Resistir, (Re)existir e Reinventar II - Capítulo 9

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DOI: doi.org/10.29327/565971.1-9

Reinventando a presença: Nacionalismo antigênero e o campo dêitico de resistência de Marielle Franco no Brasil Reinventing presence: Anti-gender nationalism and Marielle Franco's deictic field of resistance in Brazil Daniel do Nascimento e Silva1 Allison Dziuba2 1 Graduado em Letras (Universidade Estadual do Ceará), mestre e doutor em Linguística, pela Unicamp, orientado por Kanavillil Rajagopalan. Tem mantido, desde o doutorado, colaboração com pesquisadores da University of California Berkeley, tendo feito doutorado sanduíche (2007-2008), pósdoutorado (2015-2016) e outras visitas breves e longas, sempre sob a supervisão de Charles Briggs. Email: dnsfortal@gmail.com / ORCID: http://orcid.org/0000-0002-6098-5185 2 Sua pesquisa se centra na retórica feminista interseccional. Seu projeto atual examina a escrita extracurricular, performances e ativismo de estudantes universitários e o papel da emoção nessas atividades. Já atuou como Assistente Editorial do College Composition and Communication e Rhetoric Society Quarterly, e como bolsista de graduação em redação. Doutoranda em Retórica e Composição em Língua Inglesa, na Universidade da Califórnia, em Irvine, Estados Unidos. Foi premiada com uma Bolsa de Dissertação Americana (American Dissertation Fellowship), da American Association of University Women (Associação Americana de Mulheres Universitárias). Em setembro de 2022, ela assumirá a vaga de professora assistente no Programa de Composição, Retórica e Estudos de Inglês na Universidade do Alabama. E-mail: adziuba@uci.edu / ORCID: http://orcid.org/0000-0003-4806-0881

Resumo: Este artigo discute como os atores políticos encaixam o aqui e agora da enunciação, em construções de gênero, sexualidade e raça – uma prática dêitica, que pode ser separada do seu contexto e projetada em campos políticos. Empiricamente, analisamos invocações alternativas do campo dêitico (HANKS, 2005), pela nova direita bolsonarista no Brasil, pela vereadora Marielle Franco, assassinada no mesmo ano em que Bolsonaro foi eleito presidente, e pelo movimento de luto por Marielle. Ao passo que Bolsonaro midiatizou uma imagem invertida de tropos progressistas, como a igualdade de gênero, a educação sexual e o legado de Marielle, a vereadora, e, posteriormente, seu movimento de luto, politizaram o aqui e agora de Marielle e o mapearam em motes como “Marielle vive”, que desafiam o tempo


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cronológico. A figura central de Marielle tem estado, assim, “presente” no espectro político brasileiro – como figura de imanência para o campo progressista, e, para o bolsonarismo, como sintoma do corpo negro generificado, cuja vida não é enlutável mas cuja temida ausência é inimaginável.

Política antigênero, Bolsonarismo e Marielle Franco

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STUDIOSOS de todo o mundo têm chamado a atenção para o fato de os movimentos políticos reacionários estarem, cada vez mais, transformando o gênero em um “inimigo” da nação.71 Susan Gal (2021), por exemplo, cita a inquietação sentida por estudiosas feministas, na Polônia, ao encontrarem protestos de rua contra o “genderismo”, no início da década de 2010. Gal explica que o genderismo faz parte de um registo conservador mais amplo, que inclui outros termos novos como “ideologia do gênero” e “teoria do gênero”, e tem sido mobilizado para denunciar “a igualdade de direitos para as mulheres, uniões civis, igualdade matrimonial, direitos LGBTQI+, direitos reprodutivos, fertilização assistida e contracepção” (GAL, 2021, p. 99; ver também BORBA, no prelo). Borba, Hall e Hiramoto (2020) discutem outras invocações nacionalistas de tropos antigênero, em defesa da soberania nacional: na Colômbia, movimentos conservadores criticaram o discurso pró-igualdade de gênero embutido no acordo de paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) que foi votado em 2016 – o que contribuiu para a rejeição do acordo; na Rússia, Vladimir Putin usou o seu controle dos meios de comunicação contra protestos à sua reeleição de 2012, instigando um discurso de que os seus opositores Este artigo é uma versão ampliada, em português, de um artigo em inglês que será publicado no periódico Gender & Language (Equinox), em 2022. O artigo fará parte de um dossiê organizado por Dominika Baran (Duke University) sobre discursos anti-LGBT e nacionalismo. Agradecemos aos editores da revista, Rodrigo Borba, Kira Hall e Mie Hiramoto, à editora do dossiê, Dominika, e à Equinox, pela autorização da publicação de uma versão do texto em português. Agradecemos também a todos esses editores pelas críticas e sugestões no processo de redação. Todas as imperfeições que restarem são, obviamente, de nossa responsabilidade. 71


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estariam sendo “patrocinados por feministas ocidentais e lobistas homossexuais que pretendiam conquistar o mundo." (BORBA; HALL; HIRAMOTO, 2020, p. 2). Exemplos de tais ataques nacionalistas, contra as conquistas dos movimentos feministas e da pesquisa sobre gênero e sexualidade das últimas décadas, são numerosos. Em comum, tais movimentos contemporâneos “contestam a igualdade de gênero e os direitos LGBT e invocam as noções intrigantes de ‘ideologia de gênero’, ‘teoria de gênero’ ou ‘(anti)genderismo’.” (KUHAR; PATERNOTTE, 2017, p. 2). Esses movimentos são citacionais – extraem formas textuais e semióticas uns dos outros, e especialmente de discursos que foram criados em setores conservadores da igreja católica e reciclados no protestantismo evangélico (BUTLER, 2019), bem como de discursos econômicos neoliberais conservadores (COOPER, 2017), prospectando, dessas fontes mais amplas, grande parte de sua força e eficácia performativas. Como Borba (no prelo) explica, o significante flutuante “ideologia do gênero” tem sido utilizado por movimentos conservadores e antigênero, para unificar a oposição à ideia de que o gênero é uma construção social. O discurso antigênero inclui frequentemente a degradação do povo LGBTQIA+ e dos direitos reprodutivos das mulheres e está enredado na defesa de um estado neoliberal que se abstém do bem-estar social (BROWN, 2019). Neste trabalho, olhamos para o Brasil contemporâneo a fim de investigar o entrelaçamento entre tais reconfigurações ideológicas de gênero com o declínio democrático – bem como olhamos para a resistência política a esse entrelaçamento. Empiricamente, identificamos dois campos políticos opostos – o bolsonarismo, o movimento reticulado e largamente digital de apoio ao presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro, e o movimento de luto por Marielle Franco, a vereadora negra e lésbica progressista nascida no Complexo da Maré, Rio de Janeiro,

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que foi brutalmente assassinada em 2018 – e analisamos algumas interações-chave em 2017 e 2018 que mostram modos de ligação entre o aqui-e-agora dêitico da interação (HANKS, 2005) e construções políticas mais amplas, especificamente aquelas que articulam a “presença” de Marielle com as construções de gênero, raça e sexualidade que ela abraçou. A "presença" de Marielle tem sido reivindicada tanto pelo bloco bolsonarista quanto pelo movimento de luto pela vereadora. Após seu assassinato, Marielle – como mulher negra, lésbica e feminista – rapidamente passou a se fazer presente no bolsonarismo como o ícone da suposta perversão sexual embutida na ideologia de gênero; mas ela também passou a estar presente em movimentos de resistência à supremacia branca encarnada por Bolsonaro. Em formulações como "Marielle vive", "Marielle, presente!" (ou Marielle? Presente!, um tropo que emula a presença em sala de aula) e "Marielle é semente", esse movimento social tem impulsionado o tempo de forma diferente, muitas vezes incorporando o modo como Marielle politizou o tempo da desigualdade e projetou futuros afirmativos mais amplos. Tomamos o assassinato de Marielle como um eixo temporal e espacial para o presente momento político no Brasil. Com Gal e Irvine (2019, p. 118), acreditamos que é “necessário trabalho interpretativo, situado na interação, para invocar (indiciar)” um eixo ideológico de diferenciação (política) e “para interpretar fenômenos em tempo real como instanciações das qualidades que fazem parte desse eixo”. Abordamos o trabalho interacional que, de forma diferencial, invoca Marielle e o seu corpo negro generificado como um eixo de diferenciação, olhando para a indexicalidade da dêixis na interação: a projeção de um campo dêitico (HANKS, 2005) – ou seja, o composto de expressões dêiticas como "eu", "tu", "aqui", "agora", ideologias linguísticas e muitas vezes posturas corporais, olhares e gestos – para a esfera política. As expressões dêiticas (índices de pessoa como “você”, de tempo, como “hoje”, de lugar, como “ali” etc.) ocorrem em todas as línguas, e o seu significado denotativo “depende estritamente da ocasião da sua utilização”


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(HANKS, 2005, p. 191). A ancoragem contextual fundamental da dêixis, a sua coocorrência com os movimentos corporais e a incorporação dos shifters (JAKOBSON, [1957]:1971) ou índices dêiticos em campos de ação mais amplos revelam a maleabilidade da linguagem em fornecer aos usuários coordenadas dinâmicas de tempo, espaço e pessoa para ação social posterior. Metodologicamente, construímos três estudos de caso para investigar o trabalho interacional em torno do qual os agentes projetam diversamente o aqui e agora da interação em uma arena política mais ampla onde Marielle e o seu legado têm sido projetados como presentes. Nossos estudos de caso baseiam-se em interações no Rio de Janeiro de 2017-2018 que exemplificam diferentes camadas da projeção do gênero na política: Marielle interagindo com um público feminista; uma entrevista midiatizada de Bolsonaro para a Rede Globo; um comício político em que três candidatos bolsonaristas quebram a placa de rua de Marielle, bem como as respostas do movimento de luto por Marielle a essa demonstração pública de violência. Os nossos dados apontam para a centralidade de Marielle no cenário político e para a importância e performatividade da dêixis na produção da “presença” permanente de Marielle na política brasileira contemporânea. Em outubro de 2016, cerca de dois meses após um golpe de estado ter destituído a única mulher já eleita presidenta do Brasil, Marielle foi eleita vereadora no Rio de Janeiro numa campanha de base centrada no protagonismo das mulheres negras da periferia. Ela era a única mulher negra na Câmara Municipal (num grupo de apenas sete vereadoras contra 44 vereadores homens), e o seu estilo de fala aguerrido, conhecido como papo reto, era uma marca notada por muitos (SILVA; LEE, 2021). O seu gabinete era composto majoritariamente por mulheres, incluindo uma mulher trans. No entanto, uma tentativa de asfixiar a voz de Marielle foi efetuada da forma mais trágica e brutal em 14 de março de 2018, quando a vereadora

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e o seu motorista, Anderson Gomes, foram assassinados numa emboscada. No entanto, em vez de a voz de Marielle ser silenciada, nasceu um movimento de luto e solidariedade, projetando vicariamente sua voz e seu legado político na consciência popular. Bolsonaro e os seus adeptos também canibalizaram e resignaram rapidamente a figura de Marielle, transformando a sua imagem invertida, no exterior constitutivo dos discursos, que o consolidaram como líder de uma cruzada moral contra a ideologia de gênero, o comunismo e outras inversões espectrais associadas ao “inimigo” (CESARINO, 2019; BORBA, 2019; CORREA; KALIL, 2020; SILVA, 2020). Estruturamos nosso argumento da seguinte forma. A seção 2 discute a abordagem prática de Hanks para a dêixis e apresenta o primeiro estudo de caso, centrado num discurso que Marielle proferiu em um seminário feminista no Rio de Janeiro, em 2017. Em seu discurso, Marielle destaca as coordenadas de espaço e tempo na Câmara a fim de situar os discursos emergentes sobre “ideologia de gênero”; ao politizar esses pontos de referência espaciais e temporais, ela invoca um modo alternativo de habitá-los, projetando a si própria não como um indivíduo, mas como a encarnação de um coletivo. O segundo caso (seção 3) discute uma entrevista de Bolsonaro na qual ele explora a dêixis para produzir um campo epistêmico de verdade sobre a “ideologia de gênero” e a pornografia infantil. A sua utilização do campo dêitico para produzir a “presença” de objetos referenciais que não existiam como referentes factuais no livro de educação sexual apresentado ao público nos ajuda a discutir, no terceiro estudo de caso (seção 4), a invocação contemporânea de Marielle Franco como "presente" tanto no bloco bolsonarista como no movimento de luto pela vereadora. No entanto, embora ambos os campos invoquem a presença espectral de Marielle por meio de índices dêiticos, os interesses políticos dos dois grupos são diferentes. Para os bolsonaristas, o corpo negro lésbico de Marielle é uma “não-referência” (FANON, 1969; ALVES; VARGAS, 2020): a sua morte não deve ser enlutada e, no entanto, a sua ausência do campo político é


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inimaginável. Por outro lado, os ativistas que choram a morte de Marielle invocam sua “presença” espectral e incorporam o seu legado e as suas inversões indiciais (KHALIL; SILVA; LEE, no prelo) na política atual. Na conclusão, sistematizamos as nossas observações sobre as relações entre dêixis, a presença de Marielle e a política no Brasil contemporâneo.

O campo dêitico de resistência de Marielle A pesquisa sobre indexicalidade tem sido crucial para demonstrar a força histórica e a complexidade social do uso que os agentes fazem da linguagem em contexto. A indexicalidade pode ser entendida como “a forma como, por graus, os signos linguísticos e outros signos orientam os usuários desses signos para as condições envolventes específicas em que os utilizam” (SILVERSTEIN, 2006, p. 14). A nossa preocupação aqui é com um tipo particular de indexicalidade – a referência dêitica – e com os efeitos políticos de encaixar práticas dêiticas particulares em campos políticos mais amplos. Hanks (2005) explica que expressões dêiticas, tais como "eu", "tu", "aqui" e "agora", existem em todas as línguas e o seu significado muda de acordo com os enquadres de participação em que são utilizadas. Hanks (2005, p. 191) estuda dêixis de uma abordagem prática, ou seja, uma abordagem centrada nas “relações entre a ação verbal, os sistemas linguísticos e outros sistemas semióticos, e as ideias de senso comum que os falantes têm sobre a linguagem e o mundo social do qual ela faz parte”. Com base na sociologia de Bourdieu, Hanks propõe compreender a orientação dêitica dos usuários em contexto por meio da noção de “campo” (BOURDIEU, 1985): “um espaço de posições e tomadas de posição em que os agentes (individuais ou coletivos) se envolvem e através do qual diversas formas de valor ou 'capital' circulam” (HANKS, 2005,

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p. 192). Embora os limites dos campos sociais não sejam claramente definidos, a participação num campo social envolve trabalho de demarcação de fronteiras, o que, por sua vez, levanta questões de poder e controle. Logicamente, para Hanks (ibid.), um campo dêitico é um espaço de prática onde os agentes comunicativos tomam posições “relativamente aos enquadres de participação que ocupam [...], às posições ocupadas por objetos de referência e às múltiplas dimensões pelas quais os primeiros têm acesso às segundas" (p. 193). Embora o acesso a um campo “dêitico” puramente gramatical não seja tão “controlado” como outros campos sociológicos, na medida em que a utilização dos shifters é uma questão de domínio de um sistema relativamente arbitrário, a prática dêitica sempre encaixa a dêixis em outros campos. Nas palavras de Hanks (ibid.), “através do encaixe (embedding), as relações sociais de poder, de delimitação, de conflito e de valor são fundidas com o campo dêitico.” (p. 193). Acreditamos que a ênfase de Hanks no significado material do encaixe de coordenadas situacionais – como falante, destinatário, objeto de referência e o espaço-tempo social de enunciação – em locais investidos com significado político é bastante relevante para compreender a importância de Marielle na política. Marielle representava uma grande parcela da sociedade brasileira – pessoas racializadas como negras e pardas (54,9% da população) e, dentro dessa parcela, especialmente as mulheres negras da periferia – que é sub-representada na política e sofre os piores efeitos do estado penal neoliberal (WACQUANT, 2009), como a convivência com a disputa (e ocasional cooperação) entre Estado e “mundo do crime” (BIONDI, 2014; FELTRAN, 2020), a violência contra os negros (ALVES, 2018) e o acesso restrito à saúde pública e outros serviços sociais (VALLADARES, 2005). A trajetória de Marielle na política representa a agência e a produção de soluções para a vida prática que os negros e residentes de favelas têm historicamente perseguido no Brasil. No século XIX, dada a ausência de políticas de habita-


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ção para as pessoas libertadas do longo e violento processo de escravatura do Brasil, que só foi abolido em 1888, ex-escravos e seus descendentes construíram as suas próprias casas em encostas no centro do Rio de Janeiro. Criaram, assim, seus próprios bairros. Hoje em dia, esses territórios estão sujeitos à extrema desigualdade econômica brasileira, mas são também locais de intensa criatividade e produção cultural. Marielle participou de atividades em vários coletivos, movimentos progressistas na Igreja Católica e ONGs nas favelas do Complexo da Maré que lhe proporcionaram formas de letramento cruciais para sua entrada na universidade como estudante de ciências sociais (em 2002) e para o seu ativismo político no Rio de Janeiro (ver FRANCO, 2018; SOUZA, 2020; DUNCAN, 2021). No final dos anos 2000, Marielle levou sua aprendizagem da favela para o mandato de Marcelo Freixo, então deputado estadual pelo PSOL. Em colaboração, eles conceberam políticas públicas focalizadas na segurança pública e nos direitos humanos. Em suas aparições públicas, Marielle encaixava, nos termos de Hanks (2005, p. 194), as suas coordenadas como falante e residente do Complexo da Maré em “locais aos quais o poder, o conflito, o acesso controlado e as outras características dos campos sociais se ligam”. Dada a sua trajetória em movimentos sociais e coletivos – e a sua eloquência como vereadora – Marielle politizou o campo dêitico. Um exemplo da natureza reflexiva do encaixe de Marielle no campo político, particularmente na política de gênero, foi uma palestra que ela deu no 3º Seminário Feminista do IESP/UERJ (FRANCO, 2017). Vale a pena notar neste estudo de caso que Marielle proferiu essa palestra em maio de 2017, no momento político conturbado que se seguiu ao controverso impeachment de Dilma Roussef. Correa e Kalil (2020) fazem um importante diagnóstico da relação entre a política antigênero, no Brasil, e a guinada política conservadora desde o impeachment de Roussef em 2016. As autoras escrevem que “a dinâmica da res-

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tauração conservadora” no Brasil “atingiu o seu auge com o impeachment, [momento em que] os ataques ao gênero para além do domínio religioso se tornaram mais propícios” (CORREA; KALIL, 2020, p. 64). A aliança entre o neoliberalismo existente e os valores familiares (ver COOPER, 2017; BROWN, 2019; BUTLER, 2019) já estava em curso no Brasil, mas a guinada à direita com a derrubada de Rousseff consolidou a combinação entre a economia de livre mercado e uma agenda conservadora, para o gênero e a sexualidade. É, portanto, nesse contexto mais amplo em que o gênero passou a ser uma palavra perigosa que Marielle se dirigiu ao grupo de participantes no seminário feminista. Enquanto Marielle falava aos pares em sociologia, ela invocou a sua formação no campo para analisar a configuração espacial e social da Câmara Municipal – um local de poder com o qual ela se familiarizava. Ela queria, em suas próprias palavras, “olhar aquilo como trabalho de campo”. No excerto 1, Marielle descreve a configuração espacial do poder na câmara municipal e comenta a “dinâmica da restauração conservadora” (CORREA; KALIL, 2020, p. 31) no legislativo municipal. Mais especificamente, Marielle elabora sobre o movimento por parte do grupo conservador da câmara para eliminar a palavra “gênero” do plano de educação da cidade:


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Excerto 1. Fala de Marielle para o 3o Seminário Feminista – IESP/UERJ [12 maio 2017] 72 Pra você ter uma ideia é- a audiência não a de hoje, mas duas passadas, era um campo de fla flu, era um lugar aonde as faixas falava (.) pra gente que tem esse lugar não da socióloga, mas do acumulo da diversidade de conhecimento que não é só o IESP, mas de quem tá absorvendo e lendo e relendo o mundo por exemplo a perspectiva de família lembrava o TFP ((Movimento Tradição, Família e Propriedade)), lembrava o lugar apenas da tradição, da família, da propriedade, do capital (.) eram faixas escritas exatamente nesse sentido, pela família tradicional, em letras garrafais (.) então a minha família, com a minha filha e a minha companheira ((ela vira para Selma)) a família da sua filha sob hipótese alguma tá:: incluída no lugar do plano municipal de educação e do conjunto dos vereadores ((2:40min omitidos)) quem é professor deveria olhar aquilo como trabalho de campo, eu sou professora (.) aí você vê, assim, têm os CDF da frente (.) e tem uma galera do fundão, claro que eu estou escrotizando e fazendo o estereótipo, mas tem uma galera do fundão (.)e o líder do governo Paulo Messina fala assim: ei, vota assim (.) é assim, é literalmente desse jeito (.) QUE QUE É, HEIN? seria ótimo se não fosse trágico

Marielle começa comparando a sessão plenária com um jogo de futebol. Depois, ela contrasta a disposição espacial habitual na câmara com uma sala de aula. A atmosfera de um estádio de futebol ajuda Marielle a explicar o envolvimento afetivo dos ativistas que se opõem à discussão do gênero nas escolas. Como fãs de futebol, eles trouxeram uma faixa promovendo a “defesa da família tradicional”. Ao descrever esses Utilizamos uma versão simplificada do Sistema de Convenções de Transcrição Jefferson: (.) Uma micropausa [] Falas sobrepostas (( )) Comentários dos analistas Sublinhado Um aumento de volume ou ênfase MAIÚSCULAS Palavras gritadas <palavra> Ritmo de fala decrescente (falando devagar) = Indica que não houve pausa entre as frases :: Som alongado 72

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eixos de espaço, tempo e valores, Marielle é ao mesmo tempo crítica e bem-humorada. Isso fica evidente em sua descrição da típica ordem espacial numa sessão de votação no parlamento, que se assemelha a uma sala de aula estereotipada onde os "nerds" se sentam à frente e os "preguiçosos" se sentam atrás. Essa configuração, em que o líder da bancada "literalmente" grita aos que estão atrás como votar, é o epítome das coalizões políticas no Brasil. Essa ordem espacial é também uma ordem temporal: na sessão plenária, houve uma bandeira que ecoava o movimento conservador Tradição Família e Propriedade (TFP); o espaço da câmara, acrescentou Marielle, itera o tempo do “eurocentrismo, da hierarquia e da dominação”. Marielle delineia essas configurações espaço-temporais para enfatizar a importância de encaixar suas coordenadas de fala nesse espaço de forma diferente. Coerentemente com sua etnografia informal do poder, Marielle projeta um campo dêitico oposto, no qual ela frequentemente se refere a si mesma como “nós”. Sua racionalização para o uso desse pronome foi que ela não chegou lá sozinha (havia os eleitores que ela representava, além de seu gabinete majoritariamente feminino). Além disso, ela afirmou que seu corpo negro simbolizava resistência coletiva. Em suas palavras: “estar na câmara municipal hoje” não é “sobre minha vida Marielle (...), não é minha identidade (...) na minha-nossa perspectiva, (...) é o lugar do coletivo”. A hesitação de Marielle em usar “minha” para explicar sua perspectiva e seu uso constante de “nós” para falar de si mesma indexam, além disso, sua projeção de um campo dêitico que faz referência a um coletivo de mulheres, que como ela “estão resistindo e ocupando [a câmara através] do corpo de uma mulher, negra, da favela, bissexual”. Marielle também diz que muitas vezes é considerada inadequada em espaços de elite. Ela era a única mulher negra no parlamento e frequentemente lidava com perguntas invasivas de seus colegas brancos sobre seu turbante e seu cabelo natural. Ela recordou uma situação em que foi interpelada à distância por um guarda de segurança que não


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a reconheceu. Quando ela passou pela entrada, o segurança gritou: ‘Ou! Ou! Ou!”. Ao recontar o incidente, Marielle reproduziu seu olhar de surpresa e comentou: “Aí não acreditei, né, aqueles dez segundos. Aí eu voltei e olhei, e aí homem negro, né? Colega, o irmão.” Sua resposta foi pedagógica: “não acredito que já estou aqui há dois meses e você não me reconheceu. Ah, mas tudo bem, a gente qualquer dia desse vai fazer uma oficina com os seguranças para vocês entenderem que não pode tratar ninguém assim.” As observações de Marielle mostram não apenas como o tempoespaço parlamentar é ligado ao racismo, sexismo e homo-lesbo-transfobia, mas também como ela pretendia habitá-lo de forma diferente. Em consonância com movimentos populares que adicionam inflexões inovadoras femininas ou neutras de gênero em palavras masculinas, vistas como “não marcadas” em ideologias linguísticas cientificistas (ver BORBA, 2019), Marielle apelidou seu gabinete de “mandata”, aplicando assim criativamente o morfema de gênero -a à palavra “mandato”, que não tem correlato feminino. A mandata era composta principalmente de mulheres, incluindo uma mulher transexual, Lana de Holanda, cuja presença no seminário foi constantemente referenciada por Marielle: “E aí a gente chega naquela casa, não é Lana? E não chega sozinha.” A presença de Lana na mandata também deu suporte ao movimento de resistência de Marielle aos vereadores que veem gênero como uma “palavra contagiosa” (BUTLER, 1997; MISKOLCI, 2018). Marielle lembrou que a palavra gênero “agora (...) virou um xingamento” tal que alguns tentaram retirá-la de todas as leis da cidade, incluindo a legislação alimentar (alguns vereadores viam como perigosa a palavra gênero em “gênero alimentício”). Marielle narra o seu confronto com um vereador:

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Excerto 2. Fala de Marielle para o 3o Seminário Feminista – IESP/UERJ [12 maio 2017] Tem um vereador da base que falou textualmente, Marielle, vamos [trocar gênero por] homem e mulher (.) eu falei, não dou conta, eu faço o que com a Lana? ((Ela aponta para Lana de Holanda, que está na plateia)).

Marielle contesta, assim, o fato de o vereador negar o direito de Lana de fazer parte da letra da lei. Este estudo de caso sobre a prática comunicativa de Marielle mostra seu encaixe alternativo de coordenadas de fala dêiticas na política – desafiando, assim, as relações indexais hegemônicas no Brasil. Em sua ação parlamentar, Marielle projetou um campo dêitico no qual índices como “eu”, “nós”, “aqui”, “agora” e “amanhã”, juntamente com o corpo e o olhar, invertem os valores denotacionais que a maioria dos políticos brancos e homens têm historicamente tentado estabilizar no Rio de Janeiro e no Brasil de forma mais ampla. Em outras palavras, enquanto os políticos do Brasil se engajaram em destacar a individualidade e a comunidade política branca, masculina, heterossexual, racista e antiLGBTQIA+ como referências do aqui e agora da política, Marielle há muito tempo vinha trabalhando para desestabilizar as presumidas relações referenciais neste campo dêitico.

Bolsonaro e a ausência presente da ideologia de gênero Em março de 2018, um ano após o discurso que analisamos, a vereadora e seu motorista Anderson foram assassinados. Esse assassinato político foi um importante marco do ano eleitoral de 2018 – outros eventos importantes foram a controversa prisão de Lula, o líder de intenções de voto para presidente, em abril, e o esfaqueamento de Jair Bolsonaro em setembro, um mês antes das eleições. A família Bolsonaro extraiu desses eventos parte da força eleitoral que permitiu a Jair


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ser eleito presidente e seus filhos Flávio e Eduardo serem eleitos respectivamente para o Senado pelo Rio de Janeiro e para a Câmara dos Deputados por São Paulo (Carlos preferiu manter seu cargo de vereador do Rio de Janeiro enquanto coordenava a campanha digital de seu pai). Durante o ano eleitoral, a família Bolsonaro e os candidatos bolsonaristas citaram Marielle como um exemplo da suposta perversão da ideologia de gênero e do feminismo. Enquanto a próxima seção desvenda a importância de Marielle como um "espelho invertido" (CESARINO, 2019) para o movimento bolsonarista que estava tomando corpo em 2018, este estudo de caso detalha a midiatização que Jair Bolsonaro fez de uma narrativa heroica por meio da dêixis – alegadamente para restaurar uma ordem natural que havia sido deturpada por progressistas como Marielle. O presente estudo de caso analisa, assim, a entrevista de Jair Bolsonaro para o Jornal Nacional como candidato à presidência, em 28/08/2018. Nela, Bolsonaro encaixou o aqui e agora da enunciação em um campo político supostamente ameaçado pela ideologia de gênero. No entanto, antes de analisarmos essa interação ao vivo, gostaríamos de discutir brevemente a midiatização que a família Bolsonaro fez de uma suposta restauração da ordem "natural" de gênero. Essa ação coordenada ilustra o nó brasileiro dos discursos transnacionais contemporâneos que conectam ideologia de gênero, nacionalismo e economia de mercado. Wendy Brown (2019) argumenta que o enlace da "moral tradicional" (isto é, religião, patriotismo e família heterossexual patriarcal) com a economia neoliberal não é novidade, mas já estava inscrito nas primeiras formulações do pensamento neoliberal, tais como concebidas por estudiosos como Friedrich Hayek e Milton Friedman. Segundo Brown (2019, p. 12), Hayek acreditava que “os mercados e a moral, em conjunto, são a base da liberdade, da ordem e do desenvolvimento da civilização. Ambos são organizados espontaneamente e transmitidos

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pela tradição, ao invés do poder político." Assim, os próprios fundadores do neoliberalismo vincularam a moralidade tradicional à “preservação do passado com o patriotismo, projetando este último não apenas como amor à pátria, mas como amor à maneira como as coisas já foram, o que torna as objeções contra a injustiça racial e de gênero antipatrióticas.” (p. 14). As alianças que Bolsonaro fez com representantes do mercado, como Paulo Guedes, proprietário de um banco de investimento, que estudou com Milton Friedman, na Universidade de Chicago, não foram meramente coincidentes (GASPAR, 2018). Assim, o desenlace dos valores familiares, por Bolsonaro (que teria libertado esses valores das amarras do politicamente correto, por exemplo), foi visto como consistente com os esforços do atual ministro da economia Guedes, para libertar a economia das restrições da socialdemocracia. Significativo para essa cruzada de restauração moral e econômica foi o apoio pioneiro que Flávio e Carlos Bolsonaro ofereceram ao Movimento Escola sem Partido, iniciado por Miguel Nagib, um promotor que colaborou com o Instituto Millenium, um think tank liderado por Guedes. Em 2003, Nagib encenou, em frente à escola que sua filha frequentava, um protesto contra o que ele via como doutrinação comunista. O protesto não atraiu muita atenção, e o movimento permaneceu marginal. Entretanto, a campanha de Nagib por uma educação sem socialismo começou a ganhar autoridade, depois que ele entrou para o Instituto Millenium, no final dos anos 2000. No início dos anos 2010, movimentos religiosos na Europa e na América Latina disseminaram cada vez mais o termo “ideologia de gênero” (KUHAR; PATERNOTTE, 2017), e Nagib rapidamente incorporou esse léxico. Em 2014, Flávio e Carlos Bolsonaro apresentaram às suas casas legislativas do Rio de Janeiro projetos similares escritos por Nagib, em uma primeira tentativa de transformar os ideais neoliberais antigênero do movimento em política educacional (CIAVATTA, 2017). Seu pai também ajudou a delinear o registro antigênero que se tornou um símbolo emblemático, identificando um campo político


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(BORBA, no prelo). O campo dêitico que o então candidato presidencial invocou, durante uma entrevista ao vivo com o Jornal Nacional, demonstra sua capacidade de transformar o espectro da ideologia de gênero em verdadeira ansiedade. Em seu uso ardiloso da dêixis, ele viola as regras do debate e mostra um livro de educação sexual (BRULLER; BRULLER, 2007) para a câmera (Figura 1). No campo dêitico, projetado por Bolsonaro, o livro fisicamente presente evidencia uma trama esquerdista para perverter as crianças em idade escolar. Além disso, Bolsonaro argumenta falsamente que o livro fazia parte de um projeto de 2010, de distribuição de materiais de educação sexual nas escolas, o qual ele notoriamente apelidou como “kit gay”, na época. Ele acrescenta que o kit foi distribuído em uma conferência LGBT infantil, que ele teria testemunhado no congresso. (A Conferência Nacional LGBT não era uma conferência infantil, mas uma conferência entre adultos que discutia a sexualidade na infância e adolescência). Os entrevistadores, Renata Vasconcellos e William Bonner, inicialmente, parecem aceitar sua exibição da capa do livro, mas quando Bolsonaro adverte o público para tirar as crianças da sala porque ele mostrará imagens impróprias, dentro do livro, Vasconcelos e Bonner o desencorajam a fazê-lo. Excerto 3. Entrevista de Bolsonaro para o Jornal Nacional [28 agosto 2018] (JB = Jair Bolsonaro, RV = Renata Vasconcelos, WB = William Bonner) 01

JB

02

RV

03

JB

entre esse material, Bonner, estava esse livro lá, Bonner (.) então, o pai que tenha filho na sala agora, retira o filho da sala, para ele não ver isso aqui (.) se bem que na biblioteca das escolas públicas tem [olha [CANDIDATO, vou pedir para o senhor não mostrar se as crianças não podem ver= =não, mas é um LIVRO ESCOLAR, é para CRIANÇA, É UM LIVRO PARA A CRIANÇA, OS PAIS NÃO SABEM QUE ISSO ESTÁ NA [BIBLIOTECA


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04

WB

05

JB

[nós temos uma regra (...) os candidatos não mostram documentos, eles não mostram papéis= =não, mas está aqui no livro, uma prova, isso daqui.

Figura 1. Bolsonaro mostrando um livro de educação sexual, como evidência de uma suposta doutrinação ideológica

Fonte: elaboração dos autores

Bolsonaro invoca o aqui e agora da interação, para produzir um campo epistêmico de verdade, medo e moralidade. Embora o livro nunca tenha sido parte do projeto frustrado do PT de fazer avançar materiais educativos anti-homofobia, por meio da dêixis, o livro se torna evidência de uma trama perversa: “está aqui no livro, uma prova, isso daqui”. Nesse campo dêitico, a autoridade epistêmica também é invocada para alarmar os pais (“o pai que tenha filho na sala agora, retira o filho da sala, para ele não ver isso aqui”) e para fomentar indignação (“se bem que na biblioteca das escolas públicas tem”). E, mesmo que os entrevistadores não se alinhassem ideologicamente com Bolsonaro, eles ajudaram a projetar a “presença” da pornografia infantil e da ideologia de gênero, ao pedirem para ele não mostrar as imagens, no momento


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presente da interação. Interacionalmente, Bolsonaro e os entrevistadores pressupõem que as imagens pornográficas estão “lá” – e por implicação, que as supostas imagens ofensivas teriam sido distribuídas, como parte do suposto “kit gay”. Esse amálgama dêitico – composto pelo livro, o semblante sério de Bolsonaro, as imagens potencialmente pornográficas a serem mostradas, o pressuposto dos entrevistadores de que as imagens existem e as posturas corporais e arranjos familiares simultâneos a serem realizados – criam uma metafísica da presença (DERRIDA, 1978), que fundamenta a verdade, o afeto e a moralidade, no presente da enunciação. Embora os índices dêiticos de Bolsonaro (por exemplo, “está aqui no livro, uma prova, isso daqui”), de um ponto de vista estritamente lógico-semântico, não tenham representado com exatidão os referentes factuais no mundo “lá fora”, na medida em que nenhum “kit gay” desse tipo jamais existiu, esses índices foram interativamente eficazes na produção desses referentes “no mundo”, ao mesmo tempo em que projetaram uma imagem invertida da esquerda, para um amplo público que assistiu à entrevista da Rede Globo. Dessa forma, Bolsonaro combina a proteção das crianças e a estrutura familiar heteronormativa, com a defesa da nação. Fundamentalmente, este estudo de caso ressalta a importância dos índices linguísticos – e em particular dos índices dêiticos – para fornecer o terreno epistêmico sobre o qual uma agenda política pode ser reivindicada ou avançada. Mesmo que os referentes no mundo, tais como “kit gay” ou “ideologia de gênero”, não existissem como objetos a serem representados, segundo uma ideologia de linguagem referencialista, a “presença” (ausente) de tais objetos foi performativamente produzida por Bolsonaro, no campo dêitico, pela utilização ardilosa da imagem, corpo, conversa e interação – tanto com os entrevistadores como com os pais preocupados. No próximo caso, conectaremos essa produção de presença, no aqui e agora da interação, com as projeções

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diferenciadas de Marielle, pelo campo bolsonarista e pelo movimento de luto pela vereadora.

“Marielle, presente” Nosso terceiro estudo de caso fornece evidências de como outros agentes, nesses campos políticos opostos, tomaram posições no espaço dêitico – e de como esses agentes, ao encaixarem coordenadas espaço-temporais no campo político, produzem diferentes modos de habitar a política de gênero. É importante destacar, neste caso, a centralidade da construção da "presença" de Marielle – seja como um espelho invertido do bolsonarismo, seja como uma heroína ou mártir que se faz presente para os movimentos sociais progressistas. Começamos descrevendo um comício, no turbulento ano eleitoral de 2018. Em Petrópolis, no estado do Rio de Janeiro, três candidatos pró-Bolsonaro quebraram uma placa de rua em homenagem a Marielle Franco. Vestindo camisetas amarelas e verdes iconizando nacionalismo, Daniel Silveira e Wilson Witzel, respectivamente candidatos a deputado federal e governador, se revezaram para filmar o comício. Vestindo uma camiseta preta com o rosto de Bolsonaro estampado, Ricardo Amorim, candidato a deputado estadual, usava um microfone para se dirigir ao público. Excerto 4. Candidatos fazem comício em cima de um carro de som [3 October 2018] (DS = Daniel Silveira, RA = Rodrigo Amorim, WW = Wilson Witzel) 01

DS

02 03

WW RA

((falando para a câmera do telefone)) fala pessoal, Daniel Silveira, juiz Wilson Witzel [vinte [isso aí [((RA fala para o público, que os ovacionam))


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DS

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WW

06

RA

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DS

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RA

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DS

10

RA

11

Povo

((para a câmera; as pessoas gritam da rua)) nosso candidato ao governo, estamos em Petrópolis, quero que vocês entendam a nossa força (.) AQUI NINGUÉM VAI TER BANDEIRA VERMELHA (.) ESSA É A NOSSA FORÇA ((para a câmera)) estamos aqui com (.) nosso candidato a deputado federal, tamo junto, Daniel (.) ele vai ser uma voz no congresso nacional, aqui da região serrana de Petrópolis ((as pessoas os ovacionam da rua)) ((falando para a multidão)) eles estão perdidos (.) eles vão ter dias MUITO DIFÍCEIS na ALERJ (.) porque eu vou sentar o dedo nesses VAGABUNDOS DE ARAQUE (.) eu quero dizer o seguinte, pra terminar, pra terminar (.) MARIELLE, a MARIELLE foi assassinada (.) [mais de 60.000 brasileiros morrem todos os anos ((falando para alguém na multidão)) [pega a placa, A PLACA NO CARRO, A PLACA (.) A PLACA, A PLACA, PEGA A PLACA ((falando para a multidão)) esses vagabundos fizeram- esses vagabundos- eu vou dar uma notícia pra vocês (.) esses vagabundos, eles foram na Cinelândia, e à revelia de todo mundo eles pegaram a placa (.) da praça Marechal Floriano no Rio de Janeiro e trocaram por uma placa escrita Rua [Marielle ((a multidão emite vaias)) [A PLACA, A PLACA ((ele pega a placa, que está partida ao meio, e exibe à multidão)) eu, eu, eu e Daniel fomos lá e QUEBRAMOS A PLACA ((a multidão ovaciona)) Jair Bolsonaro (.) Jair Bolsonaro sofreu um atentado à democracia ((ao ser esfaqueado)) e esses canalhas calaram a boca (.) por isso A GENTE VAI VARRER ESSES VAGABUNDOS ((Daniel exibe a placa quebrada para a multidão, que urra)) ACABOU PSOL, ACABOU PCdoB, ACABOU ESSA PORRA AQUI ((ele aponta para a placa)) agora é Bolsonaro PORRA MITO, MITO, MITO, MITO

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Figura 2. Placa de Marielle Franco quebrada ao meio

Fonte: elaboração dos autores

Essa interação foi altamente citada e comentada durante a eleição (Figura 2). Deiticamente, os três candidatos invocam um origo espacial e temporal que é então mapeado para o cenário político. Eles falam a partir de um “aqui” (Petrópolis), um lugar que encena sua “força” e que é trazido para suportar a “limpeza” da bagunça “lá”, na praça onde a Câmara Municipal do Rio está localizada, Marielle trabalhou e “esses vagabundos” estão aos montes. Temporalmente, Amorim indexa uma época que começa a mudar (“agora é Bolsonaro, porra") e não acolhe o tempo-espaço de Marielle (“acabou essa porra aqui”, diz ele enquanto aponta para a placa). Todos os três candidatos desse comício foram eleitos. (Em 2021, no entanto, Daniel Silveira teve seu mandato de deputado federal cassado, devido a ameaças a ministros do STF; Witzel sofreu impeachment no governo do Estado por diversos crimes cometidos, incluindo superfaturamento de respiradores e suspeitas nas licitações para hospitais de campanha). Em sua exibição pública da presença da placa de rua quebrada, os candidatos invocam a força epistêmica da dêixis para encenar o ódio a Marielle como epítome de “um longo, duradouro e fundador


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ódio ao povo negro” (ALVES; VARGAS, 2020, p. 645). Como na exposição de Bolsonaro do livro sobre educação sexual, uma metafísica da presença é produzida no aqui e agora da interação para fundamentar construções políticas mais amplas. No entanto, em vez do pavor da pornografia infantil, é a violência generificada antinegros que estrutura a presença da interação no comício de Petrópolis. Em sua leitura das posicionalidades racializadas no mundo colonial delineadas por Fanon (1969), Alves e Vargas (2020, p. 652) escrevem que, em “um mundo antinegro, o sujeito negro é parte de um campo assimétrico de posicionalidades estruturadas, já que sua presença física única é uma ameaça, mas sua ausência simbólica é inimaginável”. Nesse sentido, a “presença” de Marielle é simultaneamente necessária e abominada pelos candidatos bolsonaristas. A presença espectral de Marielle é assim invocada por Witzel, Amorim e Silveira, como ocupando uma posição central pavorosa, nesse origo político. Essa dinâmica afetiva talvez seja melhor exemplificada em 07, quando Silveira grita freneticamente para que alguém na multidão lhe traga a placa. Sua ansiedade em exibir a placa arrancada indica que o momento atual da interação é também um momento que acumula história. O acúmulo histórico a que nos referimos é a violência constitutiva sobre a qual o Brasil foi fundado (STARLING; SCHWARZ, 2018): o país que mais escravizou os africanos durante o colonialismo europeu, onde seus descendentes são a maioria da população (negros e pardos são 54,9% da população), e, ainda assim, são os mais afetados pelo racismo estrutural, pela violência policial e pela desigualdade econômica. No turno 06, Amorim indexa essa história antinegra acumulada, ao reformular o discurso de que o assassinato de Marielle foi um crime contra a democracia. Para ele, o único e verdadeiro atentado à democracia teria sido o esfaqueamento de Bolsonaro, ocorrido um mês antes. Amorim, assim, desvaloriza o assassinato da vereadora, reenquadrando-o como um assassinato comum, em um país onde cerca de

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“60.000 brasileiros” perdem a vida anualmente para o crime violento. Segundo o Fórum de Segurança Pública do Brasil, em 2017, 65.602 pessoas foram assassinadas no país – uma estatística chocante que representou um aumento de 4,9% em relação a 2016 (CERQUEIRA et al., 2019). O estudo também aponta que 75,5% das vítimas são pessoas negras. No entanto, em seu eco ao discurso de Bolsonaro, Amorim apresenta essa estatística tanto como mundana (o assassinato de Marielle seria apenas um entre milhares) quanto como justificativa para uma agenda de lei e ordem (que ajudou a elegê-los). Além disso, ao tornar a vida de Marielle descartável e sua morte como apenas mais uma estatística, Amorim produz a “presença” de Marielle através de uma inversão de seu legado: para ele, a valorização da vida dela deve ser abominada; na mesma linha, Jair Bolsonaro foi quem “sofreu um atentado à democracia (ao ser esfaqueado), e esses canalhas calaram a boca”. Marcos Nobre (2020) argumenta que o atual governo de extrema-direita apresenta a “verdadeira democracia” como um retorno ao passado ditatorial. A ordem dêitica bolsonarista é “conservadora”, especialmente em seu sentido temporal. Após o evento, Flávio Bolsonaro racionalizou que os candidatos, ao quebrarem a placa de Marielle, “nada mais fizeram do que restaurar a ordem” (MAIA, 2018). Ele explicou que a praça recebeu o nome oficial de Marechal Floriano Peixoto (um ex-presidente e um “verdadeiro” democrata nesse registro), e que “o PSOL acha que está acima da lei e pode mudar nome de rua na marra”. Amorim, Silveira e Witzel estariam apenas corrigindo uma “ilegalidade”. Após a destruição da placa, o movimento de luto de Marielle reagiu rapidamente. Os enlutados já vinham reivindicando a “presença” da vereadora, desde que ela foi assassinada. Assim, o movimento encaixou sua resposta semiótica à quebra da placa, na “temporalidade metalética” (SILVA; LEE, 2021), que já vinha sendo construída para o tempo e espaço de Marielle. Em teoria narrativa, a metalepse é a transgressão entre universos narrativos (GENETTE, 1980), por exemplo, quando um


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personagem de um romance sai do registro “narrado” e entra na “narração”, onde se localiza o leitor. Enquanto escrevemos este artigo, o movimento de luto ainda fala de Marielle no presente (Figura 3), como se ela tivesse transcendido o tempo e o espaço dos falecidos, e voltado para o mundo dos vivos. Figura 3. Faixa “Marielle vive” exibida por manifestantes em Melbourne, Austrália (Fenizola 2019)

Fonte: elaboração dos autores

Os ativistas também dizem que Marielle é "semente", o que significa que esse tempo metaléptico é prospectivo e visa multiplicar sua influência. Pouco depois do comício viral, o movimento de luto criou uma campanha de financiamento coletivo para imprimir centenas de placas de rua. Desafiaram, assim, o racismo ostensivo, a lesbofobia e a violência de gênero do comício em Petrópolis. Com a hashtag #MarielleMultiplica, essa ação concertada se espalhou por diferentes cidades do mundo (ver Figuras 4, 5, e 6).

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Figura 4. Parlamentares municipais e estaduais em frente à Câmara Municipal do Rio de Janeiro (Fenizola 2019)

Fonte: elaboração dos autores Figura 5. Protesto em Lisboa, Portugal (Fenizola 2019)

Fonte: elaboração dos autores


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Figura 6. Estação de metrô Rio de Janeiro, em Buenos Aires, Argentina (Fenizola 2019)

Fonte: elaboração dos autores

Hoje, mais de 18.000 placas foram produzidas e distribuídas em todo o mundo (ver https://www.ruamariellefranco.com.br). Espacialmente, as Figuras 3, 4 e 6 exemplificam a projeção do campo dêitico de Marielle para lugares como Melbourne, Lisboa e Buenos Aires. Crucialmente, essa ação global e concertada sugere que a projeção metalética do tempo e do espaço do luto – ou seja, a projeção retroativa de Marielle, em temporalidades e espaços onde ela habita, agora, tardiamente – cresce a partir das “sementes” que ela vinha plantando. Por exemplo, enlutados em cidades, como Rio, Melbourne, Lisboa e Buenos Aires, passaram a habitar suas inversões no espaço dêitico: eu não sou um “eu”; eu sou um “nós”. Ou: não somos uma comunidade que habita uma cidade delimitada; estamos unidos pela “presença” de Marielle e seu legado ao redor do mundo. Marielle está metalepticamente lá com eles – de fato, com apoiadores em todo o mundo, em lugares onde Marielle, durante sua vida biológica, talvez nunca tenha estado.

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Conclusão Neste artigo, abordamos a política no Brasil contemporâneo, a partir do ponto de vista do discurso dêitico. Mais especificamente, olhamos para a centralidade de Marielle Franco, no momento político atual do Brasil, tanto como uma “inimiga”, frequentemente evocada pela direita, quanto como um símbolo de esperança para o campo progressista. Hanks (2008, p. 11) discute que uma função pragmática básica do discurso dêitico é “estabelecer uma relação entre um origo e um objeto de referência”. Em sua abordagem etnográfica da dêixis, Hanks questiona quadros “egocêntricos” de dêixis que concebem índices dêiticos como “eu”, “nós”, “você”, como meros indicadores da proximidade de objetos de referência a um locutor. Para Hanks (ibidem), a “ideia de que a proximidade física é o núcleo do significado dêitico” pode funcionar bem para enquadres epistêmicos que assumem, de um lado, o sistema dêitico do inglês e, de outro, uma ideologia de linguística de que o significado emerge de um indivíduo circunscrito e fisicamente presente; no entanto, outras línguas podem privilegiar outros origos, tais como o destinatário, ou uma relação entre o falante e o destinatário, ou mesmo algum outro aspecto do contexto. Em sua crítica, Hanks (ibid., p. 10) sustenta que não é a proximidade física que está na base da deixis, mas sim “o acesso (perceptivo, cognitivo, social) que os participantes têm ao referente”. Acreditamos que nossas análises podem contribuir para conceitualizações existentes sobre a dêixis, na medida em que trazemos para o cerne a construção da “presença”, não em termos físicos, mas, sim, em termos culturais e ideológicos. A produção de Bolsonaro de uma metafísica da verdade, com base em um objeto imaginário (ideologia de gênero), que estaria aparentemente presente em um livro de educação sexual, e as diferentes invocações da “presença” de Marielle, na interação, demonstram a importância desses objetos referenciais “ausentemente presentes” (ideologia de gênero e Marielle Franco) na conturbada política brasileira contemporânea.


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Nossos estudos de caso sobre a projeção do campo dêitico, na arena política, apontam para outras duas conclusões. Primeiro, as situações de linguagem em interação que analisamos evidenciam a performatividade da dêixis. Ao longo dos casos, os índices linguísticos – e os índices dêiticos, em particular – são usados para convocar à existência determinados entendimentos de tempo, lugar e mundo. Os participantes desses eventos invocaram um campo experiencial para projetar modos interessados de habitar a política, com consequentes efeitos para a arena política contemporânea no Brasil. No primeiro caso, olhamos para a própria Marielle e para as formas pelas quais ela politizou seu acesso ao espaço experiencial do legislativo municipal. Ela denunciou o impedimento de seu acesso como mulher negra à câmara. Ao politizar o seu aqui e agora de enunciação, na política, ela inverteu relações de gênero e raça estabelecidas no Brasil. Além disso, ela posicionou metalepticamente as mulheres negras, as minorias sexuais e os pobres como “originadores” e “agentes” da mudança política (ver FRANCO, 2018; KHALIL; SILVA; LEE, no prelo), além de projetar sua posição de falante não como um “eu”, mas como um “nós”. No segundo caso, abordamos o uso ardiloso da dêixis por Jair Bolsonaro em uma entrevista presidencial para invocar a ameaça “presente” da “ideologia de gênero” e da pornografia infantil; e embora Marielle não seja mencionada na entrevista, sua negritude generificada é outra presença espectral ali, na medida em que o sujeito negro é “sempre e desde já a não-referência” da supremacia branca e, portanto, do bolsonarismo. Dito de outro modo, a pessoa negra, e Marielle em particular, “fornecem o ponto fixo contra o qual todas as outras posicionalidades alcançam o peso social, mas sua presença é negada, apagada, ignorada” (ALVES; VARGAS, 2020, p. 645). No terceiro caso, olhamos para a convocação explícita de Marielle pelos candidatos políticos bolsonaristas e pelos enlutados. Destacamos a importância dos índices para a invocação da “presença” de Marielle: ao exibirem a placa de rua arrancada, Witzel, Amorim e Silveira delineiam

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um campo dêitico onde a “presença” de Marielle é o epítome da nãoreferência da pessoa negra (FANON, 1969; ALVES; VARGAS, 2020, p. 645), ou seja, sua vida é negada como uma vida a ser lamentada, mas sua “ausência é inimaginável”. Também discutimos a resistência a essa não-referência por meio da fractalização temporal e espacial do aquiagora de Marielle: os enlutados responderam ao violento dilaceramento midiatizado da placa de Marielle, multiplicando as placas e fazendo-as “germinar” em outras cidades ao redor do mundo. Ao exibir a placa de Marielle em todo o mundo (e direto de suas casas, nas interações virtuais no contexto da pandemia), os enlutados têm dito constantemente que Marielle está com eles e elas, deiticamente, “presente”. Para concluir, discutiremos como a temporalidade negra e queer de Marielle desafia a temporalidade nacionalista. O apelo à moralidade no discurso nacionalista muitas vezes depende da figura da criança: eventos como a invocação de Bolsonaro de crianças vulneráveis recebendo “kits gays” e os protestos contra a vinda de Judith Butler ao Brasil, em 2017, acusada por manifestantes reacionários de “pedófila” (BUTLER, 2017), demonstram como a preservação da nação e da família se entrelaçam retoricamente. De acordo com essa narrativa natural, o corpo feminino é síncrono ao destino linear da nação – continuidade, ordem e progresso. Portanto, interromper essa narrativa significa não apenas romper com uma ordem biológica, mas também com uma ordem temporal. O corpo negro e lésbico de Marielle realiza necessariamente essa dupla ruptura. Ao repudiar a inevitabilidade da heterossexualidade, as relações sexuais queer desafiam a naturalidade da reprodução e a família nuclear. O parentesco que não depende ou não sustenta os direitos de propriedade patriarcais altera a ordem nacional projetada sobre o corpo reprodutivo feminino. Além disso, Marielle complexificou essa linha nacionalista “natural”, pois ela era também uma mulher negra. Ou seja, ela desafiou o discurso nacionalista da continuidade centrado em “ordem e progresso”, que é também o discurso


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de uma nação branca ou embranquecida. O ativismo de Marielle oferece alternativas aos discursos de linearidade heteronormativa de supremacia branca, na medida em que ela habitava um estado estratégico e crítico do devir: “essa temporalidade (...) não é a do Cronos, do tempo linear cujo próprio nome sinaliza mitologicamente a linhagem (no antigo mito grego, Cronos é pai de Zeus); ao contrário, as contingências das identidades queer podem estar mais próximas do tempo de Kairos, o momento de oportunidade” (McCALLUM; TUHKANEN, 2011, p. 8-9). A lesbianidade negra de Marielle perturba, assim, a estabilidade temporal da supremacia branca. A “presença” queer e negra de Marielle e a disseminação póstuma dessa “presença” por diferentes escalas espaciais e temporais mundo afora ressaltam o potencial transformador das “experiências não reguladas pelo tempo do ‘relógio’ ou por uma conceituação do presente como singular e fugaz; trata-se de experiências que não se reduzem à ideia de que o tempo avança constantemente, que ele é escasso, que vivemos em um único plano temporal" (DINSHAW et al., 2007, p. 185). Marielle politicamente abraçou – e, como figura metaléptica, abraça – essas rupturas. Sua presença coletiva na Câmara e, hoje, no campo progressista que reivindica suas “sementes”, redefine o aqui e agora do conservadorismo de direita.

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