representação do Instituto de Amparo Social do Rio de Janeiro, pois, conforme as fontes pesquisadas, foram encontradas trocas de correspondências entre esses dois órgãos, no sentido de circularem informações relativas às ações de assistência e à participação de delegados representantes dos estados e territórios em Feiras Internacionais de Amostras de Planos Assistenciais, no Brasil (O ACRE, 29/07/1936). Pelo que se destacou em uma das notícias do jornal, o território do Acre foi convidado a enviar um representante para divulgar, por meio fotográfico, as ações de assistência que realizara até a data do evento, que ocorreria na capital do país, em 12 de outubro. Na edição do jornal O Acre, datada de 02/02/1936, dizia-se o seguinte sobre as finalidades do Instituto de Amparo Social: a) Zelar pela saúde pública, promovendo o amparo dos desvalidos, creando os necessários serviços technícos, bem como estimulando os serviços sociais existentes e coordenando as suas finalidades; b) Incentivar a educação eugênica; c) Amparar a maternidade e a infância, para o que a União, os Estados e os Municípios destinarão 1 por cento de seus fundos tributários; d) Socorrer as famílias de prole numerosa; e) Proteger a juventude contra a exploração bem como contra o abandono physico, moral e intelectual; f ) Restringir a mortalidade e a morbicidade infantil; g) Votar medidas de hygiene social visando impedir a programação de moléstias. (O ACRE, 02/02/1936, ano VIII, no. 314, p. 4, grifos meus).


Fragmentos de uma história da infância assistida no Acre nos anos de 1940

O que pode ser apurado por meio dos periódicos é que, no Rio de Janeiro, o Instituto se manteve enquanto comissão de representatividade nacional, e, nos demais estados e territórios, como delegações. O Acre, nos anos de 1940, foi representado por delegados, e, quando da sua criação, no ano de 1936, o Desembargador Sr. Alberto Diniz foi indicado representante desse território em uma das Amostras de Assistência (O ACRE, 05/07/1936). Outra instituição que esteve presente no Acre, e fortemente atuante na capital acreana, foi a Instituição Darci Vargas. Esta nasceu nos mesmos moldes que a anterior: de um modelo nacional que teve a pretensão de se reproduzir pelas localidades brasileiras. A Instituição Darci Vargas foi inaugurada em 1932, e depois veio a se constituir na LBA. Em todo estado ou território, cada primeira-dama era encorajada, pelo exemplo de Darci Vargas, a assumir esse posto de dama da caridade e promover ações que trouxessem benefícios aos mais carentes e auxílios aos necessitados. O período de atuação dessa instituição se prolongou até os anos de 1942 sendo absorvida pela LBA. [...] Embora ainda em fase embrionária, a Legião já se assinala, notavelmente, em nosso meio, pelas obras de assistência realizadas, que inúmeros benefícios têm proporcionado aos nossos desajustados sociais. Tendo a Comissão Estadual encampado a - Assistência Social Darci Vargas – que funcionava nesta capital chamou para si o trabalho e o acervo dessa instituição, cujos assistidos vêm agora recebendo o seu amparo e cuidados (O ACRE, 22/11/1942, ano XIII, nº 669, p. 1).

Uma outra instituição, que encontramos de forma inexpressiva no cenário acreano quanto às ações assistencialistas, foi a Sociedade Plácido de Castro. Das poucas notícias, encontramos a que segue, sobre seus objetivos: [...] pugnar: pela organização de bibliotecas e museus populares; pela educação manual e técnica; pela educação sanitária; pela educação doméstica; pelo amor a natureza, promovendo o gôsto pelos jardins e plantio ou organização de bosques municipais; pelo desenvolvimento do artesanato e das indústrias domésticas; pelo desenvolvimento da economia agropecuária. Pelo cooperativismo e pela colonização, pela melhoria das condições de habitação, alimentação e de vida em geral das populações acreanas (O ACRE, 24/11/1940, ano XII, nº 564, p.4).

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Essa matéria deixa claro a intenção em manter um padrão único de educação e civilidade. O que podemos constatar é que o objetivo maior da Sociedade Plácido de Castro foi “Disseminar os preceitos nacionalistas. Difundir que o desenvolvimento do território se daria através da educação do povo acreano, da organização da indústria, do comércio e da colonização do território” (GROTTI, 2016, p. 161). Por fim, a pesquisa revelou que a Sociedade Pestalozzi esteve presente no Acre, promovendo ações assistencialistas junto aos escolares a partir do ano de 1946. Essa sociedade tinha o foco central em prover às crianças pobres condições materiais para se manterem na escola e fomentar a associação de mais apoiadores (sócios), a fim de, juntos, angariar recursos, de modo a prover as necessidades das crianças ao menos até que completassem o ensino primário. Todas essas instituições trabalharam em prol de sanar o chamado “problema da infância”. Não deixaram de seguir um modelo pré-estabelecido, ditado e acordado, previamente recomendado, baseado em padrões estrangeiros, e em discursos morais científicos, eivados de determinada concepção política ideológica -republicana- (KUHLMANN, 2002).544 Contudo, cabe ressaltar que, apesar dessa constatação, muitas crianças foram atendidas em suas necessidades, e muitas mães, pais, famílias inteiras receberam, e até os dias de hoje recebem, ajuda de instituições de cunho assistencialista, tanto públicas quanto privadas, de forma que medianamente consigam, ao menos, manter seus filhos na escola.

CONCLUSÃO A partir do que havíamos proposto para este momento, o que seja: apresentar fragmentos da história da assistência às crianças pobres no Acre na década de 1940, trabalho este pertencente a uma pesquisa de doutoramento de cunho historiográfico, que utilizou como principal fonte o jornal “O Acre”, em poucas linhas, trouxemos um panorama da região localizada no extremo oeste do Brasil, bem pouco conhecida pela maioria da população brasileira. No entanto, tão rica de histórias e contribuições para o cenário nacional. 544 KUHLMANN, Moysés. A circulação de ideias sobre a educação das crianças: Brasil, início do século XX. In: Os intelectuais na história da infância. (org) Marcos Cezar de Freitas e Moysés Kuhlmann, São Paulo: Cortez, 2002.


Fragmentos de uma história da infância assistida no Acre nos anos de 1940

O problema enfrentado no país no século XX, o chamado “problema da infância”, gerou uma série de articulações e ações que envolveram sujeitos das mais variadas posições sociais. Eles tentaram sanar ou amenizar de alguma forma esse problema. A criação do Instituto de Proteção e Assistência a Infância não pode deixar de ser destacado como um marco que formaliza o movimento que já vinha acontecendo em torno da assistência às crianças pobres, seres mais suscetíveis às intempéries e vicissitudes humanas. O Departamento da Criança ligado ao IPAI e, décadas mais tarde, a criação do Departamento Nacional da Criança (DNCr), agora, sim, órgão oficial do Governo, fizeram-se presentes, indicando e promovendo estratégias para possíveis soluções do “problema da infância”. Instituições de assistência às crianças e às mães foram criadas e se difundiram pelo Brasil. A criança pobre que viveu em terras acreanas, no período estudado, recebeu assistência por parte de instituições apoiadas pelo DNCr, como as implantadas pela Legião Brasileira de Assistência (LBA), instituição bastante atuante na capital do Acre e também no interior. Outras instituições, como a Sociedade Plácido de Castro, Instituto de Amparo Social e a Sociedade Pestalozzi, direta ou indiretamente, assistiram às crianças e suas mães, dando-lhes algum sustento material. Cabe ainda destacar, mais uma vez, que as proposições, as ações sugeridas, implantadas, implementadas, tinham nitidamente a perspectiva de moralização dos costumes, conforme o padrão que se queria instituir (KUHLMANN, 2002; VIEIRA,1988545; CAMARA, 2011546). A medicina exerceu grande influência durante algumas décadas, na forma de educar as crianças, principalmente as pobres.

545 VIEIRA, L. M. F. Mal Necessário: Creches no Departamento Nacional da Criança (19401970). Cad. de Pesquisa. São Paulo, 1988, n. 67, p. 3-16.

546 CAMARA, S. Infância Pobre e Instituições Assistenciais no Brasil Republicano. In: FARIA FILHO, Luciano Mendes; ARAÚJO, Vania Carvalho (orgs.). História da Educação e da Assistência à Infância no Brasil. Vitória: EDUFES, 2011, p. 17-56.

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CAPÍTULO 11

XERIMBABOS: ESCRAVIDÃO E PRECARIEDADE NA VIDA DE CRIANÇAS INDÍGENAS E NEGRAS (BRASIL, AMAZONAS: SÉC. XIX)

Ygor Olinto Rocha Cavalcante547

Resumo: Este texto reflete sobre as experiências de precariedade e escravização ilegal vividas por crianças livres de cor (de origem indígena e africana) no Amazonas do século XIX. Para tanto, utilizamos relatos de viajantes estrangeiros, relatórios de presidentes de província, avisos ministeriais, relatórios de polícia, processos do Juízos de Órfãos e as denúncias/informações da Imprensa. Por meio desses fragmentos e informações variadas, pretende-se avançar algo mais na compreensão das estratégias de comércio, dos usos e das inserções das crianças no mundo do trabalho, ao mesmo tempo em que discerne as práticas de indução à precariedade no cotidiano da vida de crianças afro-indígenas livres pobres e desvalidas no Amazonas do século XIX. Palavras-chave: Escravidão; Crianças negras e índias; Amazonas; Trabalho.

547 Este texto é uma versão revista e ampliada, acrescentando resultados de pesquisas mais atuais, de um artigo publicado na revista Transversos, ver: CAVALCANTE, Ygor. Xerimbabos: a vida de crianças indígenas e negras em tempos de escravidão (Brasil, Amazonas, séc. XIX). Revista Transversos, vol. 1, n. 01, fev. 2014, Rio de Janeiro, p. 75-86.


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de conhecimento comum que as relações sociais no Brasil são marcadas por brutais desigualdades sociais e persistentes hierarquias. No entanto, pouco se reflete sobre o lugar das crianças na maneira pela qual essa forma de vida se reproduz ao longo do tempo. É claro que as relações entre corpo e os significados da infância, isso é, do que é ser criança, modificam-se ao longo da história. Porém, quando se trata de sociedade brasileira, alguns traços parecem mesmo estruturais. Nesse caso, este texto aponta a existência de um vínculo profundo entre a exposição compulsória, a precariedade e a escravização ilegal de crianças indígenas e negras para a constituição de uma forma de exploração e dominação suis generis chamada xerimbabo. Este termo, de origem Tupi-Guarani, indicava a presença de animais como parte das relações afetivas e recreativas das famílias humanas nas culturas indígenas. No entanto, os efeitos da colonização trazem um novo componente para essas relações, qual seja, a exploração do trabalho, especialmente nos espaços em que a sociabilidade moderna e ocidental se tornou hegemônicas. A julgar pelos estudos em etnozoologia548, as relações entre populações indígenas e animais passavam por uma lógica que atribuía a estes últimos a condição um tanto ambígua de seres vivos que saíram da condição de selvagens para integrarem as famílias, ampliando a rede de parentela da comunidade, integrando-a como parte dos mecanismos de dominação dos espaços, como se fossem crianças artificialmente implantadas no espaço doméstico de uma determinada etnia. Se, para indígenas, o xerimbabo é um prolongamento do corpo do dono, que deve desanimaniza-lo, o que ocorre nos casos que relataremos adiante vai em sentido oposto: as crianças indígenas e negras, sequestradas, trocadas ou compradas, experimentam uma situação também ambígua que oscila entre a coisificação, uma vez que são tratadas como mercadoria, mas também tratadas muito próximos à condição de animais, sujeitos ao afeto caridoso, e à tutela, parte das relações afetivas de uma família. Xerimbabo, dessa maneira, apresenta um paradigma de exploração e dominação, que, a nosso ver, é fundamental para a reprodução de uma sociedade desigual. Assim, ao apontar para algumas possibilidades de investigação sobre a vida de crianças livres de cor (de origem indígena e africana), parte-se do pressuposto de que tais

548 ERIKSON, Philippe. Animais demais...os xerimbabos no espaço doméstico Matis (Amazonas). Anuário Antropológico, v. 37, n. 2, outubro de 2013. Consultado em 15 de maio de 2021: http:// journals.openedition.org/aa/110; DOI: https://doi.org/10.4000/aa.110


Xerimbabos: escravidão e precariedade na vida de crianças indígenas e negras

práticas refletem a continuidade de uma mentalidade escravista no Amazonas, que atravessa todo o século XIX549. Utilizamos um corpus documental com diferentes documentos, desde relatos de viajantes estrangeiros, relatórios de presidentes de província, avisos ministeriais, relatórios de polícia, processos do Juízos de Órfãos, até denúncias/ informações da Imprensa. Por meio desses fragmentos e informações variadas, pretende-se avançar mais na compreensão das estratégias de comércio, dos usos e das inserções das crianças no mundo do trabalho, bem como do impacto dessas práticas de escravização no cotidiano da vida de crianças afro-indígenas livres, pobres e desvalidas no Amazonas do século XIX.

Comércio de crianças e escravização ilegal Nos meses de fevereiro e março, era comum ver pelos rios Solimões, Negro e Japurá centenas de igarités (canoas de grandes proporções) amontoadas de mercadorias que alimentavam o comércio de regatão. Vendas e trocas eram estabelecidas entre os mercadores e as comunidades ribeirinhas, quilombolas, amocambados, populações indígenas e comerciantes estrangeiros, já nas áreas das fronteiras do império. O regatão, portanto, tecia amplas redes de comércio, que atingiam as regiões mais remotas dos sertões amazônicos, fazendo circular diversos gêneros extraídos da floresta ou produtos agrícolas excedentes nas comunidades do interior. Em meio a tais atividades, circulava outro tipo de comércio em pleno vigor, apesar de ilegal: compra e sequestro de pessoas, muitas delas crianças. No Japurá, se podia ver, anualmente, trinta ou quarenta igarités tripuladas por comerciantes portugueses e amazonenses que seguiam mata adentro, por 549 Cabe lembrar os milhares de trabalhadores que ainda hoje são resgatados de situações análogas à escravidão, indicando a persistência de um costume longevo que articula enriquecimento e trabalho degradante na história do país. O relatório elaborado pela Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo – DETRAE –, do Ministério do Trabalho, indica que, no ano de 2012, foram encontrados 2.750 trabalhadores em situação análoga à escravidão, configurando um aumento de 10,39% em relação ao ano de 2011. Na região Norte, o Amazonas ocupa a nada lisonjeira posição de 3º em números de trabalhadores resgatados, superado apenas por Tocantins e Pará, ambos com 321 e 563 trabalhadores resgatados, respectivamente. De 1995 a 2010, foram resgatados no Brasil 31.589 trabalhadores em situação análoga à escravidão, segundo relatórios do Ministério do Trabalho. Ver: Relatórios Específicos de Fiscalização para a Erradicação do Trabalho. Ministério do Trabalho. Departamento de Fiscalização do Trabalho – DEFIT. Divisão de Fiscalização para a Erradicação do Trabalho Escravo – DETRAE.

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vezes atravessando as fronteiras internacionais e atingindo o território colombiano, para negociar com tuxauas e chefes de tribos indígenas aquilo que já havia sido negociado (e pago) um ano antes. Eram carregamentos de crianças, meninos robustos e meninas bonitas, que seriam vendidas nas praças de Manaus, de Belém ou mesmo de outras províncias do Império. Aguardente, tabaco, espingardas, bijuterias serviam para as negociações de compra e venda. Proporcionalmente, dois machados equivaleriam a um menino robusto. No mercado de exploração sexual, as meninas bonitas tinham reconhecido valor, porque poderiam servir de concubinas, amantes de seus compradores. Homens velhos eram preteridos nas negociações. Cada uma das trinta (ou quarenta) igarités poderia carregar de dez a vinte índios, nelas conduzidos por cordas ou, da maneira mais comum, presos com ferros ao pescoço. Uma vez embarcada a mercadoria, dava-se prosseguimento às negociações. Deixava-se pago antecipadamente, com os gêneros citados, o valor estimado do carregamento que seria embarcado no ano seguinte. Mães e filhos logo seriam apartados. Filhos vendidos em um lugar, mães em outro. Havia aqueles que simplesmente adentravam nas matas, arrancando as crianças dos pais, ou invadiam as malocas em comunidades interioranas, para sequestrar, à força bruta, aqueles que seriam vendidos mais tarde como escravos. Uma vez sequestrados, tinham seus nomes ocultados, trocados, e, com o passar do tempo, muitos sequer lembravam de seus antigos nomes e parentes. Mercadores vários atravessavam as pequenas mercadorias. Essas estratégias, por certo, dificultavam o rastreamento das famílias agredidas e inviabilizavam a atuação da polícia, que se via incapaz de investigar os personagens responsáveis por fazer circular as mercadorias. Soluções menos violentas encontravam aqueles negociantes que buscavam “seduzir” os menores: promessas de enriquecimento, de emprego, de ensino da leitura e da escrita, de casamento, de educação, de instrução, de passeios, eram alguns dos estratagemas utilizados para levar sem o uso da força as crianças. Engano sem volta. Em plena luz do dia, os pequenos escravizados eram vendidos. Das praças, seriam levadas por seus compradores. Muitos seriam utilizados como criados, serventes, aplicados aos serviços domésticos. Lavar roupas, cuidar de arrumar casas, cozinhar, costurar. Eram flâmulas. Também se viam ocupados em fazer serviços de compras e vendas, e, por isso, vagavam pelas ruas da capital. Perambulavam em meio a outros menores, entre fugidos do Educandário dos


Xerimbabos: escravidão e precariedade na vida de crianças indígenas e negras

Artífices, órfãos, ou correndo entre os bandos de “pequenos negrinhos”, dos quais nos fala Elizabeth Agassiz550. Outros seriam levados para os serviços das fazendas nas margens do rio Amazonas. Muitos eram empregados na extração da goma elástica e na fabricação da borracha, especialmente no rio Purus. O ministro da justiça do império, o Sr. José Carlos Pereira de Almeida Torres, em aviso ministerial de 9 de agosto de 1845, falava abertamente sobre o tráfico de crianças. Segundo ele, conservadas “Em perfeita escravidão, sob rigoroso trato”, muitas das quais seriam vendidas para outras províncias ou mesmo para a Corte no Rio de Janeiro551. Anos depois, o viajante naturalista inglês, Henry Bates, chamava atenção para a diversidade étnica daqueles que haviam sido “Vendidos ainda criança pelos caciques”. O quadro descrito por Bates é dramático, com alta mortalidade infantil e intenso comércio de crianças na região de Ega (atual Tefé), chegando a ajuizar ser essa localidade, à época, um dos mais importantes mercados de escravos da região. Acusava ainda as autoridades brasileiras de cumplicidade no tráfico, pois, sem a tolerância com o comércio de menores, “Seria impossível obter criados” 552. Dentre essas crianças ilegalmente escravizadas, estavam as pobres e órfãs tuteladas. Menores desvalidos ou recrutados geralmente passavam pelas mãos de autoridades provinciais e, quase sempre, ficavam sob a responsabilidade do Juízo de Órfãos, conforme as disposições das Ordenações Filipinas. Ver crianças pobres e desvalidas sendo levadas pelo poder público, tanto da capital quanto em localidades do interior, era cena corriqueira. Nas comunidades mais distantes, havia certo desconhecimento sobre os procedimentos de envio de crianças para Manaus, ocasionando enganos nos destinos dados aos menores recolhidos, como no caso de Manoel Marcelino Trindade, que, sendo menor e bastante doente, foi enviado ao Chefe de Polícia para assentar praça, remetido pelo Subdelegado de São Gabriel da Cachoeira. Ao presidente da província, o

550 AGASSIZ, Luiz e Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil, 1865—1866. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: USP, 1975. p. 198. 551 Aviso Ministerial de 09 de agosto de 1845. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. Legislação indígena no Século XIX. São Paulo: EDUSP/Comissão Pró-Índio, 1992, p. 199.

552 BATES, Henry. Um naturalista no Rio Amazonas. São Paulo: EDUSP/Itatiaia, 1979. p. 207-209.

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Chefe de polícia admitiu: “Estranhei tal procedimento”. O menino seguiu para o Juízo de Órfãos553. Em agosto de 1876, o presidente da província, o Sr. Antônio dos Passos Miranda, recomendava ao Juiz de Órfãos de Barcelos que, aproveitando o deslocamento da comissão de saúde pública, entregasse ao médico Aprígio de Menezes os meninos desvalidos que deveriam ser remetidos à capital554. Os desvalidos que pudessem ser recrutados para completar os quadros da Companhia de Aprendizes Marinheiros também deveriam ser remetidos sob a responsabilidade dos juízes de órfãos. Álvaro de Azevedo foi um dos menores recrutados e julgado apto ao serviço da armada. O jovem foi encaminhado ao Capitão do Porto para dar prosseguimento aos procedimentos de assentamento na Companhia de Marinheiros. Inocêncio foi outro recrutado, mas, julgado “Incapaz por sua fraqueza e por sofrer de hepatização pulmonar”, foi entregue ao Juiz de Órfãos para “Dar-lhe destino conveniente”. Na vila da Conceição, os juízes sequer deveriam ter gastos, pois todas as despesas feitas com a “aquisição e remessa” deveriam ser pagas pela Coletoria da Vila, com ordens expressas do inspetor da tesouraria de fazenda555. O recrutamento de crianças pobres, órfãs e desvalidas para formar os quadros da Companhia de Aprendizes Marinheiros abria brechas para ações irregulares, sequestro, apossamentos ilícitos, “graves escândalos”, cometidos pelas próprias autoridades responsáveis por fazer a remessa dos menores do interior para a capital. Segundo pronunciamento do presidente da província: Mandar apanhar crianças, arrancando algumas a seus pais, ocultando depois o nome destes, nem é lícito nem conveniente. Nem o comandante da companhia tem o direito de se apossar de qualquer menor que se lhe apresente, sem que recorra às autoridades competentes e proceda a informações, que deve consignar nos assentamentos dos menores556.

553 Ofício n. 699 de 16 de novembro de 1863, Secretaria de Polícia do Amazonas. Livro da Secretaria de Polícia de 1863. Arquivo Público do Estado do Amazonas. 554 Jornal do Amazonas, 26 de agosto de 1875.

555 Jornal do Amazonas, 12 de outubro de 1876.

556 Jornal do Amazonas, 14 de dezembro de 1877.


Xerimbabos: escravidão e precariedade na vida de crianças indígenas e negras

Não raro, esses juízes, que eram, então, as autoridades responsáveis por zelar pelos pequenos desvalidos, abandonados, ou simplesmente órfãos (que deveriam, portanto, encaminhá-los, se dizia à época, para a “educação e civilização” através do trabalho e aprendizado de um ofício), eram acusadas de protagonizar os “negócios de menores”. No dia 16 de setembro de 1875, o Jornal do Amazonas publicou uma carta remetida de Itacoatiara, pelo Sr. Francisco Benício de Carvalho e Mello, em que ele não mede palavras para acusar o juiz Antônio Luiz Coelho de “Prevaricador, ignorante, odiento, redutor de órfãos livres a condição de escravos”557. Francisco Benício sabia bem o poder que tinha um juiz sobre os bens herdados pelos órfãos. Anos antes, havia sido punido criminalmente pela retirada ilícita de mais de 11 contos de réis do Tesouro do Juízo de Órfãos da Vila das Barras no Piauí558. Disputas pelo controle das heranças em Itacoatiara? Certamente! Em abril de 1876, o Juiz de Órfãos era acusado de receber meninas em sua residência para servirem como criadas. A denúncia feita pelo jornal Comércio do Amazonas, e replicada no Jornal do Amazonas. Foi rebatida com uma explicação pouco convincente do juiz Antônio Colombiano Seráfico de Assis Carvalho. Disse ele que consentiu que as meninas ficassem em sua casa, desde que fossem educadas no Internato de Nossa Senhora dos Remédios, dirigido por sua esposa, mas contra isso se opuseram os pais das meninas, ao que o juiz atendeu “Imediatamente, uma vez que me não era lícito obrigá-las a receberem educação”559. E nisso ficou. No ano seguinte, novas acusações sobre o mesmo juiz. Em 2 de agosto de 1877, o Correio do Norte trazia um artigo de Raimundo da Silva Lobo acusando Antônio Carvalho de vender órfãos “A fim de obter uma quantia de 30 mil réis”. Antônio ofereceu as seguintes explicações: entregou, sim, os referidos órfãos a diversos cidadãos e mestres de oficinas da capital, obrigando-os, como de praxe, a pagar-lhes uma remuneração mensal, sem, contudo, cobrar a quantia referida para si, embora fosse direito dele e de outros funcionários que participam do processo de tutela560. Em lugares mais distantes, as crianças eram negociadas conforme as conjunturas políticas locais. Amigos do “potentado no lugar” eram presenteados 557 Jornal do Amazonas, 16 de setembro de 1875. 558 Jornal do Amazonas, 16 de setembro de 1875. 559 Jornal do Amazonas, 8 de abril de 1876.

560 Correio do Norte, 2 de agosto de 1877; Jornal do Amazonas, 7 de agosto de 1877.

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com crianças, com a disponibilização de órfãos; os inimigos políticos eram punidos, prejudicados com a retirada das que estavam sob seu poder – mesmo quando havia legalidade na tutela. Foi o caso de Francisco Rabelo da Silva, impedido de receber o seu afilhado, de nome Horácio, pelo subdelegado de Manicoré, o Sr. Antônio Ferreira Franco, que, segundo denúncias, ignorou deliberadamente as ordens do juiz municipal. Francisco acusava o subdelegado, entre outras coisas, de “Envolver-se em negócios de órfãos”, pois havia prometido aos seus amigos a entrega de crianças que seriam retiradas da casa do capitão Gentil e do capitão Firmino – ambos inimigos do subdelegado Antônio Franco561. Ao que tudo indica, a vida de crianças pobres, órfãs e desvalidas, estava ao sabor de interesses vários, entre aqueles comerciais ou de disputas e negociações políticas. O destino dessas crianças, dessa maneira, era tão incerto quanto os arranjos políticos e cálculos de poder. É lícito afirmar, ainda, que elas enfrentavam diariamente a instabilidade, o desenraizamento sistemático e a possibilidade constante de perda de referenciais e abrigo, de quaisquer estruturas semelhantes ao ambiente familiar. Em setembro de 1876, o presidente da província solicitava informações ao Juiz Municipal de Tefé sobre os motivos da retirada “Sem as formalidades legais” de crianças que haviam sido entregues pelos próprios familiares, através do Juízo de Órfãos, a Salomão Levy, com a finalidade de serem educadas562. Em março de 1886, a órfã Ludovina Luiza da Rocha, menina de 13 anos, foi seduzida, “Com promessas de casamento”, e levada da casa do tio e tutor, o Sr. Guilherme Antony563. Em 1863, o índio Julião Antônio foi preso por ordem do subdelegado de polícia, para ser indagado pela tentativa de raptar uma menor564. Em Moura, o menino Manoel, de mais ou menos 10 anos, foi preso por dois guardas enquanto se encaminhava para a casa de seu pai e, sob as ordens de Antônio de Oliveira Horta, subdelegado de polícia, foi enviado para Manaus. Imediatamente, o pai da criança, o Sr. Manoel Ramos, procurou o Juiz de Paz de Moura, acusando o subdelegado de “Abuso de autoridade”,

561 Jornal do Amazonas, 2 de julho de 1876.

562 Jornal do Amazonas, 28 de setembro de 1876. 563 Jornal do Amazonas, 13 de março de 1886.

564 Ofício n. 638 de 12 de outubro de 1863, Secretaria de Polícia do Amazonas. Livro da Secretaria de Polícia de 1863. Arquivo Público do Estado do Amazonas.


Xerimbabos: escravidão e precariedade na vida de crianças indígenas e negras

e advertindo-o sobre a cor de seu filho: o menino era branco565. Aqui, fica evidente, os marcadores etnoraciais são convocados para delimitar fronteiras sociais que separavam livres daqueles expostos a uma série de constrangimentos ao exercício da liberdade. Se para as culturas indígenas, tornar um animal em xerimbabo é torná-lo um parente; para o civilizado, o mesmo processo significava tornar a criança um infamiliar, da ordem daquilo que é inserido nas relações sócio-simbólicas, mas nunca perde o caráter estranho, estrangeiro. Acusada de ser “pobre e de vida reprovada”, a liberta Bibiana viu seu filho ser levado por Joaquim Pedro, agora tutor da criança, com a anuência do Juiz de Órfãos. Segundo o juiz, o menino passaria a ter quem zelasse pela “Melhoria, no futuro, da sorte do referido órfão”. Anos de trabalho tinham garantido à Bibiana a conquista da carta de alforria, concedida pelo Barão Leonardo Ferreira Marques, em atenção aos serviços prestados, para em liberdade ser apartada de seu filho sob acusação de levar vida “Pobre e reprovável”566. Em dezembro de 1875, Joaquim Caetano Ferreira acusava o Sr. Ribeiro Couto de “Cativar das flâmulas que estão ao serviço doméstico de algumas famílias e levá-las para sua casa”. Joaquim tinha uma menina de 10 anos para os serviços de sua família, de nome Nória, trazida de Manaquiri, “Que um sujeito daquele lugar me confiou para lhe educar”, a quem ele teria feito “em benefício tudo o que era possível”. Porém, isso não foi suficiente para impedir que os pais da menina levassem a pequena Nória para a casa de Ribeiro Couto. Joaquim não se opôs à entrega dela, mas fez questão de rebater as “asserções caluniosas” em manifestação pública pela imprensa, acusando Ribeiro Couto de iludir o “roceiro”, pai de Nória, e enfurnar a criança em um sítio. Por fim, vociferou: “Se minha casa não oferece as convenientes garantias para o ensino, menos a de sua senhoria, porque todo o tempo que tem tido essas flâmulas,

565 Ofício nº 60 de 10 de março de 1874, Secretaria de Polícia do Amazonas. Livro n. 10 da Secretaria do Amazonas. Arquivo Público do Estado do Amazonas.

566 Petição de Joaquim Pedro sobre o órfão de nome Luiz, em 4 de agosto de 1876. Caixa 18. Ano 1876. Acervo Digital do POLIS – Núcleo de Pesquisa em Política, Instituições e Práticas Sociais. Os processos de tutela originais encontram-se no Arquivo Histórico do Tribunal de Justiça do Amazonas. Importante citar os estudos de Alcemir Teixeira e Ivana Rezende, intitulados, respectivamente, O Juízo dos Orfãos em Manaus e a infância orfã e desvalida (1868-1916) e Os orfãos da cidade do Látex (1897-1923). Esses dois textos resultam de investigações realizadas com os processos de tutela, desenvolvidas no âmbito do mestrado em História Social, do Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal do Amazonas.

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elas andam dispersas pelos igarapés... e carregando crianças!”567 É interessante notar que, durante todo o relato feito por Joaquim Caetano Ferreira, não se faz uma só referência à participação do Juizado dos Órfãos, ou outra autoridade competente, para mediar as negociações entre pai e concorrentes no uso do trabalho da pequena Nória, indicando não apenas a ausência do Estado, mas revelando especialmente que essas relações se davam de forma costumeira e pessoalizada. Ao observarmos os registros de batismo do início do século XIX, feitos em Manaus, nota-se uma relação estreita entre escravização ilegal e trabalho doméstico. Alvo dos chamados descimentos – prática colonial que consistia em retirar os indígenas de seus territórios e levá-los para as cidades e vilas coloniais –, muitas crianças, a maioria meninas, de diferentes etnias, chegavam em grupos, como se fossem lotes, para serem todas batizadas pelos mesmos padrinhos, que, depois, poderiam requerer a tutela das crianças. O maior número de meninas batizadas pode revelar uma preferência nos recrutamentos através dos descimentos, relacionada ao atendimento dos trabalhos domésticos568. É Henrique Lister Maw, em sua viagem pelo rio Amazonas, quem relata ter visto o que ele chamou de “sistema” no qual os brancos negociavam ou mesmo sequestravam indígenas, e, depois de batizá-los, os mantinham em cativeiro: “Na casa de um branco viu uma índia completamente nua, e que pertencia (...) à tribo Origone, e provavelmente era escrava”. O viajante inglês chega a informar ter escutado do próprio Vigário Geral do Rio Negro uma piada, segundo a qual uma índia, prisioneira de outros indígenas, seus inimigos, que sofria o assédio de um homem branco, preferia ser comida pelos seus parentes quando chegasse a sua vez a ser “Escrava de um branco”569. De fato, a exploração de crianças como serventes, criados, “Em perfeita escravidão”, era absolutamente comum, prática corrente, como atestam os vários editais do Juízo de Órfãos publicados na imprensa, no sentido de dar legalidade para a situação de menores empregados nas casas da capital. Em agosto de 1877, o Jornal do Amazonas publicava o seguinte edital: 567 Jornal do Amazonas, 8 de dezembro de 1875.

568 SOUZA, Ivanelison & CAVALCANTE, Ygor. Infância Negra e Índia nos registros de batismo em Manaus (1820-1834). Revista Brasileira de Iniciação Científica, vol. 5, n. 1, 2018.

569 MAW, Henrique Lister. Narrativa da passagem do Pacífico ao Atlântico, através dos Andes nas províncias do Norte do Peru, e descendo pelo rio Amazonas, até ao Pará. Manaus, Associação Comercial/ Fundo Editoral, 1989. p. 183-189


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Constante exerce nesta capital e seu município grande número de órfãos em poder de diversos indivíduos sem autorização deste juízo, determino que no prazo de trinta dias, a contar desta data, venham solicitar as nomeações de tutores, que lhes serão concedidos se estiverem nas condições da lei com obrigação de ensinar-lhes a ler, a escrever e a doutrina cristã e mais misteres inerentes à seus sexos sob pena de lhes serem tirados e entregues legalmente a quem se incumbir de tais obrigações570.

Uma vez confessada sem rodeios a irregularidade, o juiz lembrava aos presumidos tutores “Não ser lícito deixar que seus tutelados vaguem pelas ruas desta cidade e consintam que eles se ocupem em fazer comprar e vendas, como consta que assim praticam”, ameaçando-lhes com a execução de penalidades nas conformidades da lei. A ampla disseminação da posse irregular de crianças e o uso ilegal de seu trabalho eram de conhecimento dos altos escalões da administração provincial, mas não se tem notícia sobre qualquer ação mais enérgica para controlar a ação de negociantes e receptadores. O problema da escravização de crianças livres permanecia sem resolução, e o tema não ultrapassava os discursos indignados, as falas e comunicações em editais sem resultados práticos. Em maio de 1889, denunciava-se na imprensa o “abuso da lei” e os enganos aos quais estavam sujeitos índios como Vitalina, que no rio Uaupés foi recrutada para ser educada, mas vivia em “estado infeliz”. O “amigo da justiça” alertava aos leitores que a escravidão para os índios não estava acabada, “Como comprovam mil fatos que cada qual pode se ver nos rios Negro, Purus e Solimões”. Insistia que os abusos verificados quanto ao costume de escravizar crianças, se não fossem punidos, produziriam “Frutos venenosos corrompendo a sociedade”. E quanto à educação das meninas, indicava a presença de desigualdades e processos de racialização: “As habitantes das selvas têm o mesmo direito em face da lei que tem as filhas dos brancos”571. Quando o Subdelegado e o Chefe de Polícia foram duramente criticados na imprensa pelo modo como eram realizados os recrutamentos de menores para a formação da Companhia de Aprendizes Marinheiros, acusados de liderar uma “Imoral e violenta caçada de menores”, respondeu o 570 Jornal do Amazonas, 7 de agosto de 1877. 571 Jornal do Amazonas, 23 de maio de 1889.

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presidente da província que havia recorrido ao Chefe de Polícia “Como um auxiliar incumbindo-lhe da aquisição de menores desvalidos”, recomendando “Harmonia com os juízes” em “Missão tão delicada”572. Em 1882, o presidente José Paranaguá sofreu acusação semelhante pela imprensa, ao mandar a polícia prender os meninos desertores da Companhia de Aprendizes Artífices e outros menores desvalidos e vagamundos. Em correspondência, José Paranaguá não economizou: “Chamam isso de caçada, quando não há aqui casa que não tenha o seu curumim (menino tapuio) apanhado nos matos para servir de criado”573. Em abril de 1877, o juiz de direito de Parintins, o Sr. Romualdo Sarmento, acusou nos jornais o presidente da província de fazer “pagode” em sua visita à população de Andirá, e de ter cometido “A imoralidade de arrancar um casal de meninos órfãos, sem ciência do respectivo juiz para levá-los consigo como xerimbabos”. Em sua defesa, o presidente mandou explicar que não podia deixar em “Desamparo um menino e uma menina de 8 a 10 anos de idade e um rapaz de 15 anos mais ou menos”, visto que, depois da morte de seus pais, o próprio Tuxaua (e Capitão Principal da povoação de Andirá) solicitou ao presidente que “Desse algum destino às duas crianças”. Em atenção ao “espírito de caridade”, e dada a ausência de um Juiz de Órfãos e de um Inspetor de Quarteirão, autoridades, portanto, competentes para dar encaminhamento às crianças, não havia outra alternativa, diziam para embarcar as crianças. Prosseguindo com as explicações, o presidente ainda afirmou que teria recusado a proposta de um velho de nome Belém, que se ofereceu para “Tomar conta da menina e educá-la em sua família”, pois só o faria depois que se preenchessem as formalidades legais em Manaus. Nem um, nem outro. Ao anoitecer, as crianças fugiram com o irmão mais velho de 15 anos574. Ao que parece, não causaria surpresa aos moradores de comunidades e pequenas cidades do interior ver autoridades (ou gentes se arrogando autoridade) carregando menores para levar à capital, ou arrancando crianças de suas famílias a pretexto de recrutamento. Obviamente, e como se pode ver, ações como essas poderiam servir a denúncias para desacreditar inimigos e atacar a 572 Jornal do Amazonas, 21 de janeiro de 1876.

573 RIZZINI, Irma. Educação Popular na Amazônia Imperial: crianças índias nos internatos para formação de artífices. In: SAMPAIO, Patrícia e ERTHAL, Regina de Carvalho (org.). Rastros da Memória – histórias e trajetórias das populações indígenas na Amazônia. Manaus: EDUA, 2006. p.160. 574 Jornal do Amazonas, 25 de abril de 1877.


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reputação de alguma figura pública. Aqui, importa menos saber se tal denúncia é verdadeira ou não, mas de verificar a realidade da experiência social exposta na imprensa, cuja densidade era vivenciada coletivamente e, que uma vez tornada pública, era reconhecida e deveria fazer sentido para os personagens/ leitores daquele contexto histórico. E fazia sentido exatamente por ser uma experiência comum. Ao lado das denúncias de “perfeita escravidão”, são recorrentes na imprensa acusações de castigos e maus tratos dispensados aos xerimbabos. Em setembro de 1886, o noticiário do Jornal do Amazonas informava o “bárbaro castigo” sofrido pela menor Thereza Alves Ferreira, cujo corpo estava “Todo contundido e manchado de longas equimoses”575. Em fevereiro de 1888, o Jornal do Amazonas rebatia as acusações de outro periódico da cidade, classificando como “fantasias” o “Depoimento de uns meninos suspeitos”, a respeito das acusações de “castigos e sevícias” cometidos contra a menor Adélia576. Em fevereiro de 1884, o Comandante da Guarda Nacional de Moreira era acusado de maltratar meninas que estavam a seus serviços como criadas. Primeiro, teria mandado enterrar em seu sítio, “chão não sagrado”, uma menina que ali morrera. Noutra ocasião, uma menina de nome Josefa teria se refugiado na casa de Belchior Gonçalves Chaves, pedindo abrigo contra os “Bárbaros castigos que, em casa do Sr. Rabello, estava sofrendo”. As Cartas do Rio Negro terminavam com um apelo dramático: “A nós revolta-nos o sangue, quando ouvimos dizer que esta ou aquela está sendo maltratada e asperamente castigada”577. Em março de 1886, o noticiário do Jornal do Amazonas explicava que o “pequeno índio” que trabalhava na casa de Thomaz Sympson não havia fugido por ser maltratado, mas por “Sua índole nômade, como é a de todos os índios”. E retrucava contra seus acusadores: “Fugiu como tem fugido outros da casa do Sr. Dr. Aprígio Martins de Menezes (...) sua senhoria julga que são maltratados os índios que fogem da casa de outros talvez porque em sua casa o tem isso os que dela tem fugido e nela tem morrido...”578 Melhor sorte teve o menor José Raimundo da Fonseca, resgatado por ordem do subprefeito de Manaus 575 Jornal do Amazonas, 2 de setembro de 1886. 576 Jornal do Amazonas, 4 de fevereiro de 1888. 577 Jornal do Amazonas, 30 de março de 1884. 578 Jornal do Amazonas, 13 de março de 1886.

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dos maus tratos sofridos na casa de Dimas João Sunol, e posteriormente apresentado aos cuidados do Juiz de Órfãos579. Outros não escapavam aos maus tratos, nem mesmo no interior das Instituições responsáveis por abrigá-los. Em 1886, o professor Luiz Nogueira Dejard foi acusado de castigar “Bárbara e imoderadamente” algumas crianças, que, após serem examinadas pelos médicos da província e do Instituto de Educandos Artífices, receberam o seguinte laudo: “O castigo que lhes foi infligido 8 dias antes foi leve, porquanto muitos castigos, aliás moderados, praticados a férula, dão ainda dentro de oito dias vestígios muito sensíveis de si, revelados por equimoses, entre outras”580. Em meados de 1860, o casal Agassiz pôde observar o cotidiano das crianças do educandário. Os internos trabalhavam com madeira, ferro e palhas. Com eles, fabricavam cadeiras, mesas, pequenas réguas e facas para o corte de papel, entre outros objetos. Alimentavam-se no almoço de café e pão com “bastante manteiga”. Contudo, os viajantes não deixaram de perceber no semblante dos internos certa tristeza, pois Nesse orfanato, se retém às vezes, sob pretexto de instrução ministrar, pobre criaturinhas que ainda têm pai e mãe e que foram subtraídas às tribos selvagens. Uma cela sombria, com grossas grades de ferro, bem semelhante à jaula dos animais ferozes, que aí vimos, confirma ainda essa triste opinião. Responderam-me que é tão somente para arrancar a criança a uma condição selvagem e degradada; pois a civilização, mesmo imposta pela força, é preferível à barbárie (AGASSIZ, 1975: 197-198).

Educação e Civilização, sempre prometidas aos pais e familiares para melhorar a sorte das crianças pobres e desvalidas, converteram-se, frequentemente, em precariedade, isso é, ausência de proteção legal e violência contra seus corpos. A formação profissional dos menores foi preocupação permanente das autoridades provinciais do Amazonas. No entanto, a integração deles ao projeto educacional esbarrava na resistência dos habitantes. A falta de regularidade no processo de adesão dos menores às instituições educacionais obrigou o poder público a formular uma política coercitiva, visando a formação de uma sociedade “civilizada”. As práticas educacionais, via de regra, pautavam-se 579 Comércio do Amazonas, 14 de julho de 1898.

580 Jornal do Amazonas, 27 de novembro de 1886.


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pelo pressuposto de formar “Trabalhadores disciplinados, tementes a Deus e ao Estado”. Nessa direção, havia uma vinculação estreita entre práticas educacionais e relações de trabalho, para homogeneizar vivências culturalmente distintas e formar cidadãos civilizados, disciplinados e ordeiros. Os modelos pedagógicos eram realmente rígidos nos Educandos Artífices. As crianças órfãs ou indigentes eram recolhidas na instituição e preparadas para o mundo do trabalho. Ali, receberiam o ensino de primeiras letras, ao mesmo tempo em que seriam iniciadas em um ofício especializado. Os castigos eram encarados como instrumento de disciplinarização dos internos. Precisavam aprender a sentar-se corretamente, a respeitar a hierarquia, falar o português com precisão, e demonstrar disposição para os ofícios ensinados. As coerções ocorriam, porque havia forte resistência por parte das crianças em atender às violências simbólicas que os regulamentos e tarefas estabelecidas representavam. Resistências por vezes, também, violentas. Em 1874, o delegado de polícia de Tefé recomendava o recrutamento do menor Martiniano Antônio Seabra para a Companhia de Aprendizes Marinheiros, tanto pelo que considerava “Péssima vida entre outros desmandos” quanto pela tentativa de “Ferir com uma faca de ponta o mestre que lhe ensinava o ofício de Alfaiate”581. O rigor do educandário assemelhava-se ao de uma cadeia pública, pois pretendia regenerar os delinquentes, corrigir os desviantes, porém, excluindo-os de qualquer contato com a sociedade, até que estivessem adequados aos padrões de civilidade almejados pelos discursos dominantes. Diante de tanto rigor, as famílias indígenas recusavam-se a entregar seus filhos aos tutores e aos Educandos Artífices582. Sabendo da “Repugnância que sentem os pais e tutores em destinar seus filhos” à vida como recrutas da Companhia de Aprendizes Marinheiros, o Ministério da Marinha resolveu expor na imprensa algumas leis e decretos, com prêmios e remunerações, para persuadir os pais das vantagens e favores de ter seus filhos como aprendizes583. E havia ainda o raciocínio duvidoso de recrutar as crianças com a finalidade de atrair também os familiares para trabalharem na capital. 581 Livro n. 10 de Ofícios Expedidos. Secretaria de Polícia do Amazonas. Livro da Secretaria de Polícia de 1874. Ofício do delegado de polícia de Tefé encaminhado ao presidente da província em 22 de março de 1874. Arquivo Público do Estado do Amazonas. 582 ALVES, Márcia Eliane. Educação, Trabalho e Dominação: Casa dos Educandos Artífices (1858-1877). Amazônia em Cadernos, n. 2/3, Manaus, 1993. p. 103-104. 583 Jornal do Amazonas, 25 de novembro de 1875.

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As fugas de internos eram comuns. Os menores Jacob Dias da Silva e Manoel Ramos de Oliveira foram recolhidos à prisão por terem fugido do educandário em abril de 1864584. No dia 24 de fevereiro, o menor Henrique Antônio de Souza foi preso por querer fugir para o Pará sem o consentimento de seu mestre585. Em maio, Antônia Maria Gomes foi presa acusada de ter seduzido um educando artífice, seu afilhado, para fugir do estabelecimento586. E, como consequência das evasões, a atuação da polícia atingia também os menores da cidade, recolhidos como suspeitos de serem educandos. Manoel Pereira foi preso por suspeita de ser educando artífice em abril de 1864587. Em maio de 1868, o menor Francisco dos Santos foi preso para ser recruta do exército – destino em muito semelhante ao dos meninos do educandário588. Com efeito, a frouxidão na fiscalização sobre a situação de menores trabalhando em casas de família da cidade, aliada às práticas de recrutamento para a Companhia de Aprendizes Marinheiros e para o Educandário dos Artífices, contribuía, sobremaneira, para alargar os espaços de atuação de sequestradores, escravizadores de crianças ou, ainda, pretensos tutores. Nesse sentido, as famílias negras e índias viviam expostas ao risco de desarticulação ante às práticas de recrutamento de crianças, arrancadas do convívio familiar, com a cumplicidade das autoridades policiais, sob o pretexto de educá-las em melhores condições econômicas e culturais. Pode-se mesmo dizer que tais práticas sociais e políticas induzem à insegurança e ao estreitamento de horizontes de melhoria das condições de vida. Assim aconteceu com Lourenço Ferreira Prado, que recorreu ao Juízo de Órfãos para ter o filho de volta em março de 1881. O menor Matias foi retirado da companhia de seu pai por ordem de Leandro José da Costa. O pretenso tutor alegava que Lourenço Prado maltratava a criança e que, em vista disso, possuía um requerimento de tutela autorizando a captura do “menor desvalido”. Entretanto, a ação de Leandro Costa não possuía qualquer amparo legal, resultava apenas de sua própria vontade. Na tentativa de recuperar o menino, o pai refutou as acusações de maus tratos alertando que elas não passavam de 584 O Catechista, 5 de março de 1864.

585 O Catechista, 26 de março de 1864

586 O Catechista, 25 de junho de 1864. 587 O Catechista, 6 de maio de 1865.

588 Jornal do Rio Negro, 7 de maio de 1868.


Xerimbabos: escravidão e precariedade na vida de crianças indígenas e negras

“Fútil pretexto para iludir a boa-fé e tornar assim escravo aquele que junto a mim goza liberdade de filho”589. Em 1876, a menor Ermina foi retirada da companhia de sua mãe, Maria Nicásia, por ordem do Sr. Frederico, empregado da secretaria do governo. A menina foi capturada sem que se tivesse procedido às formalidades legais de requisição da tutela no Juízo de Órfãos. Ao contrário do apregoado, Frederico reduziu a menor à condição de escrava de servir, esquecendo-se das obrigações de instruí-la no ensino de primeiras letras e no trabalho intelectual. Maria Nicásia recorreu ao Juízo de Órfãos para que Ermina pudesse voltar ao abrigo materno e, ali, mesmo que com pequenos recursos, pudesse receber uma educação “real e proveitosa”. Ermina foi entregue à mãe depois de confirmarem a maternidade. E sobre o costume de arrancarem os filhos de suas mães, o Juízo pronunciou-se da seguinte forma: Quando o governo Imperial firmou a lei de 28 de Setembro de 1871, não previu, por certo, que à proporção que a escravidão fosse desaparecer assoberbasse a caçada criminosa de gente livre no lar domestico, invadindo-se seus lares, a choupana do pobre, para dali arrancar-se do seio materno pequenos filhinhos e atirados à casinha de privilegiados, apesar da repulsa, das lágrimas e dos rogos dos pais. Já não será lícito cada um criar seus filhos ou filhas e com eles repartir a abundancia de seu coração, suavizando assim a severidade das leis da adversidade?590

O parecer acima é uma síntese precisa das condições de vulnerabilidade em que se viam as famílias pobres do Amazonas. Falava-se sem rodeios na Assembleia dos Deputados da Província sobre os perigos que o comércio de crianças (estruturado com margens internacionais) trazia para a diplomacia brasileira, visto que muitos eram comprados (ou sequestrados) de comunidades indígenas que habitavam as fronteiras com a Colômbia, Bolívia e Peru. Os deputados também expunham detalhadamente os caminhos e descaminhos do tráfico de menores, que atingiam outras províncias, inclusive a Corte no 589 Petição de tutela de Lourenço Ferreira do Prado sobre o menor Matias Ezequiel de Miranda em março de 1881. Caixa 22. Ano 1881. Arquivo Público do Estado do Amazonas.

590 Petição de restituição de menor requerida por Maria Nicásia em dezembro de 1876. Caixa 18. Ano 1876. Arquivo Público do Estado do Amazonas.

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Rio de Janeiro. O presidente Alarico José Furtado, falando aos deputados do Amazonas, em sessão extraordinária da Assembleia Provincial, dizia: Havendo-se a imprensa ocupado com a chegada de alguns índios menores, que foram distribuídos por várias pessoas nesta capital, eu procedi a indagações a respeito e verifiquei ser exato o fato, e em número de dois os índios referidos. Ordenei pesquisas, tendentes a demonstrar quem são e onde residem os pais desses índios, a fim de efetuar uma restituição imposta pelas leis divinas e humanas. Envido esforços a fim de impedir a reprodução de fatos que podem provocar dificuldades internacionais, importar um ultraje aos sentimentos da família, e a substituição nesta província da escravidão negra pela escravidão indígena591.

Essa situação de vulnerabilidade vivenciada pelas famílias negras e indígenas parece ter tomado proporções alarmantes a partir da década de 1850, após a abolição definitiva do tráfico atlântico de africanos. Nesse contexto, a situação das famílias tornou-se mais instável, pois outras estratégias de compra e venda de trabalhadores foram colocadas em prática para atender à crescente demanda por braços do sudeste cafeeiro. Os escravos foram retirados dos ambientes familiares, das relações negociadas e penosamente construídas com antigos senhores, e acabaram transferidos para lugares longínquos, obrigados a realizar atividades diferentes das quais estavam acostumados592. Muito embora ministros já comentassem sobre a venda de crianças para a Corte, o assunto ganhou dimensão importante exatamente nessa conjuntura de tráfico interprovincial593. No ano de 1854, em plena Assembleia Geral do Império, os deputados discutiam um projeto de lei para conter o deslocamento de escravizados comprados das províncias do norte para abastecer as demandas, cada vez maiores, do sudeste cafeeiro. O deputado João Mauricio Wanderley, parlamentar pela Bahia e promotor do projeto, justificava sua aprovação, entre outros motivos, pelo propósito de coibir “Essa nova traficância 591 AMAZONAS. Falla com que o Exmo. Sr. Dr. Alarico José Furtado abriu a sessão extraordinária da Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas. Em 27 de Agosto de 1881. Manaus: Tipografia do Amazonas de José Carneiro dos Santos. 1882, p. 10. 592 GRAHAM, Richard. Nos tumbeiros mais uma vez? O comércio interprovincial de escravos no Brasil. Afro-Ásia, n. 27, 2002. p.153. 593 CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão. Costume e Ilegalidade no Brasil Oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p.258.


Xerimbabos: escravidão e precariedade na vida de crianças indígenas e negras

de carne humana” em que se podia verificar “Crianças arrancadas das mães, maridos separados das mulheres, os pais dos filhos”. E acrescentava: “Não é tudo, senhores, já como consequência vai aparecendo no norte uma outra especulação, que é a de reduzir à escravidão pessoas livres”. Instado a argumentar sobre a moralidade de seu projeto de lei, o deputado lembrou a situação das crianças das províncias do norte, nas quais meninos de cor parda ou preta eram vendidos e “Outros empregam violência para roubar crianças e vendê-las”594. Talvez se possa, assim, entender a busca de Mariana, menina negra de doze anos de idade, filha da escrava Eufrásia Maria, que se via às voltas com a necessidade de provar sua liberdade. Em outubro de 1820, suplicava ao Vigário Geral do Bispado do Pará o reconhecimento de sua alforria ocorrida na pia batismal através da emissão de um novo termo de batismo, pois, no registro anterior, feito em 1808, havia sido “muito simplesmente” suprimida sua condição de liberta595. Em um contexto de apresamentos para o trabalho compulsório e os riscos de reescravização (ou mesmo de escravização ilegal), ter em mãos um documento que atestasse sua condição de liberdade era fundamental. Mariana cresceu junto à maioria de habitantes índios destribalizados ou mestiços, em um pequeno agrupamento urbano, próximo às ruínas da fortaleza da Barra do Rio Negro. E, dali, exposta à precariedade e à escravização, poderia seguir para qualquer lugar do império brasileiro. Passados vinte e seis anos dos debates na Câmara dos Deputados gerais, o prefeito de uma cidade da Colômbia de nome Caquetá elaborou um relatório bastante detalhado, descrevendo todo o tráfico de crianças indígenas, homens e mulheres, desde as comunidades em território colombiano, passando pela atuação de negociantes portugueses e brasileiros nos rios do Amazonas, até os destinos que eram dados aos escravizados596. Para desespero dos presidentes da província, os crimes de escravização de pessoas livres persistiam, 594 Annaes do Parlamento Brasileiro. Câmara dos Senhores Deputados. Sessão de 1.º de setembro de 1854.

595 Livro de Batismo 1 da Cúria Metropolitana de Manaus, registro de 23 de outubro de 1820. Esse relato integra o trabalho de iniciação científica, intitulado Infância Negra e Índia nos registros de batismo em Manaus (1820-1834) , desenvolvido pelo discente Ivanelison Melo de Souza e por mim, orientados no âmbito do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas - IFAM.

596 Estados Unidos da Colômbia – Estado Soberano do Cauca. Prefeitura do distrito de Caquetá. Mocoa, 22 de fevereiro de 1880. Sr. Secretário do Governo. Popayan. Servidor Bernardo de La Espriella. Reproduzido no Comércio do Amazonas, 16 de outubro de 1888.

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colocando problemas para a diplomacia brasileira, além de piorar a imagem do país no estrangeiro, que carregava o título nada lisonjeiro de ser uma das últimas nações escravistas do mundo. Não bastasse a escravidão negra, havia ainda força da “escravidão vermelha”597.

Considerações finais Os relatos sobre crianças negras e indígenas escravizadas ilegalmente ajudam a revelar um cotidiano de precariedade vivenciada por famílias não brancas na província do Amazonas. Sequestradas, arrancadas de suas famílias, o comércio de crianças envolvia amplos setores da sociedade, desde atravessadores e comerciantes dos rios, passando por autoridades públicas, chegando aos compradores ou pretensos tutores que os conservavam em “perfeita escravidão” , como criados nos serviços domésticos, como trabalhadores na extração de seringa, fâmulas nos sítios, concubinas de seus compradores, ou circulando pelas ruas prestando serviços. Sem contar aquelas arrancadas de seus lares e jogadas nas malhas do tráfico para as províncias do sudeste cafeeiro. Em suma, essas histórias possibilitam um amplo campo de investigação ainda por ser feita. É preciso investigar mais sobre o cotidiano dessas crianças, buscando as relações entre os costumes orientados pela força de uma “mentalidade escravagista” e as práticas que constrangiam o exercício de qualquer noção que elas tivessem de liberdade. O estudo dessas experiências pode esclarecer algo mais sobre estruturas profundas de relações sociais, que empurravam cada vez mais cedo crianças não brancas para o mundo do trabalho – precário, asperamente disciplinado, ensinando-lhes, desde a mais tenra idade, rígidas hierarquias e desigualdades sociais.

597 Exposição com que o ex-presidente do Amazonas, Exm. Sr. Dr. Alarico José Furtado, passou a administração da província ao 2º Vice presidente, Ex. Sr. Dr. Romualdo de Souza Paes de Andrade. 1882.


CAPÍTULO 12

A CRIANÇA É ARMADILHA DE PEGAR ADULTO: A TENTATIVA DE DISCIPLINARIZAÇÃO DA INFÂNCIA E DA FAMÍLIA NA MANAUS VARGUISTA598

Alba Barbosa Pessoa

Resumo: A chegada de Getúlio Vargas ao Governo Central no Brasil dos anos 1930, possibilitou a implantação de um projeto civilizatória voltado para a infância brasileira. Engendrado no seio das elites intelectual, política e econômica, tal projeto visava abarcar a criança nos seus mais diversificados aspectos no sentido de garantir a preservação da mão-de-obra da criança. Um diversificado acervo de jornais, revistas, cartilhas, relatórios, boletins, Anais da Assembleia, dentre outas fontes, demonstra que na cidade de Manaus medidas foram implementadas no sentido de tentar disciplinarizar a infância empobrecida, e forjar novas formas de vida e novos costumes para suas famílias. Refletir como se deu a implantação desse processo, como foram percebidas e recebidas pela população manauara é a nossa proposta. Palavras-Chave: Infância; Disciplinarização; Família

598 Fragmento do segundo capítulo da minha Tese de Doutorado, intitulada Pequenos Construtores da Nação: disciplinarização da infância na cidade de Manaus (1930-1945), defendida pela Universidade Federal do Pará (UFPA) em 2018. Pesquisa realizada com bolsa FAPEAM.


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século XX, considerado por muitos dos seus contemporâneos como o Século das Crianças, dedicou especial atenção à infância. Esse interesse se deu em decorrência da elevada e crescente mortalidade infantil existente na Europa e nas Américas nos anos finais do século XIX, despertando a atenção do saber médico sobre essa parcela da população599. O Brasil não se manteve distante das preocupações que se voltavam e avolumavam em relação à infância pobre nos anos finais do século XIX e primeiras décadas do século XX. Acompanhando as discussões nacionais e internacionais que se voltavam para essa questão, as elites intelectual, econômica e política viam na infância pobre um problema a ser combatido. Não obstante a preocupação com a criança se mostrar presente desde o século anterior, no Brasil não havia “Uma atuação sistemática e intensiva” voltada para a assistência à infância. Os serviços materno-infantil que para elas se voltaram, “Na sua grande maioria, foram marcados por uma prática assistencialista, de caráter filantrópico e de iniciativa privada, tendo à frente médicos renomados como Moncorvo Filho, Martagão Teixeira e Olintho Oliveira”600. Foi somente a partir de 1930 que a criança foi alçada a objeto de política governamental. Sugerimos que essa assertiva pode ser ilustrada pela capa da revista O Cruzeiro, publicada na cidade do Rio de Janeiro em 1930, na qual podemos vislumbrar a projeção que a criança passaria a ter no governo de Getúlio Vargas601 .

599 BIRN, Anne-Emanuelle. Child health in Latin America: historiographic perspectives and challenges. Hist. cienc. saúde-Manguinhos vol.14 no.3 Rio de Janeiro July/Sept. 2007. De acordo com a autora, tal fato ocorreu quase que simultaneamente à “descoberta” da mortalidade infantil na Europa e na América do Norte. 600 FONSECA. Cristina M. Oliveira. A Saúde da Criança na Política Social do Primeiro Governo Vargas. PHYSIS: Revista de Saúde Coletiva. Vol.3. Nº 2,1993. p.97 a 116. 601 O Cruzeiro, nº 8, 27 de dezembro de 1930. Biblioteca Nacional Digital.


A criança é armadilha de pegar adulto: a tentativa de disciplinarização da infância e da família...

Imagem 1: Detalhe da capa de O cruzeiro

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Uma primeira leitura do documento deixa entrever uma mensagem exultante com a chegada do novo ano, representado em um sol emanando raios de esperança, iluminando e animando o personagem principal da imagem: uma criança. Seu olhar desafiador e seu andar firme, aparentemente em marcha, prediziam os tempos vindouros. O novo ano encarnava um menino sisudo, que não parecia estar caminhando a esmo. Ao contrário, parecia resoluto dos caminhos a seguir, desafios a confrontar, tal qual o soldado que vai para o campo de batalha preparado para enfrentar o inimigo. Tratando-se de uma imagem produzida no contexto do Golpe de 1930, poderia estar representando a nova década, prenhe de esperanças e prosperidade sob a administração do governo recém-instalado602. 602 O Golpe de 1930, também conhecido como Movimento de 1930 ou Revolução de 1930, foi um movimento armado organizado pelos estados de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba. Liderado por Getúlio Vargas, com o apoio das forças militares, culminou na saída de Washington Luís da presidência do Brasil. Esse Golpe colocou fim à chamada Primeira República, dando início ao longo governo de Getúlio Vargas, que assumiu o poder na condição de Chefe do Governo Provisório e depois como presidente do Brasil, encerrado somente em 1945. Sobre esse tema PANDOLFI, Dulce Chaves. Os anos 1930: as incertezas do regime. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O tempo do nacional-estatismo: do início da

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Para além de anunciar a chegada do ano novo, a capa da revista parecia carregar os gérmens de tempos nos quais a criança seria a figura central. Iluminada pelos raios de sol, o menino em passos firmes e decididos parecia sustentar a pátria, no caso a bandeira. Percebemos que não se trata de uma criança qualquer. A imagem revela uma criança saudável, robusta, branca: a criança eugênica. O menino ostenta braços vigorosos, prontos para servir a pátria, quer como soldado, quer como trabalhador. É sobre a criança que esforços se concentrarão no sentido de torná-la apta a cumprir tais papéis. É para a criança que o governo originado a partir do Golpe de 1930 voltará sua atenção, transformando a infância em política governamental. Com efeito, a documentação por nós trabalhada demonstra a atenção dispensada à criança desde os anos iniciais do governo de Getúlio Vargas, colocando em relevo a preocupação em assegurar que a infância se transformasse em uma fase preparatória de futuros cidadãos fortes e saudáveis, com homens e mulheres realmente “úteis” à pátria. Às crianças, filhas das famílias empobrecidas, caberia o papel de pequenos construtores da nação. Nação que Vargas pretendia construir com base na vigilância e tutela da infância. O projeto de nação engendrado por Getúlio Vargas, conforme análise de Ângela de Castro Gomes sobre a montagem do cidadão-trabalhador nas décadas de 1930 a 1940, estava sustentado em três pilares: o trabalho, a família e a educação. Nesse sentido, o Estado só poderia ter uma bússola mestra norteando suas ações, o trabalho. O trabalho, portanto, seria “A medida de avaliação do valor social do indivíduo”; a família, célula mater da sociedade, seria o meio pelo qual o Estado alcançaria o homem; quanto à educação, somente por meio desta o indivíduo poderia ser preparado de forma integral para servir ao país603. Será a partir desse prisma que procuramos refletir como se deu a tentativa de disciplinarização da infância empobrecida na cidade de Manaus. Considerando que tal processo se deu por meio de ações voltadas para a família, a educação e o trabalho, alicerçamo-nos em Foucault, para quem a criança é a armadilha de pegar adulto604. Logo, por meio de medidas direcionadas à década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2007 das Letras, 2013.

603 GOMES. Angela de Castro Gomes. A Invenção do Trabalhismo. 3ªed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. p.237a244. 604 FOUCAULT, M. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes. 2002. p.387


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assistência e proteção da prole, pretendia-se criar novas formas de vida e novos costumes para famílias empobrecidas. Ainda nos caminhos apontados por Foucault, para quem o poder não é estático e cujo exercício se espraia para além da legislação, vamos procurar pelo poder na norma, pois esta pode ser aplicada “Tanto ao corpo que se quer disciplinar quanto a uma população que se quer regulamentar”. Nessa linha de raciocínio, a tentativa de disciplinarização pode ser percebida, na vida cotidiana de uma população, em pequenas ações diárias que fazem parte do seu dia a dia605. Será a partir desse prisma que tentaremos identificar como se deu a tentativa de disciplinarização da infância na cidade de Manaus, por meio de ações voltadas para as famílias.

Família: a educação dos pais Os Anais da Assembleia Nacional Constituinte evidenciam que, no decorrer dos trabalhos da elaboração da Carta Magna brasileira, a família empobrecida foi percebida como incapaz de prover, educar e proteger seus filhos, futuros cidadãos606. Essa percepção dos constituintes está retratada na Constituição do Brasil de 1934, ao estabelecer que de acordo com o “Art. 144 – A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do estado”607. Nesse sentido, considerada como espaço de modelagem de posturas, de hábitos e costumes, a família passou a ser alvo da ação intervencionista governamental. Colocar a família sob amparo do Estado foi a forma encontrada para garantir que aquela estivesse sujeita a maior intervenção por parte deste, visto somente ser merecedora de direitos as famílias que se enquadrassem em determinadas condições. Desse modo, ao ressaltar que as famílias sob a proteção do Estado seriam as constituídas pelo casamento indissolúvel, a nova Constituição reconhecia como merecedora de tal benefício somente aquelas originadas do casamento civil, desconsiderando outras formas de arranjos familiares. Nessa

605 FOUCAULT. Michel Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). Martins Fontes: São Paulo. 2005. p.302.

606 Anais da Assembleia Nacional Constituinte (1933/1934). Volume I. Imprensa Nacional: Rio de Janeiro, 1935.

607 Constituição do Brasil de 1934. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.ht . Acesso: 20 de fevereiro de 2018

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perspectiva, a obrigatoriedade do casamento civil pode ser percebida como ferramenta de coerção no sentido de disciplinar a família608. Nossa assertiva vai ao encontro das análises de Ana Maria Bandeira Magaldi e Cintia Vilhena sobre o papel destinado às famílias nos projetos civilizatórios. Magaldi atesta que a família foi a ferramenta de ação pedagógica que o Estado utilizou no sentido de organizar a sociedade, transformando e criando cidadãos saudáveis e ordeiros609. De acordo com Vilhena, a família, considerada célula maior da sociedade, recebeu papel de destaque na missão salvacionista da infância. Destaca a autora que essa proeminência pode ser percebida na Constituição de 1934, que atribuiu papel de destaque à família, até então desconhecido na legislação brasileira. Durante a década de 1930 e 1940, a família, a mulher e a prole, passaram a ser o instrumento de edificação do Estado Nacional610. A Constituição de 1934, ao regular as formas de união entre os casais brasileiros, considerando como família apenas a união regida pelo casamento civil, desconsiderava aquelas que não se enquadrassem nesse modelo. Sabemos que as formas de união entre os casais das famílias empobrecidas, na grande maioria, não seguiam os padrões estabelecidos pela ordem burguesa. Como assevera Rachel Soieth, muitas famílias pobres eram compostas pela união de casais sem a legitimidade religiosa ou civil 611. Diante do exposto, percebemos que, se por um lado, a colaboração da família era imprescindível ao processo “civilizatório” da infância, por outro, ela possuía formas de vidas que em muito contraditavam com o projeto de nação almejado. Logo, para que as famílias desempenhassem com êxito seu papel de cuidar, educar e encaminhar os filhos no modelo de futuro cidadão desejado, seria imperativo que os pais também fossem educados. Com essa preocupação, mecanismos foram criados, no sentido de ensinar aos pais as formas de cuidar/ 608 O casamento foi tema que suscitou acalorados debates entre os constituintes durante os trabalhos na Assembleia Nacional, motivo pelo qual acreditamos ser um relevante acervo os Anais da Assembleia Nacional Constituinte para os estudos da família brasileira.

609 MAGALDI, Ana Maria Bandeira de Mello. Lições de Casa: discursos pedagógicos destinados a família no Brasil. Belo Horizonte: Argumentum, 2007. p.20-21. O referido trabalho nos serviu de inspiração para o segundo capítulo da tese.

610 VILHENA, C. P. A Família, na Doutrina Social da Igreja e na Política Social do Estado Novo. Psicologia-USP, São Paulo 3(1/2) p.45-57, 1992. 611 SOHIET, Rachel. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In: PRIORE, Mary Del. (Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997. p. 362-400.


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educar/formar suas crianças. Na cidade de Manaus, dentre os mecanismos utilizados, o Conselho de Assistência e Proteção aos Menores teve papel de destaque na divulgação de hábitos modelares, costumes e condutas612. As formas de casamento, e consequentemente de divórcio, por um longo período, foi motivo de apreensão por parte das autoridades políticas, econômicas e religiosas no País. Em Manaus, esses temas se fizeram muito presentes nos boletins do Conselho de Assistência e Proteção aos Menores, que propagavam tais ideias, publicando artigos reforçando a necessidade de legalizar os enlaces matrimoniais, bem como combatendo a prática do Divórcio existente em outros países. Com efeito, no decorrer dos anos 30 e 40, na maior parte da população manauara, a união entre casais se deu de modo informal, não seguindo os preceitos legais ou religiosos. Essas evidências podem ser percebidas nas páginas dos processos judiciais do Tribunal de Justiça do Amazonas, que revelam histórias de homens e mulheres que por diversos motivos enfrentavam as instâncias da lei. Ao se referir ao estado civil desses sujeitos, a grande maioria aparece como amasiado613. Consoante Isabel Silva, “O casamento formal, regido pelas regras do direito civil, atingia mais diretamente as mulheres das classes sociais mais abastadas”, o que não eximia muitas dessas famílias serem alcançadas pelos arranjos informais614. Nesse sentido, amasiar, para além de se constituir em um dos arranjos familiares que grande parcela das famílias empobrecidas criava para fugir dos elevados gastos com a realização do casamento formal, como sugere Sohiet, também pode estar relacionado ao universo cultural no qual tais famílias estavam inseridas, como assevera Esteves615. 612 O Conselho de Assistência e Proteção aos Menores voltava-se para a proteção, assistência e amparo aos menores, procurando agir em todas as esferas que envolvessem as crianças. Tanto no âmbito familiar quanto fora dele. Tanto no público quanto no privado. 613 O rico acervo do Arquivo Histórico do Tribunal de Justiça do Amazonas contempla o período do Amazonas Provincial até a atualidade.

614 SILVA, Isabel Saraiva. Mulheres Impressas: amor, honra e violência no cotidiano das mulheres em Manaus, 1932-1962. Dissertação de Mestrado. UFAM, 2016. Sobre casamento formal/informal sugerimos: MARQUES, Teresa de Novaes. A mulher casada no Código Civil de 1916. Ou, mais do mesmo. Textos de História, Brasília UnB, v.12, n.1/2, p.127-144. 2004.

615 Respectivamente, SOHIET, Rachel. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In: PRIORE, Mary Del. (Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997. p. 362400; ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas Perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.p. 185 e 190.

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Acompanhando a tendência de diversas cidades brasileiras, o divórcio foi motivo de longos debates entre os diversos setores da sociedade manauara. Nos espaços acadêmicos, nas esferas política, no âmbito jurídico e no cotidiano da cidade, opiniões divergiam entre aqueles que defendiam a importância da manutenção dos laços conjugais para preservação da família e aqueles que advogavam a liberdade dos cônjuges em reparar casamentos malsucedidos616. Procurando combater essa prática, o Conselho de Assistência e Proteção aos Menores explanava em suas páginas os motivos pelos quais o divórcio deveria ser visto com um grande mal que causava a infelicidade dos filhos, “Relegando-os a miséria moral e econômica”. De acordo com o Conselho, em nome da família e dos filhos, os pais tudo deveriam suportar617. Tais situações não foram exclusivas para Manaus. Na cidade de Belém, a Igreja desenvolveu estratégias no sentido de combater a união conjugal realizada sem os preceitos religiosos618. Ipojucan Campos elucida que, embora em instâncias opostas na disputa pela primazia dos enlaces matrimoniais, Igreja e Estado combatiam com veemência os arranjos familiares criados pela maior parcela da população belenense. Fazendo uso do discurso do medo, a Igreja Católica, em suas preleções, recorria a ameaças de que o inferno seria o destino daqueles que insistissem em se manter em casamentos considerados ilegais619. Na cidade de Manaus, o Conselho teve importante atuação na propagação do papel atribuído à mulher dentro da família. No ano de 1941, o boletim do Conselho destacava que na família a mulher foi delegada importante e insubstituível dever: a “sublime missão” da maternidade. Reproduzindo uma notícia publicada no jornal manauara A Reação, o boletim reforçava a representação de um modelo de comportamento feminino desejado620. A matéria do referido jornal tratava sobre o evento ocorrido no Parque Amazonense, onde

616 Nos arquivos de Manaus é farto o número de publicações em jornais, revistas, livros e outros impressos, advogando a favor ou contra o divórcio. 617 Conselho de Assistência e Proteção aos Menores. Manaus, 16 de outubro de 1942. Nº 148.

618 CAMPOS, Ipojucan Dias. Para além da tradição: casamentos, famílias e relações conjugais em Belém nas décadas iniciais do século XX (1916 / 1940). Tese de Doutorado. São Paulo: PUC, 2009. p.62. 619 CAMPOS, Para além da tradição...op.cit. p.129.

620 Conselho de Assistência e Proteção aos Menores. Manaus, 10 de fevereiro de 1941.nº104. Infelizmente ainda não conseguimos localizar o jornal A Reação referente a essa data.


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[...] um grupo de senhorinhas se degladiavam no campo disputando uma partida de futebol. As jogadoras, senhorinhas de nossa sociedade, estavam ávidas da vitória de suas cores e cheias de entusiasmo próprio da idade da fantasia621.

No decorrer da matéria jornalística, o articulista do periódico demonstrava surpresa ante o “grupo de senhorinhas”, advertindo aos pais que “O fim principal da mulher é a procriação”, não sendo adequado que elas praticassem todo tipo de esporte, principalmente os que poderiam trazer prejuízos morais e físicos. Na perspectiva do jornal, o prejuízo moral seria decorrente da exposição excessiva nas quais as mulheres se encontravam diante da plateia que assistia às partidas de futebol, sujeitas a comentários considerados inapropriados para moças que deveriam manter a pureza e o recato. Os prejuízos físicos seriam decorrentes dos esforços excessivos cometidos em certos esportes, comprometendo a musculatura feminina, e quem sabe a sua capacidade de vir a tornar-se mãe. Diante disso, a matéria do jornal A Reação concluiu que “A mulher, na idade propícia, deve receber lições adequadas ao seu sexo por pessoa conhecedora do assunto, para o proveito das mesmas e felicidade da Pátria que precisa da mocidade, forte e sadia”622. O número seguinte do boletim procurou reforçar a argumentação sobre o papel da mulher. Dessa vez, ele reproduziu um artigo científico de uma publicação da Revista de Educação Física do Rio de Janeiro, cujo autor, o médico Humberto Ballariny, era presidente da Sociedade de Medicina da Educação Física do Rio de Janeiro623. De acordo com a publicação, a “Sublime missão destinada a mulher é a maternidade e toda sua formação física, moral e intelectual, deve visar a esse nobre objetivo”. Nesse sentido, a mulher não deveria praticar esportes agressivos e violentos, como o futebol, pois essa modalidade é considerada “Anti-higiênico e contrário a natural inclinação feminina”624. Os dois documentos apresentados permitem algumas inferências sobre a representação que parte da elite intelectual tinha e reproduzia sobre a mulher e seu papel no processo de disciplinarização da família. Nessa ótica, a mulher 621 Conselho de Assistência e Proteção aos Menores. Manaus, 10 de fevereiro de 1941.nº104. 622 Conselho de Assistência e Proteção aos Menores. Manaus, 10 de fevereiro de 1941.nº104.

623 Conselho de Assistência e Proteção aos Menores. Manaus, 18 de fevereiro de 1941. Nº 105

624 Conselho de Assistência e Proteção aos Menores. Manaus, 18 de fevereiro de 1941. Nº 105.

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ainda era percebida como ser emotivo, de compleições frágeis e tendência natural à maternidade. Deveria, portanto, ser educada para esses papéis, o de esposa, mãe e guardiã da família. Nesse sentido, o esporte que viesse a praticar deveria realçar a graça, a feminilidade, a beleza e a harmonia dos traços físicos da mulher, afinal, os homens apreciavam essas qualidades consideradas da “natureza” feminina. Os esportes que pudessem comprometer a saúde ou “deformar” o corpo feminino, retirando os traços delicados e delgados, deveriam ser evitados, sendo recomendados apenas aqueles que viessem a “Fortalecer a musculatura da bacia”, o que poderia contribuir para uma gravidez tranquila. O argumento médico, utilizado na publicação do boletim do Conselho, tinha como finalidade demonstrar para os leitores o respaldo científico que conferia autoridade para falar sobre o tema, devendo ser merecedor de respeito e credibilidade. Para além dessas questões, a documentação revela que embora, nos anos 30 e 40, a mulher tivesse acesso a Curso Superior, anteriormente considerados exclusivamente masculinos, como exemplo os cursos de Medicina e Direito, ela ainda era representada como possuidora de características que as encaminhavam para o espaço do lar, da família, do qual seria a guardião natural625. À mulher manauara empobrecida também foi atribuído papel de destaque, embora não nas mesmas proporções que as mulheres das elites. Segundo publicação no boletim do Conselho, [...] a mulher proletária, mãe da Pátria porque fornece homens para o Exército do Brasil, para o nosso comércio, lavoura e a nossa indústria. Poderá, entre nós, trabalhar ao lado do seu companheiro na rude faina de todos os dias, graças à assistência que lhe será dispensada pela Creche que funcionará em Manaus[...] a casa que protegerá o menino que não pode ter “ama” nem conforto em sua própria casa quando a mãe, premida pela necessidade, vê-se obrigada ela própria, ganhar o pão de cada dia626.

625 Sobre o acesso de mulheres aos cursos universitários na cidade de Manaus, ver: CAMPOS, Luciane Maria Dantas de. Educar para Emancipar: a instrução feminina em Manaus. In: Fronteiras do Tempo: revista de estudos amazônicos. n.2, jan/dez 2011. A historiografia local vem produzindo importantes trabalhos sobre a presença feminina nos diversos espaços da cidade de Manaus 626 Conselho de Assistência e Proteção aos Menores. Manaus, 18 de março de 1944. nº192.


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A documentação, além de evidenciar as condições de vida das mulheres das famílias empobrecidas de Manaus, revela o espaço social por elas ocupado na cidade e o quanto contraditava os papeis atribuídos a tais mulheres em relação àquelas pertencentes às famílias das elites. Como bem revela a publicação do boletim do Conselho, a mulher proletária merecia o papel de mãe da Pátria, por ser ela quem abastecia o país com mão de obra, quer como trabalhadores, quer como soldados. A construção de uma creche se fazia necessário para que ela pudesse exercer seu papel junto à família. Com efeito, para garantir o “pão de cada dia”, as mulheres manauaras estavam presentes nos mais diversificados espaços dos mundos do trabalho. Para além dos serviços de domésticas, costureiras, lavadeiras, camareiras, vendedoras de doces e outras mercadorias, de atendentes em botequins, dentre outros serviços, também poderiam ser encontradas dirigindo os bondes nas ruas da cidade. A mão de obra feminina também era muito requisitada para os trabalhos nas fábricas de beneficiamento de castanha e de borracha. O Jornal do Comércio, de 1943, registra que cerca de sessenta mulheres trabalhavam nas dependências da Fábrica Hévea, operando máquinas de laminar e nos serviços de secagem e embalagem de borrachas627. As fábricas de beneficiamento de castanha também fizeram largo uso da mão de obra feminina, tanto adulta quanto criança. Trabalhando em ambiente nocivo e impróprio para a saúde, exerciam longas horas de trabalho, muitas vezes se prolongando pela noite adentro. As mulheres trabalhadoras das fábricas de beneficiamento de castanha “Alimentam-se muito mal, respiram mal, bebem da pior água, não tem direito de alimentar os filhos novinhos que deixam em casa também se acabando de fome”628. Enquanto para as mulheres das elites caberiam os papéis de mãe, esposa e dona de casa, para as mulheres das famílias empobrecidas caberia o papel de

627 Jornal do Comércio, nº 13326. Manaus, 07 de setembro de 1943.p.6; CAMPOS, Luciane Maria Dantas de. Trabalho e emancipação: um olhar sobre as mulheres de Manaus (1890-1940) Dissertação de Mestrado UFAM, 2010.

628 Organização de Assistência e Serviço Social no Amazonas. Manaus: Imprensa Pública, 1941. p.12 e 13. Sobre a presença de mulheres nos mundos do trabalho na cidade de Manaus, indicamos: PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte (org.) Gênero & imprensa na História do Amazonas. Manaus: EDUA, 2014.

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trabalhadora. O que lhes tirava o tempo para cuidar do filho, da família e da própria saúde, devido às longas jornadas de trabalho. Orientações sobre as formas de educar os filhos foram frequentes nas páginas do boletim do Conselho na capital amazonense. Em uma longa matéria, cujo título em letras garrafais anunciava que a missão dos pais é a maior missão do mundo, o terceiro número do boletim do Conselho discorria sobre diversas orientações relacionadas ao tratamento a ser dispensados aos filhos, deixando muito claro o papel que se esperava dos pais629. O título já enunciava a dimensão da responsabilidade deles diante da prole, pois, para além da criação do filho, a formação da criança seria a missão maior. Nesse sentido, o excesso de proteção e a excessiva demonstração de carinho eram reprovados, por contribuírem para tornar as crianças em adultos inseguros e incapazes de assumirem responsabilidades sobre si. O autoritarismo também não era recomendado, sendo aconselhada a parcimônia nas atitudes em relação aos pequenos630. Tais recomendações evidenciam a preocupação na formação dos futuros cidadãos, devendo esses ser seguros de si, resolutos e capazes de bastar-se a si próprios. De acordo com o Conselho, sendo os pais a “Força, a autoridade e o exemplo para a criança”, estariam, portanto, “Sobrecarregados de responsabilidades, mandados para instruir e formar, por sua vez, uma pessoa humana, fraca e ignorante”, a criança. Caberia aos pais plasmar nessas pequenas almas valores e sentimentos. Por ser a criança “Ignorante em todas as coisas”, os pais seriam “Sabedores de mil coisas”, logo, possuíam autoridade de fato. Pela força e pela experiência, os pais se constituíam em autoridade631. Reconhecendo e submetendo-se desde cedo à autoridade paterna, seria possível, mais tarde, esses pequenos curvarem-se a outra autoridade, à do conhecimento científico. Assim, nas escolas, as crianças deveriam ser submissas aos mestres632. Nesse sentido, percebemos que a missão da família estava não apenas na garantia de formar cidadãos fortes e saudáveis fisicamente, mas, principalmente, torná-los fortes de espíritos, porém, dóceis e submissos, afeitos à hierarquia. A mortalidade infantil na cidade de Manaus havia alcançado índices alarmantes, resultando na morte de 36.000 crianças “Em quarenta e cinco anos 629 Conselho de Assistência e Proteção aos Menores. Manaus, 20 de junho de 1938. Nº 3. 630 Conselho de Assistência e Proteção aos Menores. Manaus, 20 de junho de 1938. Nº 3.

631 Conselho de Assistência e Proteção aos Menores. Manaus, 14 de dezembro de 1943. nº 182. 632 Conselho de Assistência e Proteção aos Menores. Manaus, 14 de dezembro de 1943. nº 182.


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de República”633. De acordo com o Conselho, a ausência de exames pré-nupciais poderia ser considerada como causa de grande parte das moléstias que acometiam as crianças brasileiras nos primeiros anos de vida. Acreditava-se que, sendo os pais portadores de doenças e contraírem casamento, os filhos gerados desses enlaces, inevitavelmente, seriam seres fracos, doentes e débeis634. Embora o exame pré-nupcial possa ser encontrado no século XIX e, no decorrer das duas primeiras décadas do século XX, fosse tema debatido no Brasil, como assevera Fábio Voitechen, foi somente a partir de 1920 que houve intensificação dessas ideias, no sentido de tornar compulsório a todos os nubentes a apresentação de atestados médicos, comprovando não serem portadores de nenhuma doença para ter direito ao casamento na forma da lei635. Para o autor, inicialmente, o exame pré-nupcial foi pensado pelos sanitaristas brasileiros, sendo que, a partir das décadas de 20 e 30, passou a ser amplamente defendido por aqueles que seguiam as ideias da eugenia636. Foi fundamentado nas ideias eugênicas que o renomado médico sanitarista Alfredo da Matta, deputado pelo estado do Amazonas, enquanto membro da Assembleia Nacional de Constituinte de 1933/1934, defendeu com veemência que as práticas eugênicas constassem na Carta Magna que estava em elaboração. Para Alfredo da Matta, o Artigo 110 do anteprojeto da constituição, que tratava sobre família, ao estabelecer ser de competência do Estado “Velar pela pureza, sanidade e melhoramento da família”, atribuía a este a responsabilidade pelas condições físicas e mentais das proles a serem geradas por tais famílias637. Nessa perspectiva, seria responsabilidade do Estado “Salvaguardar os múltiplos e sagrados interesses da população e do país”. Diante disso, estabelecer a obrigatoriedade do exame pré-nupcial seria 633 Mensagem do Governador Álvaro Maia à Assembleia Legislativa do Amazonas. 1936. p. 128.

634 Conselho de Assistência e Proteção aos Menores. Manaus, 11 de janeiro de 1943. Nº 156. A tentativa de tornar obrigatório o exame pré-nupcial foi motivo de amplos debates entre os constituintes durantes os trabalhos realizados na Assembleia Nacional para elaboração da Constituição de 1934. 635 VOITECHEN, Fábio. O Exame Pré-nupcial nas páginas da imprensa jornalística, nas teses médicas e na Assembleia Nacional Constituinte (1926-1934). Dissertação de Mestrado. UFSC: 2015.p.28 636 VOITECHEN, Fábio. O Exame Pré-nupcial nas páginas da imprensa jornalística, nas teses médicas e na Assembleia Nacional Constituinte (1926-1934). Dissertação de Mestrado. UFSC: 2015.p.11. 637 Anais da Biblioteca Nacional Constituinte (1933/1934). v. IX, 1936. p. 179a190

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uma “Medida social, patriótica e humanitária”. O ilustre deputado se reporta ao exemplo dos cuidados dispensados com as criações de animais, nas quais se procura selecionar os parceiros que vão se acasalar, no sentido de obter o melhor resultado na procriação. Entretanto, ao tratar dos seres humanos, tais medidas não eram adotadas, lamentava o deputado. Como resultado desses descuidos, o casamento entre portadores de “Doenças morais e sociais”, inevitavelmente resultaria na reprodução de surdos-mudos, cegos, idiotas, epiléticos, débeis mentais e criminosos638. Os debates promovidos na Assembleia Nacional Constituinte, para adoção da obrigatoriedade do exame pré-nupcial, revelam a família desejada por parte dos constituintes: famílias compostas por sujeitos saudáveis, de hábitos higiênicos morais e físicos. Os argumentos apresentados por Alfredo da Matta, nesses debates, reforçam as evidências de que parte da elite amazonense compartilhava desse ideal de família, bem como compartilhava com os meios a serem utilizadas no sentido alcançá-lo: o interdito à procriação àqueles que não se enquadrassem na representação de família almejada. Nessa perspectiva, muitas das orientações de higiene infantil constante no boletim do Conselho tiveram por finalidade tentar remediar o “mal” causado por tais uniões. Os cuidados, reiteradamente propagandeados, seriam “A melhor maneira de criar os filhos sadios e fortes, pois hoje, mais do que nunca, o mundo é dos fortes”639. Todavia, reduzir o número de mortalidade infantil era tarefa hercúlea em uma cidade como Manaus, onde as crianças não recebiam alimentação adequada. Com essa preocupação as páginas do Conselho orientam sobre a importância de uma alimentação balanceada para constituição de organismos saudáveis. Artigos esclarecendo sobre os males causados pelo excesso de doces e guloseimas em detrimento de outros tipos de alimentos eram frequentes. Nessas publicações a importância do leite, considerado alimento quase 638 Anais da Biblioteca Nacional Constituinte (1933/1934). v. IX, 1936. p. 179a190. Para aprofundamento desse tema, ver: STEPAN, Nancy Leys. A Hora da Eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005; PEIXOTO, Priscila Bermudes. Até que a Eugenia nos separe: raça, saúde e a proposta do exame médico pré-nupcial no Brasil (19181936). Dissertação de Mestrado. Franca: Universidade Estadual Paulista. 2017; VOITECHEN, Fábio. O Exame Pré-nupcial nas páginas da imprensa jornalística, nas teses médicas e na Assembleia Nacional Constituinte (1926-1934). Dissertação de Mestrado. UFSC: 2015 639 Conselho de Assistência e Proteção aos Menores. Manaus, 11 de janeiro de 1943. Nº 156


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insubstituível na alimentação, era ressaltada, destacando as propriedades e benefícios trazidos pelo produto. A carne bovina, de acordo com as orientações do Conselho, também deveria estar presente com mais frequência no cardápio dos pequenos propiciando uma alimentação balanceada com vitaminas, ferro e outros nutrientes. De acordo com o Conselho, “Cuidar da alimentação infantil, é fazer uma obra de amparo às fontes mais vivas do progresso do país”640. Ao propagandear os benefícios atribuídos ao leite e outros alimentos por conta dos nutrientes, as orientações do Conselho desmereciam os hábitos alimentares de certas regiões do País, que priorizavam em suas cozinhas outras formas de alimentação, no nosso caso, a Amazônia. Conforme foi evidenciado por Érico Muniz em pesquisa sobre a alimentação na agenda política brasileira, os alimentos tradicionais da região amazônica, como as diversas espécies de peixe e a mandioca, foram percebidos por profissionais da nutrição como ordinários, deficientes em elementos nutritivos, que pouco ou em nada contribuíam para melhorar a constituição física de suas gentes641. Procurando atuar em todas as esferas da vida das crianças, o Conselho não deixou de contemplar nem mesmo o recreio infantil. Professores e orientadores de educação física, recreação e jogos, percebiam nesses momentos de sociabilidade uma forma de instruir os pequenos na resolução de problemas que poderiam se deparar na vida real. Nesse sentido, recomendavam posturas a serem adotadas durante a brincadeira, de modo a estimular a autonomia da criança. Logo, seria importante que as crianças realizassem as atividades sozinhas, a fim de aprenderem a resolver obstáculos enquanto adultos. Deveriam ser facultadas aos pequenos formas de brincar independentes, exercitando a mesma 640 Conselho de Assistência e Proteção aos Menores. Manaus, 11 de outubro de 1939. nº56. Em pesquisa sobre o período varguista, Erico Muniz destaca o papel do Serviço de Alimentação da Previdência Social (SEAPS), no sentido de difundir o que se considerava noções de boa alimentação. Nessa perspectiva, “Campanhas publicitárias educativas a favor do consumo da soja, farinha de casca de ovo, banana, dentre outros alimentos, foram divulgados no sentido de alcançar o trabalhador e sua família”. MUNIZ, Erico Silva. Melhorar a alimentação do Trabalhador Nacional: o papel da assistência social e da educação no Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS), 1940-1967. Site: http://www.academia.edu/1788488/_Melhorar_a_ alimenta%C3%A7%C3%A3o_do_trabalhador_nacional_O_papel_da_assist%C3%AAncia_ social_e_da_educa%C3%A7%C3%A3o_no_Servi%C3%A7o_de_A Acesso: 20 de março de 2016 641 MUNIZ, Érico Silva Alves. A Ciência e a Mandioca: os hábitos alimentares na Amazônia e a obra de Dante Costa. Revista Estudos Amazônicos. Vol. XI, n.2. 2015. pgs.56-80. http://www. ufpa.br/historia/Estudos%20Amazonicos/2015/Erico%20Muniz.pdf acesso:01 de outubro de 2018.

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tarefa quantas vezes fosse necessário para alcançar o resultado pretendido. Os pais deveriam evitar querer ajudá-las na concretização das brincadeiras, pois, através dessas atividades, elas desenvolviam “O sistema muscular, aprendiam a coordenar o movimento e, também, as emoções; assim ela vai ganhando independência, iniciativa e força de vontade”642. Os brinquedos desejáveis seriam aqueles que estimulassem a imaginação da criança; os brinquedos de madeira, para construção; as peças, para montagem; os artefatos, para desenvolver o raciocínio643. Os jogos, os passeios ao campo, as praias, as brincadeiras em grupos também deveriam ser estimuladas e praticadas com frequência, segundo o Conselho. Correr, pular, brincar de bola, de balanço, seriam essas as atividades saudáveis, quando realizadas nos espaços da casa, no espaço privado, e sempre acompanhadas pelo olhar de um adulto644. Tais brincadeiras seriam as desejadas para a infância. Entretanto, essas brincadeiras não serão exatamente aquelas vivenciadas pela maioria das crianças de Manaus. As ruas da capital amazonense, na área central e nos bairros mais distantes, eram os espaços prediletos para as brincadeiras de meninos e meninas. De dia ou a noite, grupos de crianças entrecortavam ruas e quintais com brincadeiras infantis, muitas vezes despertando insatisfação por parte de alguns adultos e dos administradores públicos, que, embora sem êxito, tentaram de diversas maneiras extirpar essas formas de entretenimento. Brincadeiras, como o papagaio de papel, a bolinha de gude, o futebol, o pião, a baladeira, o futebol, dentre outras formas de diversão e sociabilidade, foram duramente combatidos pelos órgãos de vigilância e repressão. No entanto, a despeito do aparato repressor criado com a finalidade de coibir tais práticas, tudo indica que as famílias não aceitavam as novas formas de viver e fazer. Nossa assertiva se fundamenta na farta documentação do Juizado de Menores, que frequentemente publicava na imprensa manauara o elevado número de brinquedos e crianças apreendidos pelos comissários de menores 645.

642 Conselho de Assistência e Proteção ao Menor. Manaus, 18 de dezembro de 1939. Nº58. 643 Conselho de Assistência e Proteção ao Menor. Manaus, 27 de dezembro de 1939. Nº59. 644 Conselho de Assistência e Proteção ao Menor. Manaus, 18 de dezembro de 1939. Nº58.

645 PESSOA, Alba Barbosa. Infância, sociabilidade e disciplinarização na Manaus dos anos 30 e 40. Canoa do Tempo. Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas. v.10. n.2º. 2018. p.103-118.


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Percebemos que o Conselho atuava de forma incisiva e invasiva sobre as famílias, estabelecendo o que seria adequado para seus filhos. Atuando para formação de modelos de crianças almejadas, o Conselho interferia diretamente sobre essas famílias, procurando gerir os procedimentos adotados pelos pais para criação dos filhos. Invasiva, porque deixava de atuar apenas sobre a permanência de crianças nas ruas, passando a interferir diretamente na vida privada dessa população. Ao indicar as formas adequadas que os pais deveriam se dirigir aos filhos, a alimentação e a higiene adequada, as formas de sociabilidades e brincadeiras que deveriam ser permitidas e estimuladas a tais crianças, o Conselho revela o quão longo era o alcance do braço do Estado, espraiando-se por todos os espaços públicos e invadindo sem licença o espaço privado. Sem licença, porque, ao estabelecer o desejado, o adequado, o Estado colocava sob a roupagem de inadequado e indesejável antigas formas de viver dessa população. Os anúncios de remédios publicados na imprensa manauara podem evidenciar iniciativa de particulares em educar os pais nos cuidados, na educação/ formação dos filhos. A Casa Bayer, ao divulgar os comprimidos de Eldoformio como o medicamento mais eficaz e mais indicado pelos médicos no tratamento da diarreia, alertava que as mães devem saber... No dia em que a maioria das mães tiverem noções de hygiene e puericultura, a mortalidade infantil diminuirá de maneira notável, como se tem registrado em vários países. Um dos preceitos mais elementares, e que se deve tornar bem difundido, é o de que as crianças alimentadas ao seio raramente adoecem, são mais fortes e sadias646.

O anúncio, em perfeita consonância com os ensinamentos e costumes que se pretendia incutir, prosseguia discorrendo sobre os males oriundos da alimentação artificial; e sobre a necessidade de a criança se alimentar em horários e doses adequadas. Reforça a necessidade do acompanhamento de um especialista, dessa maneira, “As mães que não tem conhecimentos destes assumptos, devem procurar um posto de hygiene infantil ou um médico especialista para receber as instruções necessárias” no sentido de evitar que as crianças fossem acometidas de diarreias, para as quais o melhor tratamento 646 Jornal do Comércio, nº 11086. Manaus, 3 de fevereiro de 1937. p.3

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seria “os comprimidos de Eldeformio, da Casa Bayer, que fazem normalizar rapidamente, as defecções”647. No mês seguinte, o Jornal do Comércio publicou nota comercial propagandeando o referido produto da Casa Bayer, dessa vez, destacando o empenho das escolas consideradas modernas na propagação das normas higiênicas entres as alunas. As meninas maiores aprendem, em cursos especiais, hygiene do lar e sobretudo puericultura, a fim de melhor se conduzirem quando mães. Também entre nós esta educação vem sendo iniciada. Muitas mães guiam inteligentemente o trato dos filhos porque receberam estas importantíssimas instrucções nas escolas que frequentaram648.

A nota prossegue enaltecendo o avanço de práticas higiênicas entre a população, e somente por meio dos conhecimentos da puericultura poderá ser reduzido o elevado número da mortalidade infantil. Entretanto, a propagação de tais conhecimentos ainda era insuficiente, pois o anúncio alerta para o fato de “A educação sanitária das mães deve, entretanto, diffundir-se nas classes menos favorecidas, por meio de publicações bem claras e comprehensiveis, e de palestras feitas por enfermeiras visitadoras”. Alertava-se que as mães não deixassem de procurar o auxílio do médico especialista nos primeiros sintomas de diarreia, pois seria recomendada a medicação adequada, dentre elas o Eldeformio da Casa Bayer, que “Combate a diarreia da criança e adultos, com a vantagem de auxiliar a rápida restauração da mucosa intestinal”649. A documentação acima referenciada reforça e evidencia algumas questões muito significativas no processo de tentativa de educação dos pais de famílias empobrecidas da cidade de Manaus. À mãe, era dedicada atenção especial, pois, por meio dela, se pretendia modificar hábitos e incutir novos costumes aos demais membros da família. Com essa finalidade, nas escolas, tais ensinamentos eram ministrados para alunas maiores, futuras mães, que teriam papel de disseminar seus conhecimentos. Entretanto, como evidencia a documentação, tais preceitos higiênicos não estavam alcançando o alvo principal desse 647 Jornal do Comércio, nº 11086. Manaus, 3 de fevereiro de 1937.p.3 648 Jornal do Comércio, nº 11133. Manaus, 30 de março de 1937.p.3 649 Jornal do Comércio, nº 11133. Manaus, 30 de março de 1937.p.3


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processo civilizatório: as famílias empobrecidas. Com efeito, os ensinamentos não eram de linguagem acessível e não reverberavam entre as mães das camadas mais pobres. Os anúncios de remédios e informações sobre educação sanitária desvelavam-se em textos longos, sem imagens ou outros recursos didáticos, o que, possivelmente, dificultava a compreensão das leitoras. A grande parcela dessas famílias não sabia ler, pois não tinha acesso às escolas, visto a maior parte de seu tempo ser dedicado para atividades que lhes garantissem o sustento diário. Em outras palavras, embora houvesse a preocupação com a educação dos pais, ela não era realizada de modo a alcançar o público-alvo preferencial desse projeto. Outra questão que pode ser apontada pela documentação é a preocupação com a especialização do conhecimento médico, no caso, a puericultura. Somente àqueles especializados nessa ciência caberia a competência para tratar dos males que afligiam a população infantil. No caso, o médico pediatra. Os anúncios de remédios da Casa Bayer procuravam propagandear não apenas os ensinamentos de higiene que poderiam reduzir a mortalidade infantil, mas também difundir os preceitos eugenistas entre as mães. Nesse sentido, que as mães procurassem ler os manuais com ensinamentos de uma alimentação racionalizada para as crianças e outros ensinamentos indispensáveis para a “Criação de filhos fortes e belos”650. A educação, a partir dessa perspectiva, teria alcance muito maior que o ensinamento da leitura e da escrita. Deveria abarcar “Questões condizentes com a moral, a civilidade e a hygiene”651.

Considerações finais A exposição dos diversos discursos voltados para a educação dos pais nos encaminha para algumas reflexões. Embora todo um aparato burocrático e institucional tenha sido utilizado com a finalidade de ensinar os pais a educarem seus filhos, principalmente os pais de famílias empobrecidas, os meios utilizados muito provavelmente não lograram êxito em alcançar o objetivo almejado, 650 Respectivamente: Jornal do Comércio, nº 11176. Manaus, 19 de maio de 1937.p.3; Jornal do Comércio, nº 11452. Manaus, 6 de abril de 1938. p. 3

651 Jornal do Comércio, nº 11801. Manaus, 25 de maio de 1939. p.3. Para estudos sobre a infância nas propagandas de jornais e revistas para outras cidades do Brasil, ver: BRITES, Olga. Infância, Higiene e Saúde na Propaganda (usos e abusos nos anos 30 a 50). Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 20, nº 39, p. 249-278. 2000.

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visto não levar em consideração as formas de viver dessas famílias e as condições materiais nas quais viviam. No que se refere às formas de união conjugal, a imposição do casamento civil, como observamos anteriormente, esbarrava nos arranjos familiares promovidos por essas famílias. Quanto à saúde, os discursos que para elas se voltaram, seja por meio dos boletins do Conselho, seja por meio de anúncios de remédios, cartilhas, dentre outros, na maioria das vezes, pareciam destinados às famílias mais privilegiadas economicamente. A forma de divulgação dessas informações, a linguagem culta e os exemplos utilizados, restringiam o acesso para a grande maioria das famílias manauaras, dificultando a vulgarização de práticas preventivas. Em todos os números do Conselho de Assistência e Proteção aos Menores por nós trabalhados, as matérias e artigos não aparentam ser endereçadas a um público com pouco conhecimento das letras. Nas diversas orientações sobre como educar as crianças, identificamos práticas comuns às famílias mais abastadas. Ou seja, o direcionamento, que se pretendia dar aos pais no encaminhamento de seus filhos, esbarrava no fato de tais discursos contraditarem com a realidade material dessas famílias. Ao almejar que a mulher pudesse atender todas as necessidades dos filhos, auxiliando e acompanhando o seu desenvolvimento, ignorava-se que a maior parcela das mães manauaras passava a maior parte do seu dia no trabalho, exercendo jornadas excessivas, dispondo de pouco tempo para os filhos. Conforme assinalamos, a mulher ocupava ativamente os espaços dos mundos do trabalho, muitas vezes exercendo as mesmas atividades e jornadas de trabalho dos homens652. De forma semelhante, percebemos contradição no que se refere ao conteúdo propriamente dito das orientações sobre alimentação e higiene para as crianças. Os jornais do período demonstram que as condições de vida das famílias empobrecidas manauaras eram de extrema precariedade. Que o elevado preço dos alimentos de primeira necessidade impedia que tais famílias tivessem em seus cardápios diários os nutrientes necessários. Diariamente, o jornal A Tarde denunciava o elevado preço dos gêneros alimentícios na cidade 652 Sobre o trabalho feminino na cidade de Manaus, ver: PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte Pinheiro. Folhas do Norte: letramento e periodismo no Amazonas (1890-1920). Tese de Doutorado. São Paulo: PUC. 2001.MENEZES, Bianca Sotero de. Imprensa e Gênero: A condição feminina e as representações da mulher amazonense na imprensa provincial (1850-1889). Dissertação de Mestrado. UFAM, 2014..


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de Manaus, o que impedia o acesso da população carente aos produtos de primeira necessidade. Frutas, carne e até mesmo o peixe, considerado alimento básico no estado do Amazonas, vinham alcançando preços exorbitantes653. Como sugerir que os pais adotassem uma alimentação mais saudável para as crianças, composta com leite, carne e vitaminas, se questões socioeconômicas, como a carestia, cotidianamente precarizavam a alimentação das famílias trabalhadoras? A denúncia por parte da imprensa desnudava as contradições existentes entre o que se recomendava para a população e as condições objetivas, em que as famílias empobrecidas estavam submetidas. Para além de evidenciar a disparidade existente entre o enunciado disciplinador e a objetivação do discurso, a materialização dessas ideias demonstra que tais discursos eram passíveis de críticas. Longe de figurar como consenso, eram denunciados pela imprensa como falaciosos. Reforça nossa assertiva a publicação do jornal A Tarde sobre o problema de moradia na cidade de Manaus. Problema que afetava diretamente grande parte da população empobrecida. Sem domicílio próprio, morar em casa alugada era a única alternativa para milhares de famílias, o que comprometia ainda mais o orçamento doméstico. A crescente especulação em torno dos aluguéis foi motivo de denúncia por parte do periódico A Tarde. Assim, afirmava-se que a população pobre diante dos elevados preços dos alimentos e do preço do aluguel se via diante de um dilema: ou se alimentava ou pagava o aluguel. Nas palavras do jornal, “Ou paga a casa e não come ou come e não paga a casa”654. Quanto ao leite, tão recomendado para as crianças, era comercializado a valores inacessíveis, que tornavam impossível incluir na dieta alimentar dessas famílias. Na primeira página de A Tarde, do ano de 1943, o periódico questiona: “Beba mais leite. Mas como”655? Outras formas de periódicos permitem dar vazão a vozes destoantes nessa tentativa de disciplinarização. Esse é o caso da Revista de Educação, da Sociedade Amazonense de Professores, publicada em dezembro de 1938, na qual está registrado o apelo feito pela professora Lucilla de Freitas ao prefeito da cidade de Manaus. Ela, ao enaltecer a distribuição de leite às crianças 653 Respectivamente: A Tarde. Manaus, 23 de julho de 1937. Nº132 p.03; A Tarde nº1882, Manaus, 30 de abril de 1943. p.1. 654 A Tarde. Manaus, 14 de janeiro de 1938.nº276. p.1. 655 A Tarde. Manaus, 05 de abril de 1943.nº 1862 p.1.

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manauaras em decorrência da Semana da Criança, ocorrida no mês de outubro do mesmo ano, o fez com severas críticas às condições de vida desses pequenos. Segundo Lucilla, Bendita a ideia de quem, na Semana da Criança, lembrou a distribuição do “copo de leite” aos pequenos escolares da capital. Está provado que a palavra cheia de ensinamentos, a palavra confortadora e amiga muito contribue para plasmar o caracter do homem de amanhã! Que resultado advirá, no entanto, se esta palavra for propagada no ambiente da criança miserável desnutrida pela insuficiência de alimentação, pela criança mirrada pela doença Uma negativa bem dolorosa! A Revista de Educação, confiada na boa vontade do Prefeito Dr. Antonio Maia, faz-lhe, respeitosamente daqui um apelo em nome da criança pobre que mora nos subúrbios da cidade: -Mandae fornecer, Dr. Antonio Maia, diariamente um copinho de leite à criança desprotegida da sorte que reside em Flores ou em São Raymundo, em Constantinópolis ou na Colônia Oliveira Machado, em todos os recantos, enfim da pobreza esquecida! E essa gotazinha de leite, Sr. Prefeito, realizará o milagre do surge et ambula e, teremos então, em dias porvindouros, a criança amazonense forte e robusta, a proclamar por sua boca rosada a grandeza de sua terra, a cooperar, portanto, nesta ou naquela profissão, por um Brasil melhor e sempre livre!656

O apelo da professora em auxílio das crianças pobres, para além de reforçar nossa reflexão anterior sobre o quão era infactível a materialização da proposta de disciplinarização voltada para as famílias economicamente desfavorecidas, demonstra a insatisfação de setores sociais frente às condições vivenciadas pelos mais pobres. Para a professora Lucilla, um copo de leite por ano não transformaria crianças miseráveis, raquíticas e desnutridas em cidadãos robustos, belos e trabalhadores, dispostos ao sacrifício pela Pátria. Muito pelo contrário. Para ela, a tentativa de plasmar na alma das crianças valores como 656 Revista de Educação, n° 92. Manaus: dezembro de 1938. p.19.


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amor ao trabalho e à Pátria seria tarefa fadada ao insucesso, se a esses pequenos não fossem oferecidas melhores condições de vida. Por fim, ilustra a condição de miséria na qual vivia a maior parte da população: a festa ocorrida em 1943, pela passagem natalícia do Círculo Operário de Manaus. Durante o festejo, no qual compareceram mais dois mil operários, “Foram distribuídos dois mil pratos de sopa, tendo o Interventor, com altas autoridades, tomado o seu prato de sopa, confraternizando-se com a pobreza operária”657.

657 Diário Oficial do Estado do Amazonas. Manaus, 07 de junho de 1943. p.3.

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SOBRE OS AUTORES

Admarino Gonçalves de Matos Junior – Mestre em História Social da Amazônia pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Amazônia – PPHIST/Universidade Federal do Pará – UFPA e membro do Grupo de Pesquisa Militares, Política e Fronteira na Amazônia, Belém, PA, Brasil. Adnê Jefferson Moura Rodrigues – Doutorando em História da Ciência e da Saúde (Casa de Oswaldo Cruz/FIOCRUZ). Mestre em História Social pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor de História/Historiador e Pedagogo. Alba Barbosa Pessoa – Professora da Secretaria de Educação do Estado do Amazonas. Doutora em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Pará (UFPA). Coordenadora do GT Mundos do Trabalho seção Amazonas, biênio 2020/2021. Edivando da Silva Costa – Doutor em História pela Universidade Federal do Pará. Docente da Escola de Aplicação da Universidade Federal do Pará. Elias Diniz Sacramento – Professor da Faculdade de História do Campus Universitário do Tocantins/Cametá da Universidade Federal do Pará. Presidente da Fundação Virgílio de Educação – Moju. Doutorado em História pela Universidade Federal do Pará. Franciane Gama Lacerda – Professora da Faculdade de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Pará. Giane Lucelia Grotti – Doutora em Educação, Professora da Universidade Federal do Acre e do Programa de Pós-Graduação de Mestrado em Educação (PPGE). Membro do grupo de Pesquisa (NEPIE/UFPR) e do (GEPPEAC-UFAC).


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Isadora Bastos de Moraes – Técnica Administrativa em Educação da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA). Doutoranda em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará. Marcelo Ferreira Lobo – Professor da Secretaria da Educação Básica do Ceará. Doutorado pelo Programa de Pós-graduação História da Universidade Federal do Pará (2019) UFPA; Mestrado em História UFPA (2015). Licenciatura e Bacharelado em História pela mesma instituição (2010). Raíssa Cristina Ferreira Costa – Mestre em História social pelo PPHIST – UFPA (2021), atualmente é doutoranda no mesmo Programa de PósGraduação e é membro do Grupo de Pesquisa Escravidão e Abolicionismo na Amazônia (GEPEAM). Graduada em História Licenciatura e Bacharelado na UFPA (2016). Victor Hugo do Rosario Modesto – Graduado em Licenciatura em História (UFPA) e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia (UFPA), atualmente desenvolvendo doutorado pelo mesmo programa, e vem se dedicando ao estudo da História Social de Crianças e Menores de Idade no Brasil Imperial, com ênfase na Amazônia brasileira. Wanessa Carla Rodrigues Cardoso – Professora Classe II vinculada à Secretaria de Estado de Educação do Pará (SEDUC/PA). Doutora em História Social da Amazônia pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Pará (PPHIST/UFPA). Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Pará (PPGED/UFPA). Especialista em Estudos Culturais da Amazônia (UFPA). Graduada em História pela Universidade Federal do Pará. Ygor Olinto Rocha Cavalcante – Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas – IFAM. Mestre em História Social da Amazônia pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPGHISTORIA/ UFAM) em que desenvolve, atualmente, pesquisas sobre protagonismo estudantil em nível de Doutorado.




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