Resistir, (Re)existir e Reinventar II - Capítulo 6

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DOI: doi.org/10.29327/565971.1-6

Da periferia do aprendizado à centralidade do que somos: diálogo Brasil-Moçambique From the learning periphery to centrality of what we are: Brazil-Mozambique dialogue Roberth De-Carvalho1 Adamo Devi Cuchedza2 1 Vinculado ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica, da Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. E-mail: orientador.roberth@gmail.com / ORCID: http://orcid.org/0000-0001-6712-1630 2 Professor-pesquisador da Universidade de Licungo, Beira, Moçambique. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica, da Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. E-mail: acuchedza@gmail.com / ORCID: http://orcid.org/0000-0002-0280-6687

Resumo: Ex-colônias portuguesas, a Colônia do Brasil do Reino de Portugal (entre 1500-1822; Brasil) e a África Oriental Portuguesa (1501-1975; Moçambique) foram/são palcos de lutas e resistências que buscam outro tipo independência simbólica: descolonizar-se para reconectarem a suas origens. Do ranço de economias baseadas no tráfico da natureza (humana e não-humana), de saberes científicos, de técnicas e de tecnologias, a naturalização de ideias hipermercantilizadas insiste no espaço e no tempo da produção de múltiplas colonialidades. Por atravessarem áreas das Ciências da Natureza e da Matemática, destacamos, como objetivo central, deste ensaio, dialogar com nossas próprias histórias, despertando educadores em Ciências e em Matemática, ou de quaisquer outros campos de conhecimento, a deflagrarem condições de significação política, afetiva e ideológica, em seus saberes-sentidos escolares. O resultado de nosso ‘diálogo de saberes’ aponta caminhos para revisionar o Ensino de Ciências e de Matemática, na escola básica do Sul global. Palavras-chave: Diálogo de saberes. Brasil-Moçambique. Ensino de Ciências e de Matemática.


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Abstract: Ex Portuguese colonies, the Colônia do Brasil do Reino de Portugal (between 1500-1822; Brazil) and Africa Oriental Portuguesa (1501-1975; Mozambique) were/are stages of fights and resistances who seek another type of symbolic independence: decolonize themselves to reconnect with their origins. From the rancidity of economies based on the trafficking of nature (human and non-human), scientific knowledge, techniques and technologies, the naturalization of mercantilist ideas insists on the space and time of colonialism. For crossing areas of Natural Sciences and Mathematics, we point out as the main objective of this essay to dialogue with our stories, awakening educators in Science and Mathematics, or any other fields of knowledge, to unleash conditions of political, affective and ideological significance in their school knowledge-senses. The result of our ‘dialogue of knowledge’ points out ways to revise the teaching of science and mathematics in the basic school of the global South. Keywords: Dialogue of knowledge. Brazil-Mozambique. Science and Mathematics Teaching.

Introdução O universal implica uma relação de inclusão a alguma coisa ou entidade já constituída. O em-comum tem como característica essencial a capacidade de ser comunicado e partilhado. Ele pressupõe uma relação de copertencimento entre múltiplas singularidades. É graças a essa partilha e a essa comunicabilidade que produzimos a humanidade. Esta última não existe completamente feita de antemão. (MBEMBE, 2019, p. 122, grifo do original).

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NICIAMOS com a compreensão de que a empresa colonial (CÉSAIRE, 2017), que constituiu e formulou corpos, raças, conhecimentos, culturas, tecnologias, imaginários e memórias, os inteligiu por uma linguagem universal, reificante, produzindo-nos, como falantes e ouvintes (em que incluímos comunidades cegas/baixa visão e surdas), dispersos por contextos socioculturais, no mundo pós-colonial.


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Situados no Brasil e em Moçambique, dialogamos, entre a reconfiguração do espaço e a reorientação do tempo de nossas histórias, sob um estigma comum: a colonização. Inscritos na memória, como ex-colônias, Brasil, então conhecido como Colônia do Brasil do Reino de Portugal (entre 1530-1815), e Moçambique (entre 1752-1975), passando também pelo nome de África Oriental Portuguesa, ambos têm se desafiado por resistências atomizadas (de coletivos negros; feministas; LGBTQIA+; indígenas; pessoas com deficiência), na busca de uma importante independência simbólica: a reconexão com o originário. Entendemos pela categoria do originário o que se endereça/retorna ao ponto de partida, ao gene histórico-cultural contido na tradição de nossas identidades – melhor seria identificação, “como um processo em andamento” (HALL, 2019, p. 24); assim como, psicanaliticamente, se (re)(des)conectam partes de subjetividades fragmentadas, embora, aqui, somos tomados pela ancestralidade. As sabedorias ancestrais ensinam que não existe no universo o grande e o pequeno. O que há é a harmonia entre as coisas que possuem tamanhos distintos, sem relações de grandeza que, desprovidas de sentidos, não acrescentam nem diminuem nada. (SIMAS; RUFINO, 2020, p. 7).

E, isso nos afeta, pois, fragmentados no espaço e no tempo, nem grandes nem pequenos, nossos corpos, sexos/gêneros, mentes, almas/sensações foram deslocados, cartesianamente, em fragmentos, para compreendermos o mundo, pelo viés ideológico de uma racionalidade instrumental da Ciência. Educados em um projeto de ciência moderna, positivista, e sob uma ideologia mercantilista de concepções/subjetividades tecnocientíficas, artefatos, técnicas, tecnologias, sentimo-nos constituídos por um imaginário que opera hegemonicamente e em subterfúgio: a colonialidade.

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Com essa compreensão, situamos uma primeira crise epistêmica do Sul global: o pensamento-linguagem ocidental que produziu/produz a ideia de Ciências da Natureza e Matemática, forjando a unicidade do ente natural, ou seja, de uma natureza unívoca, líquida, certa, monolítica, dessubjetivada, capitalizada no/pelo centro capitalista do mundo. Assim, “Em uma estrutura sócio-cognitiva voltada para a uniformidade do saber numa acepção centro-periferia, o saber é interpretado como algo universal, e como tratar e implementar alternativas?” (CASSIANI; VON LINSINGEN; PEREIRA, 2016, p. 395) Com o que das Ciências da Natureza e da Matemática (e aqui pretendemos ampliar e transgredir suas inteligibilidades) aprendemos e apreendemos, desafia-nos, como professores, pela novíssima acepção, nossa busca por “Resistir, (re)Existir e (re)Inventar” (CASSIANI; VON LINSINGEN, 2019) a “relação de inclusão” universal, que nos conduziu a tais entidades disciplinares; relação essa que é destacada na epígrafe deste texto, a partir do filósofo camaronês Achille Mbembe (2018). E, ao tratarmos dessa primeira crise, nos damos conta de formas e conteúdos que têm atravessado, historicamente, a escola básica no Sul global, em suas nuances de: pública e gratuita - atributos de intensos embates neoliberais; presencial – pauta que tem acirrado tensões, quanto a formatos e modalidades por projetos e agências tendenciosos: os cartéis para a educação a distância ou o homeschooling (educação doméstica ou domiciliar); laica – identidade que tem sido relativizada por discursos nacionalistas e conservadores, como a exemplo da nefasta proposta de um projeto educacional brasileiro intitulado “escola sem partido”; inclusiva e democrática – nossa bandeira constante, como educadores, mas que impera como principal e estratégico desafio, pelos ambientes de tantas desigualdades socioeconômicas, étnico-raciais e de gênero, com os quais lidamos. E, embora, essa mesma escola se institua com tantas incongruências e atravessamentos em seus qualificativos, foi ela quem nos iniciou nessa ‘formação discursiva’ (ORLANDI, 2017), que muito revela do Eu, Tu, Ele que nos constitui, bem como


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marca nossos quefazeres freireanos, como sujeitos negros, sociotécnicos, afetivos, ambientais, políticos, históricos. E, como professorespesquisadores. Situamos, a partir disso, a segunda crise epistêmica: o que as Ciências da Natureza e a Matemática têm feito/produzido para descolonizar terras, territórios, águas, fauna, flora, minerais e existências/corpos? Ou melhor, a crise das naturezas humana e não-humana, como entes que compreendemos urgentes de descolonização, e em fuga da voracidade do projeto neoliberal. De tal modo, buscamos entender tais condições de significação por outra ‘razão negra’ (MBEMBE, 2018); pelas resistências, ideias e imanências indígenas (KRENAK, 2019); por ‘saberes-sentidos’ (FERREIRA; DE-CARVALHO, 2019). Enfim, construindo vieses de ‘cidadania sociotécnica’ (JACINSKI; VON LINSINGEN; CORRÊA, 2019), plurais e autóctones. Sob nossos sentidos, pelo desafio do lugar/posição de ex-colonizados. Marcamos a preposição sob, uma vez que queremos situar nossas intencionalidades de interlocução, de um lugar e de uma posição discursivos (ORLANDI, 2017; 1996) como dois professores-pesquisadores, assim autodeclarados: negro-brasileiro e negro-moçambicano, ou seja, afetados/produzidos por múltiplos fenômenos de colonialidade. Mas, principalmente, racializados. O cientista está submetido à memória de seu saber. O que tem de ser atingido é justamente essa relação com o interdiscurso, com a memória para poder significar outra coisa. Transformar-se, desenvolver-se. Transferir: produzir novas versões, efeitos metafóricos, deslizamentos de sentidos, que permitam o avanço científico. (ORLANDI, 1996, p. 139).

Buscamos, pelas memórias de nossos saberes, mobilizar interdiscursos predicativos de gestos e modos de escrever, olhar, ouvir, ler, ser, fazer, em que (re)produzimos o mote ideológico da tecnociência e

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da sociocultura que nos tem acometido, como sujeitos sociais. Versões desse diálogo, que sustentamos e inferimos, como agentes institucionais, para os avanços que buscamos no ensino de Ciências e de Matemática. Acreditamos, assim, que desse lugar ou posição discursiva, sobre os quais queremos deter nossa análise, cabe antevermos outros sentidos de mundo, que possibilitem que este texto passe por um prisma decolonial, no qual os discursos se apresentem ponderados, na historicidade de nossas ‘condições de produção’ (ORLANDI, 2017). Dessa forma, enunciando-nos como o Outro, no ensino e na pesquisa em Educação em Ciências e em Matemática, e nos quais nos apresentamos historicamente identificados, para constituir nosso fazer-ser de resistência à geopolítica de subalternização do Sul global. Para tanto, destacamos, a partir da linguista brasileira Eni P. Orlandi, o objetivo deste ensaio: Como a narratividade pode nos conduzir a compreender semelhanças e diferenças que se alojam nesses processos de significação, se pensarmos de que natureza é este ‘outro’ e este ‘Outro’ que aí se instalam, ou de que espaços tratam-se nesta outra geografia/cultura? (ORLANDI, 2017, p. 89).

Por essa ênfase discursiva, atravessamos algumas camadas de nossas histórias particulares. Partimos de encontros dialógicos, entre nós, Outras, Outres e Outros – pelo exemplo da interlocução entre Paulo Freire e Sérgio Guimarães (2011) –, que, aqui, se concentram entre Brasil (com um afro-brasileiro) e Moçambique (com um moçambicano), dialogando com nossas próprias histórias. Assim, buscamos refletir sobre saberes-sentidos, em condições de significação política, afetiva e ideológica, para a perspectiva de mundo que pretendemos, em propositiva transformação.


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Sentidos Metodológicos O que queremos dizer com sentidos metodológicos expressa uma profunda intencionalidade, no que temos creditado aos pensamentos decoloniais. Estes, plurais, pois, interculturalmente situados, bem como ao revisionismo sociocultural que temos pretendido, a partir dos Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia (ECTS) Latino-americanos, em perspectiva afrorreferenciada, para que possamos ser inseridos, como sujeitos sociais do Sul global, (re)existindo, dentro de nossas resistências. Assim, começamos a situar nosso caminho de chegada, ao deflagrarmos ‘a centralidade do que somos’. E, nesse aspecto, em particular, convergem os sentidos revisionistas que temos pretendido em nossas trajetórias pessoais, profissionais, relacionais, educativas, éticas, valorativas, ancestrais, de conexão com o humano e o não-humano – aqui, compreendendo o que afeta a formação discursiva, quanto às naturezas da ciência (NdC) e da tecnologia (NdT) (cf. DE-CARVALHO, 2020). Sentidos de justiça social e cognitiva, em relações Sul-Sul, endógenas, de ruptura com a teoria da modernização da periferia e da semiperiferia, que tem subsumido importantes práticas socioculturais, forjando, no tempo e no espaço, a NdC e a NdT. A primeira e possivelmente a mais importante tentativa foi da teoria da modernização. Em lugar de separar o estudo do mundo ‘civilizado’ do estudo do resto do mundo como se fossem lugares epistemológicos distintos, a teoria da modernização tentou historicizar as diferenças entre os dois espaços. Ela argumentava que o mundo ‘desenvolvido’ não era ontologicamente diferente do mundo ‘subdesenvolvido’, mas apenas estava à frente dele no tempo. Os países subdesenvolvidos poderiam alcançar os países desenvolvidos aprendendo com os modelos dos países mais avançados e fazendo certas mudanças essenciais nas suas práticas sócio-culturais. (WALLERSTEIN, 2012, p. 19).

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Brasil-Moçambique, em um ‘corredor de saberes’ (GASPARETTO, 2019), fundados por sociedades tribais e originárias (reinos dos macuas, bantus, mwenemutapas e zulus, ao sul da África, incluindo o atual país de Moçambique; e, os assurinis do Xingu, caiapós, tapirapés, ricbactas e bororos, em Pindorama, atual Brasil), formas-conteúdos que deviam forjar e mobilizar nossa identidade relacional com a natureza, quanto à produção histórica, artístico-cultural, social, econômica e tecnocientífica, assim como relações ancestrais de alteridade. Essa é a outra NdC e NdT que temos reclamado, a originária. Mas, Enquanto isso, a humanidade vai sendo descolada de uma maneira tão absoluta desse organismo que é a terra. Os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa terra são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina. São caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes — a sub-humanidade. Porque tem uma humanidade, vamos dizer, bacana. E tem uma camada mais bruta, rústica, orgânica, uma sub-humanidade, uma gente que fica agarrada na terra. Parece que eles querem comer terra, mamar na terra, dormir deitados sobre a terra, envoltos na terra. A organicidade dessa gente é uma coisa que incomoda, tanto que as corporações têm criado cada vez mais mecanismos para separar esses filhotes da terra de sua mãe. (KRENAK, 2019, p. 14).

Organicidade instituída em línguas, afetos, crenças, leis, mitos, rituais, saberes, cuidados, e que tem sustentado a Terra, a natureza do ser e do fazer, na proposição de outros sentidos de humanidade: sentidos originários. Se o pós-guerra do ‘sistema-mundo centro’ (WALLERSTEIN, ibid.) foi um divisor de águas para a metodologia das ciências sociais – considerando-se o universo do conhecimento institucionalizado, validado historicamente, sob a chancela de centros hegemônicos do saber –, avaliamos que nossas existências originárias, assim se recortaram


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pelo lado dos não-ocidentais (ou nós-Outros), sob a perspectiva antropológica de sociedades tribais, alcançando, quando muito, o conceito de civilizações avançadas, relativamente às referências de conhecimento científico e tecnológico do centro hegemônico. Como situa Wallerstein (ibid.): O estudo do mundo não ocidental foi dividido entre a antropologia, que estudava os pequenos grupos, as assim chamadas ‘tribos’, e os estudos orientais, investigando as grandes, mas consideradas congeladas, ‘altas’ civilizações. Este padrão de estudo teve problemas para lidar com as novas realidades pós-1945. Isto provocou um debate sobre se, e de que modo, se poderia adaptar as premissas dominantes para torná-las mais relevantes a estas novas realidades globais. (p. 12).

Atentos a sentidos metodológicos dessa natureza originária do ser e do fazer, pelo ‘corpo-memória’ (ORLANDI, 2017) de sociedades livres e autogestionadas (pré-invasão, escravização, subjugo), temos entendido o ‘diálogo de saberes’ entre povos, entre Ciências, pela linguagem matemática, democraticamente participativa. Até, mesmo, porque, como demarca Wallerstein (2012), fomos transmutados, vez em que houve um invasivo “Movimento no tempo e no espaço, e movimento na identidade, afetando o corpo, o sujeito, os sentidos.” (ORLANDI, ibid., p. 89). Disso, emerge nossa inquietação quanto a sentidos que operam em nossos processos de significação histórica, tanto pela forma-conteúdo da diferença quanto da semelhança, compreendendonos como educadores, negros, cientistas, pesquisadores, afro-latinoamericano e africano.

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Para tanto, entendemos, a partir da obra Dialogando com a própria história, de autoria dos educadores brasileiros Paulo Freire (1921-1997) e Sérgio Guimarães47 (1951-), a qual tomamos para explicar que:

nós estamos afirmando [...] que ninguém aprende fora da história. [...] que ninguém aprende individualmente apenas. Quer dizer, nós somos sócio-históricos, ou seres históricosociais e culturais, e que, por isso mesmo, o nosso aprendizado se dá na prática geral da qual fazemos parte, na prática social. Só que nós, [...], reconhecemos que não é possível afogar, fazer desaparecer a dimensão individual de cada sujeito histórico que se experimenta socialmente. (FREIRE; GUIMARÃES, 2011, p. 24).

Ou seja, há algo intrínseco em nossas individualidades que sobreleva o papel no aprendizado da história, melhor dizendo, “na feitura da história inclusive, é fazendo a história que a gente aprende a história. [...] esquecer isso é que é cometer [...] um baita erro, um imenso erro, que foi o erro do mecanicismo marxista.” (ibidem). E, como tal, influiu, sobremaneira, na racionalidade instrumental, que perpassa o Ensino de Ciências e de Matemática, em que um viés de teoria científica supriu a teoria das gentes. Princípios, postulados, leis, axiomas, teoremas, tudo se definiu por sentidos de uma dialética prescritiva, resolutiva, indutivo-dedutiva da práxis; esvaindo-se, assim, o real da história de sujeitos e sujeitas sociais. O real das histórias, que trazemos, se iniciou na tarde de 29 de maio de 2019, no primeiro encontro da disciplina condensada: Estudos Decoloniais, Epistemologias do Sul e Temáticas Socioambientais na Educação Científica e Tecnológica, ofertada pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica (PPGECT), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, Brasil, para estudantes de mestrado e doutorado. A referida disciplina fora ministrada pela pesquisadora brasileira Tatiana Galieta, da Universidade do Estado do Rio Como representante do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), atuou em países da América Latina, do Caribe (Haiti, Honduras) e da África (Marrocos, Moçambique, Angola e GuinéBissau). 47


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de Janeiro (UERJ), em parceria com o pesquisador brasileiro Irlan Von Linsingen, da UFSC, que propuseram uma aproximação de impressões, compartilhamento de ideias, discussões da área de Educação em Ciências, sob perspectivas emergentes e transgressoras, sobre a natureza (humana e não-humana), como possibilidade de produção decolonial de conhecimentos científicos e tecnológicos. Essa disciplina resultou na organização de um blog, para registro de resultados e discussões, impactando pesquisas e estudos das pessoas participantes, sendo intitulado: ECT & Decolonialidade: reflexões e diálogos48. Em 30 horas-aula, de múltiplas sensações, percepções, afetos, interlocuções, sensos e contrasensos, nossas (e transpassadas por tantas outras) histórias se revelavam por subjetividades que perpassam nossas pesquisas, em leituras, vivências, escutas, fazeres, negações, dizeres, errâncias, ensinamentos, aprendizagens, ou seja, pelo flagrante do que somos, a partir de nosso lugar, como pesquisadores da periferia Sul global. Pois, ali se deram trocas e compartilhamentos, profícuos e insurgentes, entre estudantes latino-americanos/as e sul-africano. Em certa medida, associamos a outros sentidos metodológicos, pelo artigo: Saberes e interculturalidad: dilemas y aprendizajes en una experiencia con afrodescendientes colombianas, de Victoria-Morales et al. (2017), cuja pesquisa nos revelou um profícuo diálogo de saberes entre mulheres afro-colombianas e estudantes estrangeiras/os, em uma pós-graduação que “evidencia los efectos movilizadores respecto a perspectivas críticas surgidas en las dinámicas de los diálogos de saberes realizados bajo intencionalidades disruptivas para provocar una horizontalidad dialógica [...]” (VICTORIA-MORALES et al., 2017, p. 529). Por tais caminhos, construímos nosso diálogo de saberes, intercruzando campos e áreas de pesquisas, percepções e emoções, a partir de nossos corpos-memórias de periferia.

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Disponível em: https://bit.ly/3z5gXkT. Acesso em: 29 nov. 2020.

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Diálogo em corpo-memória Da periferia do Brasil Rememoramos, inicialmente, a partir do Brasil, nosso ambiente de encontro. Com debates humanistas e progressistas de escola, pelo movimento ‘escolanovista deweyano’, no pós-guerra, construía-se um novo imaginário nas Américas, a partir dos anos de 1950. Em que nos marca a promulgação, em 1961, da primeira Lei de Diretrizes e Bases (L.D.B.), da Educação Brasileira, a Lei n. 4.024; como também, três anos após, a deposição do presidente populista João Goulart49 (19191976). Era o golpe militar de 1964. Iniciava-se um período ditatorial no país, que se arrastou até 1985. Embora, paulatinamente, vimos superando o fim dos Anos de Chumbo, há 35 anos, ressaltamos que, para muito antes, desde a falaciosa abolição da economia escravagista, temos pensado na tardia reparação histórica da universidade pública brasileira, como a exemplo da recente política de cotas na pós-graduação da UFSC50. Creditada a lutas e a movimentos sociais, pela democratização da educação e da produção científica e tecnológica, para e na América Latina, passamos a viver a esperança de construir uma pluriversidade, no sentido sociocultural do que somos e do que precisamos para ser, para uma sociedade equânime, combatendo a fúria do capitalismo. Entretanto, projetos neoliberais têm empreendido esforços para a formação de mentalidades de ‘deficientes cívicos’ (SANTOS, 1999), levando-nos ao sabor de intenções politiqueiras, por sofismas e filosofismos de partidos políticos de centro (pelo falso-neutro) e de direita, fazendo-nos retroceder à esperança do que acreditávamos haver superado. Que iniciou sua carreira política no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), tendo sido acusado pela classe empresarial e oposicionista de comunista, quando o então ministro do Trabalho, Getúlio Vargas, em 1954, decretou um aumento do salário-mínimo em 100%. 50 “[...] Resolução Normativa que regulamenta a Política de Ações Afirmativas para negros, indígenas, pessoas com deficiência e outras categorias de vulnerabilidade social nos cursos de pós-graduação lato sensu (especialização) e stricto sensu (mestrado e doutorado) da UFSC.” (AGECOM, 2020, s/p.) 49


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E que poderá fazer a educação com vistas à esperança? Enquanto processo gnoseológico ela engaja sujeitos – educadores – educandos – mediados pelo objeto cognoscível ou conteúdo a ser ensinado pelo sujeito educador e apreendido pelo sujeito educando. Qualquer que seja a dimensão pela qual apreciemos a prática educativa, a gnosiológica, a estética, a ética, a política, seu processo, se autenticamente vivido, implica sempre a esperança. É neste sentido que educadores desesperançados contradizem sua própria prática. São homens e mulheres sem endereço e sem rumo. Perdidos na história. (FREIRE; FREIRE, 2019, p. 153, grifo do original).

Retomando esperanças, a partir de Políticas de Ações Afirmativas, essa universidade, que se permite renovar, possibilitará a produção de outra ciência e outra tecnologia, ora silenciadas. Quilombolas, trans, indígenas e pessoas com deficiência, reorientando educadoras desesperançadas e educadores desesperançados, para uma nova realidade social, que vem de fora para dentro das fronteiras da universidade, da pesquisa, do ensino, das relações constitutivas de novas histórias. Ao que somos desafiadas e desafiados, em como lidar com outras convicções (religiosas, ritualísticas, ancestrais), dentro dessa ciência que nos está posta, pois, hegemônica, asséptica, isenta de misticismos e de subjetividades, cabendo o alerta do intelectual negro brasileiro, Abdias do Nascimento: Há a tendência entre estudiosos e ‘cientistas’ de rotular o candomblé como ‘fetichismo’, magia negra, superstição, animismo, e outras pejoratividades [...] Incapazes de penetrar no sistema de pensamento por trás dos rituais, tentam destruir tudo. Isso com a ajuda do sistema de pensamento europeu ocidental que tem imposto através da coerção, às vezes até com o emprego da força armada, entre outros recursos, o que significa um elemento deveras subversivo dentro do chamado processo de assimilação, aculturação e sincretismo. (NASCIMENTO, 2016, p.139).

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E, isso, vai nos conduzindo, como professores, a sermos agentes sociais e mobilizadores, em busca do que há na subjetividade daquelas e daqueles com quem dialogamos, ante outra NdC e NdT. Estaremos afetados pelas mesmas linguagens? Caberá, em grande parte, à investigação temática freireana, o desafio de uma escuta sensível sobre histórias, intercomunicando-nos com essa nova coletividade acadêmica, pois A dialogicidade é uma exigência da natureza humana, de um lado; de outro, um reclamo da opção democrática do educador. No fundo não há comunicação sem dialogicidade e a comunicação se acha no centro mesmo do fenômeno vital. É neste sentido que a comunicação é, a um tempo, vida, a outro, fator de mais vida. (FREIRE; FREIRE, 2019, p. 130, grifos do original).

Egresso de escola pública, o coautor afro-brasileiro deste texto, por ocasião da ditadura cívico-militar (1964-1985), vivenciou uma educação tecnicista e manualizada, sob a L.D.B. n. 5.692, de 1971. De família de mestiços brasileiros (mãe com ascendência indígena; pai pardo, sendo tataraneto de pessoas traficadas e escravizadas na colônia), sentiu o silenciamento de suas origens, experimentando o projeto de favelização brasileira – intensificado pelas políticas de urbanização na década dos anos 1950. Pois, na década de seu nascimento, anos de 1970, o Brasil chegava a 56% da população urbana, fruto de deslocamentos e êxodos rurais, sem moradia digna para todos. Esse crescimento desordenado das cidades, configurando a metropolização, é desafio da escola pública, pela multiplicidade de sujeitas e sujeitos, de origens, de linguagens, de ritmos que nela precisam acessar. E, como a queremos? Em pluriversidade – seria uma primeira resposta. Em busca de melhores condições de infraestrutura sociotécnica, tecnológica e de trabalho remunerado, com garantia de direitos, o povo se desloca, arriscando não “se dar bem”, como nos mostra o refrão, em rhythm and poetry (Rap), do grupo de jovens brasileiros Invictus:


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Eu não sei mais o que é se dar bem Eles dizem dar certo E fazem o povo de refém [Só pra ganhar bens] Assim, não vamos viver Pra que nosso crescimento Também faça tu crescer (INVICTUS, 2018, s/p., transcrito pelos autores).

O Eles é o politiqueiro, o demagogo, o partido do corrupto, seus conchavos, produzindo o efeito social que o videoclipe nos mostra51. Um grupo de jovens mestiços cantam a lei das ruas, quanto ao que importa saber; mas, quando anoitece: os resultados de impostos sonegados, de isenções fiscais, de desvios de verbas, de lavagem de dinheiro público, de queima de arquivo, de legitimação da escravização moderna… Como também de decretos e regulamentações homologados, à revelia do povo (como vêm procedendo, na atual gestão presidencial do Brasil), alijando nosso Povo de direitos sociais, sexuais, sanitários, democráticos, culturais, cognitivos e ambientais. Isso infere, diretamente, sobre a formaconteúdo de produzir Ciências e Matemática, na escola pública, pois é verba pública, de tributos pagos pelo Povo, e da qual ninguém sairá invicto. E, os Rappers aprofundam a denúncia, ao dizerem: Mostro que Nego Drama / Não é só drama de nego É um grito de ascensão / Pra justiça aos negro, ao gueto Com a força de um tornado / Explosivo igual vulcão Mas congele com iceberg / Essas mente de embarcação Libertem Rafa Braga52 / Ou toma Temer de exemplo Roubou a grana dele / Mata a fome das criança Justiça e liberdade nas ruas / É o que eu contemplo Onde nem mais um bom homem / Mantém suas esperanças (INVICTUS, ibid., transcrito pelos autores).

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zLjaccEDPkA. Acesso em: 15 dez. 2020. Rafael Braga Vieira (Rafa Braga), 32, homem negro, catador de recicláveis, único condenado pela justiça brasileira por protestos públicos, ocorridos em 2013. 51

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O hip-hop lança luz sobre um fascismo que há no submundo: o d’Eles. Aqueles que querem nos ocultar, proceder em subterfúgio, ao modo da branquitude, sempre alçando o poder sobre nós-Outros. Por essa perspectiva, “É preciso pensar a relação do sujeito com a linguagem como parte da relação do sujeito com o mundo, em termos sociais e políticos.” (ORLANDI, 1996, p. 90). Importantes elementos para ensinar ciências, uma vez que “A inevitável presença do sujeito na história anuncia a sua presença irremediável, no seu possível outro lugar. Corpo favelado em presença no espaço público.” (ORLANDI, 2017, p. 151). Corpo-memória da pessoa negra, pobre. A pobreza atinge sobretudo a população preta ou parda, que representa 72.7% dos pobres, em números absolutos, 38.1 milhões de pessoas. E as mulheres pretas ou pardas compõem o maior contingente, 27.2 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza. (NERY, 2019, s/p.).

Esse recorte racial e de gênero mostra o corpo amortecido, como nos diz o capítulo 5: Réquiem para o escravo, do livro Crítica da razão negra, em que Achille Mbembe elabora uma alegoria, em uma seção intitulada: Do escravo e do espectro. Ao nos explicar sobre “a figura do espectro e a temática das sombras, do real e do sujeito”, dialoga com contos Yorubás, pela autoria do escritor nigeriano Amos Tutuola, para caracterizar a parte da sombra, ao nos dizer que: [...] o poder (de que dispõem os que veem a noite) de convocar, provocar o retorno e a aparição do espírito morto e também de sua sombra. A segunda é o poder, de que dispõe o sujeito iniciado, de sair de si e de se tornar espectador de si mesmo, da provação que é sua vida, incluindo eventos com a sua morte e o seu funeral. (MBEMBE, 2018, p. 241-242, grifos do original). Toda a energia aprisionada no corpo, sob a terra, nos rios, nas montanhas, no mundo animal e vegetal é liberada de uma vez e nenhuma dessas entidades mais tem equivalente ou referente identificável. Em troca, deixam de ser referentes do que quer que seja. (ibidem, p. 249).


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Pelo Rap engajado, chega-nos a denúncia sobre o que ocorre em espaços de poder institucional, estes que tendem a legitimar o racismo, e que se produz dentro do pacote de dispositivos de desrreferenciamento da negritude. Do drama da negritude; da fome, em ruas e favelas; do estado militarizado; do poder tomado a rebote, por via de extorsões, grilagens, agiotagens, queimas de arquivo, tráficos e ameaças pelo milicianato; da destruição de templos de matriz africana, infringindo o sagrado de sua fé; do projeto evangelístico missionário, cristianizante da periferia, como dispositivo de colonialidade que desidentifica raízes socioculturais; os artistas produzem o beat, para comunicar, pedagogicamente, uma epistemologia de Resistência a esses dispositivos. De outra forma-conteúdo, a cultura Yorubá invoca o poder de convocar e o poder de sair de si, para denunciar o projeto neoliberal da branquitude, este que é escravizador, por mente de embarcação. Mente, esta, que é refinada pelo imaginário colonizador, ancorando caravelas em seu ‘Novo Mundo’, que instaura massacres simbólicos e materiais, de viés civilizatório. Potentes espaços de interpretação, para situarmos o perigo da ‘ciência de embarcação’ e da ‘tecnologia de embarcação’, essas que podem ser desconstituídas e desnaturalizadas, pelo Ensino de Ciências e da Matemática, em interlocuções por uma investigação-ação participativa (IAP), instituída pelo sociólogo colombiano Orlando Fals-Borda (1925-2008). O autor nos coloca em um diálogo possível com a cultura institucional, dentro do fazer científico e tecnológico, a partir do que Somos, pela concretude comunitária, na essência da periferia. Da periferia de Moçambique De outro continente, pela voz do coautor moçambicano, deste texto, é demarcado o corpo-memória de suas vivências, ante o projeto político intitulado Ensino Primário para Todos (ZIMBICO; COSSA, 2018), que ocorreu entre os anos 1975 a 1990. Esse foi um projeto de construção

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do socialismo, que se deu no pós-independência, em 1975, e “que tinha definido a década de 1980 como de erradicação do analfabetismo, através da escolarização primária universal, no âmbito dos esforços da ‘década de vitória sobre o subdesenvolvimento’. ” (ibidem, p. 913). Imerso em 16 anos de guerras civis, Moçambique obteve trégua em 1992, com a assinatura do Acordo Geral da Paz, que deu início à chamada ‘democratização’. Para a materialização do projeto de formação do ‘homem novo’ (cidadão emancipado da dominação mental colonial), foram confiados os ‘grupos dinamizadores’ que, sob o centralismo democrático, deveriam difundir a linha política do partido FRELIMO53. Servindo-se das experiências das zonas libertadas durante a guerra colonial (1964– 1974), a educação foi posta ao serviço de ‘todo’ o povo moçambicano. (ZIMBICO; COSSA, 2018, p. 915).

O alargamento do acesso à escola pública moçambicana veio no mesmo compasso da compulsão neoliberal, em que divisas hegemônicas tiveram que fazer parte de lucrativos investimentos, em países excolônias. “Na sequência, desde 1987, Moçambique implementa um programa de reajustamento estrutural e de estabilização macroeconômica, para reduzir a pobreza, com apoio do Banco Mundial (BM) e Fundo Monetário Internacional (FMI).” (ibidem, p. 915). Essa é uma cadeia de dependência externa que contamina a produção de ciência, tecnologia, formação de especialistas, criação de institutos, centros de pesquisa e universidades. E, mesmo, a exemplo de ex-colônias, a mercadorização de nossa ‘democracia’. Ou seja, a instalação da colonialidade material e financeira, perpetuando agenciamentos de ordem socioeconômica, humana, ambiental, política e cultural. Embora com eleições multipartidárias, desde 1994, Moçambique tem experimentado sucessivas alternâncias de poder, em que se mantêm as mesmas condições de precariedade educacional da escola

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Partido da Frente de Libertação de Moçambique.


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básica, da formação de professores, de investimentos para acesso e permanência de estudantes na escola. Fome, guerras civis, corrupções, nepotismos, tensões de fundamentalistas religiosos (ex.: jihadistas ao sul do país – sunitas – querendo impor adesão ao estado islâmico), deslocamentos populacionais a nordeste do país (como exemplo: a província de Cabo Delgado, rica em gás natural), estado de militarização. Seguimos, também, com a compreensão interseccional, aliando diferenças entre gênero, racismo, classe, renda, religião, em que 55% da população de Moçambique vive abaixo da linha de pobreza – cf. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Human Development Report 2015 (INE, 2012). São fatos políticos e humanitários, para os quais a educação científica e tecnológica precisa se voltar, a partir desses corpos-memória, na escola básica. Ou seja, contingências de um país em que educar (a exemplo do Brasil) precisa ser um ato de amor, de esperança, de transformação de consciências, nos campos social e político. Pela linguagem matemática, vemos a necessidade de retornar, primeiramente, à linguagem que evoca do corpo-memória moçambicano, de tradição milenar, de nossas múltiplas heterogeneidades e contradições, identidades plurais e livres, para formarmos um ‘corredor de saberes’ (GASPARETTO, 2019), como metodologia de rede, pelo Sul global. Tudo isso requer movimento, agência pessoal, diálogo horizontal, com o que chegamos à compreensão de que não nos basta o conhecimento outrora definido como único, supridor de carências de nós, as subdesenvolvidas e os subdesenvolvidos, a Periferia, aquelas e aqueles que precisam sorver experiências do Centro. Ao contrário, precisamos trilhar outras veredas, buscar em nosso gene originário, tatear o ancestral. De forma que: Se nos deixarmos estar nesta posição e se pensamos que o ‘sedentarismo’ da ciência, e do cientista, se define a partir de um lugar ‘lá’, seremos sempre nômades da ciência. Se-

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guindo então o que diz C. Franz, somos esses exilados, filhos de três pátrias, que acabam vivendo em nenhuma, ou, o que, para o autor, dá no mesmo: pátria individual e secreta, a nossa solidão. Que eu prefiro formular como sendo a de nosso silêncio. (ORLANDI, 2017, p. 199, grifos do original).

Como nômades da ciência, nos posicionamos em defesa das pátrias, das terras e dos territórios de cidadãs e de cidadãos, livres, pela centralidade do que Somos, quer sejamos América Latina, Caribe ou África; quer sejamos países contidos no projeto de orientalização, por força de metodologias ocidentais; quer de povos deslocados de seus sentidos originários; quer de anistiados; quer de refugiados de guerras ou por catástrofes naturais; ou ainda, quer das pátrias em diáspora, que sentam nos bancos das escola pública com seus saberes-sentidos de Ciências, e com suas múltiplas linguagens matemáticas.

Diálogo em trânsito Em um contexto pandêmico, em que a letalidade do novo coronavírus (SARS-CoV-2) ceifou 2.20154 vidas, em Moçambique (país com 32,5 milhões de habitantes, sendo 51,3% de sexo normativizado como feminino, inclusive as não-binárias), e, 662.41455 vidas, no Brasil (país com 211,80 milhões de habitantes, sendo 51,0% de sexo normativizado como feminino, inclusive as não-binárias) – em dados atualizados até 23 de abril de 2022 –, sentimos grandes disparidades entre políticas de inclusão, saúde pública e acesso à tecnologia, condições de produção do que prentendíamos dialogar. Os discursos políticos e econômicos que se (re)produzem são marcados por ideologias massivamente neoliberais, verticalizadas, inferindo sobremaneira em nossos modos de ser, de fazer, de pensar, de estar no mundo e de nos relacionar com o Outro. Embora outrificados, 54 55

Capturado de: http://covid19.who.int/region/afro/country/mz. Acesso em: 23 abr. 2022. Capturado de: http://covid19.who.int/region/amro/country/br. Acesso em: 23 abr. 2022.


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subalternizados, periferizados, e, sobretudo, racializados, dado que somos reféns das múltiplas facetas da empresa colonial, que investem sobre a escola básica (sob métodos, organizações didáticas, currículos, materiais de ensino, avaliações, rankeamentos), temos nos lançado à dialogicidade, com sujeitas e sujeitos que se coadunam com uma virada do pensamento tecnocientífico, para a produção de sentidos pluriversos, quanto às cidadanias sociotécnicas, revisionando protagonismos e autorias, a partir de outras chaves onto-epistêmicas e ancestrais. Com isso, temos entendido que o trabalho das ciências, na assunção de uma NdC e uma NdT originárias, subsume por apropriações, espoliações, distorções, silenciamentos, apagamentos, assaltos históricos do colonizador. Tudo afetado pelo fenômeno modernidade/colonialidade, definidor da busca excessivamente desenvolvimentista, da tendência fortemente civilizacional, por um humanismo de centralidade iluminista, inculcando-nos seus não-problemas tecnocientíficos. Nosso diálogo tem se dado em um ‘corredor de saberes’ (GASPARETTO, 2019), entre Moçambique-Brasil-Moçambique, interconstituído por histórias políticas e formativas, a partir do nosso ambiente educacional. Assim, a pergunta inicial, instigada por Cassiani, Von Linsingen e Pereira (2016), desencadeou a reflexão sobre o que entendemos, como educadores, por duas crises epistêmicas: o pensamento-linguagem ocidental sobre as Ciências da Natureza e a Matemática; e, os resultados que disso provieram sobre o uso, a manipulação, a experimentação da natureza humana e não-humana. Focados nisso, perseguimos as condições de significação do que contêm nossos discursos, deflagrando que os aprendizados na periferia Sul global produziram a centralidade do que somos, corporificados, assim: pelo recorte binário de homens, racializados como negros e colonizados, na periferia do mundo; ou seja, produzidos para um projeto nefasto de reprodução de desigualdades. Pois, subjugados e situados dentro de um racionalismo instrumental e cartesiano.

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Atentos às circunvoluções tecnológicas, que traduzem novas formas e conteúdos de lidar com o mercado de produtos e serviços (ex.: serviços de autoatendimento em mercados, aeroportos, bancos; URA digital – reconhecimento de voz; redes sociais de relacionamento online; webconferências; telemedicina; inteligência artificial; holografia; dentre outros), as mesmas produzem desafios com a formação de presentes e futuras gerações de estudantes e de professoras e professores, na Escola Básica. Sobretudo, para a educação científica e tecnológica, que precisa lidar com uma formação discursiva que sustente a historicidade do sujeito, suas condições de produção e de significação, para a ideologia a que tem servido. Vez em que têm argumentado os jovens: estudar para quê? E, por quê? Por tais variáveis, acreditamos na investigação temática freireana, pois o sermos mais plurais (como esperamos das políticas de ações afirmativas), como interlocutores, não nos garantirá que estejamos em defesa de pautas próprias, identitárias, mas que apenas seremos parte de um imaginário matizado. Daí, que recorremos à condição do corpomemória, para essa nova dialogicidade, pois o corpo tem o que a história lhe contém. Mas também, atentos à ‘ciência da embarcação’ e à ‘tecnologia da embarcação’, que nos reproduzem em colonialidade, situamos a filosofia e a sociologia contidas na metodologia da investigação-açãoparticipativa falsbordiana, para que ensinemos Ciências da Natureza e Matemática, no sentido de estabelecer elos e canais de interlocução comunitária, a partir de conexões ancestrais, originárias. Entre o Rap engajado, as premissas freireanas, a sociologia/filosofia falsbordiana, a concepção de cidadania sociotécnica, a democracia participativa, compreendemos que tudo se dá por influxos de saberes, identificações socioculturais, resistências indígenas, movimentos sociais, feminismos plurais, coletivos negros, redes de pesquisadores afro-latino-ame-


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ricanos. Enfim, espaços e tempos de interpretação, para a ação de historicizar diálogos, situando-nos, politicamente, em defesa de pátrias com cidadanias pluriversas.

Agradecimentos Agradecemos, especialmente, à professora Tatiana Galieta e ao professor Irlan von Linsingen, pelo sucesso na realização da disciplina condensada Estudos Decoloniais, Epistemologias do Sul e Temáticas Socioambientais na Educação Científica e Tecnológica, oferecida pelo PPGECT/UFSC, em 2019-1, que mobilizou nosso diálogo. Como também ao Programa de Estudantes-Convênio de Pós-Graduação (PEC-PG), da CAPES.

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