DOI: doi.org/10.29327/565971.1-8
O encantamento como pedagogia feminista: rompendo a cumplicidade feminista com a colonialidade62 Wonder as Feminist Pedagogy: disrupting feminist complicity with coloniality Fabiane Ramos1 Laura Roberts2 1 Fabiane Ramos recebeu seu PhD em Educação pela University of Queensland, Meajin (Brisbane), onde ensinou estudos educacionais, estudos de gênero e linguística antes de assumir o cargo de professora no programa de acesso ao ensino superior na University of Southern Queensland, em 2022. Seu trabalho é interdisciplinar com ênfase nas conexões entre as teorias feministas e decoloniais em reimaginar realidades e possibilidades éticas para nossos futuros coletivos. Em sua pesquisa atual, Fabiane está aplicando esse enfoque teórico às suas práticas pedagógicas no contexto do ensino superior australiano e às suas experiências como mulher imigrante acadêmica. E-mail: Fabiane.Ramos@usq.edu.au / ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0690-1681 2 Laura Roberts recebeu seu PhD em Filosofia pela University of Queensland, Meanjin (Brisbane), onde ensinou filosofia e estudos de gênero antes de assumir o cargo de professora de Mulheres e Gênero na Flinders University em 2020. Ela é autora de Irigaray and Politics: A Critical Introduction (Edimburgo: Edinburgh University Press, 2019), co-editora de uma edição especial de Sophia sobre 'Irigaray and Politics' (2021) e publicou artigos em antologias e periódicos, incluindo Hypatia e Australian Feminist Studies.
Resumo: Este artigo documenta nossa luta contínua e colaborativa para impedir a reprodução da colonialidade do conhecimento no ensino dos Estudos de Gênero. Documentamos como nosso ativismo feminista decolonial é atualizado em nossa pedagogia, que é guiada por interpretações feministas do 'encantamento' (IRIGARAY, 1999; AHMED, 2004; hooks, 2010) lido juntamente com a teoria decolonial, incluindo a de Ramón Grosfoguel, Walter D. Mignolo e María Lugones. Usando noções do encantamento como pedagogia, tentamos criar espaços em nossas salas de
Artigo traduzido da versão original, em inglês, publicado pela revista Feminist Review: RAMOS, F.; ROBERTS, L. Wonder as Feminist Pedagogy: disrupting feminist complicity with coloniality. Feminist Review, n. 128, 2021. p. 28-43. Disponível em: https://doi.org/10.1177/01417789211013702. Acesso em: 9 mar. 2022. 62
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aula, onde a autorreflexão crítica e o engajamento crítico intelectual e incorporado possam emergir. Nossas tentativas de criar esses espaços incluem múltiplos aspectos ou fios que, quando entrelaçados, podem permitir outras formas de saber-serfazer que funcionam no sentido de romper a cumplicidade feminista com a colonialidade no contexto australiano. Palavras-chave: Estudos de gênero. Colonialidade. Decolonialidade. Encantamento. Pedagogia feminista. Sara Ahmed. Luce Irigaray. María Lugones.
“É
ATRAVÉS DO ENCANTAMENTO”, Sara Ahmed (2004, p. 180) escreve “que a dor e a raiva ganham vida”, levando-nos a perceber que “o que dói e o que causa dor... não é necessário e pode ser desfeito bem como feito”. Para Ahmed (ibid., p. 181), portanto, o encantamento “energiza a esperança de transformação... a vontade para a política”, e é a chave para a pedagogia feminista. Inspiradas por Ahmed, e pensando em como as noções de encantamento, como pedagogia, contribuem para abordagens feministas decoloniais mais amplas, nosso artigo explora como empregamos interpretações de encantamento em nossas pedagogias, na tentativa de desafiar a violência epistêmica e ontológica contínua, da lógica colonial, na Academia e no feminismo dominante. Este artigo, portanto, documenta nossa luta contínua, colaborativa, para impedir a reprodução da colonialidade do conhecimento no ensino de Estudos de Gênero, e nossas tentativas de atualizar abordagens feministas decoloniais nas salas de aula da universidade. Enquanto dávamos aulas de Estudos de Gênero, em caráter informal, em uma universidade australiana, com foco em pesquisa, de 2017 a 2019,63 como duas acadêmicas em início de carreira, reconhecemos uma abertura através da qual poderíamos começar a romper o problema da cumplicidade feminista com a colonialidade, por meio de nossas práticas de ensino. No início de 2020 e 2022, Laura Roberts e Fabiane Ramos nos mudamos para outras universidades australianas, mas ambas continuamos a desenvolver o conceito de encantamento comum, como práxis pedagógica. Por esta razão, usamos, principalmente, o tempo presente, para discutir nossas práticas. 63
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Este artigo explora como entendemos essa cumplicidade com a colonialidade, bem como teoriza e documenta nossos esforços colaborativos, para resistir a essa questão contínua, dentro do feminismo acadêmico dominante. Documentamos como nosso ativismo feminista decolonial é atualizado em nossa pedagogia, que é guiada por interpretações feministas de 'encantamento' (IRIGARAY, 1999; AHMED, 2004; hooks, 2010), lido juntamente com a teoria decolonial, incluindo a de Ramón Grosfoguel (2007, 2012, 2013), Walter D. Mignolo (2009, 2011) e María Lugones (1987, 2003, 2007, 2010). Usando noções do encantamento como pedagogia, tentamos criar espaços em nossas salas de aula, onde a autorreflexão crítica e o engajamento crítico intelectual e materializado possam emergir. Nossas tentativas de criar esses espaços incluem múltiplos aspectos ou fios que, quando entrelaçados, podem permitir outras formas de saber-ser-fazer que funcionam no sentido de romper a cumplicidade feminista, com a colonialidade no contexto australiano.
Colonialidade e estudos de gênero na Austrália Antes de nos voltarmos para nossas ideias de encantamento como pedagogia, é necessário primeiro articular o que entendemos por colonialidade e suas ligações com os Estudos de Gênero, bem como comentar sobre o local de onde falamos (Meanjin, Brisbane, Austrália). Para nós, o fundamento da colonialidade é baseado em estruturas de poder e lógicas geradas, durante a era colonial, tais como “a divisão internacional do trabalho (centro-periferia), a hierarquia racial/étnica (ocidental e não ocidental), a hierarquia cristianocêntrica patriarcal de gênero/sexualidade e o sistema interestadual (poder militar e político).” (GROSFOGUEL; OSO; CHRISTOU, 2015, p. 641). Colonialidade, conforme Nelson Maldonado-Torres (2007, p. 243), “refere-se a padrões de poder de longa data que surgiram como resultado do colonialismo, mas
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que definem cultura, trabalho, relações intersubjetivas e produção de conhecimento muito além dos limites estritos de administração colonial.” A colonialidade, portanto, oferece um quadro valioso para uma análise que leva em consideração como a Austrália contemporânea foi moldada pelas complexidades e ambiguidades de sua história única, como uma colônia de colonos europeus brancos, geograficamente situada na Oceania. Ao definir colonialidade, Aníbal Quijano (2000) explica que à medida que os países da Europa Ocidental se consolidavam como o centro do capitalismo, durante sua expansão colonial, passaram a deter o controle hegemônico do mercado mundial, dos meios de produção e da força de trabalho e, consequentemente, tornaram-se o centro de produção de conhecimento global. Pensando na importância filosófica do controle da Europa Ocidental sobre a produção de conhecimento global, Maldonado-Torres (2007) relaciona a colonialidade à formulação filosófica de René Descartes do cogito ergo sum: Penso, logo existo. Maldonado-Torres (ibid., P. 252) argumenta que essa noção “pressupõe duas dimensões não reconhecidas”; ele observa: “Sob o 'eu penso' podemos ler 'os outros não pensam', e por trás do 'eu sou' é possível localizar a justificativa filosófica para a ideia de que 'os outros não são' ou não podem ser” (ibid.). Maldonado-Torres (ibid., p. 252-253) associa a colonialidade do conhecimento à colonialidade do ser e afirma que “a ausência de racionalidade está articulada na modernidade com a ideia da ausência do Ser nos outros”. Maldonado-Torres afirma que a racionalidade, determinada pelo projeto da modernidade, atua no sentido de excluir diversos indivíduos indígenas, colonizados e feminizados da categoria de conhecedor/produtor de conhecimento, bem como do âmbito humano e, portanto, da existência. Com base nessa argumentação, fica evidente que a produção de conhecimento e pesquisa nas universidades têm sido elementos fundamentais para o estabelecimento da colonialidade e, mais especificamente,
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da colonialidade do conhecimento. Apoiadas pelo domínio econômico, político e tecnológico, as universidades ocidentalizadas tiveram o poder de produzir e difundir um certo tipo de conhecimento acadêmico concebido como universal, neutro e oficial, produzido por um grupo privilegiado de 'conhecedores/sujeitos' (GROSFOGUEL, 2013; McDOWALL; RAMOS, 2018). Portanto, é fundamental que entendamos a gravidade dessa situação, ao considerar ou imaginar um desafio feminista decolonial à colonialidade do conhecimento e do Ser. Articular formas incorporadas feministas decoloniais de conhecer e pensar desafia fundamentalmente essa lógica do cogito cartesiano, sua neutralidade ilusória e suas 'dimensões não reconhecidas', à medida que se move em direção a outras formas de saberfazer e, em última análise, ser.64 No contexto australiano, a posição de conhecedores/sujeitos privilegiados está profundamente ligada à lógica da colonialidade. Desde o início da colonização, o conhecedor/sujeito é conceituado como homem cisgênero heterossexual, de classe média/alta, de ascendência anglo-britânica. Assim, os grupos de pessoas que não se enquadram nesses descritores são reduzidos à categoria de 'conhecido/objeto'. Os movimentos feministas e a disciplina acadêmica dos Estudos de Gênero têm lutado por muito tempo para trazer as mulheres (e mais recentemente as pessoas de diferentes gêneros e sexualidades, além das divisões binárias e normativas), para a esfera do conhecedor/sujeito. Em diversos aspectos, a disciplina fez progressos importantes nesse sentido; no entanto, a colonialidade, ainda, governa a lógica subjacente do feminismo dominante e, por associação, dos Estudos de Gênero. As lutas e a criação de conhecimento, nesse campo, têm se centrado tradicionalmente na situação difícil das mulheres brancas cisgênero de classe média (com uma presença recente mais expressiva de queer e, até Para mais informações, consulte Lugones (2007, 2010) e duas edições especiais recentes de Hypatia: Indigenizing and Decolonizing Feminist Philosophy (BARDWELL-JONES; McLAREN, 2020) e Toward Decolonial Feminisms (VELEZ; TUANA, 2020). Luce Irigaray não adota uma abordagem explicitamente decolonial, mas sua crítica da lógica cartesiana é útil para esses debates (ver ROBERTS, 2019). 64
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certo ponto, transgêneros), do Norte Global.65 É este local que produziu o que conhecemos, hoje, como o cânone dos Estudos de Gênero. Desse modo, parece inegável a cumplicidade em sustentar uma lógica colonial de produção de conhecimento, com centro e margens claros. É importante notar, entretanto, que mudanças para desafiar e mudar este aspecto dos Estudos de Gênero têm acontecido. Há uma tendência clara para a inclusão e a diversidade, com a interseccionalidade se tornando uma frase-chave nos currículos dos Estudos de Gênero. Porém, uma questão difícil e crucial permanece. Essas mudanças vão além da simbolização e ações de bem-estar, baseadas na inclusão de mulheres de cor e/ou representantes de outros grupos desprivilegiados na lista de leitura? O perigo é que surja um falso sentido de diversidade, inclusão e, para efeito desta discussão, decolonialidade, quando de fato a lógica hierárquica da produção do conhecimento, com um claro cânone legítimo, permanece intocada. As feministas são rápidas em criticar os "homens brancos mortos" do cânone ocidental, mas com que frequência voltamos o olhar crítico para o que e como ensinamos nos Estudos de Gênero e suas consequências na perpetuação da colonialidade? Mignolo (2009, p. 162) argumenta que “não é suficiente mudar o conteúdo da conversa, [mas sim] mudar os termos da conversa... [e] ir aos próprios pressupostos que sustentam o locus de enunciação”, sendo que locus de enunciação refere-se à “localização geopolítica e corpo-política do sujeito que fala” (GROSFOGUEL, 2007, p. 213). Assim, para que um projeto decolonial ocorra nos Estudos de Gênero (considerando que é possível), são necessárias questões profundas sobre o locus de enunciação e as estruturas de produção do conhecimento. Não é suficiente incluir mais vozes nas narrativas dos Estudos de Gênero, se a colonialidade Apesar das limitações com o Norte/Sul Global, como terminologia, empregamos esses termos guiados pela definição de Mignolo (2011, p. 166) do Sul/Norte Global como áreas do globo 'delimitadas de maneira difusa', que não representam, necessariamente, localizações geográficas. Seguindo a definição de Mignolo de Norte/Sul Global, como metáforas, para representar as desigualdades globais de poder/econômicas/sociais/políticas atuais, incluímos a Austrália na categoria Norte Global. 65
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subjacente do conhecimento que governa os próprios termos da conversa permanece incontestada. E, no contexto australiano, tomamos nosso entendimento da cumplicidade feminista com a colonialidade de Aileen Moreton-Robinson (2000). Moreton-Robinson, uma mulher goenpul do povo Quandamooka (Moreton Bay), escreve: A branquitude patriarcal funciona secretamente para apoiar as feministas brancas a serem racialmente desencarnadas, à medida que seu pensamento, conhecimento e escrita se tornam mais consistentes com a epistemologia e as disciplinas masculinas ocidentais. A branquitude patriarcal leva as mulheres a pensar que sua epistemologia não é afetada por esse processo por causa da 'liberdade acadêmica' e de seu posicionamento como sujeito/conhecedor. Nossa capacidade de conhecer e nossas experiências são limitadas, portanto os pontos de vista são parciais assim como os conhecimentos que produzimos. Encontrar maneiras de colocar uma política de diferença em prática exigirá mais do que incluir voz ou abrir espaço para as mulheres indígenas no feminismo australiano. Isso requer que o privilégio da raça branca seja possuído e desafiado por feministas brancas engajadas na pedagogia e na política antirracistas.(MORETON-ROBINSON, 2000, p. 351).66
Política de localização/posicionalidades Seguindo as palavras de Moreton-Robinson (2000, p. 351), concordamos que um dos problemas da cumplicidade feminista com a colonialidade na Austrália é que muitas autoras da cultura feminista dominante permanecem desencarnadas em seu pensamento, deixando de dar conta de suas posições internas ao estado colonizador colonial e às
Este artigo não tem espaço para explorarmos adequadamente os vínculos íntimos entre o capitalismo, a neoliberalização do ensino superior e a colonialidade do conhecimento. Reconhecemos, no entanto, esses vínculos importantes e observamos que a jornada em direção à decolonialidade no currículo deve levar em conta esses vínculos e as formas como as intersecções dessas estruturas restringem o acesso a salas de aula universitárias para muitos grupos minoritários. 66
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estruturas racistas que ele defende. Diante disso, exigimos uma pedagogia que considere os saberes incorporados, que ambas trazemos para a sala de aula, como professoras, os saberes incorporados de palestrantes convidadas e as diversas localizações sociopolíticas das alunas. Um de nossos primeiros passos, então, é reconhecer nossa própria política de localização (RICH, 1986). Somos mulheres migrantes que, agora, vivemos no estado colonial da Austrália. Assim, reconhecemos nossa cumplicidade geopolítica pessoal com este sistema.
Fabiane Ramos Lembro de mim mesma com 21 anos, uma mulher cisgênero de pele marrom-clara, recém-saída do avião, recém-chegada à Austrália.67 Logo fui informada de que não era branca, mas tinha um tom de pele aceitável, dentro de uma estrutura de poder complicada, com respeito a tons de pele. Fui recebida com um visto de residente, que foi concedido à minha pessoa instruída de classe média. Mas logo percebi que nem todas as recém-chegadas e recém-chegados recebiam o mesmo 'G'day' com um sorriso. Lembro de mim mesma, como aluna de graduação, aprendendo na aula de linguística sobre a retórica usada pelo então governo de Howard, para desumanizar refugiados. Lembro-me de quando comecei na área de ensino de Inglês, como língua adicional (EAL), e senti uma sensação de desconforto no forte contraste das experiências de migração entre minhas alunas e alunos, em uma faculdade particular privilegiada, e as recém-chegadas e os recém-chegados, refugiadas e requerentes de asilo que ensinei. Esse desconforto continuou nos primeiros dias de meus estudos de doutorado, quando comecei a tomar consciência de como o conhecimento sobre as pessoas do Sul Global era produzido em pesquisas.
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Toda esta seção de posicionalidade foi adaptada de Ramos (2018).
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Lembro-me, também, que, desde o início da minha história na Austrália, fiquei comovida com as atrocidades que a colonização infligiu e ainda inflige aos povos aborígenes. Achava que tinha entendido a ilusão e as mentiras da terra nullius. No entanto, durante boa parte dos dezessete anos, desde que migrei para a Austrália, não conseguia me ver como colonizadora. Para mim, o colonizador era uma pessoa branca que veio para cá há muito tempo. Eu era simplesmente uma imigrante não branca. E, como às vezes sofro algumas das opressões que podem estar ligadas a essa posição, eu não enxergava minha cumplicidade com a colonização e deslocamentos contínuos dos guardiões tradicionais da Austrália. Como nova colonizadora-imigrante, tenho o direito de ficar e competir pelos privilégios aos quais os cidadãos australianos têm acesso, baseados em genocídio e expropriação. Ao mesmo tempo, ainda sou considerada estrangeira, apesar de meu status de cidadã. Desde que cheguei, fui socializada em um sistema no qual aqueles que detêm o poder de decidir, se tenho permissão para ficar ou não – se posso pertencer ou não –, são uma classe dominante de australianos brancos (MORETON-ROBINSON, 2003). Não precisei pedir a nenhum dos guardiães tradicionais desta terra se poderia, por favor, vir e ficar. Não precisei solicitar um visto a eles. Não precisei me inserir em suas instituições e cultura(s). Em contraste, eu tive que fazer todas essas coisas em relação ao estado-nação da Austrália e seu grupo principal de habitantes. E eu não poderia, de forma alguma, ignorar o fato de que a lei e todas as instituições das quais faço parte, agora, são controladas por pessoas que reivindicam a posição de 'verdadeiros australianos' (ibid.). Os australianos aborígenes não fazem parte do imaginário australiano inventado e das normas apresentadas aos novos colonizadoresimigrantes. Eles são ignorados e deixados de lado. O desejo de contestar essas lógicas e injustiças começou a crescer, à medida que comecei a entender meu lugar nessas realidades emaranhadas.
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Meus olhos começaram a ver além das paredes construídas, em torno do espaço que me disseram para ocupar na Austrália e na academia (algo como: 'você pode ficar, mas não cause problemas, porque afinal você não é realmente uma de nós'). A necessidade de desobedecer fervilhava. Comecei a entender que “a parede é feita de sedimentos: daquilo que assentou e acumulou ao longo do tempo” (AHAMED, 2012, p. 12). Em vez de aceitar os sedimentos como obstáculos, decidi escalar a parede. Eu prefiro “transformar a parede em uma mesa”, transformando o objeto obstrutivo em uma plataforma para a ação (ibid.). Enquanto buscava respostas e me preparava para escalar a parede, aconteceram transformações importantes. Aprendi coisas que não podem ser desaprendidas ou ignoradas. Concordo com Gloria Anzaldúa (1987, p. 48), quando diz que “saber é doloroso porque depois que acontece eu não consigo ficar no mesmo lugar e ficar confortável. Não sou mais a mesma pessoa que era antes”. Durante os primeiros estágios de minha pesquisa de doutorado, aprendi aspectos da pesquisa em Ciências Sociais que me incomodavam: afirmar conhecer o Outro como objeto do olhar do pesquisador; homogeneizar grupos de pessoas com rótulos de teorias mestras; falar de uma posição desligada, como se o pesquisador não estivesse profundamente implicado no processo (TUHIWAI SMITH, 1999; MIGNOLO, 2009; GROSFOGUEL, 2012). Foi nessa época que conheci um grupo de estudiosas que trabalhavam com teorias decoloniais, e iniciamos uma cooperativa de estudos. Este foi um ponto de inflexão para mim, pois colaborar e aprender com este grupo abriu a possibilidade de outras formas de saber-ser-fazer na academia. Foi por meio da cooperativa que conheci Laura Roberts, e logo uma aliança de amizade floresceu. Desde o início, criamos organicamente um espaço mútuo, seguro, que permitiu a união de nossos encantamentos e desejos individuais, compartilhados para gerar mudanças. Juntas nos sentimos mais fortes, para transformar paredes em mesas, em nossas plataformas de ação.
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Laura Roberts Eu sou uma mulher branca, filha de pais britânicos da classe trabalhadora. Eu nasci em Durban, Kwa-Zulu Natal, África do Sul, a segunda maior cidade do país, e entrei no Ensino Médio, enquanto o país estava desmantelando o apartheid e fazendo a transição para a democracia. Fui a primeira geração de alunas do Ensino Médio sul-africano a experimentar a decolonização de nosso sistema educacional e currículo nacional. Lemos histórias que antes eram proibidas sob o governo do apartheid, e, em sala de aula, exploramos por meio da literatura e das peças, com a ajuda de professoras brilhantes e destemidas, entendimentos diferenciados das maneiras como raça, classe e gênero estão sempre emaranhados. As leis racistas do governo do apartheid e o privilégio da branquidade foram elucidados de maneira constrangedora na sala de aula, assim como nos corredores das escolas. Não foi um trabalho fácil, mas era a nossa realidade. Apesar de seus próprios problemas complexos, Durban é uma cidade etnicamente diversa e, nesse sentido, bastante diferente do resto da África do Sul, com uma população majoritária de zulus e um grande número de descendentes de britânicos e indianos (estes dois últimos grupos representando cerca de 50 por cento da população total, no início dos anos 2000). E, dada a localização de meu colégio estadual, meu grupo refletia amplamente essa tendência demográfica. Quando entrei na Universidade de Kwa-Zulu Natal, as alunas e os alunos brancos eram minoria, em um grupo grande e variado. Embora todos nós tivéssemos alguma noção da gravidade das mudanças ao nosso redor, somente após reflexão e muito envolvimento com a filosofia decolonial e feminista, que aprecio a importância desses anos na formação de minha posicionalidade. O currículo, minhas professoras e professores e minhas colegas de classe, juntas, ofereceram um espaço único para entender o que agora posso chamar de colonialidade do conhecimento e colonialidade do Ser. Sim, a branquidade
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ainda detém muitos privilégios na África do Sul pós-apartheid, mas essa branquidade nunca é invisível; é constantemente desafiada e responsabilizada. É por isso que, quando cheguei à Austrália, com 20 e poucos anos, a branquidade 'invisível' da universidade, do currículo, dos professores e de meus colegas de classe foi um choque. Nunca me esquecerei de sentar-me em uma grande sala de aula durante minhas primeiras semanas na universidade na Austrália e perceber isso. Embora eu agora entenda os séculos de resistência aborígene à colonização e à colonialidade do conhecimento no trabalho na universidade, que continua até hoje, como uma nova migrante e estudante de graduação, no início dos anos 2000, parecia que a branquidade patriarcal da instituição e o currículo não estavam sendo questionados ou ativamente desafiados por muitas acadêmicas ou alunas. Não me entendam mal; minha intenção aqui não é romantizar a transição para a democracia na África do Sul e imaginar esses tempos, como o projeto decolonizador perfeito. Precisamos apenas relembrar os protestos de Rhodes Must Fall, de 2015, para reconhecer que, talvez, a decolonização das instituições de ensino superior, que começou há vinte anos, não tenha realmente acontecido, ou certamente não foi rápida o suficiente. Meu ponto é que minha política de localização, para usar a frase de Adrienne Rich (1986), foi formada durante essa época e lugar, e me localizar nesta posição de sujeita significa compreender minha perspectiva limitada, corporificada. Rich escreve: Este corpo. Branco, feminino; ou feminino, branco. Os primeiros fatos óbvios ao longo da vida. Mas eu nasci na ala de brancos de um hospital que separava mulheres negras e brancas em trabalho de parto e bebês negros e brancos no berçário, assim como separava corpos de negros e brancos em seu necrotério. Eu fui identificada como branca antes de ser identificada como mulher. (ibid., p. 215)
Segundo Rich (ibid., p. 216), reconheço “essa pele branca, os lugares que ela me levou, os lugares que não me deixou ir”. Este reconhecimento está gravado no meu corpo, e surge do fato de ter amadurecido
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em um país onde era inimaginável não saber como a brancura da minha pele estava implicada em uma das mais recentes instâncias do projeto colonial: o apartheid. Ainda estou aprendendo a história real da Austrália e o genocídio dos povos indígenas das Primeiras Nações, que ocorreu no país que agora hesito em chamar de lar. Esse sentimento assustador permanece, embora agora tenha as ferramentas conceituais e a linguagem para entender meu lugar dentro desse sistema colonial, bem como para articular esse mal-estar e essa injustiça. Em resposta a esta inquietação, vejo minha pesquisa e prática de ensino, como uma forma de desafiar a cumplicidade mais ampla com a colonialidade na academia, bem como, especificamente, para romper a cumplicidade feminista com a colonialidade que nos rodeia.
Descobrindo o encantamento em parceria: o encantamento como pedagogia feminista Nós nos conhecemos durante nosso doutorado por meio do envolvimento com a cooperação decolonial na Universidade, e nossa aliança de amizade floresceu, a partir daí. Juntamos forças e começamos a co-ministrar os cursos de Estudos de Gênero. Levando a sério o desafio de Aileen Moreton-Robinson (2003), às feministas brancas na Austrália, começamos a pensar em maneiras pelas quais poderíamos desafiar a branquitude patriarcal e a colonialidade nas aulas que lecionamos. Reconhecendo a cumplicidade de muitos estudos e pedagogia feministas com a colonialidade, na Austrália e em outros países, queríamos encorajar as alunas e alunos, nas nossas aulas de Estudos de Gênero, a compreenderem, bem como desafiar a lógica colonial na instituição e no feminismo dominante, bem como em suas próprias vidas e comunidades mais amplas. Durante nossas reflexões críticas iniciais,
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enquanto procurávamos maneiras de incorporar esses desafios à colonialidade, em nossas salas de aula, a noção de encantamento como pedagogia feminista emergiu. Junto com o trabalho de Sara Ahmed, nos envolvemos com Luce Irigaray e Bell Hooks, cujos escritos sobre ensino e encantamento inspiram e embasam nossa práxis de pesquisa e ensino. Bell Hooks escreve: […] Um elemento de sabedoria prática que vem com o pensamento crítico que está atento e consciente é a experiência contínua de encantamento. A capacidade de ficar encantado, animado e inspirado por ideias é uma prática que abre radicalmente a mente. Empolgados para aprender, extasiados com pensamentos e ideias, como professores e alunos, temos a oportunidade de usar o conhecimento de maneiras que transformam positivamente o mundo em que vivemos [...] Consequentemente, existe a capacidade das ideias de esclarecer e aumentar nosso senso de encantamento, nosso reconhecimento do poder do mistério. (HOOKS, 2010, p. 188).
Pensar a pedagogia como encantamento permite-nos explorar o que significa ensinar e saber, questionando a diferença entre a transmissão de informação e o conhecimento e afeto corporificados. É nesse sentido que propomos que aprendamos-ensinemos-aprendamos, pelo encantamento. Em nossa definição, deste como pedagogia, nos inspiramos nas palavras da escritora feminista Sara Ahmed (2004, p. 180), que nos diz: “O encantamento é o meio pelo qual outras possibilidades se abrem [...] o encantamento expande nosso campo de visão e tato [...] o encantamento significa aprender a ver o mundo como algo que não tem que ser [...] o encantamento implica aprender.” Ahmed (ibid., p. 180-183) acrescenta: “O encantamento é o que me trouxe ao feminismo; o que me deu a capacidade de me chamar de feminista. Certamente, quando tive o primeiro contato com o feminismo e comecei a ler minha própria vida e a vida das outras de maneira diferente, tudo se tornou surpreendente.”
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Em sua reflexão sobre o encantamento, Ahmed menciona a leitura de Irigaray da obra de René Descartes sobre as paixões. Pensando no encantamento, como pedagogia, e no encantamento, como abertura de um espaço para o novo, “uma esperança de transformação” (AHMED, 2004, p. 181), passamos a meditar por um momento com o pensamento de Irigaray sobre o encantamento.68 Irigaray (1999) relê As Paixões da Alma (1649), de Descartes, e está mais interessada em seu pensamento sobre o encantamento, como uma paixão sem um oposto. O foco de Irigaray no encantamento, como uma paixão sem um oposto – uma ação que é ativa e passiva –, alude a uma forma de saber-ser-fazer que, fundamentalmente, desafia lógicas coloniais binárias e dicotômicas, de conhecedor e conhecido. Além disso, como sugere Ahmed, sem um oposto, a paixão ou o movimento do encantamento abrem espaço para que algo novo surja: propõe uma lógica relacional não-dicotômica. E nos escritos de Irigaray sobre o encantamento, ela oferece uma abertura sutil para teorizar uma relacionalidade não-apropriativa que interrompe a lógica patriarcal colonial, ao mesmo tempo que oferece um modelo de coexistência ética (e pedagogia), que não resulta em apropriação ou silenciamento de um outro. Sugerimos que o pensamento de Ahmed e Irigaray sobre o encantamento, como uma relacionalidade não apropriativa que abre espaço para o novo, pode ser lido ao lado do pensamento de Moreton-Robinson sobre os pontos de vista aborígenes, para romper a cumplicidade feminista com a colonialidade. Isso porque o encantamento, como veremos, exige que cada sujeita leve a sério seus pontos de vista e limites ao conhecimento. Lemos essas pensadoras juntas para teorizar nossas próprias posicionalidades, projeto de currículo e práticas de ensino. Reconhecemos o aparente paradoxo de nos voltarmos para a leitura de René Descartes por Irigaray, dadas as maneiras como Maldonado-Torres (2007) e outros usam o argumento do cogito de Descartes, para apoiar seu trabalho sobre a colonialidade do Ser. No entanto, acreditamos que o trabalho decolonial deve desafiar a ideia de que o conhecimento eurocêntrico é a única fonte de conhecimento válido, alegando pluralidade, em termos de locus de enunciação, ao invés de ignorar ou não abordar esse trabalho. 68
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Usando essas noções de encantamento, começamos a traçar pedagogias e novas histórias que esperam nutrir formas feministas decoloniais de saber-ser-fazer. Crucialmente, essas maneiras de saber-serfazer estão fundamentadas na materialidade de nossas vidas, em nossas diferenças vividas e em nossos vários pontos de vista. Diante disso, o encantamento como pedagogia interrompe uma racionalidade desencarnada, uma posição de sujeito desencarnado de conhecedor, que Moreton-Robinson, justamente, desafia. Ao ler as meditações de Ahmed e Irigaray sobre encantamento, ao lado do desafio de Moreton-Robinson às feministas brancas, fazemos questão de destacar uma confluência que vemos em seu trabalho. Todas as três estudiosas se interessam por questões de epistemologia e, em particular, essa noção dos limites do conhecimento ou pontos de vista. Moreton-Robinson (2000, p. 351) observa que “nossa capacidade de saber e nossas experiências são limitadas, portanto os pontos de vista são parciais e também os conhecimentos que produzimos.” Destacamos também as formas pelas quais a jornada para uma relação de conhecimento ético entre professoras e alunas, em sala de aula, pode ser reimaginada como uma relação ética não apropriativa de coexistência. Com base em seu trabalho sobre encantamento, como uma relação intermediária, em seu livro I Love to You, Irigaray (1996, p. 112) escreve que, embora você nunca venha a 'me conhecer' – porque me conhecer significa se apropriar de mim – você pode, no entanto, ainda “percebo as direções e dimensões de minha intencionalidade. É importante ressaltar que você pode me ajudar a me tornar eu mesma.” Irigaray, argumentamos, fornece uma maneira importante de teorizar um encontro para aprender um com o outro sem apropriação. Acreditamos que esta é uma maneira interessante de teorizar o que acontece em uma sala de aula. Para perceber minha intencionalidade eticamente, Irigaray (ibid., p. 116) sugere que devemos cultivar o silêncio e aprender a ouvir com atenção. Irigaray (ibid.) escreve: “Eu te ouço: percebo o que você está di-
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zendo, estou atenta a isso, estou tentando compreender e ouvir sua intenção. O que não significa: eu te compreendo, eu te conheço.” Assim, começamos a apreciar, como uma noção radicalmente reconfigurada do encantamento, como a passagem entre, por exemplo, a ignorância e a sabedoria ocupa o espaço de silêncio necessário para a escuta atenta e a comunicação ética entre nós.
O Encantamento na Sala de Aula por Meio do Plurílogo e das Viagens pelo(s) Mundo(s) Em nossa discussão acima, conceitualizamos o encantamento, como fornecedor de oportunidades para abertura, e curiosidade para aprender-ensinar-aprender, a partir de posições incorporadas e guiadas por afeto e intelecto (não em oposição binária, mas como elementos complementares de conhecimento que vão além da objetividade e da racionalidade). O encantamento é instigar a paixão pelo aprendizado, que rompe com os truísmos tidos como certos e o saber como posse (do 'conhecido'), em favor do conhecimento, como uma relação múltipla, dinâmica e nunca completa. No encantamento há um poder eterno do mistério (usando as palavras de hooks), por causa de sua premissa sobre a impossibilidade de 'conhecer plenamente'. Reivindicar conhecimento absoluto, sobre qualquer coisa ou pessoa, significa reivindicar a posse e eliminar a possibilidade do encantamento. Portanto, como é que esse conceito se traduz na materialidade das aulas de Estudos de Gênero que lecionamos, situadas em uma universidade australiana de elite, composta em sua maioria por alunas e alunos brancos de classe média? Como o encantamento se traduz no que fazemos? Como podemos instigar uma sensação de encantamento nas alunas e alunos? Como pode esse conceito de maneiras tangíveis permitir momentos de resistência e criação em sala de aula, enquanto
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trabalhamos em relação às alunas e aos alunos, para promover mudanças epistêmicas e ontológicas? Prosseguimos para a fase de concepção do curso, com essas questões em mente, e com a determinação de incorporar o encantamento como pedagogia feminista, apesar de uma profunda consciência das restrições e limitações institucionais-culturais-sociais-políticas-epistemológicas. Reconhecemos que o que fizemos até agora são basicamente as etapas iniciais do que, provavelmente, será um projeto de trabalho em andamento para toda a vida. No entanto, decidimos que, ao articular essas práticas iniciais e orientar a filosofia neste artigo, teríamos a oportunidade não apenas de refletir sobre o que temos feito, mas também de aprofundar nossa colaboração e conversação com as comunidades feministas. Para nós, um aspecto fundamental da operacionalização do encantamento é uma mudança conceitual e o início de nossa intervenção no design do curso, o que significa fazer intervenções no nível da construção de significado desde o início. Em outras palavras, uma mudança conceitual envolve reimaginar não apenas o que incluir no plano de estudos, mas sobretudo como as alunas e os alunos e nós nos envolvemos com o conteúdo. Uma parte central deste trabalho é repensar como lemos textos/experiências/realidades, como abordamos a criação de conhecimento e como incentivamos mudanças que vão além da sala de aula. Em nossa mudança conceitual, vamos além de incluir o trabalho de mulheres aborígines, mulheres de cor (mais amplamente) e comunidades diversas de todo o mundo, como um complemento a um programa de estudos que é centrado no 'cânone' de Estudos de Gênero do Norte Global. Projetamos o programa com diversas teorias e estudos de caso, no que chamamos de 'design de plurílogo', tomando emprestado o conceito de plurílogo de Shireen Roshanravan (2014). Em um plurílogo, muitas vozes estão conversando umas com as outras, e esta é uma relação não hierárquica de criação de conhecimento. As vozes em um plurílogo podem ser dissonantes e falar línguas diferentes, mas a base
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comum é que todas as vozes estão co-implicadas nas lutas que estão discutindo (SHOHAT apud ibid.). Em um plurílogo, há um compromisso de honrar a complexidade de todas e todos os participantes, e este tipo de engajamento aborda “Mulheres de cor que se recusam a derrubar sua complexidade e heterogeneidade, em um gênero de pensamento totalizado e unificado, ou em enquadrá-las apenas como reativas a exclusões e distorções racistas do feminismo.” (ibid., p. 57). Levamos muito a sério a homenagem à complexidade e heterogeneidade de todas e todos os participantes do plurílogo, nas salas de aula que ensinamos. Como ponto de partida neste plurílogo, interrompemos a narrativa linear das três ondas da história feminista anglo e norte-americana, como a história central do feminismo, em favor de histórias múltiplas/emaranhadas ocorrendo em todo o mundo, que são baseadas em vários aspectos contextos geo-socio-histórico-políticos. Sem ignorar as lutas importantes que emergem nos contextos dos Estados Unidos e da GrãBretanha, como as sufragistas, questionamos isso como a única história central (HEMMINGS, 2005). E, como Roshanravan (2014) explica, enfatizamos que vários movimentos feministas não existem simplesmente como uma reação a uma narrativa 'central' do feminismo e das lutas de gênero. Enquanto apresentamos essas histórias múltiplas, posicionamos as mulheres aborígenes e mulheres negras, como sujeitas agentes e criadoras de conhecimento, em suas próprias narrativas. Nesse processo, nos envolvemos em conversas com alunas e alunos sobre suas próprias suposições, sobre feminismos/estudos de gênero e, ao fazer isso, iniciamos um processo crítico de desdobrar entendimentos tomados como garantidos, em termos do que os feminismos/estudos de gênero podem ser, quem conta como criadoras de conhecimento, bem como as posicionalidades das alunas e alunos/nossas, em relação às narrativas feministas e estruturas de poder.69 69
As principais autoras com as quais trabalhamos no curso incluem Aileen Moreton-Robinson, María
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É, também, a partir desse ponto, que começamos a discutir a ideia de que “não existe uma luta de um só tema porque não vivemos vidas de um só tema” (LORDE, 2007, p. 138). Ou seja, colonialidade, patriarcado, capitalismo, racismo e heteronormatividade estão interligados e dependem uns dos outros, para existir. Desdobramos essas noções cuidadosamente com os alunos em aula, sempre nos localizando nesses sistemas e incentivando os alunos a fazerem o mesmo. Ahmed articula bem o ethos que serve de ponto de partida em nosso curso: Muitos feminismos significam muitos movimentos. [...] Pode-se supor que o feminismo é o que o Ocidente dá ao Oriente. Essa suposição é uma suposição itinerante, que conta uma história feminista de uma certa maneira, uma história que é muito repetida; uma história de como o feminismo adquiriu utilidade como um presente imperial. Essa não é minha história. Precisamos contar outras histórias feministas. (AHMED, 2017, p. 3-4).
A partir desse descentramento de uma história singular-central, para enfocar movimentos múltiplos por meio de plurílogos, que reconhecem que muitos movimentos feministas não são registrados na mundanidade da vida das pessoas, pretendemos instigar um sentimento inicial de encantamento nas e nos estudantes. Testemunhamos faíscas de curiosidade em muitas alunas e alunos, à medida que começam a perceber as limitações de uma compreensão hegemônica singular do feminismo e as possibilidades de abrir seus campos de visão e imaginação. No entanto, essa centelha inicial de encantamento pode ser perigosa, pois pode levar a uma curiosidade impulsionada por lógicas possessivas de desejo de conhecer o outro. Estamos muito cientes disso e tomamos cuidado extra para orientar as alunas e os alunos a desenvolver um senso de ser em relação a textos/conhecimentos/criadores
Lugones, Irene Watson, Audre Lorde, Sara Ahmed, Gloria Anzaldúa e Ramón Grosfoguel. Nem todas essas autoras se chamariam explicitamente de teóricas decoloniais, mas as agrupamos sob esse termo generalista, pois são pensadoras que consideramos contribuintes para a decolonialidade (desvinculação da lógica dominante da colonialidade).
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de conhecimento/comunidades ao invés de 'aprender sobre' algo. Aprender 'sobre' algo denota um sujeito (o aprendiz) aprendendo sobre um objeto, e isso implica a própria lógica colonial da posse contra a qual argumentamos no encantamento como pedagogia. Um dos desafios que enfrentamos é que tanto as alunas e alunos quanto nós mesmas fomos treinadas nesse tipo de aprendizado colonial, e romper com ele requer esforços profundos, contínuos e conscientes. Um conceito que achamos útil para orientar esses esforços para romper com a 'aprendizagem possessiva' e aprofundar um senso de encantamento nos cursos é a 'viagem pelo(s) mundo(s)' de Lugones (1987, 2003). Abordando o que fazemos em sala de aula e o conteúdo que ensinamos-aprendemos, como viagens pelo(s) mundo(s) facilita o encantamento, incentivando as alunas e os alunos a se envolverem com diferentes realidades (mundos) com o que Lugones (1987) chama de 'percepção amorosa' em vez de 'percepção arrogante'. A percepção arrogante denota um distanciamento e uma abordagem para ver a outra como um ser unidimensional que carece de complexidade e está subordinado à percepção do conhecedor. Por outro lado, a percepção amorosa, semelhante às concepções de amor e encantamento de Irigaray, implica uma relacionalidade com outras sujeitas (ao invés de objetos) que é baseada em uma autorreflexividade profunda e uma atitude amorosa humilde, abrindo espaço para uma mudança na visão onde o outro é animado como um ser multidimensional complexo. Lugones explica que: Ao viajar aos mundos de outras pessoas, descobrimos que existem mundos nos quais aqueles que são vítimas da percepção arrogante são realmente sujeitos, seres vivos, resistentes, construtores de visões, embora na construção principal eles sejam animados apenas pelo observador arrogante e sejam flexíveis, dobráveis, arquiváveis, classificáveis. (LUGONES, 1987, p. 18).
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Acima de tudo, nesta discussão, Lugones faz uma distinção definitiva entre turismo/exploração colonial e sua conceituação de viagem pelo(s) mundo(s): Turistas e exploradores coloniais, missionários e conquistadores não viajam no sentido que tenho em mente. Ou seja, não há mudança epistêmica para outros mundos dos sentidos, precisamente porque eles percebem/imaginam apenas o 'exótico', o 'Outro', o 'primitivo', o 'selvagem', e não há nenhum mundo de sentido onde o exótico, o Outro, o selvagem e o 'necessitado de salvação' sejam separados da lógica da dominação. (LUGONES, 2003, p. 18).
Desse modo, Lugones enfatiza que o modo de viajar em viagens pelo(s) mundo(s) realmente importa e influencia a própria possibilidade de percepção amorosa. A viagem pelo(s) mundo(s) para Lugones está, portanto, profundamente relacionada às mudanças epistêmicas/ontológicas à medida que nos movemos pelos mundos dos sentidos. Em nossas salas de aula, convidamos as alunas e os alunos a viajarem pelo(s) mundo(s) enquanto se envolvem em um plurílogo com foco em construções/personificações de gênero (interseccional). A viagem pelo(s) mundo(s) ocorre na forma como abordamos as relações que construímos na sala de aula e no envolvimento com o conteúdo. Então, funcionamos como 'guias'; não queremos dizer guias turísticos que simplesmente mostram fatos e números sobre nossos 'destinos'. Seguindo Lugones, estamos mais interessados no significado original da palavra 'viajar', do século XIV 'travailen', trabalhar, trabalhar, fazer uma jornada difícil (Online Etymology Dictionary, 2017). Aqui podemos ver que as raízes etimológicas das viagens não estão relacionadas à ideia de lazer, mas a movimentos difíceis e árduos. Com isso em mente, orientamos e apoiamos as alunas e os alunos no trabalho que precisa ser feito para abordar o que fazemos, com percepção amorosa, à medida que começamos a lidar com nossas percepções arrogantes. Um passo importante na viagem pelo(s) mundo(s) é começar a quebrar a percepção arrogante. Para que isso seja possível, trabalhamos
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com afinco para criar um espaço seguro na sala de aula que conduza à autorreflexividade, um elemento vital para desconstruir a percepção arrogante e abrir espaço para a percepção amorosa. A autorreflexividade começa conosco, as professoras, meditando sobre nossas relações e cumplicidades com a colonialidade e nosso papel como guardiões de conhecimentos com todos os seus potenciais de rupturas e/ou manutenção do status quo. Compartilhamos explicitamente nossas autorreflexões com as alunas e os alunos, e criamos espaços para que elas façam o mesmo. Nesse processo, a estrutura das classes desempenha um papel importante. Planejamos cuidadosamente as perguntas a serem incluídas nas discussões que levam as alunas e os alunos a pensar profundamente sobre seu lugar no mundo, seus privilégios e cumplicidades com sistemas de poder, os modos em que foram treinados a saber e os estereótipos tomados por certos (gênero, raça, alteridade, cultura, etc.). Essas questões são sempre formuladas em conexão com os tópicos/pensadores com os quais estamos nos engajando para começar a promover maneiras de 'ler' literatura/experiências/realidades que são relacionais em vez de distantes. À medida que experimentamos o encantamento como pedagogia, temos consciência de que o que propomos rompe, com as noções de conforto e empurra muitas alunas e alunos para fora de suas zonas de conforto (certamente nos empurra). E há um perigo real de as alunas e os alunos se desligarem e se desconectarem, o que significaria que uma possibilidade de encantamento está perdida; entretanto, em nossa experiência, isso raramente aconteceu. Uma possível explicação é que concentramos a mesma quantidade de energia que colocamos na escolha de prompts e conteúdo (ou talvez até mais) em como conduzimos as conversas. Compartilhamos e tentamos implementar o ethos do encantamento (via plurílogo e viagens pelo mundo), desde o início do curso. Isso significa uma forte ênfase em cordialidade, respeito, responsabilidade, confiança e abertura. Exigimos que as alunas e os alunos sejam
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respeitadas e honradas, independentemente de onde estejam e quaisquer que sejam suas visões de mundo. No entanto, enfatizamos que todas, na comunidade da sala de aula, compartilhem a responsabilidade de nutrir esse ethos que propomos. Isso inclui assumir a responsabilidade, por seus pontos de vista, e como elas tratam umas às outras. Entendemos que estamos pedindo às alunas que corram riscos e sejam vulneráveis, por isso deixamos claro que também corremos riscos e não deixamos de mostrar nossa vulnerabilidade e compartilhar nossas histórias, também, em sala de aula. Não temos medo de dizer em voz alta que o amor guia o que fazemos, que amamos o que fazemos e que amamos trabalhar com elas. Isso pode soar clichê (mas tudo bem): nossas salas de aula são cheias de amor, ternura e cuidado. Rimos e choramos com as alunas, enquanto tentamos ver/ouvir umas às outras, e o(s) mundo(s) ao nosso redor, com percepção amorosa. Embora seja claro que nem todas as alunas e alunos estão dispostas/prontas a se abrir, com o decorrer do semestre, vemos uma atmosfera de confiança se desenvolver, e acreditamos que isso se deve ao fato de as alunas e os alunos se sentirem respeitadas. O que testemunhamos, em nossas salas de aula, foi que, quando as alunas e os alunos não são caladas, e têm a oportunidade de se expressar, em um ambiente de apoio, à medida que cultivam, expandem e mudam suas 'leituras' de mundos, elas são mais propensas a desenvolver um senso de encantamento. Podemos ver isso claramente nos diários semanais, que os alunos e as alunas são obrigadas a escrever. Nesses diários, as alunas e os alunos refletem sobre o que fizemos em sala de aula, seu aprendizado, os textos que estamos lendo, e como se sentem em relação a tudo isso. Com o passar das semanas, observamos, em muitos dos diários, esforços significantes em desdobrar privilégios, alteridade e desigualdades epistêmicas/ontológicas, bem como em cultivar uma ética de relacionalidade, para diversas formas de ser e conhecer, em múltiplos mundos de sentido.
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Descobrimos, em nossos cursos, que este meio (que também serve como avaliação formativa)70 é um excelente complemento para as discussões em sala de aula, ao facilitar um aprofundamento da autorreflexividade e 'leituras' de mundos. Os diários, também, são muito úteis do ponto de vista pedagógico, pois oferecem oportunidades de orientação e diálogo íntimo entre nós, as alunas e os alunos, que nem sempre são possíveis, durante as aulas. Por meio do feedback semanal, somos capazes de adequar a orientação que cada aluna ou aluno precisa, dependendo de onde se encontram, e para facilitar o incentivo contínuo para seu crescimento. A outra vantagem de usar diários, como uma ferramenta pedagógica, é que ele se adapta às alunas mais e aos alunos mais introvertidas, que podem não falar ativamente em sala de aula, para se envolver nas conversas. Finalmente, por meio de diários semanais, junto com as discussões em sala de aula, testemunhamos a crescente compreensão das alunas e dos alunos sobre suas posições e responsabilidades em um plurílogo, e sobre como viajar pelo mundo. Portanto, argumentamos que os diários semanais, juntamente com as discussões em sala de aula, são elementos-chave para atualizar o encantamento em nossas salas de aula. Outro exemplo de como atualizamos o encantamento, como pedagogia, em termos de avaliação, é o Projeto Wikipedia. Em um esforço para traduzir a teoria com a qual nos envolvemos no curso, em uma mudança concreta positiva, esta tarefa exige que as alunas e alunos produzam ou editem uma página da Wikipedia, sobre tópicos ou pessoas excluídas ou pouco pesquisadas, usando as formas feministas decoloniais de conhecimento adquirido, nesta e em outras disciplinas de Estudos de Gênero, na universidade. A ideia é que as alunas e alunos obtenham
Nesta avaliação, não há certo ou errado em termos do que as alunas e os alunos compartilham, desde que demonstrem que se envolveram de forma crítica com o conteúdo e com o aprendizado. Isso abre espaço para que as alunas e os alunos corram mais riscos, e para que possamos fornecer uma orientação mais aprofundada, de uma maneira sem julgamentos. 70
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uma compreensão mais profunda da política de produção de conhecimento, em termos de inclusões e exclusões normalizadas. As alunas e alunos têm a oportunidade de compartilhar conhecimentos e, ao mesmo tempo, reivindicar um espaço para usar sua voz, e para que várias vozes sejam ouvidas. Essa avaliação também é uma atividade de construção da comunidade, não apenas em termos de colaboração com os membros da equipe, mas também com o envolvimento com os tópicos ou pessoas sobre os quais elas e eles escolhem escrever. Este projeto teve múltiplas etapas e culminou em um grupo Wikipedia Edit-a-thon, no final do semestre. Convidamos uma voluntária da Wikipedia, para vir à aula ensinar as habilidades técnicas necessárias, e para a edição final, ajudar com quaisquer dificuldades. As alunas e alunos foram orientadas a enviar um rascunho de sua página ou modificações, bem como um projeto racional, para ser verificado por sua tutora, antes do Edit-a-thon. Durante esse estágio inicial, discutimos com as alunas e os alunos a ética da representação e o que significava escrever sobre as outras e outros de uma maneira relacional, e que não se apropria. A lógica do projeto exigia que as alunas e alunos explicassem suas razões para o projeto escolhido. Incluímos as seguintes questões norteadoras: Por que você escolheu este tópico? Por que isso é significativo para você? Como seu projeto está ligado a algumas das ideias ou teóricos com os quais nos envolvemos no curso? Qual é a importância de adicionar este tópico/edições à Wikipedia? O Edit-a-thon foi um grande sucesso e deu às alunas e alunos uma noção de como a teoria que estamos aprendendo funciona na sociedade em geral. Finalmente, as conexões entre a sala de aula e a sociedade, em geral, não ocorrem apenas durante esta avaliação, mas são um aspecto central de nossa compreensão do encantamento como pedagogia. Embora esteja fora de nosso controle o que acontece fora da classe, nossa esperança é que mudanças conceituais, em como e o que ensinamosaprendemos nos Estudos de Gênero e feminismos, alimentem mudan-
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ças mais amplas na vida das alunas e alunos e, consequentemente, influenciem mudanças, em suas comunidades e redes. Durante nosso tempo de ensino juntas, testemunhamos muitas alunas e alunos participando do ativismo local, lutando por várias causas e assumindo cargos profissionais, onde têm a possibilidade de contribuir para a mudança social. Entendemos que um grupo de alunas e alunos privilegiadas, participando do ativismo e trazendo uma nova ética da relacionalidade, para seus locais de trabalho, pode parecer irrelevante para esforços decoloniais mais amplos. No entanto, como argumentamos antes, a solidariedade e as alianças são elementos vitais para desafiar a colonialidade e acreditamos que as alunas e alunos, e nós mesmos, temos um papel a desempenhar. Estamos cientes de que nossa sala de aula não pode fazer tudo, mas isso não significa que não possa fazer nada. Podemos contribuir para educar as alunas e alunos e inspirá-las a sair e criar mudanças no(s) mundo(s) ao seu alcance. No encantamento como pedagogia, o processo de aprendizagem nunca é final e o conhecimento está sempre no processo de desenvolvimento. Isso também se aplica à nossa práxis: o que fizermos será sempre um trabalho em andamento. Este trabalho é complexo, limitado, dinâmico; sobe e desce, em círculos; fica emaranhado e preso; grita pedindo ar e às vezes flui como um rio. O trabalho que fazemos é importante para nós; dói e nos dá esperança. Muitas alunas e alunos percebem, com o desenrolar do semestre, que nós também estamos tão preocupadas quanto elas com o que estamos ensinando-aprendendo, e isso ajuda a nos aproximar. À medida que nos aproximamos, começamos a testemunhar momentos semanais de amor-intelecto-reflexividade-compaixão na sala de aula. São momentos de magia, em sala de aula, onde a possibilidade de crescimento e transformação reside: para alunas e alunos, e professoras e professores. Esses momentos de encantamento têm o potencial de atingir comunidades mais amplas, à medida que nosso trabalho/aprendizagem transborda da sala de aula para
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as práticas/éticas que as alunas e alunos podem trazer para seus relacionamentos, futuras carreiras e ativismos. Logo, é fácil concordar com Ahmed (2014) que, “Não é surpresa, o encantamento é a chave para a pedagogia feminista”. E, para nós, esses são os primeiros passos para possibilitar outras formas de saber-ser-fazer, que trabalhem no sentido de romper a cumplicidade feminista com a colonialidade no contexto australiano. Ao encerrarmos este artigo, é importante reconhecer que desenvolvemos este trabalho enquanto empregadas, precariamente, em posições acadêmicas informais. Essa precariedade no emprego (em grande parte composta por mulheres acadêmicas) é uma característica comum do setor de ensino superior neoliberal colonial australiano (e global). O emprego precário se alimenta do medo e da conformidade, então ir contra a corrente, inegavelmente, adiciona uma carga emocional pesada ao que fazemos. O objetivo aqui não é um apelo à empatia, mas um apelo à ação e solidariedade entre as acadêmicas e acadêmicos (e qualquer pessoa que venha ler este trabalho). Esse chamado anda de mãos dadas com nossa discussão sobre encantamento como pedagogia. Nossa práxis de sala de aula tenta construir comunidade e solidariedade entre as alunas e alunos, e instigar seu próprio senso de encantamento. Também, as convidamos a encantar-se conosco, em imaginar novos futuros pautados pela lógica e pela ética decoloniais.
Agradecimentos Gostaríamos de agradecer em especial ao Dr. Bryan Mukandi, Dra. Shamara Ransirini Pitiyage, Dra. Sameema Zahra e Dra. Hora Zabarjadi Sar, por contribuírem tão generosamente com seus conhecimentos, como palestrantes convidadas, e para reconhecer o trabalho emocional extra de estudiosas de cor, em uma instituição colonial predominantemente branca.
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