Resistir, (Re)existir e Reinventar II - Capítulo 11

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DOI: doi.org/10.29327/565971.1-11

Corpos Negros em Videoclipes de Artistas Brasileiros: Temas Potenciais na Formação de Professores de Biologia Black Bodies in Brazilian Artists' Video Clips: Potential Topics under Discussion in Biology Teacher Education Amanda Lima1 Francine Pinhão2 Geovana Rodrigues3 Tatiana Galieta4 1 Licenciada em Ciências Biológicas. Mestre e Doutora em Educação em Ciências e Saúde pelo Instituto NUTES/UFRJ, no Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Professora Assistente da Faculdade de Formação de Professores (FFP), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atua na formação inicial e continuada de professores de Ciências e Biologia, com interesses de pesquisa e extensão em comunidades de prática e processos de didatização de questões socialmente vivas. E-mail: amandalimaffp@gmail.com 2 Licenciada em Ciências Biológicas. Mestra e Doutora em Educação em Ciências e Saúde pelo Instituto NUTES/UFRJ. Professora Adjunta na FFP/UERJ. Os principais interesses de pesquisa e extensão são: ensino de ciências, saúde e meio ambiente, formação política e cidadania, sexualidade e formação de professores de ciências. - E-mail: francinepinhao@gmail.com /ORCID: https://orcid.org/00000001-5409-5082 3 Cursa Licenciatura em Ciências Biológicas na FFP-UERJ, no Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Foi monitora da disciplina Laboratório de Ensino I, quando esta foi ministrada no Período Acadêmico Emergencial pelas demais autoras. E-mail: geovana.gg@hotmail.com.br 4 Licenciada e Bacharel em Ciências Biológicas. Mestre em Educação em Ciências e Saúde. Doutora em Educação Científica e Tecnológica. Professora Associada da FFP-UERJ, no Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Docente de cursos de graduação e pós-graduação, coordena projeto de extensão, desenvolve e orienta pesquisas na área de Educação em Ciências. Líder do grupo de pesquisa LIQUENS (Leituras e Investigações sobre Questões de Ensino de Ciências e Sociedade). E-mail: tatigalieta@gmail.com / ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3822-1947


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Introdução

A

PANDEMIA da Covid-19 nos impôs uma nova dinâmica de relações pessoais e profissionais, que impactaram, inclusive, as atividades das instituições de ensino superior. Na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), ingressamos em um primeiro período acadêmico emergencial (PAE-1), em agosto de 2020, e, com isso, professores e estudantes tiveram que se adequar ao ensino remoto (com todas as dificuldades e angústias que isso significava). O curso de licenciatura em Ciências Biológicas, da Faculdade de Formação de Professores (FFPUERJ), ao qual estamos vinculadas, teve que seguir as deliberações da universidade, as quais impuseram redução na oferta de disciplinas e limitação de aulas síncronas, entre as que foram ofertadas. Vimo-nos tendo que fazer novos planejamentos e conviver com a incerteza de que as escolhas seriam efetivas para a aprendizagem de nossos estudantes. Nós, autoras deste texto, fomos responsáveis pela organização da disciplina “Laboratório de Ensino I” (LABI), destinada a licenciandos do primeiro período (fase) do curso. A disciplina LABI possui carga horária de 60 horas, e tem como objetivo geral: “compreender o ensino de ciências e biologia, em espaços formais e/ou não formais, a partir das relações entre ciência e sociedade, caracterizando os temas saúde, ambiente e sexualidade como interdisciplinares e contextuais”; e, os seguintes objetivos específicos: “desenvolver capacidade de elaboração e análise de materiais77 para fins de ensino em contextos formais ou não formais; exercitar a escrita e a leitura de textos acadêmicos78; caracterizar as questões/conceitos de saúde, ambiente e sexualidade como interdisciplinares e contextuais, desconstruindo a visão exclusivamente biológica; conhecer as diferentes vertentes de educação ambiental, educação em saúde e educação sexual, estabelecendo relação com o campo Produção de materiais didáticos, como jogos, vídeos, cartilhas etc. e análise de materiais, sobretudo livros didáticos. 78 Artigos e trabalhos apresentados em eventos científicos. 77


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da educação em ciências; reconhecer o corpo humano como híbrido biológico e cultural e o seu potencial para integração das questões de saúde.” (UERJ-FFP, 2005). No PAE-1, a disciplina foi organizada em quatro módulos: histórico do ensino de Ciências no Brasil; corpo humano: conceitos e relações com o ensino de Ciências; saúde e ambiente: conceitos e relações com o ensino de Ciências; e, sexualidade: conceitos e relações com o ensino de Ciências. O curso foi ministrado ao longo de 13 semanas, com 4 (quatro) encontros síncronos, sendo as demais atividades assíncronas, com a abertura de fóruns e avaliações semanais. Cada módulo foi organizado seguindo a escolha metodológica de disponibilizar – para cada semana do curso – textos escritos (artigos, textos de divulgação científica, capítulos de livros), materiais audiovisuais, para consulta e atividades avaliativas. Tentávamos, com isso, contemplar uma variedade de materiais utilizados na disciplina que atendesse às diferentes formas de aprendizagem dos estudantes. Neste texto, focamos na descrição da aula da Semana 4, cujo tema foi “Eugenia e racismo estrutural”, e que está situada no módulo sobre o corpo humano. Para esta aula, os estudantes deveriam realizar a leitura prévia do texto de Munanga (2003), assistir à exposição do prof. Douglas Verrangia (2020) e ouvir o podcast de Ale Santos (2020). A avaliação consistiu na seleção de um videoclipe de algum(a) artista brasileiro(a), estabelecendo relações com os materiais estudados. O objetivo deste texto consiste em identificar os elementos sobre corpo e corporalidade, nos videoclipes selecionados pelos licenciandos, por meio de uma análise descritiva-interpretativa que localizou os temas recorrentes nos audiovisuais. O termo “corporalidade” refere-se “não apenas às características físicas, materiais e biológicas do corpo humano” (GALIETA, 2021, p. 5224). Com ele busca-se “alçar as dimensões do espírito, da alma, da inteligência, do cotidiano, dos sentimen-

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tos dos corpos humanos, aqui, especificamente, dos corpos negros. Dimensões estas que foram apagadas na ciência moderna e negadas aos negros e às negras desde a escravização” (idem). Iniciamos trazendo alguns apontamentos teóricos a respeito do tema da aula e, posteriormente, descrevemos a atividade avaliativa a ela associada, incluindo uma síntese analítica dos elementos relacionados ao/à corpo/corporalidade nos videoclipes selecionados pelos licenciandos. Neste estudo, nos detemos, mais especificamente, nas interpretações das produções textuais dos estudantes, que consistiram na avaliação da aula.

Corpos Negros e eugenia Apesar de a lei 10.639/2003 (BRASIL, 2003) ter completado sua maioridade, vemos ainda a cultura e a história de África e dos afrodescendentes sub-representadas, nos currículos de formação de professores. Em particular, nos cursos de licenciaturas em Ciências da Natureza, pouco abordamos as produções científicas de povos africanos e afrodescendentes, as quais se desenvolveram em epistemes outras e anteriores à ciência moderna. Da mesma forma, a questão racial encontra-se silenciada. Em um espaço construído por brancos e para brancos, nos omitimos (repetidamente) da discussão sobre as violências cometidas, em nome e com chancela de cientistas eugenistas. O papel das ciências, em específico das biológicas, na construção do mito da democracia racial brasileira, precisa ser incluído nas disciplinas universitárias. Como bem destacam Rodrigues, Cardoso e Francchini (2020, p. 73): De forma geral, o silêncio dos professores em relação às situações de discriminação é resultado em parte da ausência desta temática nos cursos de formação, principalmente de formação inicial e pelo ainda influente discurso da democracia racial que supõe que no Brasil não há racismo.


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A partir desse reconhecimento, no campo da Biologia e do ensino de Ciências, torna-se premente o compromisso com práticas de pesquisa, ensino e extensão que denunciem violências constitutivas do campo, e proponham outras lógicas de produção intelectual. Nesse sentido, não é suficiente admitir que, para a Biologia, o conceito de raça é um erro conceitual, pois ainda circulam socialmente discursos pautados na lógica eugenista, dentro e fora da ciência, que devem ser enfrentados e superados (VERRANGIA; GONÇALVES E SILVA, 2010). Fizemos a opção (teórica) de abordar a questão racial, a partir de uma discussão sobre o corpo, um dos eixos centrais de “Laboratório de Ensino I”, e que é utilizado para debatermos questões relacionadas à sexualidade, saúde e meio ambiente. A escolha se justifica tanto pela importância do tema nos currículos escolares quanto pela compreensão de que a estruturação da violência simbólica, cujo resultado é a manutenção das relações de opressão, busca elementos de sua afirmação na materialidade do corpo (BOURDIEU, 2017). Sendo assim, optamos por atravessar todos os conteúdos da disciplina, com discussões sobre classe, raça e gênero. O foco na questão racial, em específico, buscou contribuir para a formação de professores, que sejam preparados para “lidarem pedagogicamente com as relações étnico-raciais vividas no cotidiano da escola”, conforme salientado por Verrangia (2016, p. 97). O corpo humano tem sido um dos principais objetos de estudo da Biologia Moderna79, algo que se reflete no ensino das Ciências Biológicas e, consequentemente, acaba por propagar uma ideia de um corpo focado em seus aspectos biológicos, estruturado de maneira fragmentada e descontextualizada (TRIVELATO, 2005). Essa discussão sobre o corpo não é recente (VARGAS et al., 1988), e vários estudos se debruçaram sobre o tema (ARAUJO et al., 2015). No entanto, realizávamos uma

Consideramos como marco da Biologia Moderna a publicação do livro “A origem das espécies” de Charles Darwin em 1859, o qual inaugura o paradigma evolutivo nas ciências biológicas. 79

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discussão sobre corpo (ser) humano que ainda era marcada pela branquidade, apesar de termos avançado em discussões, por exemplo, sobre as representações de corpos negros em materiais didáticos (SILVÉRIO; MOTOKANE, 2019). Ou seja, a questão racial que atravessa e marca corpos (negros) não tem recebido atenção devida em pesquisas da área de Educação em Ciências. Com isso, negligenciamos as várias formas de corporalidade negra, que se expressa filosófica, cultural e religiosamente, em diversas produções e manifestações. Essa constatação se faz ainda mais grave pelo fato de termos sido um dos países latino-americanos em que o movimento eugênico ganhou expressiva notoriedade no início do século XX. De acordo com Stepan (1991, p. 4), a “história da eugenia na América Latina teria se caracterizado por um tipo especial de conhecimento científico e social produzido e conformado pelas variáveis políticas, históricas e culturais peculiares desta região”. No Brasil, o movimento eugenista teve uma abordagem preventiva/higienista, tomando o rumo do embranquecimento da população, já que o racismo brasileiro sempre foi pautado por características fenotípicas, sobretudo a cor da pele. O principal ator do eugenismo brasileiro foi Renato Kehl (médico e farmacêutico), que passa a disseminar os ideais eugenistas, a partir do ano de 1917. Em seu primeiro artigo, publicado no Jornal do Comércio, ele enfatiza o estudo da hereditariedade e a prática de preceitos eugênicos, visando a “melhoria progressiva da nacionalidade brasileira” (KEHL, 1933 apud SOUZA, 2012, p. 6). A partir da articulação do médico surge, em 1918, a Sociedade Eugênica de São Paulo, a primeira da América Latina. Durante o curto tempo em que está estruturada, há a publicação de vários trabalhos em revistas e jornais, e, com isso, ocorre a disseminação do pensamento eugênico entre a elite brasileira. Nos anos de 1930, ocorreu o auge da ascensão eugenista no Brasil, devido ao I Congresso Brasileiro de Eugenia (1929) e ao contexto internacional (SOUZA, 2012).


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Uma das principais “frentes de pesquisa” eugenista dedicava-se aos estudos anatômicos, sobretudo análises morfométricas, de corpos (cadáveres ou vivos) de homens e mulheres negros/as. As medições cranianas eram utilizadas, para relacionar o crânio do branco a um suposto maior desenvolvimento e, portanto, à maior capacidade intelectual. Um caso notório é o da sul-africana Sarah Saartjes Baartman, conhecida como Vênus Negra, que viveu na Europa no início do século XIX. Ela era exibida e estudada em sessões públicas, para que os presentes pudessem observar suas dimensões corporais “anormais” e “selvagens” (de acordo com o que era considerado “padrão” pelos cientistas europeus). Nesse sentido, o processo de objetificação, desumanização e a hipersexualização do corpo negro, sobretudo da mulher, foi (e é) fundamental para sua opressão e seu silenciamento. Conforme dizem Bezerra et al. (2016, s/p), os instrumentos utilizados nesse processo se perpetuaram historicamente, também, “na relação de traços de selvageria, animalização e incivilidade do corpo negro, em contraponto ao corpo branco relacionado a traços de beleza, engenhosidade, inventividade e progresso”. Após a abolição da escravatura, as teorias eugênicas assumem extrema relevância para o controle da população negra, uma vez que seu status científico lhes confere autoridade para designar políticas públicas racistas. Os corpos negros, que antes eram de propriedade privada do homem branco de origem europeia, agora passam a ser marginalizados, criminalizados e executados, em um regime societário com aspirações democráticas. Eles continuam excluídos da sociedade, com o aval da ciência moderna e de um aparato legal, como, por exemplo, a lei das contravenções penais 3.688/1941 (BRASIL, 1941), conhecida popularmente como “lei da vadiagem”. Entretanto, a dominação e o controle dos corpos pretos não se dão exclusivamente a partir de normas jurídicas e pela criação de regras

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institucionais (muitas das vezes atreladas a um conjunto de leis). A hegemonia de um grupo racial, no caso da sociedade brasileira de homens brancos, ocorre, inclusive, quando “a cultura, os padrões estéticos e as práticas de poder de um determinado grupo” se tornam “o horizonte civilizatório do conjunto da sociedade” (ALMEIDA, 2019, p. 40). Dessa maneira, o domínio – e sua naturalização – do grupo hegemônico (em instituições públicas e privadas) depende “da existência de regras e padrões que direta ou indiretamente, dificultem a ascensão de negros e/ou mulheres” e “da inexistência de espaços em que se discuta a desigualdade racial e de gênero” (ALMEIDA, 2019, p. 41). Ou seja, a negação da presença de corpos (femininos e pretos), em determinados espaços, se dá, também, com a elaboração de percepções culturais e subjetivas que excluem os grupos subalternizados. A resistência passa, portanto, pelo uso dos próprios corpos, como símbolo de luta e de visibilização das causas, em busca do rompimento com a opressão sofrida há séculos. No caso específico do Movimento Negro, destacamos a estética, “a afirmação positiva do cabelo negro, crespo, etnicamente representado por dreads e tranças”, que “é uma forte imagem de luta e resistência utilizada pela população negra desde as senzalas, é a afirmação de uma assunção étnica e construção identitária de uma negritude [...]” (BEZERRA et al., 2016, s/p). No âmbito cultural, ainda nos anos 1970, os bailes black, de Soul music, surgem como um espaço vital de estabelecimento da identidade negra, inclusive pelo cabelo afro/black. No documentário Ôri (1989), Beatriz Nascimento narra o corpo negro e sua presença nesses espaços como a “possibilidade de afirmação ao nível do que eu sou bonito, eu sou forte, de que eu tenho um corpo bom” (NASCIMENTO, 1977 apud RATTS, 2006). O corpo negro, de acordo com a intelectual, “se constitui e se redefine na experiência diaspórica e na transmigração” e “é, em parte, o corpo raptado em África” (RATTS, 2006, p. 65-66). Assim, a inter-relação entre corpo, espaço e identidade pode ser refeita por aqueles (as) que buscam tornarem-se pessoas e não coisas, que procuram e


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constroem lugares de referência transitórios ou duradouros, como o quilombo ou um espaço de diversão (RATTS, 2006), como os bailes black, os bailes funk, as rodas de samba, as batalhas de RAP e break dance. É fundamental, portanto, destacar o elemento cultural no processo de colonização e de embranquecimento, uma vez que a cultura do colonizador (branco europeu) era tida como superior e civilizada. Logo, é imprescindível trazer a resistência negra que se expressa em diferentes manifestações artísticas, entre elas a música e a dança. Através delas, corpos pretos têm preservado memórias, feito denúncias sobre o racismo e anúncios sobre outra forma de se relacionar com o próprio corpo e com o corpo do outro em unidade, em comunidade/comunhão. As memórias expressas por meio de linguagem musical foram, então, o objeto de estudo que circunscrevemos para os licenciandos. A finalidade da atividade foi oportunizar o contato com tais produções culturais, como também desenvolver a capacidade dos licenciandos identificarem o potencial didático para o ensino de Biologia.

Aspectos do/a Corpo/Corporalidade abordados nos videoclipes Sobre a análise A atividade avaliativa consistiu na seleção individual de um videoclipe disponível no YouTube de algum(a) artista brasileiro(a), de qualquer gênero musical, que abordasse o tema corpo e racismo. Após a seleção, eles produziram um texto contendo os seguintes itens: a) informações da obra: nome do artista, título da música, ano da produção, diretor(a) e gravadora/produtora, quando disponível, e o link do site; b) justificativa da escolha do vídeo; c) breve síntese sobre o vídeo; d) destaque de, pelo menos, uma cena ou passagem do videoclipe, que tinha relação com algum tema levantado pelos autores estudados; e) dissertação sobre as perguntas: “Qual tema/assunto de uma aula de Ciências que poderia ser explorado a

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partir do videoclipe selecionado? Por quê? Quais discussões poderiam ser suscitadas a partir da música/vídeo nessa aula?”. As produções textuais foram analisadas, em busca do estabelecimento de diálogos entre os audiovisuais e o tema corpo/corporalidade negra e racismo, além da identificação de elementos didáticos que potencializam discussões antirracistas no ensino de Ciências. A análise foi organizada em duas partes: 1ª) identificação de elementos relacionados ao/à corpo/corporalidade nos videoclipes e posterior agrupamento em categorias definidas, a partir de pesquisa anterior (GALIETA, s/d.); 2ª) interpretações dos estudantes e possibilidades de uso didático dos videoclipes em aulas de Ciências e Biologia. Devido ao limite de extensão deste manuscrito, teremos que apresentar a segunda parte da análise em texto com publicação futura. Galieta (s/d), em pesquisa que teve como objeto de estudo a literatura do rapper Emicida, definiu 7 (sete) categorias temáticas, entre elas: “corporalidade”; “racismo e resistência Negra”; e “ancestralidade e espiritualidade”. A autora identificou os elementos que expressam a corporalidade e que dizem respeito: i) aos sentimentos e às emoções; ii) ao corpo físico, sua anatomia e fisiologia; e, iii) aos processos de amadurecer, envelhecer, crescer (GALIETA, s/d). As outras duas categorias, acima mencionadas, podem se relacionar, potencialmente, às manifestações corporais, uma vez que abordam a escravização dos povos africanos, colonização, violência policial; assassinatos, discriminação racial, segregação, formas de resistência, luta e enfrentamento (categoria “racismo e resistência Negra”) e a manifestação da religiosidade/espiritualidade, através de referências a orixás; rituais de umbanda e candomblé; entidades católicas sincretizadas ou não (categoria “ancestralidade/espiritualidade”). A partir dessas categorias empíricas, os videoclipes foram agrupados em quatro delas, tendo sido a categoria temática “racismo e resistência Negra” subdividida em duas (b e c). São elas: a) sentimentos e emoções; b) corpos negros violenta-


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dos; c) resistência Negra; e d) ancestralidade e espiritualidade. É importante destacar que um mesmo videoclipe poderia ser enquadrado em mais de uma categoria. Os videoclipes selecionados pelos licenciandos Ao total, recebemos 32 avaliações, que se basearam em 21 videoclipes de 15 artistas brasileiros (Quadro 1). Todos as/os artistas selecionados pelos estudantes são negros. Apenas duas mulheres aparecem: as cantoras Elza Soares (nascida em 1930) e Iza (Isabela Cristina Correia de Lima Lima, nascida em 1990), ambas naturais do Rio de Janeiro. Os 13 demais são, em maioria, homens jovens. Tais escolhas por parte dos licenciandos sinalizam questões de gênero, raça e regionalidade. No primeiro caso, a predominância de homens pode indicar o protagonismo masculino no mercado musical. De acordo com o relatório “Por elas que fazem música” (UBC, 2021), as mulheres ocupam 15% do quadro de associados da União Brasileira de Compositores, recebendo 9% do valor total de rendimento dos titulares. Com relação à raça, a opção por artistas negros parece indicar um reconhecimento, por parte dos estudantes, da legitimidade e autoridade que pessoas negras têm para falar/cantar sobre seus próprios corpos. Por fim, o predomínio de artistas cariocas e/ou da região sudeste, aponta para uma regionalidade, nas seleções feitas pelos licenciandos, possivelmente, relacionada ao universo musical ao qual eles têm acesso (seja voluntariamente, por consumo intencional, seja pelo efeito publicitário das mídias). No entanto, a ausência de artistas do Funk deve ser notada.

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Quadro 1. informações sobre os videoclipes escolhidos pelos licenciandos Música

Artista (ano da gravação)

Produção/Direção, canal no Youtube, ano (link de acesso) do videoclipe

“A carne”

Elza Soares (2002)

Sem dados. Canal Elza Soares, 2017 (link)

Seu Jorge, Marcelo Yuca e Wilson Capellette (comp.) “A cena” Rashid (part. Izzy Gordon) (2015)

Levi Riera (direção). Canal Rashid Oficial, 2015 (link)

“A música da mãe”

Djonga (2018)

Naio Rezende e Djonga (direção). Canal Djonga, 2018 (link)

“Amigo Branco”

Thiago Elniño (2013)

Rabú Gonzales (direção). Canal Thiago Elniño, 2013 (link)

“Bluesman”

Baco Exu do Blues (2018)

Douglas Ratzlaff Bernardt (direção). Canal 999, 2018 (link)

“Boa esperança”

Emicida (2015)

Katia Lund e João Wainer (direção). Canal Emicida, 2015 (link)

“Canção infantil”

Cesar MC (part. Cristal) (2019)

Guilherme Brehm (direção). Canal PineappleStormTV, 2019 (link)

“Cor”80

Douglas Camppos (2017)

Rodrigo Araújo (produção). Canal Campposições, 2017 (link)

“Crime bárbaro”

Rincon Sapiência (2017)

Nixon Freire (direção). Canal Rincon Sapiência, 2018 (link)

“Dona de mim”

Iza (2018)

Brabo Music Team, Pablo Bispo, Ruxell e Sérgio Santos (produção). Canal IZA, 2018 (link).

(filme oficial)

“Eminência Parda”

Emicida (part. Dona Onete, Jé Santiago e Papillon) (2019)

Leandro HBL (direção). Canal Emicida, 2019 (link)

“Eu só peço a Deus”

Inquérito (2014)

Levi Riera (produção). Canal Renan Inquérito, 2015 (link)

“Hat-trick”

Djonga (2019)

176 Studio & Djonga (direção). Canal Djonga, 2019 (link)


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“Junho de 94”

Djonga (2018)

Gabriel Solano (direção). Canal Djonga, 2018 (link)

“Mandume”

Emicida (part. Drik Barbosa, Amiri, Rico Dalasam, Muzzike e Raphão Alaafin) (2015)

Gabi Jacob (direção). Canal Emicida, 2016 (link)

“Meu nome é Jhony”

Jhony MC (2020)

Rabu Gonzales (Direção). Canal Bagua Records. 2020 (link)

“Minha alma”

O Rappa (1999)

Sem dados. Canal O Rappa, 2012 (link)

“Negão Negra”

Elza Soares e Flávio Renegado (2020)

Pablo Gomide, Canal Elza Soares, 2020 (link)

“Negro drama”

Racionais MC’s (2002)

Videoclipe não oficial. Canal Amaragi Rap, 2010 (link)

“Pedagogin-

Thiago Elniño (part. Sant e KMKZ) (2017)

João Victor Medeiros (direção). Canal Thiago Elniño, 2017 (link)

MV Bill (2019)

Isac Metanoia (direção). Siriguela (produção). Canal MV Bill, 2019 (link)

ga” “Vírus”

Fonte: as autoras (2021)

Dos 21 videoclipes selecionados, 16 são de artistas do gênero musical RAP (Rhythm and Poetry), quatro podem ser considerados de MPB (incluindo, aí, samba e pop) e um de Rock. Cinco videoclipes foram escolhidos por mais de um licenciando, a saber: “Boa Esperança” (quatro licenciandos), “A carne”, “A cena”, “Eu só peço a Deus” e “Mandume”, cada um escolhido por três licenciandos. Destacam-se os rappers Emicida, artista referenciado em sete avaliações, e Djonga, com três videoclipes diferentes; atualmente, os dois são grandes nomes do RAP nacional. O amplo destaque do RAP, entre as escolhas dos licenciandos, reafirma sua importância como música de protesto/denúncia do racismo Esse videoclipe não foi considerado nas análises pelo fato de somente ter o cantor, em diferentes cenários, interpretando a música. 80

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brasileiro. Pesquisas anteriores ressaltam a potencialidade do RAP na educação formal (AMARAL, 2015; DIAS, 2019) e, em específico, na educação científica e tecnológica (GANHOR, 2016). Elas destacam a possibilidade de resgate da história de povos africanos, confrontando-a com o cotidiano da juventude afro-brasileira urbana periférica, além de contribuírem para a consolidação de uma pedagogia baseada no Hip-Hop que milita pela decolonização das mentes e do currículo e pela (re)construção da memória coletiva (DIAS, 2019). Entendemos que a escolha de videoclipes de rappers brasileiros pelos licenciandos, ainda que de forma não sistematizada, confirma a força do RAP junto aos jovens (em nosso caso, estudantes de um campus universitário periférico) e reafirma o que tem sido discutido pelas/os pesquisadoras/es supracitados. Temas em destaque nos videoclipes selecionados Não tivemos como objetivo analisar as narrativas dos videoclipes, de modo que apenas nos detivemos a determinados aspectos considerados relevantes, em relação ao corpo/corporalidade negro/a. Nesse sentido, agrupamos os videoclipes de acordo com as ênfases dadas, em cada um dos audiovisuais. É importante sinalizar que todos os videoclipes consideram, em alguma dimensão, o racismo, o preconceito ou a discriminação racial. Levamos em conta, aqui, a distinção conceitual feita por Almeida (2019)81. Este resultado nos indica que os licenciandos buscaram audiovisuais comprometidos com a denúncia das opressões sofridas pelo povo preto, que se expressam em sua corporalidade. “(...) o racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam. (...) O preconceito racial é o juízo baseado em estereótipos acerca de indivíduos que pertençam a um determinado grupo racializados, e que pode ou não resultar em práticas discriminatórias. A discriminação racial, por sua vez, é a atribuição de tratamento diferenciado a membros de grupos racialmente identificados.” (ALMEIDA, 2019, p. 32, grifos do autor omitidos). 81


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A seguir, apresentamos as quatro categorias identificadas, contendo breves comentários acerca de alguns videoclipes. a) Sentimentos e Emoções Em certa medida, todos os videoclipes trazem à tona emoções experimentadas por negros/as. No entanto, destacamos a expressão da corporalidade através da manifestação de sentimentos e emoções que são decorrentes de discriminação racial. Em “A cena” (Rashid, 2015), por exemplo, o medo, o sofrimento, a raiva e a tristeza são frutos de situações cotidianamente vivenciadas pela população negra. São apresentadas cenas de várias personagens (mãe e filha em casa, professor na escola, motoboy em um escritório, empregada com sua patroa, jovem encarcerado com seu advogado, entre outros), que demonstram estar sendo afetados psicologicamente pelo racismo cotidiano. O videoclipe “Amigo branco” (Thiago Elniño, 2013) traz um homem branco experimentando o preconceito racial que a população negra sofre diariamente. Há a representação de personalidades pretas em capas de revistas, com as quais o homem não se identifica; são mostradas as dificuldades dele conseguir um emprego, por causa de sua cor branca; e, a rejeição de um pai negro, ao ver sua filha flertando com alguém que não tem a sua cor de pele, por exemplo. Em “Canção infantil” (Cesar MC, 2019), as cenas se alternam entre uma sala de aula e um palco de teatro, nos quais a música é cantada. Na sala de aula, estudantes, também, interpretam alguns versos, entre eles: “Eu não sei se isso é bom ou mal/ Alguém me explica o que nesse mundo é real/ O tiroteio na escola, camisa no varal/ O vilão que tá na estória ou aquele do jornal”, que é cantado por um adolescente negro. No teatro, a camisa branca do cantor vai gradativamente ficando ensanguentada e ele, ao final, é abraçado por uma criança, enquanto as demais na plateia acendem seus celulares. Apesar da forte denúncia, o

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videoclipe sugere que além das angústias, dores e medos que crianças e adolescentes negros sentem, deve também haver esperança. b) Corpos negros violentados A maioria dos videoclipes, incluídos nessa categoria, denuncia violências corriqueiras e cotidianas de jovens e famílias negras periféricas. Em “Crime Bárbaro” (Rincon Sapiência, 2017), um jovem preto (o próprio cantor) é perseguido por um policial branco. “A música da mãe” (Djonga, 2018) mostra o cantor bem-sucedido sendo assediado pelos fãs, porém, ao fundo, ocorrem violências contra jovens pretos e, no final, o próprio Djonga é preso pela polícia. Os videoclipes “Minha alma” (O Rappa, 1999) e “Negro Drama” (Racionais MC’s, 2002; Amaragi Rap, 2010) se passam em favelas cariocas e paulistanas e também trazem cenas de violência policial. Nos dois videoclipes mais recentes, “Meu nome é Jhony” (Jhony MC, 2020) e “Negão Negra” (Elza Soares e Flávio Renegado, 2020), as abordagens e operações policiais em comunidades são o centro da narrativa. A partir dessas obras, pode-se aprofundar na discussão sobre o papel da polícia no controle e na disciplina de corpos pretos, além, certamente, de seu papel no extermínio da juventude negra periférica. O videoclipe “Junho de 94” (Djonga, 2018) traz a oposição entre duas famílias (uma composta por pessoas negras e outra por brancas) que estão tomando seu café da manhã, enquanto o artista aparece cantando a música com uma corda no pescoço. Ao final, ele é enforcado na mesa da família branca. “Eminência parda” (Emicida, 2019) também apresenta uma família negra que, ao entrar em um restaurante elitizado, desperta os olhares preconceituosos dos brancos que ali estão presentes. O videoclipe mostra as representações dos negros nos imaginários dos brancos, os quais colocam os primeiros em posições de subjugação e exploração que se remetem à escravidão. Os membros daquela família são vistos como pessoas em situação de rua, assaltante,


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prostituta, funcionários de limpeza do restaurante e negros escravizados. As violências que se expressam nos olhares consistem em algo cotidiano para os/as negros/as brasileiros/as que circulam por espaços privilegiados, territórios brancos que segregam corpos negros, os quais “deveriam” se restringir aos espaços marginalizados e periféricos, ou seja, aos territórios negros (NOGUEIRA, 2018). Outra dimensão da violência contra corpos negros aparece em “Hat-trick” (Djonga, 2019). O videoclipe apresenta um jovem negro, bem-sucedido em sua profissão, com o rosto pintado de branco. O processo de embranquecimento, além de ter sido uma das motivações do movimento eugênico no Brasil, produziu (e ainda produz) fortes efeitos psicológicos sobre os negros. A necessidade de adequar-se a padrões estéticos e culturais de uma hegemonia branca tem repercutido na saúde mental da população negra que, inclusive, passou a não querer se auto identificar como tal, já que o próprio inconsciente das pessoas negras foi embranquecido (SOUZA, 1983). Por outro lado, o cantor nega essa adequação e diz em sua música: “Me desculpe aí/ Mas não compro seu processo de embranquecimento de MC”. c) Resistência Negra É interessante notar que, para além da denúncia das violências e opressões às quais os negros têm sido submetidos, desde seu sequestro de África e sua escravização no território brasileiro, as histórias contadas nos videoclipes apresentam movimentos de reação, resistência e superação. É o caso de “Eu só peço a Deus” (Inquérito, 2014), que conta a história de um jovem escravizado que simula sua morte e retorna à casa-grande para libertar os seus. Apesar de também mostrar as violências sofridas por negros escravizados (a história se passa em Minas Gerais, em 1850), o videoclipe apresenta uma, entre tantas outras, estratégia de sobrevivência e de fuga. Isso é fundamental para desconstruir a

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imagem de submissão, aceitação e não reação de africanos e afrodescendentes frente à condição de exploração de seus corpos. Essa mesma expressão da resistência surge em “Boa esperança” (Emicida, 2015), que mostra uma casa de brancos que têm como empregados negros/as que são constantemente humilhados. A situação de violência é rompida quando estes se rebelam, amarram seus patrões e ateiam fogo aos seus pertences. O videoclipe se encerra com uma série de reportagens que noticiam o espalhamento das rebeliões por todo o país. O noticiário de um telejornal é também utilizado como recurso em “Vírus” (MV Bill, 2019). Nele, as manchetes “Pretos estão tomando o poder”, “Preto em todo lugar”, “Pretos estão incomodando os preconceituosos”, “Falar de igualdade já virou algo folclórico”, “Demagogos falaram: não somos racistas!” e “Pretos surgem de todas as partes: é um vírus”, “Pretos lutam e nunca desiste (sic) da luta” e “Não embaça quando chegar nossa vez” são exibidas demonstrando um fenômeno de resistência coletiva dos pretos. Outro aspecto importante da resistência Negra é o da estética. Um dos exemplos é o videoclipe de “A carne” (Elza Soares, 2002). Nele, corpos dançam, com cabelos “black power” e fazem gestos que remetem à luta antirracista. Esta consiste em uma das principais formas de afirmação positiva do corpo negro, de acordo com o que Beatriz Nascimento (ORI, 1989) e Bezerra et al. (2016) nos explicam. O videoclipe “Mandume” (Emicida, 2015) também traz forte representação estética e cultural. Em análise anterior, Oliveira e Bragança (2019) destacam a diversidade de estilos (roupas), cabelos (penteados, cortes e arranjos) e posturas que enfrentam e convocam à ação “como uma reação às políticas de docilização dos corpos submetidas às populações negras” (p. 5). Há, também, a representação de diversidade de gênero com a presença de mulheres trans e travestis. Outro exemplo de resistência surge no videoclipe “Dona de Mim” (Iza, 2018), no qual são apresentadas mulheres negras ocupando


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diferentes lugares (uma professora, uma mãe, uma advogada e uma senhora, ré em um julgamento, além da própria cantora). A força dessas personagens revela a potência da mulher negra, que sofre com as consequências das interseções de gênero, raça e classe. Um de nossos licenciandos, Raphael Soares, fez uma arte a partir do videoclipe (Figura 1). Ele escreveu: “[...] com essa proposta de fundo eu decidi representar como eu me senti depois de ouvir aquele podcast e em seguida rever o clipe”. Figura 1. arte produzida a partir do videoclipe “Dona de Mim” (Iza, 2018)

Fonte: Artista/Licenciando Raphael Alves Soares Mansur Moraes (2020)82

d) Ancestralidade e Espiritualidade Em alguns videoclipes, estão presentes manifestações ou rituais de religiões de matrizes africanas ou afro-brasileiras. Corpos que dançam, celebram, se reúnem em rodas, em devoção às divindades, aos Orixás, que expressam a corporalidade negra. Em “Pedagoginga” (Thiago Elniño, 2017), a personagem central é um menino negro que furta livros e revistas, para poder ler e estudar. A escola formal é fortemente 82

O licenciando autorizou a publicação de sua arte neste escrito.

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criticada, aparecendo o Hip-Hop como um movimento educador/formador. Além disso, há cenas em que o menino é protegido por seu guia, representado pelo próprio cantor. Aparecem imagens de divindades, enquanto a letra da música traz os nomes de alguns Orixás (Orunmilá, Oxóssi e Ogum). Isso reforça a questão da espiritualidade e reafirma as crenças de religiões de matriz africana, em tempos de dominação neopentecostal, e aumento de casos de intolerância religiosa, inclusive em escolas (SILVA, 2019). Em “Bluesman” (Baco Exu do Blues, 2018), o personagem principal se encontra com um senhor preto idoso, tocando seu rosto, em um descampado. Ele também aparece em uma igreja, e aparece um desenho de Jesus Cristo preto. Em diversos momentos, o jovem rapaz saúda e pede a benção de homens e mulheres mais velhas. Há também uma passagem em que a música do rapper é interrompida por um cântico entoado ao som de atabaques. Assim, elementos que recuperam a ancestralidade negra compõem a obra. Apesar de já termos citado o videoclipe “Mandume” (Emicida, 2015), na categoria c, retomamos ele, aqui, pois há uma cena em que duas mulheres negras dançam, em um ritual de religião de matriz africana, e são interrompidas por um homem branco, vestido de terno, que empunha uma bíblia como se estivesse tentando exorcizá-las. O fogo próximo às mulheres chega a apagar-se com o ato do homem, porém, ele reacende e derruba o homem. Neste momento, Raphão Alaafin canta: “sem eucaristia no meu cântico”. A resistência ressaltada anteriormente passa, portanto, também pela reafirmação das crenças religiosas ancestrais. A partir das categorias acima descritas compreendemos que as obras audiovisuais selecionadas pelos licenciandos são potentes para subsidiar uma educação antirracista, em torno do tema corpo/corporalidade em aulas de Ciências e Biologia, na medida em que permitem discutir:


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O corpo ocidental/cartesiano que separa o sentir do existir, já que a dimensão racional (o pensar) é supervalorizada; o que resulta em corpo humano (objeto de estudo e ensino) sem emoção e sem sentimentos. No caso dos corpos de pessoas negras, tal separação chega ao extremo, sendo negado tanto o sentir quanto o pensar, atingindo uma desumanização que justificou a escravização e a violência racial institucionalizada no Brasil (ALMEIDA, 2014). Portanto, nem todos os corpos existem da mesma forma, pois corpos negros são perseguidos e violentados, algo que interfere diretamente na saúde da população negra. Corpos negros trazem em si, por outro lado, uma história de resistência que precisa ser apresentada aos estudantes da educação básica, por exemplo, a partir da ênfase aos elementos estéticos corporais que fogem do padrão branco ocidental. Da mesma forma que as emoções do corpo foram apagadas, também foi negada às pessoas negras a possibilidade de manifestarem suas crenças através de seus corpos. A discriminação às religiões de matriz africana, cujos rituais têm corpos que dançam e cantam, surge como um tema a ser discutido em nossas aulas.

Considerações Finais Nesse texto, apresentamos uma atividade avaliativa desenvolvida em uma disciplina obrigatória do curso de licenciatura em Ciências Biológicas da FFP-UERJ, na qual abordamos o tema corpo atravessado por uma discussão racial que potencializou a inserção da questão étnico-racial na formação inicial. A disciplina “Laboratório de Ensino I” foi oferecida durante o PAE-1 de forma remota, devido à pandemia da

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Covid-19. A partir da solicitação de escolha de videoclipes de artistas brasileiros, pretendíamos contemplar aspectos culturais e sociais relacionados ao tema, com um recorte racial, algo que nem sempre é considerado pelos estudos sobre corpo no ensino de Ciências e Biologia. A análise dos temas abordados, nos 21 videoclipes escolhidos pelos licenciandos, mostra a potencialidade de tais recursos audiovisuais na discussão sobre corpo e raça. Destacamos que a maior parte dos videoclipes (13 ao total) foram produzidos nos últimos 5 (cinco) anos, ou seja, são obras recentes e que fazem uma fotografia da realidade social brasileira contemporânea. Ao trazê-las para a sala de aula, estamos, portanto, contextualizando socialmente o tema “racismo” e, ao mesmo tempo, explorando questões relacionadas ao/à corpo/corporalidade negro/a, que não se limitam aos aspectos físicos/fisiológicos, tradicionalmente ensinados nas disciplinas Ciências e Biologia. Devido ao limite de extensão do texto, não pudemos apresentar as possibilidades didáticas dos videoclipes identificadas pelos licenciandos. No entanto, por meio das análises aqui apresentadas, é possível inferir que elas podem estar relacionadas: i) às contribuições da ciência moderna (sobretudo àquelas relacionadas ao movimento eugênico brasileiro do início do século XX), para a consolidação de estereótipos raciais que, até hoje, perduram em nossa sociedade e promovem discriminações e violências (físicas e psicológicas); ii) às discussões envolvendo os conceitos biológico, social e ideológico de raça; iii) ao/à corpo/corporalidade negro/a como um instrumento de resistência contra as opressões sofridas há séculos pelo povo negro em diáspora, através da afirmação positiva de sua identidade, seja ela cultural, estética ou religiosa; iv) à dimensão espiritual do corpo e sua relação com a ancestralidade. Com isso, salientamos o grande potencial das obras audiovisuais, para subsidiarem discussões sobre o corpo humano em aulas de Ciências e Biologia.


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Como possibilidade de desdobramento do presente estudo, indicamos o aprofundamento das relações entre imagens (narrativas) e letras das músicas exploradas nos videoclipes, em busca da identificação das representações sobre corpo/corporalidade, criadas a partir do diálogo entre texto imagético e texto oral. Acreditamos que uma análise discursiva semiótica poderia trazer importantes contribuições das obras para a educação formal.

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