DOI: doi.org/10.29327/565971.1-13
Escrevivências no ensino de Ciências: relato de uma experiência com pressupostos anticoloniais na educação popular Writings in Science teaching: report of an experience with anti-colonial assumptions in popular education Simone dos Santos Ribeiro1 Alberto Lopo Montalvão Neto2 1 Doutoranda em Educação Científica e Tecnológica, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. E-mail: zenlua@gmail.com / ORCID: https://orcid.org/00000003-0873-4474 2 Doutorando em Educação, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, São Paulo, Brasil. E-mail: montalvaoalberto@gmail.com / ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4875-646X
Introdução
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ENDO a sua gênese relacionada a movimentos de resistência, que emergem como forma de enfrentamento às desigualdades e opressões sociais, que afligem a sociedade, em especial 85 as/os menos favorecidos socioeconomicamente, o Cursinho Popular Pré-Vestibular “Liberte-se!” se coloca como uma iniciativa proposta por movimentos estudantis, iniciada em meio às discussões político-ideológicas, realizadas ao longo dos últimos anos. Destarte, o Liberte-se! surge “[...] a partir de um movimento de militância do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)” (MONTALVÃO NETO; SILVA, 2020). Desde 2017, o Liberte-se! Neste texto, ainda que de modo não integral, tentamos adotar a utilização de uma linguagem não machista e opressora, tendo como inspiração os estudos de Castro e De La Paz (2018).
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tem atuado com o intuito de promover uma educação crítica e libertadora, a partir de uma construção coletiva e horizontal, que agrega diálogos e tomadas de decisões por parte de educadores e educandos. Isso é feito de forma a auxiliar pessoas de diferentes idades e realidades a ingressarem no ensino superior, estando entre elas, principalmente, os jovens. Possuindo como principal público-alvo a população periférica campineira, no âmbito de suas atividades, o Liberte-se! não busca apenas formar pessoas que possuam conhecimentos profícuos a respeito dos campos disciplinares, comumente cobrados nos vestibulares (Matemática, Física, Química, Biologia, História, Geografia, Língua Portuguesa, entre outros). Nessa relação, questões sociais, éticas, políticas, econômicas, filosóficas, ambientais, de saúde, entre outras, são consideradas, como parte integrante dos conteúdos a serem ensinados. Essas questões podem ser chamadas de socialmente relevantes ou sociocientíficas86, por relacionarem a Ciência às pautas sociais. Advindo de discussões que emergem em uma universidade pública, e tendo grande parte das/dos docentes relacionadas/os a ela, visto que, em geral, suas/seus professores são graduandas/dos ou pós-graduandas/dos da instituição, o Liberte-se!, a partir de diferentes movimentos de suas/seus participantes, atua sob a ótica do tripé fundamental universitário: pesquisa, ensino e extensão. Sob os moldes da pesquisa, resumidamente, podemos mencionar que alguns estudos têm sido publicados por suas/seus professoras/res, a respeito das ações realizadas no Liberte-se!, como é o caso do artigo de Montalvão Neto e Silva (2020). O Liberte-se!, também, está registrado como projeto de extensão de Formação de Professoras/res na educação popular, junto à De acordo com Martins et al. (2020, p. 221), as questões sociocientíficas “são um importante programa de pesquisa no campo da Educação em Ciências [...] envolvem questões controversas relacionadas a temas atuais e com importância pública [...] Sua compreensão envolve dimensões científicas, sociais, econômicas, culturais e políticas. Além disso, estão presentes nos meios de comunicação e redes sociais. Em outras palavras, envolvem diferentes pontos de vista e têm implicações em uma ou várias áreas do conhecimento”.
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UNICAMP, sendo alguns de seus docentes bolsistas. No que toca ao ensino, cerne das ações, os propósitos de educação popular, empregados no cursinho, têm em Paulo Freire um de seus principais referenciais. Nessa perspectiva, compreendemos que a educação popular “[...] não é neutra, pois, necessariamente, implica princípios e valores que configuram uma certa visão de mundo e de sociedade” (GADOTTI, 2012, p. 1). Ademais, Gadotti (2012) aponta que são muitas as concepções e práticas de educação, sendo algumas relacionadas aos interesses hegemônicos, por serem autoritárias e domesticadoras. Todavia, ao aderirmos a uma perspectiva de educação que segue pressupostos de uma pedagogia crítica87, não há como se eximir de um viés político que busque trabalhar com aspectos democráticos e populares. Daí, a educação popular emerge como uma forma transgressora para um (re)pensar social. Trabalhando com limites e contradições emergentes do próprio sistema político, em que estamos inseridos, a educação popular representa uma luta por direitos e por novas conquistas, marcando sua posição no espaço democrático. É fato que o vestibular é um sistema excludente, visto que seleciona apenas alguns para ingressarem no Ensino Superior, excluindo tantos outros sujeitos que não podem se dedicar aos estudos, por vários motivos, como, por exemplo, por não possuírem meios para subsidiar os custos. Por isso, cursinhos populares surgem com o papel de oportunizar o ingresso de grupos excluídos, por suas condições socioeconômicas no ensino superior. Assim, ao atuarmos na educação popular, trabalhamos numa contradição paradigmática: ao passo que reconhecemos que o vestibular é um meio ultrajante de exclusão, compreendemos que é a partir da inserção de sujeitos, com formação política e consciência social nas universidades, que podemos Por pedagogia crítica, compreendemos práxis, no âmbito do ensino, que permitam dar voz aos socialmente oprimidos, silenciados, trabalhando, assim, aspectos de solidariedade, emancipação e transformação social. Tais aspectos são enunciados por educadores como Paulo Freire (FREIRE, 1987). Nesse sentido, de acordo com Fernandes (2016, p. 483), a pedagogia crítica “vê a opressão como altamente complexa, especialmente porque reconhece a opressão como um lugar de incoerência e a libertação como um processo de coerência.”
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romper com a ordem do discurso (e com os discursos de ordem), por dentro, desestabilizando as normatividades que imperam na sociedade por meio das instituições (FOUCAULT, 1996). Como nos aponta Brandão (1982), historicamente, houve uma divisão do saber social, a partir da qual os conhecimentos foram ficando cada vez mais a cabo de determinados grupos e se tornando menos acessível aos demais. Muitas vezes, isso serviu aos interesses de grupos dominantes. Entre tantos outros fatores, Freire e Nogueira (1993) pontuam que a educação popular surge, então, a partir de grupos e movimentos populares, que percebem a necessidade de lutar por uma sociedade mais justa e igualitária. Destarte, diante dos reflexos da industrialização urbana, decorrente da expansão do capitalismo, e da insuficiência observada, em relação à formação propiciada aos cidadãos, pelos sistemas formais de ensino, a educação popular emerge como possibilidade de transformação social. Sobre a educação popular, Paulo Freire aponta: Entendo a educação popular como o esforço de mobilização, organização e capacitação das classes populares; capacitação científica e técnica. Entendo que esse esforço não se esquece, que é preciso poder, ou seja, é preciso transformar essa organização do poder burguês que está aí, para que se possa fazer escola de outro jeito. Em uma primeira “definição” eu a aprendo desse jeito. Há estreita relação entre escola e vida política (FREIRE; NOGUEIRA, 1993, p. 19).
Assim, em uma concepção freireana de educação, são os próprios oprimidos que devem trilhar o seu caminho de libertação, e educar é, sim, um ato político. Considerando essas concepções, no presente estudo, partindo da realidade dos educandos – de suas histórias de vida, objetivamos compreender como uma proposta de ensino, pautada em um entendimento anticolonial, pode ampliar as compreensões de Literatura e de Ciência, no âmbito de uma perspectiva de ensino críticotransformadora. Centramo-nos, então, em uma das oficinas, na qual, a
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partir da interação entre uma educadora convidada, um educador-mediador e as/os educandas/os, trabalhamos com uma percepção de Literatura pautada nas escrevivências, de Conceição Evaristo. Trata-se de um trabalho que amplia a percepção do conhecimento que se tem a respeito do campo literário, relacionando-a à Educação em Ciências. Nesse sentido, visamos ir contra as hegemônicas compreensões de Ciência e Literatura, possibilitando a emergência de outros entendimentos e vozes.
Literatura(s) e Ciência(s) A Literatura é uma questão que vem sendo discutida e trabalhada em meio às pesquisas da área de Ensino de Ciências, com variadas justificativas e finalidades. Uma revisão bibliográfica, realizada por Ribeiro, Gonçalves e Farias (2016), aponta que são crescentes publicações que articulam Literatura e Ensino de Ciências. Segundo os autores, a questão aparece, na maior parte das vezes, atrelada ao desenvolvimento de novas abordagens de ensino e aprendizagem. Dessa forma, comumente a Literatura é apresentada como uma ferramenta para ensinar determinados conteúdos que, em geral, são conceitos. Em defesa do trabalho com a Literatura, os primeiros autores, que se debruçam sobre a questão, assinalam que o seu uso tem o potencial de favorecer diálogos dos leitores com o mundo, e o reconhecimento de especificidades culturais e científicas, levando a possíveis interfaces que direcionam a uma complexidade de conhecimentos (ZANETIC, 2006). Mesmo com tais considerações, os textos literários, comumente selecionados para trabalhos desenvolvidos na Educação em Ciências, são reprodutores de uma Ciência higienizada, apresentando abordagens que desconsideram saberes que não são cientificamente justificados, por meio de conceitos ou de contextos científicos, implícitos ou explícitos.
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Ainda sobre o campo literário, é comum o reforço à visão de mundo que supervaloriza o pensamento científico, com reprodução de entendimentos eurocêntricos, em que natureza e cultura são tratadas de formas duais88. Isso reafirma a crença de que há um ideal científico universal, independente da história de cada civilização (MACÊDO, 2004). Ademais, pensando no contexto editorial, observamos que a produção nacional oferece oportunidade para poucos, pois deixa de fora a pluralidade de vozes e a diversidade cultural que compõem o mosaico literário brasileiro (ALVES et al., 2017). No que toca à Ciência, observamos que, em sua égide, é comum a dominação por meios não coercitivos, mas que subalterniza e desumaniza identidades, provocando a perda de identidade cultural, e levando a relações de dependência e de falta de pertencimento. Relações como essa são apresentadas por Montalvão Neto et al. (2021), que apontam que é comum que os atores das Ciências (os cientistas) sejam apresentados como autoridades, muitas vezes colocados como sujeitos “sem nome”, demarcando uma posição de neutralidade e objetividade, que coloca a Ciência como algo que fala por si. Quanto ao Ensino de Ciências, nos últimos anos, observam-se discursos relacionados à redução e superação das desigualdades e à emancipação dos sujeitos. Todavia, na prática, muitas vezes ocorre a negação, esquecimento e invisibilização de estratégias de vida e de construção de conhecimentos, que contemplem corpos negros, indígenas e pessoas com sexualidades dissidentes, de modo que essas identidades, muitas vezes, não são consideradas na educação formal. Parte das obras literárias são igualmente reprodutoras da baixa representatividade ou de modelos que funcionam como imagens controladas, que determinam o lugar subalterno para as minorias políticas (BUENO, 2020). Por exemplo, a relação “homem x natureza” apresenta essa dualidade. Apesar da polissemia do discurso ecológico, há um viés antropocêntrico, que leva a estigmatizações e objetificações da natureza, colocando o homem em uma posição ilusória, como se este não fosse integrante da própria natureza, e como se a natureza estivesse em prol de servir ao seu bel-prazer (MONTALVÃO NETO; MORAIS; SILVEIRA, 2021).
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Pensando nessas questões, neste estudo, refletimos a respeito de uma experiência de ensino, na qual buscamos trazer uma visão de mundo contra hegemônica. Para tal, apoiamo-nos no estudo de Alves et al. (2017), que destaca a insurgência de mulheres negras frente às adversidades impostas. De acordo com o autor, esse manifesto, refletido no campo literário, rasura modelos autorizados pela elite letrada, numa sociedade escritocêntrica89, que hierarquiza e inferioriza manifestações culturais que possuam o binômio oralidade/memória, como meio de difusão de saberes. Partimos da premissa de que escritoras negras criam fissuras, deixando experiências autorais registradas, em um tipo de Literatura que favorece o diálogo de saberes e o reconhecimento de experiências (ALVES et al., 2017). Considerando isso, dialogamos com a obra de Conceição Evaristo, pois, ao pensarmos sobre a intrínseca ligação entre os pressupostos defendidos, pelo referencial teórico que adotamos, e a Literatura que exalta o lugar de fala da mulher negra, provinda de comunidades, morros ou favelas, acreditamos que é possível retratar, de formas transgressoras, as vidas subalternizadas.
A escrevivência de Conceição Evaristo De origem humilde, Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em 1946, em Belo Horizonte. Estreou na arte da palavra em 1990, quando passou a publicar seus contos e poemas, na série “Cadernos Negros”. Migrou para o Rio de Janeiro, na década de 1970. Graduou-se em
Consideramos importante contextualizar a classificação escritocêntrica para a sociedade ocidental, em função da negação da escrita como meio de subalternização de povos dominados. Porém, é importante reafirmar que a comunicação por registros gráficos não é única e exclusiva de populações ocidentais. Apesar da tradição oral, povos africanos estão entre os primeiros a desenvolverem sistemas de escrita. Além dos hieróglifos egípcios, existem outros sistemas de escrita desenvolvidos antes da influência árabe. Desse modo, a priorização da verbalização não deve ser entendida como a incapacidade de produção gráfica (MENEZES; CASTRO, 2007).
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Letras, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e trabalhou como professora, na rede pública de ensino básico da capital fluminense e na rede privada de ensino superior. Fez Mestrado em Literatura Brasileira, pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/RJ), e Doutorado em Literatura Comparada, pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Em suas pesquisas, Conceição Evaristo estudou as relações existentes entre as Literaturas afro-brasileiras e as Literaturas africanas de língua portuguesa. O conceito de escrevivência foi criado pela autora, em sua dissertação de mestrado, em 1995 (EVARISTO, 1996). Mais do que um conceito literário, ele possui potencial de ampliar a escrita e o fazer acadêmico, com uma epistemologia desde o corpo negro (FELISBERTO, 2020). A Literatura de Conceição Evaristo é considerada impactante e explícita. O engajamento da intelectualidade afrodescendente, mobilizada pela autora, com os excluídos socialmente, ajuda a compor uma representação de determinada parcela da população, que comumente é invisibilizada (OLIVEIRA, 2009). Segundo Sena (2012), Conceição e sua escrita literária marcam um espaço que possibilita enxergarmos embates culturais, visto que a leitura de escritoras/escritores negras/negros tem colocado diferentes perspectivas estéticas, trazendo à tona a emergência de outras epistemologias. A mulher negra tem muitas formas de estar no mundo (todos têm). Mas um contexto desfavorável, um cenário de discriminações, as estatísticas que demonstram pobreza, baixa escolaridade, subempregos, violações de direitos humanos, traduzem histórias de dor. Quem não vê? (EVARISTO, 2017, p. 13).
A escrevivência de Conceição emerge por pensamentos e lutas da autora, sem neutralidade. Sua obra é marcada pela escolha de palavras, que retratam histórias de vida, desafios e corpos violados/subalternizados, em uma mistura poética e denunciativa explícita. Trata-se de uma escrita comprometida com as subjetividades, e que se mistura
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entre lembranças e memórias, originadas em um processo criativo, que emerge a partir do “eu”, “dos seus” e “dos iguais”. Assim, a autora sabe que é porta-voz da consciência de um “eu coletivo”, compreendendo a responsabilidade que assume diante de outros iguais, que não têm condições de falar. No caso das mulheres negras, as escritoras representam mulheres que procuram um lugar/grupo para identificarem-se e que as represente (FERREIRA, 2013). Em outras palavras, as subjetividades têm um papel coletivo e a ficção pode ser vivenciada naturalmente, por muitas de suas leitoras, por representar uma realidade individual e que se reproduz coletivamente, por meio da denúncia à subalternização. Na escrita de Oliveira (2009), o texto de Conceição Evaristo apresenta a possibilidade de olharmos para saberes e sabores “outros”, endossados pela escrevivência90 que se constrói a partir de “rastros” como: a) corpo; b) condição; c) experiência. O primeiro elemento reporta à dimensão subjetiva do existir negro, arquivado na pele e na luta constante por afirmação e reversão de estereótipos. A representação do corpo funciona como ato sintomático de resistência e arquivo de impressões que a vida confere. O segundo elemento, a condição, aponta para um processo enunciativo fraterno e compreensivo com as várias personagens que povoam a obra. A experiência, por sua vez, funciona tanto como recurso estético quanto de construção retórica, a fim de atribuir credibilidade e poder de persuasão à narrativa. (OLIVEIRA, 2009, p. 622).
A perspectiva da escrevivência permite um olhar anticolonial, e Mignolo (2003) e intelectuais do pensamento feminino negro, tais como Morrison (2017) e Collins (2019), colocam a necessidade de reestabelecer práticas intelectuais (subverter a ideia de intelectualidade), desde pessoas subalternizadas, que não são e não transitam em meios autoriza-
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Escrita de um corpo, de uma condição, de uma experiência negra no Brasil (OLIVEIRA, 2009).
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dos à produção de conhecimentos. Dessa forma, práticas artísticas, literárias e poéticas podem ser consideradas fontes de conhecimento teórico e de reflexão sobre problemas que são de interesse humano e histórico, incluindo os aspectos políticos da língua (quem escreve / como escreve / de onde escreve). Com base nessas concepções, consideramos que a Literatura pode ser entendida como um lugar de conhecimento que se baseia em memórias e representações.
Uma experiência de leitura e escrita no Ensino de Ciências em perspectiva anticolonial As discussões teóricas que julgamos afinarem-se com a proposta educativa apresentada são construídas por meio da perspectiva crítica decolonialidade (Modernidade/Colonialidade), que discute a colonialidade como uma estrutura global, presente numa lógica atual de exercício do poder e que atua em três eixos: colonialidade do poder, do ser e do saber (QUIJANO, 1997). Para essas discussões, compreende-se a necessidade de (re)pensar a respeito do processo de invasão e colonização dos territórios latinos pelos europeus, a partir do século XVI. Isso, porque esse cenário levou a subjugar culturas e povos, marcando a relação entre esse continente e os demais até a atualidade, visto que os seus povos foram historicamente subalternizados (DUSSEL, 2005). Visando ir de encontro a uma lógica de educação escolarizada alicerçada em aspectos eurocentrados, mercadológicos, e que se filia às hegemonias acadêmicas91, relatamos uma experiência de leitura e escrita no Ensino de Ciências. Conforme apontam Marandino, Selles e Ferreira (2009, p. 51), em termos históricos, inicialmente as “[...] disciplinas obtêm um lugar no currículo mediante justificativas como pertinência e utilidade [...]”. No entanto, com o tempo, há a emergência “[...] de uma tradição acadêmica e de um conjunto de especialistas formados nessa tradição, fazendo que as disciplinas escolares afastem de seus objetivos primeiros e passem a ensinar conteúdos mais abstratos e distantes da realidade e dos interesses dos alunos.” É contra essa desconsideração de outros saberes que nos colocamos na perspectiva anticolonial assumida.
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A oficina teve como objetivo possibilitar outras compreensões de Ciência(s) e de Literatura(s), a partir da valorização das vivências dos educandos, de modo a relacioná-las com diferentes aspectos sociais e científicos potencialmente significativos. Ministrada pela primeira autora deste manuscrito, a oficina ocorreu de forma remota, devido ao contexto pandêmico, no dia 10 de outubro de 2020. As discussões tiveram duração de pouco mais de 2 horas, e, ao todo, 15 estudantes participaram da atividade. A oficina começou com a apresentação da audiopoesia “Tempo de nos aquilombar” (EVARISTO, 2020). Em seguida, foram explicadas questões a respeito da escrevivência, que, tal como mencionamos, tem a sua origem relacionada a práticas de mulheres negras (EVARISTO, 2017), e busca dar voz às pessoas inviabilizadas (OLIVEIRA, 2009). Nesse sentido, foi explicado às educandas e aos educandos que, ao pensarmos nas escrevivências, é fundamental pensarmos, também, a respeito de quem escreve, porque escreve e o lugar de origem daquela escrita/sujeito. Trazer uma autora negra, que enriquece o conceito de Literatura e alarga possibilidades de escrita e construção, desde corpos negros e femininos, não é tarefa simples, e exige uma compreensão filosófica para que não seja apenas uma amostra da diversidade literária. Abrir este espaço, na educação popular, é também possibilitar que as/os estudantes possam se colocar como produtoras/es dessa reconstrução do olhar para o(s) conhecimento(s). Assim, a circularidade, vista como um dos valores civilizatórios afro-brasileiros, propicia que, mesmo que virtualmente, a palavra circule sem hierarquização, na busca por desconstruir as questões hegemônicas que perpassam o campo do saber, visto que a colonialidade exerce a sua violência, impedindo que as pessoas compreendam o mundo, a partir do próprio mundo em que vivem (PORTO-GONÇALVES, 2005). Como apontam Santos e Meneses (2010), a força da colonialidade leva a uma universalização de saberes, inclusive na Ciência, inviabilizando outros saberes e conhecimentos de sujeitos
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que não estão dentro da ordem hierárquica de poderes, o que subalterniza, desumaniza e apaga raízes de ancestralidade e pluralidades/diferenças. Daí que, durante as discussões sobre a circularidade de saberes na oficina, visamos abrir margens para um (re)pensar sobre as outras formas de saber. Na oficina, após discutirmos sobre a circularidade, apresentamos concepções da escrevivência. Ato literário, político, de formação e de prática. Como diz Mignolo (2003), acreditamos que a prática literária vai além do erudito, de tal modo que ela também é uma forma de produzir conhecimentos e reflexões, a partir de interesses humanos, históricos e políticos, baseando-se em memórias e representações. Nesse sentido, nessa discussão, partimos do ponto de vista de que toda pessoa tem algo para compartilhar, e que, seja pela escrita, pela oralidade ou por expressões imagéticas, esses sujeitos podem promover a construção de diferentes sentidos, reconhecimentos e compreensões de vida. É a partir dessa visão que, nesse momento da oficina, buscamos refletir sobre como os processos que nos constituem podem inspirar formas de olhar, explicar e entender o mundo. Buscando cativar a leitura-fruição (GERALDI, 1984)92 e a percepção crítica das/os estudantes sobre as propostas apresentadas, a partir da contextualização inicial, introduzimos a leitura de alguns trechos da obra Olhos d'água (EVARISTO, 2016), lendo mais especificamente o texto “Conto Maria”. Também lemos trechos da obra intitulada “Becos da Memória” (EVARISTO, 2017). Essas leituras foram acompanhadas da apresentação de imagens da autora e, entre elas, podemos destacar a passagem, em que a autora diz: “Busco a voz, a fala de quem conta, para De acordo com Geraldi (1984), em meio a uma lógica capitalista, a escola segue moldes canônicos nos quais os alunos devem ler mais pela obrigatoriedade de atingir um dado objetivo, para inseri-lo na lógica do sistema, do que por prazer. Na fala do autor, com a leitura-fruição pretende-se “[...] recuperar de nossa experiência uma forma de interlocução praticamente ausente das aulas de língua portuguesa: o ler por ler, gratuitamente. E o gratuitamente aqui não quer dizer que tal leitura não tenha um resultado. O que define esse tipo de interlocução é o “desinteresse” pelo controle do resultado” (GERALDI, 1984, p. 30).
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se misturar à minha” (EVARISTO, 2017, p. 11). Ademais, assumindo que, por meio dessas leituras, buscamos abrir margens para a emergência de outras vozes de mulheres negras, vozes que se somam à de Conceição Evaristo, ao trazerem perspectivas estéticas que auxiliem na emergência de epistemologias outras, nesse momento, também, dialogamos com a obra de Carolina Maria de Jesus. Sobre Carolina, conforme aponta Meihy (1998), a autora outrora fez muito sucesso com a circulação de sua obra “Quarto de Despejo”. Todavia, posteriormente, por não atender às concepções hegemônicas da cultura literária erudita, ela sofreu um forte silenciamento e caiu em esquecimento, sendo apenas, mais recentemente, resgatada a sua memória. Sendo uma escrevivência, Carolina conta em sua obra sobre uma realidade vivenciada por muitos brasileiros. O preconceito que recai sobre os seus escritos, a respeito das próprias vivências, não só prepondera na época, como, ainda hoje, a sua obra encontra obstáculos para ser aceita como literária. Como menciona Meihy (1998, p. 83), “[...] a literatura estará sempre sugerindo interpretações parceladas que são limitadoras de seu alcance amplo, ficando, no máximo, restrita a uma pífia história das ideias e/ou das manifestações estéticas de um pequeno grupo que escreve para si e alguns de seus pares.” Indo de encontro à hegemônica ideia de Literatura, inspirados na obra de Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo, principalmente com base naquilo que dissemos sobre as escrevivências, na oficina propusemos uma atividade de escrita. Visando anunciar uma ideia contra hegemônica de Literatura, colocamos a seguinte proposta aos educandos: 1) Escreva sobre as memórias que vieram à tona quando você escutou os dois contos, nos conte e depois se apresente, dizendo o seu nome; 2) Guarde essa escrita, pois ao final a retomaremos. Após a elaboração dos escritos, alguns questionamentos foram colocados às educandas e aos educandos. Com esses questionamentos, visamos associar a possibilidade de ampliar a escrita literária, no caso,
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a escrevivência, e direcionar reflexões sobre questões sociocientíficas, pertinentes ao Ensino de Ciências. Na ocasião, julgamos ser interessante refletir sobre as relações sociais, em seu imbricamento com o científico, a partir de questões que versassem sobre a natureza da Ciência, o corpo, as relações de gênero e a respeito do tema nutrição/alimentação, considerando desigualdades/injustiças sociais que as permeiam. Perguntamos às/aos educandas/os: a) Existe conexão entre as nossas memórias?; b) É possível pensar nas relações dos textos com as nossas memórias e as ciências?; c) Todos os corpos são representados na ciência?; d) É possível determinar o lugar de um homem e o lugar de uma mulher?; e) Seria possível acabar com a fome no mundo? Para auxiliar as educandas e os educandos a refletirem sobre essas questões, visando uma prática de escrevivência, discutimos os conceitos a seguir: a) A noção de raça e a sua desconstrução como algo que possui algum tipo de fundamento científico/biológico, bem como a compreensão de como/quanto a Ciência pode ser uma atividade humana permeada por relações racistas (SCHUCMAN, 2016); b) A constante zoomorfização, comum aos clássicos textos literários, que atribui características animais para subalternizar/inferiorizar pessoas por sua classe social, raça, gênero ou outra condição que não a hegemonicamente dominante (SANTOS; ROCHA, 2018). Vinculado a isso, discutimos o epistemicídio cometido contra outras formas de saber, vinculados a sujeitos social e historicamente marginalizados, tais como periféricos, negros, mulheres, transgêneros (CARNEIRO, 2005); c) Acontecimentos históricos, tais como a eugenia, a pseudociência e o racismo, que levaram à formulação de uma Ciência socialmente higienizadora, carregada de ideias distorcidas sobre um tipo ideal de ser humano. A exemplo disso, poder-se-á referir-se a movi-
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mentos científicos que emergiram entre o fim do século XIX e início do século XX, culminando no que conhecemos por nazismo (SOUSA et al., 2014)93; d) Os conceitos de democracia racial e racismo estrutural (ALMEIDA, 2018). Sobre a última questão, de acordo com Almeida (2018, p. 38), “[...] o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional”. Quanto ao mito da democracia racial, sendo balizada pela meritocracia, principalmente quando os próprios negros passam a ser culpabilizados por sofrerem racismo, desconsiderando assim as desigualdades sociais brasileira, Almeida (2018, p. 66) aponta que, nesse tipo de discurso, “[...] a desigualdade racial – que se reflete no plano econômico – é transformada em diversidade cultural e, portanto, tornada parte da paisagem nacional”. O autor complementa dizendo que, ao contrário do que era de se esperar, a educação pode contribuir para o aprofundamento do racismo. Inclusive, isso ocorre no âmbito da Ciência, principalmente por meio de discursos biologizantes que buscam justificar equivocadamente o conceito de raça. Outrossim, essas concepções tornam-se ainda mais estruturais com o desenvolvimento do capitalismo e das tecnologias. Considerando as questões expostas, partimos da urgência de que outros modos de compreensão de Ciência emerjam, de modo que
Conforme apontam Sousa et al. (2014, p. 33), a eugenia surge a partir de uma ideologia científica, que visa levar determinados saberes a se tornarem parte do próprio pensamento científico. Assim, “[...] mais do que qualquer rigor científico, prevalecia a preocupação com a obtenção de soluções para problemas da área jurídica, a subordinação de determinadas etnias, a pureza das linhagens e a permanência de estruturas sociais vigentes. A ideia de que se poderia controlar a reprodução humana para melhorar a raça seguia um discurso ideológico que propunha que tal melhoria levaria a um ‘progresso’ das nações”.
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se desvincule de seus aspectos excludentes, numa perspectiva decolonial/anticolonial e antirracista. A partir disso, na oficina, discutimos a respeito de questões relacionadas à colonialidade, bem como sobre outras formas de opressão social. Um exemplo disso pautou-se nas discussões de gênero, que, tal como aponta Carneiro (2019), implica em pensar que as opressões sociais não são iguais para homens e mulheres, do mesmo modo que uma mulher branca não sofre as mesmas opressões que uma mulher negra. Assim, sofrendo com desigualdades que são ao mesmo tempo de gênero e raciais, a mulher negra não ocupa a mesma posição da mulher branca na sociedade, nem nas lutas feministas por justiça social (CARNEIRO, 2019). Outrossim, há de se considerar essas questões na luta antirracista, de modo a ir de encontro ao mito da democracia racial e aos aspectos que buscam mascarar a população negra por meio do embranquecimento. Não apenas questões de gênero foram discutidas, como também os aspectos socioeconômicos e étnico-raciais. Entre eles, refletimos sobre a nutrição, a fome, a produção de alimentos, a agroindústria e o nutricídio/colonialidade alimentar (ALMEIDA, 2019). Consideramos que o tema é fundamental no Ensino de Ciências, não apenas por suas questões científico-conceituais, como também por seus aspectos sociais, visto que: A alimentação é, portanto, fundante de nossa cultura e parte importante de nosso cotidiano, dividimos períodos do dia pelas refeições (manhã e tarde pelo almoço, por exemplo); temos no alimento grande protagonista de festividades; atribuímos a determinados alimentos propriedades que podem nos curar ou adoecer, etc. Dada sua complexidade e abrangência, a alimentação pode proporcionar reflexões e discussões no âmbito da saúde e meio ambiente; economia e política; história e cultura; tecnologia; mídia; ética; culinária; questões étnicoraciais, de classe e de gênero (ALMEIDA, 2019, p. 61).
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Dada a relevância do tema, na oficina, discutimos alguns desses aspectos, e solicitamos que as educandas e os educandos falassem e escrevessem a respeito das conexões que pensaram, durante as suas reflexões. Essas escritas autorais, realizadas no início da oficina, foram retomadas ao final, sendo proposto que os estudantes as reformulassem, para enviar uma versão final. Essa atividade serviu para observarmos suas aprendizagens. Diferentes escrevências surgiram, a partir dos questionamentos. Entre elas, selecionamos duas, apresentadas a seguir com nomes fictícios, e com a grafia original. Dandara: Me lembrei de duas histórias, uma de uma mulher próxima que morou na casa de uma família dos 10 aos 28 anos para fazer faxina e cozinhar. Em troca de apenas comida, roupa e estudos, que nem puderam ser concluídos. Hoje ela tem por volta de 50 anos apenas. Me lembrei também da história de meus pais, que passaram muita dificuldade no começo do casamento com um filho pequeno, o salário da minha mãe dava somente para o aluguel e meu pai estava desempregado. Meu nome é Dandara, tenho 17 anos e estou no último ano do ensino médio. Quero fazer ciências sociais na Unicamp. Milton: Quando eu era menor me lembro de ir numa loja esportiva onde havia um segurança e uma mulher afrodescendente. Depois da mulher dar uma olhada em algumas peças, ela se sentiu incomodada e foi confrontar o segurança que estava perseguindo ela. Ela perguntou porque ele estava fazendo isso e ele disse que só estava protegendo a loja. Com essa fala dele, ela saiu brava da loja. Só depois de mais velho que fui compreender o que a incomodou.
Podemos perceber, pelas falas, que as atividades da oficina levaram as educandas e os educandos a refletirem sobre as denúncias que lhes foram significativas, sejam elas relacionadas diretamente às suas vivências, sejam elas relacionadas às histórias que lhes são sensíveis, por outros motivos afetivos. O relato de Dandara, educanda afrodescendente, aponta
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para algumas questões supramencionadas, a respeito das desigualdades vivenciadas por famílias de classe social pouco abastadas socioeconomicamente. Outrossim, a educanda faz um relato a respeito de um caso (entre tantos outros), em que a questão racial, que lhe é significativa por sentir diretamente os seus efeitos, aparece com fortes aspectos de injustiça social, em condições análogas à escravidão94. Nesse cenário, há uma questão necropolítica (MBEMBE, 2016)95, que faz com que haja relações que subalternizam mulheres e homens negras/os, colocando-as/os em condições desumanas de trabalho, muito similares ao escravagismo, ainda que este tenha terminado, oficialmente, há mais de um século, no Brasil (SILVEIRA, 2020). Indo ao encontro dessas denúncias, Milton aborda uma forma frequente de expressão do racismo. Ao relatar um caso de “perseguição”, de um segurança a uma mulher negra, em uma loja, o educando deixa subentendido as suas conclusões de que, ali, presenciara um caso de racismo. Esse racismo não foi diretamente observado naquela situação, pelo fato de que se tratava de algo estrutural, normalizado, e que, por vezes, é pouco explícito, ao ponto de que as pessoas cheguem a não o identificar, em situações como a exposta. E, como essas questões se relacionam ao Ensino de Ciências? Muitos apontamentos sobre essa interrogativa poderiam ser colocados, e alguns deles foram colocados, durante a oficina. Por exemplo, ao falarmos de raça, gênero e desigualdades sociais, compreendemos que a desconstrução de aspectos hierárquicos – de uma Ciência que, historicamente, é construída por e para brancos – se torna fundamental. A Ciência que estudamos na escola, como aponta Pinheiro (2019)96, silencia outras formas de No ano de 2020 centenas de casos trabalhos em condições análogas à escravidão foram identificados. Muitos casos tratava-se de trabalhadores rurais ou de empregadas domésticas, negras, que vivenciavam a exploração de sua mão de obra sem nenhum direito trabalhista. Disponível em: https://cutt.ly/fGlhH6K. Acesso em: 08 maio 2021. 95 Pautados nos estudos deste filósofo, Montalvão Neto, Silva Filho e Rocha (2021) discutem alguns aspectos sobre as questões (necro)políticas, no cenário brasileiro, em meio à pandemia da Covid-19. 96 Em seu trabalho, a partir de uma revisão de literatura, a autora busca compreender “[...] o que nos 94
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ver o mundo, a partir de outros saberes. Outro exemplo disso são os conhecimentos ancestrais, africanos e indígenas, que, muitas vezes, são desconsiderados ou vistos como um saber inferior. Todavia, negras e negros, em África e nas diásporas, estiveram presentes no desenvolvimento do conhecimento científico e da tecnologia. Porém, tiveram seus nomes apagados e seu conhecimento roubado, sendo esses saberes muitas vezes apresentados erroneamente, como algo de origem europeia. Historicamente, foram atribuídos às/aos negras/os uma série de características racistas, a partir de significados atribuídos às questões morfofisiológicas, tais como “[...] preguiçoso, pouco inteligente, propenso ao crime, etc” (PINHEIRO, 2019, p. 342). O debate dessas questões no Ensino de Ciências se mostra fundamental para a desconstrução de relações de dominação e de preconceitos. De acordo com Santos et al. (2010), o conceito de raça, aqui compreendido como uma concepção humana e não científica/biológica, teve a sua primeira classificação por François Bernier, em 1684, e posteriormente por Carolus Linnaeus (1758), que, atribuindo características pejorativas a asiáticos, latinos e africanos (ou seja, a qualquer um que não fosse europeu), reforçou, na própria Ciência, esses preconceitos. Por fim, tal como enunciam Marín, Nunes e Cassiani (2020), sendo a Biologia um lugar privilegiado para reflexões acerca da natureza, e de nossa própria relação com o corpo, trabalhar questões relacionadas à branquitude e às expressões dissidentes de sexualidade/gênero nos parece um caminho promissor para um pensamento que se quer decolonial ou anticolonial, e voltado para a emancipação dos sujeitos. Daí, acreditamos que abordagens que tragam à tona as relações da(s) Ciência(s) com as questões sociais se tornam potenciais para uma luta antirracista, valorizando a voz dos historicamente oprimidos. trouxe até este estágio epistêmico, cosmogônico e global eurocêntrico que reduziu nossas existências e produções intelectuais a um padrão de referência único e universalizado.” (PINHEIRO, 2019, p. 329).
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Considerações finais No presente estudo, retratamos uma experiência de ensino pautada em uma proposta antirracista e decolonial/anticolonial, no âmbito da educação popular. Para isso, estabelecemos outras visões acerca de saberes eurocentrados, alargando compreensões de Ciência e Literatura. Nessa relação, consideramos que os conhecimentos são produzidos, desde a história e a experiência de seus agentes. Os resultados apontam que é possível caminharmos para outras lógicas, permitindo, assim, um trabalho com novos conteúdos, por meio de outros caminhos epistêmicos. Com isso, trazemos as escrevivências, como um outro modo de (re)pensar as estratégias de enfrentamento vivenciadas pelas/os educandas/os, a partir de suas histórias de vida, visto que, esses sujeitos, de diversas maneiras (e por muitas vezes), vivenciaram múltiplas opressões sociais, ocasionadas pelas formas de colonialidade que perpassam a sociedade ocidental. Com este relato, intencionamos “esperançar”. Esse verbo, que não existe no dicionário, é mencionado por considerarmos que, mesmo em meio a cenários adversos, tais como aqueles proporcionados em meio à pandemia da Covid-1997, acreditamos que são possíveis outras formas de significar o mundo, que visam contribuir para a sua humanização. Nesse contexto, ressaltamos o nosso pesar pelas perdas de vidas e de direitos. É, em busca de retomarmos princípios de igualdade social, indo de encontro a preconceitos e formas de dominação, que buscamos construir pensamentos críticos, a respeito do mundo em que vivemos, e abrir margens para outras formas de ser/estar nele. Assim, apesar de reconhecermos as limitações de um trabalho que gira em torno de uma única oficina, compreendemos que essa é uma (entre tantas outras) tentativa(s) Discussões a respeito desse cenário pandêmico são realizadas em trabalhos como os de Silva Filho, Montalvão Neto e Rocha (2020). A partir de uma revisão bibliográfica, os autores refletem sobre alguns aspectos concernentes àquilo que é apontado, no início da pandemia do novo coronavírus – primeiros meses de 2020, por pesquisas acadêmicas que se debruçam sobre o Ensino Remoto Emergencial (ERE). 97
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que vêm sendo idealizadas para tornar o Ensino de Ciências um lugar possível, para um (re)pensar em justiça social.
Agradecimento O presente estudo foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
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