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Autores

COORDENADORES/AUTORES

Joana Teixeira

Assistente hospitalar de Psiquiatra do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL), atualmente a exercer funções de coordenadora da Unidade de Alcoologia e Novas Dependências, com competência em Adictologia Clínica pela Ordem dos Médicos (OM). Membro da direção do Internato Médico do CHPL. Membro da direção da Secção Especializada em Psiquiatria da Adição da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental (SPPSM). Assistente convidada da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL).

João Cabral Fernandes

Ex-diretor clínico do Hospital Júlio de Matos. Esteve envolvido na criação, na dinamização e no desenvolvimento da Psiquiatria Comunitária, sendo fundador da Unidade Comunitária de Cuidados Psiquiátricos de Odivelas (UCCPO). Ex-diretor da Equipa A da Unidade de Tratamento e Reabilitação Alcoológica (UTRA) do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL). Psiquiatra e clínico em exercício.

Teresa Mota

Assistente graduada sénior de Psiquiatria do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL), atualmente a exercer funções como diretora clínica. Exerceu funções de coordenação do Serviço de Alcoologia e Novas Dependências do CHPL até 2017.

Autores

Afonso Gouveia

Médico interno de formação especializada em Psiquiatria da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo (ULSBA). Docente afiliado na Nova Medical School (NMS) da Universidade Nova de Lisboa. Colaborador no Programa de Gestão Integrada de Riscos Psicossociais (ProGeRPsi) da ULSBA. Mestrando (MA) em Filosofia e Saúde Mental na University of Central Lancashire (UCLan).

Afonso Paixão

Licenciado em Psicologia Clínica desde 2003 e especialista em Psicologia Clínica desde 2011. Especialista em Psicologia Clínica e da Saúde e especialista em Psicologia Comunitária pela Ordem dos Psicólogos desde 2016. Desde 2004, exerce funções como psicólogo clínico no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL), atualmente na categoria de assistente na Unidade de Alcoologia e Novas Dependências no CHPL.

Ana Vieira da Silva

Assistente graduada sénior de Saúde Pública da Unidade de Alcoologia de Lisboa (UAL). Competência em Adictologia Clínica pela Ordem dos Médicos (OM). Coordenadora Técnica da Unidade de Alcoologia de Lisboa da Divisão de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (DICAD) da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, I. P. (ARSLVT).

Arianna Borelli

Interna de Medicina Geral e Familiar na Unidade de Saúde Familiar Sétima Colina (ACES Lisboa Central). Mestre em Migrações, Inter-etnicidades e Transnacionalismo pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH, UNL).

Augusto Pinto

Assistente graduado sénior de Medicina Geral e Familiar. Antigo diretor do Centro Regional de Alcoologia do Centro (CRAC). Membro do Conselho Científico da Sociedade Portuguesa de Alcoologia (SPA).

Cristina Ribeiro

Assistente graduada em Medicina Geral e Familiar. Doutorada e docente na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL), com competência em Adictologia Clínica. Presidente da Associação Portuguesa da Medicina da Adição (APMA). Membro da direção da Federação Europeia de Comportamentos Aditivos (EUFAS). Coordenadora do Grupo de Estudo de Comportamentos Aditivos da Associação

Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF). Membro dos Órgãos Sociais da Associação de Docentes e Orientadores de Medicina Geral e Familiar (ADSO). Médica no Departamento de Qualidade da Direção-Geral da Saúde (DGS) e terapeuta familiar.

Fátima Barbosa

Assistente hospitalar graduada em Psiquiatria. Competência em Adictologia Clínica pela Ordem dos Médicos (OM). Coordenadora da Clínica de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital Prisional São João de Deus – Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP).

Filipe Lança

Médico interno de formação específica em Medicina Geral e Familiar na Unidade de Saúde Familiar Sétima Colina (ACES Lisboa Central).

Frederico Rosário

Consultor em Medicina Geral e Familiar da Unidade de Saúde Familiar de Tondela, com competência em Adictologia Clínica. Consultor da Organização Mundial da Saúde (OMS) para Problemas Ligados ao Álcool. Coordenador da Comissão Executiva para a Investigação em Problemas Ligados ao Álcool do Centro Académico Clínico das Beiras (CACB).

Guilherme Pereira

Assistente hospitalar de psiquiatria na equipa técnica especializada de tratamento de Almada na Divisão de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (DICAD) da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, I. P. (ARSLVT).

Inês Matos Pereira

Médica interna de formação específica em Psiquiatra no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL). Pós-graduada em Terapias Cognitivo-Comportamentais em Adultos.

João Borba Martins

Médico interno de formação específica em Psiquiatria no Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA). Pós-graduado em Psicoterapias Cognitivo-comportamentais e em Sexualidade Humana.

João Gonçalves

Médico Psiquiatra. Assistente hospitalar de Psiquiatria na Clínica de Alcoologia e Novas Dependências do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL). Assistente livre da Clínica Universitária de Psiquiatria e Psicologia Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL). Presidente da Direção da Associação Mental8Works. Membro fundador da Secção de Psiquiatria da Adição da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental (SPPSM).

José de Brito

Assistente graduado de Medicina Geral e Familiar da Unidade de Saúde Familiar Sétima Colina (ACES Lisboa Central). Pós-graduado em Geriatria pela Sociedade Portuguesa de Geriatria e Gerontologia (SPGG). Orientador de formação específica do internato médico de Medicina Geral e Familiar da Zona Sul.

Lídia Moutinho

Enfermeira especialista em Saúde Mental e Psiquiatria na Unidade de Tratamento e Reabilitação Alcoológica (UTRA) do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL). Professora adjunta convidada na Escola Superior de Enfermagem de Lisboa (ESEL) e na Escola Superior de Saúde de Leiria (ESSLei).

Mafalda Azevedo Mendes

Assistente hospitalar de Psiquiatria da Equipa de Tratamento de Xabregas – Centro de Respostas Integradas (CRI) de Lisboa Oriental.

Maria Inês Pinto Lagarto

Doutorada em Serviço Social. Professora adjunta da Escola Superior de Educação e Ciências Sociais (ESECS) do Politécnico de Leiria. Membro da Direção da Sociedade Portuguesa de Alcoologia (SPA).

Margarida Alves

Médica interna de formação específica em Psiquiatria no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar de Setúbal (CHS).

Margarida Neto

Psiquiatra na Casa de Saúde do Telhal, no Instituto de São João de Deus. É coordenadora da Unidade de Alcoologia – Novo Rumo – na Casa de Saúde do Telhal. Durante o internato de Psiquiatria, trabalhou com a Dra. Gisela Crespo no HMB e GEPTRA, onde se iniciou no conhecimento da clínica da dependência do álcool e respetivo tratamento.

Miriam Marguilho

Médica interna de formação específica em Psiquiatria no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL). Pós-graduada em Terapias Cognitivo-comportamentais e em Sexologia Clínica.

Paula Diegues

Psicóloga Clínica da Unidade de Alcoologia e Novas Dependências no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL). Pós-graduada em Psicologia da Consciência pela Universidade Autónoma de Lisboa (UAL) e terapeuta de Eye Movement Desensitization and Reprocessing (EMDR).

Rita Ramos

Assistente social da Unidade de Alcoologia e Novas Dependências no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL).

Samuel Pombo

Psicólogo clínico do Serviço de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital de Santa Maria (HSM). Professor auxiliar de Psicologia Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL).

Sandra Torres

Médica interna de Psiquiatria do Centro Hospitalar Barreiro-Montijo (CHBM).

Sara de Carvalho Ferreira

Assistente de Medicina Geral e Familiar em funções na Unidade de Saúde Familiar Sétima Colina da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, I. P. (ARSLVT). Orientadora de formação específica do internato médico de Medicina Geral e Familiar da Zona Sul. Sexóloga pela Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica. Médica na Organização Não Governamental Grupo de Ativistas em Tratamentos (GAT) – Espaço Intendente.

Sérgio Saraiva

Assistente hospitalar de Psiquiatria do Hospital Prisional São João de Deus – Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP). Consultor de Psiquiatria da Delegação Sul do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF). Assistente livre de Psiquiatria na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL).

Sónia Ferreira

Psicóloga clínica e terapeuta familiar sistémica na Unidade de Alcoologia e Novas Dependências do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL). Especialista em Psicologia Clínica e da Saúde, em Psicologia do Trabalho, Social e das Organizações, em Psicologia da Justiça e em Psicoterapias. Mestre em Psicologia Forense e da Exclusão Social. Pós-graduada em Neuropsicologia. Doutoranda em Neurociências na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL).

Violeta da Cruz Nogueira

Interna de formação específica em Psiquiatria da Unidade de Alcoologia e Novas Dependências do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPS).

Sendo certo que a problemática associada ao uso de álcool tem representado em Portugal uma verdadeira preocupação de saúde pública, a realidade tem permitido entender que muito pouco tem sido feito no sentido de minimizar ou resolver este flagelo.

Se em termos políticos temos assistido a um franco desinteresse na abordagem desta temática, do ponto de vista técnico, ao longo dos últimos 15 anos, temos vivenciado um progressivo desinvestimento, quer a nível de recursos humanos quer a nível de estruturas físicas, essenciais à manutenção de planos terapêuticos diferenciados.

Neste contexto, não será de estranhar que a consequente evolução da área da Alcoologia em Portugal tenha decorrido no sentido do seu empobrecimento científico, com cada vez menos trabalhos publicados, menos congressos e reuniões clínicas, menos partilhas e dinamização entre pares e, claro, com a real desfragmentação e destruturação das equipas especializadas que trabalhavam na área.

No entanto, e em virtude do surgimento de um elevado número de novos conhecimentos associados ao processo da adição ao álcool, outras substâncias e comportamentos, temos assistido a um revitalizar da motivação para o reinvestimento técnico na Alcoologia.

Olhando para os números, este novo interesse não podia surgir em melhor altura. Temos atualmente um dos maiores consumos per capita de etanol do mundo. Os resultados do IV Inquérito Nacional ao Consumo de Substâncias

Psicoativas na População Geral, Portugal 2016/17 evidenciaram um agravamento dos consumos de risco ou dependência na população geral entre os 15 e os 74 anos, bem como outras evoluções negativas preocupantes em alguns subgrupos populacionais, como as mulheres e os mais velhos.

Os resultados apresentados pelo mesmo estudo mostram que entre 2017 e 2019 verificaram-se algumas evoluções preocupantes, com destaque nos mais jovens, nomeadamente o aumento entre 2015 e 2019 do consumo recente e atual de álcool, do binge e da embriaguez nos jovens de 18 anos, assim como em jovens de determinadas idades, em particular nos de 16 anos, e o aumento dos diagnósticos em que crianças/jovens assumem ou são expostos a comportamentos ligados ao consumo de álcool que afetam o seu bem-estar e desenvolvimento.

Ainda o mesmo estudo deixa claro algumas tendências preocupantes, nomeadamente o aumento dos utentes em tratamento, quer dos que o iniciaram em ambulatório quer dos internados em Comunidade Terapêutica; a subida, nos dois últimos anos, da prevalência de VHC+ entre os readmitidos em ambulatório e dos internamentos hospitalares atribuídos ao consumo de álcool; o agravamento da mortalidade por doenças atribuíveis ao álcool; e, desde 2015, da mortalidade em acidentes de viação sob a influência do álcool (SICAD, Relatório Anual 2019 – A Situação do País em Matéria de Álcool ).

Esta é, de facto, uma realidade preocupante, que tem necessariamente de ter a nossa atenção e motivação para o regresso ao trabalho, com o interesse que a dimensão do problema assim o exige e com a consequente partilha de informação e conhecimento entre todos.

Assim surge este fantástico livro, que, considerando o exposto, é bem mais do que um livro, constituído por 14 capítulos e 31 autores. É a concretização de um projeto coletivo de técnicos de diversas áreas que têm em comum a experiência e o interesse na problemática associada ao consumo de álcool. O ponto mais entusiasmante neste projeto centra-se na capacidade de voltar a reunir um grupo heterogéneo de técnicos, com as mais diversas idades e experiências, unificando o conhecimento multidisciplinar, atualizado e representativo de diversas visões ou escolas do saber.

Ao percorrer os diferentes capítulos, ficamos com a sincera ideia de que este livro representa a obra mais atual e completa sobre o tema escrita entre nós, constituindo um excelente retrato desta nossa problemática. Ao longo da sua leitura, encontramos abordadas múltiplas facetas da nossa realidade clínica, que vão desde os aspetos históricos à problemática epidemiologia e ao impacto na saúde, passando por particularidades muito nossas, como o problema de consumo nos mais jovens, mulheres e idosos, fornecendo um olhar diferenciado para o plano de tratamento especializado, mas não esquecendo a tão importante intervenção nos cuidados de saúde primários. Paralelamente, as novas bases neurobiológicas também não foram esquecidas, deixando entender a importante relação e integração dos novos conhecimentos na nossa clínica. Justamente por tudo o exposto, não é demais sublinhar a importância da elaboração desta obra no nosso panorama clínico. Gostaria de reforçar a ideia de que, além de uma obra científica, representa um ponto de união de conhecimentos entre todos. Neste contexto, surge o apoio científico e a recomendação da obra pela Sociedade Portuguesa de Alcoologia, que tem lutado ao longo dos anos por manter viva a ciência alcoológica em Portugal, tentando estimular e manter vivo o espírito que levou à realização desta excelente obra.

João Marques Presidente da Sociedade Portuguesa de Alcoologia

Palavras prévias

Faço parte de uma outra geração de psiquiatras portugueses. Em 1983, comecei a trabalhar no Hospital Júlio de Matos, com características asilares muito marcadas. A psiquiatria assistia então a uma nova era em Portugal, aprofundava-se o debate entre os clínicos, novas perspetivas eram conhecidas, a multidisciplinaridade ganhava um novo fôlego. O Serviço Nacional de Saúde (SNS), criado em 1978, dava os seus primeiros passos.

Hoje, o SNS está a ser paulatinamente desmantelado com o seu constante desinvestimento, causando uma permanente degradação da qualidade dos seus serviços. As experiências comunitárias, como a que ajudei a fundar em Odivelas, e os serviços de alcoologia foram desmantelados nos últimos 20 anos. Instaurou-se uma visão mediática de mera prevenção de saúde pública, subjugou-se a alcoologia à adictologia pública e reduziu-se o tratamento do álcool ao acompanhamento em ambulatório. O álcool foi subordinado às drogas, destruiu-se a perspetiva psiquiátrica sobre este aditivo.

Um exemplo é a abordagem à crise contemporânea da adolescência. Fetichiza-se (clínica e mediaticamente) a alcoolização e o uso e abuso de drogas sem que se aborde, seja na consulta ou na teoria, as razões que levam os jovens a consumir álcool em excesso. Nas consultas, não se fala das condições de trabalho (precariedade, baixos salários, excesso de horas de trabalho) e das suas perspetivas de futuro (dos seus medos e ansiedades), dos seus ambientes familiares, do seu crescimento mental e da sua construção de identidade.

Assim, os jovens ficam à margem dos psiquiatras e os psiquiatras à margem dos jovens. Cria-se um muro invisível que os separa. Não se criam vínculos de confiança nem transformadores da capacidade de pensar e mudanças na sua mundividência. As consultas de 15 a 20 minutos (“toma lá esta pílula para o teu problema”) provam-no bem. A medicação é essencial no exercício da psiquiatria, mas não pode ser o seu foco. No sistema público ou no privado, é o que se constata na generalidade. O psiquiatra transformou-se, muitas vezes, em simples quimiatra.

E, no que diz respeito ao sector público, é o constante reforço da conceção de os hospitais terem de ser empresas e dar obrigatoriamente lucro (ou nenhum “prejuízo”), não satisfazendo as necessidades da população. A pressão sobre os médicos para verem cada vez mais pacientes, como se estivessem num circuito de fábrica, proletarizando-os, é cada vez maior. É a isto que assistimos em Portugal, e a saúde mental sempre foi o parente pobre da saúde pública.

Mas esta não é a única razão para considerar que a psiquiatria recuou significativamente nas últimas duas décadas. A perspetiva das neurociências passou a dominar a psiquiatria como um todo, relegando para as margens do debate clínico as restantes perspetivas. Em suma, houve um corte entre a minha geração e as gerações que se seguiram ao nível da abordagem psiquiátrica.

O raciocínio imposto às novas gerações de psiquiatras debruça-se em demasia sobre o cérebro e as estruturas neuronais, e os seus transmissores, como agentes da vida das pessoas. É-lhes estimulado um conhecimento pseudo-objetivo sem que se tenha em conta as relações de autonomia relativa entre a mente e o cérebro num quadro específico de existência de vida. Resumindo, é-lhes incutida a visão de que a neuroquímica é a explicação totalitária e global para o devir alcoólico.

Aos novos psiquiatras não lhes é, em alternativa, estimulado a importância da filosofia, da epistemologia e da Teoria do Conhecimento, o que lhes permitiria não apenas ter uma abordagem mais ampla sobre a realidade como também sobre a relação entre o paciente e o álcool. Ou seja, o alcoolismo não está apenas no cérebro, nos genes e em simples reações químicas; está na pessoa, na sua herança biológica, nas suas dificuldades do viver mental e comportamental e nas condições societárias.

Daí que o seguimento dos pacientes com perturbação de uso de álcool (PUA) tenha de ter um espectro largo, que vai das políticas de prevenção e de saúde pública à intervenção robusta nos doentes mais pesados, o que faz com que 5% dos pacientes com PUA sejam dependentes de álcool. Um ensinamento básico, adquirido ao longo de décadas, que, se não foi esquecido, pelo menos negligenciado o foi. E, por isso, nunca é demais ressalvar o óbvio: os pacientes alcoólicos, sobretudo os dependentes de álcool, têm de ter camas e serviços disponíveis, mesmo com duração limitada. A desintoxicação antecede a desabituação.

Em 2005, a direção do Hospital Júlio de Matos nomeou-me diretor do sector A do hospital. Sabendo a importância do internamento de dependentes de álcool, rejeitando uma abordagem de apenas ambulatório ou de pura rejeição do fenómeno do alcoolismo, tudo fiz para que não faltassem camas para que os pacientes fossem internados. Por vezes, era necessário analisar-se com membros da equipa, médicos e enfermeiros, quais os pacientes que poderiam receber alta para outros darem entrada, numa gestão sensível de camas. A minha cultura médica, humana, cultural e social nunca permitiu a exclusão ou discriminação destes doentes da psiquiatria: não eram vulgares aditos. Ao mesmo tempo, uma das prioridades do serviço era o acompanhamento de proximidade, em contacto direto com a comunidade, com consultas semanais para alcoólicos e famílias. Além disso, fazíamos trabalho clínico em grupo com os pacientes. O trabalho em grupo é mais rico e produtivo, pois os pacientes são, simultaneamente, atores no processo de cura enquanto influenciam, com as suas intervenções, a dinâmica do grupo e, portanto, o processo de cura dos restantes pacientes. É uma dinâmica que permite estimular o pensamento criativo e de mudança ao mesmo tempo que envolve mais pacientes. Os grupos podem ser, num quadro de Área de Dia, semanais (ambulatório) ou no próprio internamento.

Anos mais tarde, o sector A recebeu um reforço de profissionais de saúde com a integração da equipa de alcoologia do Hospital Miguel Bombarda – a Unidade de Tratamento e Reabilitação Alcoológica (UTRA). Acrescentou-se um trabalho da Área de Dia e consultas, de médicos, enfermeiros e psicólogos, que se mantém até aos dias de hoje, com os seus profissionais a fazerem-no com enorme resiliência, dedicação e esforço pessoal e profissional perante uma série de fragilidades do SNS. A UTRA continua a sua prática alcoológica global há mais de três décadas.

Hoje, e por causa da não existência de serviços abertos dedicados aos pacientes dependentes de álcool, o refúgio (ou melhor, o pequeno desvio com consequências) é relacionar tudo com as neurociências aos fatores genéticos e cerebrais, relegando para segundo ou terceiro plano as vertentes relacionais, sociais e comunitárias. Os neurotransmissores são a resposta final para as dificuldades de um pensamento livre. Como disse o Professor Pedro Morgado, “a psiquiatria é fundamentalmente o exercício da liberdade”. E as políticas de saúde têm de salvaguardar o risco das tentativas de exclusão do ser humano. É por tudo isto que o livro Álcool – Teoria e Clínica , coordenado por Joana Teixeira, Teresa Mota e por mim, é tão essencial. É uma obra que quebra o silêncio que se instalou nesta área nos últimos 20 anos. Com uma visão crítica, os seus 31 jovens psiquiatras, uma nova geração com especial interesse no tratamento do alcoolismo, abordam temas como a dependência alcoólica, a epidemiologia do consumo, a história do álcool, a neuroquímica e fatores psicossociais, as tipologias e classificações clínicas, entre outros. É uma obra de fôlego que poderá ser um guião para uma nova onda da alcoologia, uma que nos pode dar respostas de como superar a crise do desmantelamento das unidades de tratamento e da compreensão e conflitualidade de perspetivas de saúde pública e de clínica alcoológica.

Este livro é um primeiro passo num debate que desejamos aprofundar entre os psiquiatras e todos os profissionais de saúde mental. Numa edição posterior, corrigida, aumentada e melhorada, novos temas práticos deverão ser abordados no país em que a natureza nos deu bom vinho e formas capazes de plantar cepas antigas e novas em rebeldia perante a União Europeia, tendo já um lugar no roteiro vinícola europeu e mundial. Atrevo-me a dizer que esta obra de excecional valor e única no plano editorial pode alimentar e dar novo alento à clínica alcoológica nos próximos anos.

Como o psiquiatra Franz Fanon escreveu uma vez, “o que importa não é conhecer o mundo, mas mudá-lo”. Assim seja para a psiquiatria.

João Cabral Fernandes (Cocoordenador)

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