Vidas da EMERGÊNCIA PRÉ-HOSPITALAR
Contexto, Equipas e Intervenção Psicossocial
Coordenadora:
A na Oliveira
SOBRE OPERACIONAIS DE: Bombeiros
Cruz Vermelha Portuguesa
INEM
Proteção Civil
EDIÇÃO
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ISBN edição impressa: 978-989-693-159-9
1.ª edição impressa: março de 2024
Paginação: Carlos Mendes
Impressão e acabamento: Tipografia Lousanense, Lda. – Lousã
Depósito Legal n.º 529263/24
Capa: José Manuel Reis
Imagem de capa: © Zef Art
Imagem de contracapa: © Evgen
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© PACTOR III Os Autores ................................................................................................................... IX Nota da Coordenadora ............................................................................................... XI Prefácio ......................................................................................................................... XIII Tiago Pereira Siglas e Abreviaturas XV PARTE I 1 Na Primeira Pessoa Capítulo 1 3 Histórias da Linha da Frente Ana Oliveira 1.1 Sentimentos de (in)segurança 3 1.2 Acidentes 7 1.3 Crianças ............................................................................................................... 17 1.4 Lidar com a morte ................................................................................................ 27 1.5 Outras situações 32 1.6 Emergências excecionais 37 1.7 Experiências de sucesso...................................................................................... 42 PARTE II 49 Fardas do Terreno Capítulo 2 51 Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil: Equipas de Apoio Psicossocial Bruno Vaz Introdução ..................................................................................................................... 51 2.1 As Equipas de Apoio Psicossocial 51 2.2 Modalidades e eixos de intervenção 54 Considerações finais 57 Bibliografia .................................................................................................................... 57 Índice
Vidas da Emergência Pré-hospitalar IV Capítulo 3 59 Cruz Vermelha Portuguesa: Equipas de Saúde Mental e Apoio Psicossocial Inês Carolina Ribeiro e Ana Oliveira Introdução ..................................................................................................................... 59 3.1 A Cruz Vermelha Portuguesa 59 3.2 Equipas de Saúde Mental e Apoio Psicossocial 60 3.3 A intervenção da Cruz Vermelha na área da saúde mental e apoio psicossocial 61 3.4 Cuidar da saúde de colaboradores e voluntários ................................................ 65 Considerações finais ..................................................................................................... 65 Referências 66 Capítulo 4 67 Instituto Nacional de Emergência Médica: Centro de Apoio Psicológico e Intervenção em Crise Sónia Cunha e Eduarda Cardanha Introdução ..................................................................................................................... 67 4.1 A evolução histórica da emergência médica ....................................................... 67 4.2 O Instituto Nacional de Emergência Médica ........................................................ 68 4.3 O Sistema Integrado de Emergência Médica 68 4.4 O Centro de Apoio Psicológico e Intervenção em Crise 69 4.5 A intervenção na saúde mental dos operacionais ............................................... 73 Considerações finais ..................................................................................................... 73 Referências .................................................................................................................... 74 PARTE III 77 Saberes Técnicos Capítulo 5 79 Formação e Treino dos Operacionais Ana Oliveira Introdução 79 5.1 O Instituto Nacional de Emergência Médica ........................................................ 79 5.2 A Cruz Vermelha Portuguesa ............................................................................... 81 5.3 Os Bombeiros 82 Considerações finais 83 Referências 84
Índice © PACTOR V Capítulo 6 85 Carreira de Técnico de Emergência Pré-hospitalar Ricardo Toga Introdução ..................................................................................................................... 85 6.1 Carreira de Técnico de Ambulância de Emergência 85 6.2 Utilização do desfibrilhador automático externo 86 6.3 Implementação do projeto de Técnicos de Ambulância de Emergência ............. 86 6.4 Introdução dos Motociclos de Emergência Médica............................................. 88 6.5 Novas funções dos Técnicos de Ambulância de Emergência 89 6.6 O Sindicato dos Técnicos de Ambulância de Emergência 91 6.7 Criação da carreira dos Técnicos de Emergência Pré-hospitalar 95 Desafios e futuro ........................................................................................................... 97 Referências .................................................................................................................... 99 Capítulo 7 101 Voluntariado na Cruz Vermelha Portuguesa Ricardo Pacheco Garcia Introdução ..................................................................................................................... 101 7.1 O voluntariado 101 7.2 Voluntariado na área da emergência 102 7.3 Números e atividades 103 7.4 Desafios na gestão do voluntariado ..................................................................... 103 Considerações finais ..................................................................................................... 104 Referências 105 Capítulo 8 107 Gestão da Emergência Miguel Oliveira Introdução 107 8.1 Gestão da emergência 107 8.2 Fases da gestão da emergência 108 Considerações finais ..................................................................................................... 112 Referências .................................................................................................................... 112 Capítulo 9 115 Acidentes Graves, Situações de Exceção e Catástrofes Bráulio Sousa Introdução ..................................................................................................................... 115 9.1 Classificação das situações 115 9.2 Exemplos de situações de risco 116
Vidas da Emergência Pré-hospitalar VI 9.3 Resposta operacional da Cruz Vermelha Portuguesa 116 9.4 Pilares de intervenção 121 Considerações finais 123 Referências .................................................................................................................... 123 PARTE IV 125 Especificidades do Contexto Capítulo 10 127 Riscos Psicossociais e Promoção da Saúde Ocupacional Vânia Sofia Carvalho, Joana Faria Anjos e Maria José Chambel Introdução ..................................................................................................................... 127 10.1 Riscos psicossociais ............................................................................................ 127 10.2 Fatores protetores 133 10.3 Estratégias de intervenção 139 Considerações finais ..................................................................................................... 142 Referências .................................................................................................................... 142 Capítulo 11 149 Particularidades das Vivências Traumáticas Ângela Maia, Carina Oliveira, Cristiana Santos e Joana Matos Introdução 149 11.1 Conceito de trauma: exposição a trauma nos profissionais de emergência pré-hospitalar 149 11.2 Perturbação de stresse pós-traumático 150 11.3 Especificidades do trauma 153 Considerações finais ..................................................................................................... 159 Referências .................................................................................................................... 160 Capítulo 12 165 Resiliência e Crescimento Pós-traumático Joana Faria Anjos e Maria Teresa Ribeiro Introdução ..................................................................................................................... 165 12.1 A exposição a eventos potencialmente traumáticos ........................................... 165 Considerações finais 174 Referências 174
Índice © PACTOR VII Capítulo 13 179 Uma Cultura de Comunicação de Crise Elsa Lemos Introdução 179 13.1 Problema ou crise ................................................................................................ 179 13.2 Comunicação de crises: o que é? 180 13.3 Cultura de comunicação de crises 181 13.4 Treino mediático e exercícios de crise ................................................................. 184 13.5 Resiliência e preocupações pós-crise 185 Considerações finais 186 Referências .................................................................................................................... 187 PARTE V 189 Boas Práticas Capítulo 14 191 Prevenir, Promover e Tratar Randdy Ferreira e Ana Oliveira Introdução 191 14.1 A importância do recrutamento e da formação 191 14.2 Prevenir o trauma e promover a saúde mental .................................................... 192 14.3 O tratamento psicológico 196 14.4 Problemas que se cruzam com a perturbação de stresse pós-traumático 205 14.5 Estigma e barreiras .............................................................................................. 205 Considerações finais ..................................................................................................... 206 Referências 206 Capítulo 15 217 Apoio de Pares em Equipas de Socorro Ana Oliveira Introdução 217 15.1 Especificidades do contexto pré-hospitalar ........................................................ 217 15.2 Apoio de pares ..................................................................................................... 218 15.3 Orientações para a implementação de um sistema de apoio de pares 221 Considerações finais ..................................................................................................... 223 Referências .................................................................................................................... 224
Vidas da Emergência Pré-hospitalar VIII Capítulo 16 229 Apoio aos Profissionais do INEM Durante a Pandemia de COVID-19 Sónia Cunha, Ana Almeida, Eduarda Cardanha e Eliana Cruz Introdução 229 16.1 Resposta do Instituto Nacional de Emergência Médica perante o COVID-19 .... 229 Considerações finais ..................................................................................................... 232 Referências 233 Kit de autocuidados..................................................................................................... 235 Índice Remissivo 239
Os AutOres
Coordenação
Ana Oliveira
Psicóloga. Doutorada em Psicologia pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. Especialista em Psicologia Clínica e da Saúde e em Psicologia da Justiça. É voluntária da Cruz Vermelha Portuguesa desde 2009 e já exerceu funções como tripulante de ambulância e como chefe de uma Equipa de Saúde Mental e Apoio Psicossocial. Tem experiência na intervenção em situações de crise e catástrofe, é docente universitária e dá formação a operacionais de emergência.
Autores
Ana Almeida
Psicóloga clínica no Centro de Apoio Psicológico e Intervenção em Crise (CAPIC) do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM). Mestre em Psicologia.
Ângela Maia
Psicóloga clínica e da justiça. Professora associada com agregação na Escola de Psicologia, na Universidade do Minho (UM). Investigadora integrada no Centro de Investigação em Psicologia da UM. Coordenadora do Grupo de Investigação em Experiências Adversas e Traumáticas e da Consulta de Stress e Trauma da Associação de Psicologia da UM.
Braúlio Sousa
Coordenador nacional de Comunicações de Emergência da Cruz Vermelha Portuguesa (CVP). Coordenador do Módulo de Formação e Simulação na Unidade de Ensino, Formação e Investigação da Saúde Militar do Pólo de Coimbra. Professor adjunto na Escola Superior de Saúde Norte da CVP e na Escola Superior de Saúde do Instituto Politécnico de Leiria.
Bruno Vaz
Coordenador nacional das Equipas de Apoio Psicossocial da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC).
Carina Oliveira
Psicóloga júnior na área clínica e da justiça, na Unidade de Consulta de Stress e Trauma da Associação de Psicologia da Universidade do Minho (UM). Colaboradora no Grupo de Investigação de Experiências Adversas e Traumáticas, do Centro de Investigação em Psicologia da UM.
Cristiana Santos
Psicóloga. Bolseira de investigação no Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho.
Eduarda Cardanha
Psicóloga do Centro de Apoio Psicológico e Intervenção em Crise (CAPIC) do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM). Psicóloga clínica e da saúde. Psicoterapeuta.
Eliana Cruz
Psicóloga do Centro de Apoio Psicológico e Intervenção em Crise (CAPIC) do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM).
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Vidas da Emergência Pré-hospitalar
Elsa Lemos
Especialista em Comunicação de Crise. Mestre em Guerra de Informação pela Academia Militar. Formadora e consultora de entidades públicas, privadas e sem fins lucrativos na resposta a situações de crise.
Inês Carolina Ribeiro
Especialista em psicologia clínica e da saúde. Coordenadora de Saúde Mental e Apoio Psicossocial da Cruz Vermelha Portuguesa (CVP). Delegada de Saúde Mental e Apoio Psicossocial do Comité Internacional da CVP.
Joana Faria Anjos
Psicóloga no Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM), onde realiza intervenção psicológica em crise integrada na resposta de emergência médica pré-hospitalar. Professora auxiliar convidada na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa no Mestrado de Psicologia na Crise e na Emergência.
Joana Matos
Psicóloga. Bolseira de investigação no Centro de Investigação em Psicologia, da Universidade do Minho.
Maria José Chambel
Professora associada com agregação na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Mestrado em Psicologia dos Recursos Humanos, do Trabalho e das Organizações e co-coordenadora do Mestrado de Psicologia na Crise e na Emergência.
Maria Teresa Ribeiro
Psicóloga. Professora associada da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Mestrado em Psicologia Clínica Sistémica. Co-coordenadora do Doutoramento Inter-universitário Coimbra-Lisboa em Psicologia Clínica, especialidade de Psicologia da Família e Intervenção Familiar. Co-coordenadora do Mestrado em Psicologia na Crise e na Emergência.
Miguel Oliveira
Comandante dos Bombeiros Voluntários da Malveira. Licenciado em Gestão da Segurança, Emergência e Proteção Civil. Técnico Superior de Segurança e Saúde no Trabalho.
Randdy Ferreira
Psicólogo da Cruz Vermelha Portuguesa. Especialista em Psicologia Clínica e da Saúde.
Ricardo Pacheco Garcia
Secretário-geral do Centro Português de Fundações. Ex-Diretor de Operações da Cruz Vermelha Portuguesa.
Ricardo Toga
Coordenador geral nacional dos Técnicos de Emergência Pré-hospitalar (TEPH).
Sónia Cunha
Psicóloga. Responsável nacional do Centro de Apoio Psicológico e Intervenção em Crise (CAPIC) do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM). Doutoramento em Psicologia.
Vânia Sofia Carvalho
Professora auxiliar na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa.
X
nOtA dA cOOrdenAdOrA
Foi numa das viagens de regresso a casa, vinda de um quartel de bombeiros onde fui dar formação sobre competências psicológicas, que fui “visitada” pelas histórias de operacionais com quem me fui cruzando ao longo destes anos… Tantas partilhas, tantas situações… Complexas, inusitadas, trágicas… Enfim, únicas!
“Não posso guardar isto só para mim, tenho de fazer alguma coisa! Tenho de pôr isto no papel!”
De repente, os quilómetros pareciam encurtar. Partilhei com três amigos esta ideia de avançar com o projeto que culminou neste livro, que pretende dar voz aos operacionais, às suas experiências, às suas vidas, às suas conquistas. Foi, sem dúvida, uma resolução para o Ano Novo que estava a chegar.
Tem sido assim a última década, num frequente movimento de “olhar para” as suas histórias, quando estou no papel de formadora ou de psicóloga, e o “olhar com”, quando estou no papel de socorrista. A maior parte das pessoas até pode conhecer o que fazemos, mas só nós sabemos o que vivemos neste mundo da emergência! Quando o inesperado acontece, somos quem está na primeira linha, na linha da frente, onde tudo acontece! À chegada, passamos a fazer parte, também, do que está a acontecer. Vemos, ouvimos, cheiramos e sentimos coisas que poucos imaginam. Movidos pelo espírito de missão e sentido de dever, avançamos para as situações de emergência, em equipa.
A preparação, o treino e a especialização capacitam-nos para a atuação em ambientes de pressão, com cenários visualmente impactantes e de duração alargada. A cada chamada e ativação, vamos e não sabemos quando, como ou se voltamos.
Foi a minha curiosidade e o respeito pelo outro que me fez aprofundar conhecimentos acerca da emergência pré-hospitalar. Sendo voluntária e socorrista da Cruz Vermelha há mais de uma dúzia de anos, realizar o doutoramento em psicologia, com o olhar posto nos operacionais, sobre o apoio de pares no contexto de emergência pré-hospitalar, surgiu de forma natural.
Sendo psicóloga, em permanente especialização na área da intervenção na crise e no trauma, há vários anos que dou formação a operacionais a quem lancei o desafio: que escrevessem, ou me contassem, uma situação que para eles tivesse sido mais intensa, mais marcante, de maior impacto. Aos poucos, as histórias foram chegando. Cheias de vida(s), diversas. Fui organizando, pensando nas particularidades de cada uma. Estou certa de que este seria um livro inacabado, pois muitas histórias havia para receber e integrar. Mas, em determinado momento, cheguei a esta versão.
Este livro é composto por duas partes: as histórias dos operacionais, comentadas por mim, considerando a minha experiência de terreno; e um enquadramento teórico e
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prático, realizado por profissionais de referência na área da emergência, da segurança e da saúde mental e organizacional. Aborda-se o exercício voluntário e profissional desta atividade, a formação e o treino dos operacionais, a gestão de emergências simples e complexas, os riscos psicossociais, as crises, o trauma, a resiliência e o crescimento pós-traumático. Partilham-se ainda exemplos de boas práticas implementadas por diferentes entidades.
Reitero o meu agradecimento a todos pela partilha das suas histórias e dos seus saberes. Aos que aceitaram o desafio e partilharam comigo as suas histórias, e aos autores, com os seus saberes e experiência. As reflexões com os autores das histórias e dos capítulos foram constantes e serviram como guia para definir os caminhos a assumir neste livro. Até o título retrata a expressão de uma socorrista a quem dei formação – “Ó Ana, são vidas!” Assim, surgiu:
São vidaS da EmErgência Pré-hoSPitalar!
Vidas da Emergência Pré-hospitalar XII
PrefáciO
“Há alguns anos, uma instituição social que trabalha com crianças pediu-me para desenvolver uma ideia que envolvesse os direitos das crianças (...) Ocorreu-me que uma maneira de abordar algumas das situações complexas e dos problemas sociais que afectam as crianças seria olhar para os quartos de crianças em diferentes circunstâncias”. É assim que James Mollison, um fotografo britânico que procura cruzar esta disciplina artística com a reflexão e acção sobre o mundo e seus desafios societais, narra o projecto Where Children Spleep (Onde Dormem as Crianças), um conjunto significativo de pequenas biografias de crianças muito diversas, de todos os contextos do mundo, acompanhadas por uma fotografia sua e por uma fotografia do lugar onde dormem. Um projecto interessantíssimo que nos recorda que, estando expostos a condições diversas, todas e todos partilhamos muito de comum, ao longo de toda a nossa vida.
Dormimos, desde logo. Fechamos os olhos, respiramos, sonhamos, abrimos os olhos, acordamos. Fazemo-lo, uns dias mais tranquilamente, outros nem tanto. Por vezes com conforto e segurança, outras nem tanto. Brincamos. Rimos. Sofremos. Todas e todos sofremos, também aqui cada qual com a sua circunstância, conforme a célebre abertura do Anna Karenina de Tolstoy: “Todas as famílias felizes são iguais. Cada família infeliz é infeliz à sua maneira.”
Recordo, como cada pessoa que me lê, diferentes momentos da minha vida em que sofri. Alguns com uma intensidade tal que, ainda hoje ao recordá-los, sou transportado para o momento. Como que sinto a temperatura, os cheiros, os sons, as emoções desse momento. Recordo, dizia, vários, mas evoco um em específico, pelas suas características e pela forma como se relaciona com esta importante obra. Estávamos na primeira metade da década de 90. Estava na escola e um infeliz incidente entre dois colegas resultou num trágico acidente. Guardo comigo e acompanham-me imagens, sons e sensações desse acontecimento, incluindo da campainha que tocou “para a saída” como se nada tivesse acontecido e da ambulância no interior da escola.
Passam cerca de 30 anos desse momento. E tanto mudou. Temos hoje outra sensibilidade na sociedade para o impacto destas situações na saúde, incluindo naturalmente na saúde mental e bem-estar. Impactos para quem vive (directa ou indirectamente) ou observa situações de crise, catástrofe e/ou situações trágicas. Temos hoje profissionais de diversas áreas, em diversos contextos, mais preparados e capacitados para responder e apoiar nestes desafios. Temos hoje psicólogas e psicólogos nas escolas, ao contrário do que acontecia naquela e em muitas naquele momento. Temos hoje psicólogas/ /os nas estruturas de emergência, incluindo pré-hospitalar, e nos agentes de Proteção Civil. Muito mudou, mas muito caminho há por percorrer.
Este livro ajuda-nos a pensar esta mudança, o caminho percorrido e o caminho por percorrer. Porque reúne um conjunto significativo de pessoas que fazem parte desta história, desta mudança, que dia-a-dia, muitas vezes em condições particularmente exigentes e complexas, construíram a resposta pré-hospitalar de apoio às populações,
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também a partir do contributo específico, integrado multidisciplinarmente, da ciência e prática psicológica. Porque estas pessoas, de certa forma representando outras, partilham as suas experiências, contribuindo para uma maior sensibilidade a estes temas e para a capacitação de psicólogas, psicólogos e outros profissionais. Porque, ainda, nos desafiam a pensar o futuro, assinalando caminhos para a melhoria de práticas e do seu enquadramento, visando uma melhor preparação das pessoas, das comunidades e de melhores respostas. Muito obrigado a todas e a todos.
Este livro ajuda-nos a pensar esta mudança, o caminho percorrido e o caminho por percorrer, dizia. Também porque a sua coordenadora, a Ana Oliveira, além de personagem participante activa desta história, fez este muito desafiante percurso, desde o seu interesse, atitude e disponibilidade para nesta área contribuir com o seu tempo e intervenção, como cidadã primeiro e depois como psicóloga, à feliz ideia de reunir esta diversidade de pessoas e contributos, organizando-os e concretizando-os nesta obra. Devemos-lhe, por isso e pela dificuldade disso, um agradecimento especial. Devo-lhe eu um duplo, por ter tido ainda a gentileza de confiar em mim e me permitir estar associado a este seu esforço, a este grupo de pessoas e a este trabalho.
Permitam-me uma palavra final sobre mim, aqui. Há anos, em diferentes funções, que tenho procurado contribuir para que as áreas de intervenção psicológica em situação de crise e catástrofe e dos primeiros socorros psicológicos se disseminem na formação inicial e contínua de todas e todos os psicólogos, contributo que me parece essencial para maior possibilidade de intervenção e resposta de cada profissional, em cada contexto, em momentos particularmente sensíveis da vida das pessoas, apoiando processos de estabilização emocional e prevenindo, numa primeira linha, o desenvolvimento de problemas psicológicos mais complexos. Mais, quando a Ana Oliveira me fez este convite era ainda coordenador do ainda existente Gabinete de Crise COVID-19 da Ordem dos Psicólogos Portugueses. Foram, sabemos todas e todos, e em particular quem trabalha nas áreas que encontrarão detalhadas nas páginas seguintes, momentos absolutamente excepcionais e particularmente difíceis. Sabemos o quanto requereu de nós, mas, em simultâneo e assim foi comigo, o quão significativo e marcante foi pelo propósito que representou, também para tantas pessoas e para tantos profissionais, o seu contributo. Sabemos, finalmente, que teremos, enquanto país e comunidade, de enfrentar catástrofes e outras situações de crise no futuro e que as enfrentaremos com maior preparação se parte de uma comunidade sensibilizada e unida para estes temas, com estruturas de resposta estabelecidas, papéis definidos, profissionais capacitados e organizados em diferentes níveis de intervenção e especialização. Ora, as páginas que se seguem, creio, contribuem para tudo isto. Orgulho-me de fazer parte delas e também o devo a uma pessoa que muito contribuiu para a sensibilidade que tenho face a estes temas e que me e nos falta todos os dias.
Vidas da Emergência Pré-hospitalar XIV
Tiago Pereira Janeiro de 2024 Psicólogo. Membro Executivo da Direção da Ordem dos Psicólogos Portugueses
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Histórias da Linha da Frente
Ana Oliveira
1.1 Sentimentos de (in)segurança
Há cerca de dois anos, estava de piquete de dia. Pelas 14 horas, eu e o meu colega fomos acionados pelo Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU) para uma queda. Quando nos encontrávamos na rua, liguei com o CODU, porque não estávamos a encontrar o número de porta que nos tinha sido facultado. Nesse momento, o CODU disse para não entrarmos enquanto não chegasse a Guarda Nacional Republicana (GNR), porque no local estava um indivíduo com uma arma de fogo. Naquele momento, caiu-me tudo! Senti medo, muito medo, porque nós estamos mesmo perto. Enquanto aguardávamos por indicações, ao telefone com o CODU, um indivíduo veio ao nosso encontro, acusando-nos de negligência, tendo-nos mesmo filmado e dito que íamos deixar o homem morrer porque estava cheio de sangue. Dissemos que tínhamos indicação para não entrar enquanto não chegasse a GNR. Quando lá chegámos, tínhamos uma vítima do sexo masculino, consciente, mas desorientada, porque tinha sido atingida por um tiro na cabeça. Esta ocorrência afetou-me no dia a dia, pelo facto de achar que ia para uma queda e apenas nos ter sido dito ao chegarmos ao local que era uma situação completamente diferente, uma situação de crime. Fiquei com medo, tinha pesadelos e, nos dias seguintes, como passava lá perto diariamente, tinha medo de que o indivíduo que nos filmou pudesse vir atrás de mim e fazer-me algum mal. Sempre que estava de serviço nos Bombeiros e me chamavam para alguma ocorrência, ficava toda a transpirar e com taquicardia. Tive de procurar ajuda psicológica. Se eu pudesse mudar alguma coisa, teria pedido mais cedo. Não temos de ter vergonha de pedir ajuda psicológica, somos pessoas e também precisamos de ajuda para ultrapassar certas ocorrências que nos afetam no dia a dia
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Este serviço aconteceu recentemente, entre o Natal e a passagem de ano. Recebemos um alerta para um esfaqueamento de um indivíduo do sexo masculino de 20 anos, numa discoteca. A indicação do serviço não parecia nada de mais, mas depois soubemos que a Viatura Médica de Emergência e Reani-
mação (VMER) tinha sido também ativada. Ao chegar ao local, deparámo-nos com uma forte presença policial. A vítima estava no chão, ensanguentada, bastante agressiva e aparentando estar sob efeito de álcool e drogas. Soubemos que pertencia a uma força militar; reagia à tentativa de imobilização por parte das autoridades. Quando chegou a VMER, a médica tentou estabelecer diálogo, mas sem sucesso. Ao aproximar-se, foi agredida, empurrada pelo indivíduo. Entretanto, o enfermeiro conseguiu dar a medicação e ele começou a acalmar-se. Ficou colaborante, aceitou entrar na ambulância, para verificarmos as lesões, mas recusou a ida ao hospital. Saiu da ambulância, tirou a camisola e voltou a ficar agressivo connosco e com a autoridade. Recebemos então indicação para dispersarmos, para nossa segurança. Podia correr muito mal. Quando vínhamos embora, houve pessoas que começaram a correr atrás da ambulância. Esta experiência mostrou-me o quão desprotegidos podemos estar na rua, quando atendemos a este tipo de ocorrências. Já me aconteceu estarmos a ser agredidos e termos de esperar mais de meia hora pela autoridade, porque estava ocupada noutra ocorrência. Se os socorristas tivessem meios e formas de se protegerem e de resolverem a situação, seria melhor! Porque implica ativar meios diferenciados que podem estar a ser necessários noutro tipo de ocorrências mais importantes. Mais! Esta ocorrência nunca seguiu a via judicial, senão teria de andar a ir para o tribunal por causa disso.
Durante uma noite de serviço, recebemos um alerta para uma situação de agressão. A ocorrência foi numa zona crítica da nossa zona operacional, contudo, nada fazia prever o que se iria passar. Tínhamos uma casuística bastante elevada de agressões. Também era usual fazermos saídas para aquele local; contudo, agressões que envolvessem armas possivelmente letais nunca tinham acontecido a qualquer um dos bombeiros envolvidos na ocorrência. À chegada ao local, eu era team leader da primeira ambulância, numa equipa com mais dois colegas a tripular. Quando saio para ir em direção à casa onde seria suposto encontrar as vítimas, vem ao meu encontro uma senhora –irmã do suspeito – a fugir de um senhor que empunhava uma arma de fogo. O nosso primeiro pensamento foi meter a senhora na célula sanitária e arrancar. Assim fizemos. Afastámos ambas as ambulâncias do local, até nos encontrarmos com a equipa da Polícia de Segurança Pública (PSP), que nos iria dar apoio. Quando voltámos ao local, o inesperado aconteceu: como o suspeito tinha entrado em fuga, a polícia iniciou as operações de busca do
Vidas da Emergência Pré-hospitalar 4
(continua)
Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil:
Equipas de Apoio Psicossocial
Bruno Vaz
Introdução
As Equipas de Apoio Psicossocial (EAPS), que integram a resposta operacional da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC), realizaram, nos últimos 10 anos, cerca de 700 missões que resultaram no apoio a mais de 4 mil bombeiros, assim como aos respetivos familiares, que passaram por eventos potencialmente traumáticos (EPT). A sua missão principal é a de promover o bem-estar psicossocial e aumentar a resiliência psicológica dos bombeiros para as operações de socorro.
Estas equipas são chamadas para atuar em caso de morte de bombeiros em serviço, ameaça efetiva de vida, por exemplo, quando bombeiros ficam cercados num incêndio e acabam por não sofrer danos físicos, mas sentem que a sua vida esteve “por um fio”, exposição a vítimas mortais, incidentes com crianças, acidentes rodoviários ou quando os bombeiros lidam com vítimas que conhecem, uma situação muito comum nas regiões do interior do país. Em resumo, qualquer EPT pode desencadear a ativação das EAPS.
2.1 As Equipas de Apoio Psicossocial
As EAPS foram consideradas aptas para serem ativadas e, consequentemente, prestarem suporte psicossocial a 1 de julho de 2011. Entretanto, foi definido um período experimental de funcionamento, que correspondeu à fase Charlie do Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Florestais (DECIF), terminado a 30 de setembro de 2011. Na sequência da avaliação positiva deste período experimental, em janeiro de 2012, as EAPS ficaram formalmente ativas para intervir.
Os elementos das EAPS são bombeiros com habilitações superiores em psicologia ou serviço social, intervindo enquanto especialistas para prestar apoio psicológico e social aos bombeiros e respetivas famílias, ou seja, seus pares, assegurando sempre uma abordagem profissional, pautada por ética e confidencialidade em todas as intervenções. É mais fácil para um bombeiro expor o que está a sentir ao falar com um psicólogo que também é bombeiro, usa a mesma farda e a mesma gíria do que se fosse um psicólogo civil.
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As EAPS visam promover a saúde mental dos bombeiros portugueses, potenciando a sua resiliência psicológica, reforçando que os que socorrem também precisam de ser socorridos, apoiando, num momento de maior vulnerabilidade, os que têm de estar sempre fortes e incitando a entreajuda entre colegas e o suporte dos líderes, com vista a restaurar a capacidade de os bombeiros, e de os Corpos de Bombeiros, gerirem os incidentes críticos psicossociais com que se deparam nas suas missões.
As EAPS pautam-se por uma ação e metodologia científica transversal, com procedimentos uniformes, alicerçada numa atitude genuína de auxílio profissional, evidenciada por cada técnico que é ativado para intervir em prol dos Bombeiros portugueses.
2.1.1 Estrutura das Equipas de Apoio Psicossocial
O seu enquadramento orgânico é efetuado pela Divisão de Segurança, Saúde e Estatuto Social (DSSES) da Direção de Serviços de Regulação e Recenseamento dos Bombeiros (DSRRB), da Direção Nacional de Bombeiros (DNB) da ANEPC, que assegura a coordenação e funcionamento destas equipas, em estreita parceria com os Corpos de Bombeiros que constituem o seu efetivo e a colaboração da Escola Nacional de Bombeiros (ENB).
As EAPS organizam-se de acordo com o princípio da unidade de comando, que determina que todos os intervenientes atuam, no plano operacional, sob a dependência de um comando único – a estrutura de Coordenação Nacional.
Em virtude da prevalência da intervenção psicológica nas missões das EAPS, está definido que as funções de Coordenação Nacional e de chefia de equipas são assumidas por psicólogos, inscritos como membros efetivos na Ordem dos Psicólogos Portugueses, de modo a cumprirem os requisitos legais necessários ao cumprimento cabal da ética nas missões que lhe são atribuídas.
Neste enquadramento, a função de coordenador nacional das EAPS é assegurada por um psicólogo da DSSES da ANEPC, que assume as responsabilidades inerentes ao desenvolvimento e coordenação geral desta resposta a nível nacional, alicerçado na equipa técnica da DSSES, ficando responsável pelo sistema de ativação, intervenção e intervisão1 aos restantes elementos que compõem as EAPS.
Com a reestruturação das EAPS, implementada em 2019, passaram a ser definidas as seguintes categorias/funções: coordenador nacional, coordenador nacional adjunto de operações, coordenador nacional adjunto de formação, psicólogo sénior, psicólogo júnior, psicólogo estagiário e assistente social.
1 A intervisão, em psicologia, é um processo de grupo, complexo e dinâmico e constitui uma oportunidade para, entre pares e num ambiente de apoio e de confidencialidade, debater assuntos relacionados com a intervenção psicológica. Através do processo de intervisão promove-se a discussão, a reflexão, a partilha e o bem-estar dos psicólogos na sua prática profissional.
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Prevenir, Promover e Tratar
Randdy Ferreira e Ana Oliveira
Introdução
De forma a promover a saúde dos operacionais e a prevenir o trauma psicológico, existem algumas considerações prévias ao exercício de funções no contexto de emergência pré-hospitalar, nomeadamente, as questões relacionadas com o processo de seleção e formação. Também ao longo do percurso profissional, é fundamental o desenvolvimento de ações promotoras da saúde mental, como é o caso da realização de rastreios e o apoio de pares. No caso de se verificar a existência de sinais e sintomas de problemas de saúde mental, e, eventualmente trauma psicológico, é necessário facilitar o acesso a serviços de saúde mental e disponibilizar o tratamento mais adequado.
14.1 A importância do recrutamento e da formação
Antes de nos focarmos naquilo que pode ser feito em termos de prevenção, promoção e tratamento do trauma em operacionais, é importante considerar alguns aspetos que antecedem o pleno exercício de funções, nomeadamente o processo de recrutamento e seleção, e, posteriormente, formação. No caso do recrutamento e seleção dos operacionais, sabemos que é uma fase intransponível e fundamental para garantir que, quem exerce funções neste setor, apresenta o perfil mais ajustado. Nesta fase, é importante que os candidatos possam também refletir e avaliar se estão preparados para assumir as funções e lidar com as exigências profissionais inerentes a esta atividade (Brooks et al., 2016).1 A formação é, indiscutivelmente, uma componente-chave para o exercício de qualquer atividade profissional, sendo fundamental para proporcionar a confiança para lidar com os desafios do trabalho (Brooks et al., 2019; Quevillon et al., 2016). Importa que a formação seja contínua e ocorra ao longo de todo o percurso operacional (Lanza et al., 2018), de forma a preparar os profissionais para o confronto e impacto com situações potencialmente traumáticas (Brooks et al., 2018). Mais do que os conteúdos técnicos predefinidos, importa abordar temas relacionados com a saúde mental, o que também contribuirá para a redução do estigma existente em torno de questões relacionadas com este tema e a procura de apoio psicológico (Mildenhall,
1 Uma visita às instalações e aos serviços, uma sessão plenária de apresentação dos serviços, a demonstração de técnicas e procedimentos e/ou a participação em alguma atividade aberta ao público são exemplos de práticas a promover junto dos candidatos para uma aproximação e tomada de consciência da realidade deste contexto.
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2012).2 Poderão abordar-se que tipo de reações podem surgir na sequência do confronto com estas situações, as estratégias de coping que podem ser adotadas e os recursos de apoio disponíveis (Jamal, 2017; Kerai et al., 2017; Lanza et al., 2018; United Kingdom Psychological Trauma Society, 2014). Também os autocuidados são um tópico incontornável, dada a sua importância antes, durante e depois das operações de emergência (Bober & Regehr, 2006; Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, 2012, 2019; Quevillon et al., 2016). Mais adiante, no final deste livro pode encontrar-se um kit de autocuidados com algumas sugestões.
Passadas essas fases, os operacionais ficam aptos para intervir em situações de emergência médica. Ao longo deste livro é possível perceber que o trabalho no contexto pré-hospitalar é diversificado e pode envolver o confronto com situações complexas. Os operacionais de emergência (OE) são quem acorre para ajudar. Assim, testemunham e sabem de acontecimentos que se podem revelar traumáticos, por vezes com exposição repetida ou extrema a pormenores aversivos associados a violência sexual, ferimentos graves, ameaça de morte ou morte efetiva. O impacto deste trabalho pode ter repercussões na sua saúde, bem-estar e produtividade, como também afetar as pessoas que lhe são próximas (Brooks et al., 2018). É, assim, fundamental garantir que recebem o cuidado e o apoio necessários (Brooks et al., 2016). Considerando a variável tempo, é possível identificar um conjunto de ações que pode ser levado a cabo antes, durante e depois da exposição a situações potencialmente traumáticas, com o propósito de garantir a gestão eficaz dos recursos, a promoção da saúde e bem-estar, e a recuperação após a vivência de situações desta natureza.
14.2 Prevenir o trauma e promover a saúde mental
Há que dar prioridade à prevenção e à promoção no domínio da saúde mental. Para serem eficazes, as estratégias preventivas devem ser aplicadas em períodos específicos antes do aparecimento da perturbação mental. A promoção da saúde mental envolve a valorização da saúde mental e a melhoria das competências de coping dos indivíduos, isto é, a forma como lidam com as coisas, mais do que a melhoria da sintomatologia. As duas, prevenção e promoção, sobrepõem-se e complementam-se. E a sua combinação reduz o estigma, aumenta a relação custo-eficácia e proporciona múltiplos resultados positivos (Organização Mundial da Saúde, 2002, 2022, 2021a, 2021b).
O modelo mais popular de prevenção, o modelo socioecológico do Centers for Disease Control and Prevention, sugere diferentes níveis, cruzados com as tradicionais prevenções primária, secundária e terciária (Dahlberg & Krug, 2002). Aplicado ao trauma, a prevenção primária refere-se, grande parte das vezes, a evitar a exposição ao acontecimento; a secundária pretende prevenir sequelas relacionadas com o trauma, em particular a perturbação de stresse pós-traumático (PSPT), como a minimização de stressores contínuos em indivíduos expostos a trauma para prevenir o início da PSPT; e
2 A informação sobre estes temas deve estar disponível e ser continuamente avivada através de diferentes canais de comunicação, com recurso a diferentes materiais, como pósteres, folhetos e publicações nas redes sociais. Ações de sensibilização, workshops, grupos de discussão e simulacros são também exemplos de atividades a serem desenvolvidas para a difusão de conhecimentos.
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Kit de AutOcuidAdOs
Os autocuidados são todas as ações e atividades que fazemos no dia a dia com o objetivo de ajudar a manter ou melhorar a nossa saúde e bem-estar psicológicos. Torna-se mais fácil enfrentar e lidar com os problemas, desafios e stresses do quotidiano se nos sentirmos bem psicologicamente. Se pensarmos no contexto pré-hospitalar, e nas situações com potencial traumático com que os operacionais se confrontam, faz ainda mais sentido promover uma cultura de autocuidados.
Já vimos um conjunto de boas práticas que podem e devem acontecer antes, durante e depois de incidentes críticos e situações potencialmente traumáticas. No entanto, nos dias seguintes, há algumas ações que podem ajudar a lidar mais facilmente com o desconforto e mal-estar que estas situações causam, e a recuperar mais rapidamente o equilíbrio emocional e a funcionalidade.
Seguem-se algumas recomendações para os operacionais, seus familiares, amigos, assim como para as organizações, porem em prática. Rotinas, descanso, vida social, atividade física, condições de trabalho são alguns tópicos a ter em consideração.
Dicas para os operacionais
■ Falar sobre o que aconteceu com alguém próximo ou algum colega de trabalho; às vezes, escrever, desenhar, pintar pode também ajudar;
■ Partilhar emoções, sentimentos, pensamentos e preocupações com alguém de confiança;
■ Estar disponível para receber e dar apoio aos colegas;
■ Voltar à rotina logo que possível, mas se for necessário, fazer ajustes (e.g., tirar um ou dois dias);
■ Prever que o reajustamento pode demorar algum tempo: ser flexível, tolerante e paciente;
■ Planear os dias seguintes e estabelecer prioridades;
■ Tentar descansar e dormir o suficiente, e fazer por manter as rotinas de sono;
■ Evitar manter-se demasiado ocupado como tarefa de distração ou evitamento;
■ Fazer pausas regulares ao longo do dia para descanso, alimentação e relaxamento (e.g., alongamentos, descompressão muscular);
■ Assegurar a prática regular de atividade física;
■ Procurar ter uma alimentação saudável e assegurar as rotinas e os horários das refeições;
■ Limitar o consumo de nicotina, álcool, cafeína e outras substâncias;
■ Evitar a automedicação e evitar experimentar medicação nova ou alterar dosagem de medicação habitual;
■ Dedicar tempo e aumentar atividades de lazer, que dão prazer e permitem descomprimir e relaxar;
■ Ponderar dedicar tempo a atividades de desenvolvimento pessoal e espiritual;
■ Reservar tempo para estar a sós, mas passar tempo com as pessoas que são importantes (família e amigos);
■ Aceitar que os dias seguintes podem ser especialmente angustiantes e difíceis de gerir;
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(continua)
Vidas da EMERGÊNCIA PRÉ-HOSPITALAR
Um livro para técnicos e operacionais das equipas de apoio à emergência, bem como para psicólogos, formadores, estudantes e todos os outros profissionais que atuem ou tenham interesse na área do socorro pré-hospitalar.
Trabalhar no contexto de emergência pré-hospitalar é um ofício com elevadas exigências pessoais e técnicas, uma vez que os operacionais de socorro necessitam de conhecimentos muito específicos para atuarem em situações de emergência e de um conjunto de competências pessoais que lhes permita gerir os níveis de exigência destas situações.
Esta obra é composta por duas partes: na primeira, apresentam-se histórias dos operacionais, comentadas pela Coordenadora, psicóloga e especializada na área da intervenção na crise e no trauma, e, na segunda parte, faz-se um enquadramento teórico e prático, realizado por profissionais de referência nas áreas da emergência, da segurança e da saúde mental e organizacional, abordando o exercício voluntário e profissional desta atividade, a formação e o treino dos operacionais, a gestão de emergências simples e complexas, os riscos psicossociais, as crises, o trauma, a resiliência e o crescimento pós-traumático. Um livro de referência, único no mercado editorial português, escrito por e para quem está na linha da frente no socorro pré-hospitalar.
TEMAS
Apoio psicossocial
Saúde mental
Emergência médica
Intervenção
Crises
Treino de operacionais
Voluntariado
Gestão de operações de socorro
Situações de risco
Trauma
Stresse
Crescimento pós-traumático
Resiliência
Formação e recrutamento
Apoio de pares
www.pactor.pt ISBN 978-989-693-159-9 9 789896 931599