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Fases Iniciais das Perturbações Psicóticas

Avaliação e Intervenção

Ricardo Coentre

Nuno Madeira

Pedro Levy Coordenação:

FASES INICIAIS DAS PERTURBAÇÕES

PSICÓTICAS

AVALIAÇÃO E INTERVENÇÃO

Coordenação Ricardo Coentre Nuno Madeira Pedro Levy

Lidel – edições técnicas, lda. www.lidel.pt

Intervenções biológicas Primeiro

Catarina Klut Câmara, Verónica Podence Falcão

Autores

COORDENADORES/AUTORES

Nuno Madeira

Assistente Hospitalar Graduado de Psiquiatria na Unidade Local de Saúde de Coimbra; Professor Auxiliar Convidado na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra.

Pedro Levy

Assistente Hospitalar Graduado de Psiquiatria no Hospital de Santa Maria na Unidade Local de Saúde Santa Maria (PROFIP – Programa de Intervenção nas Fases Iniciais da Psicose).

Ricardo Coentre

Assistente Hospitalar Graduado de Psiquiatria no Hospital de Santa Maria na Unidade Local de Saúde Santa Maria; Professor Auxiliar Convidado na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (PROFIP – Programa de Intervenção nas Fases Iniciais da Psicose); Mestrado em Internatio nal Master In Affective Neuroscience na Universidade de Maastricht.

AUTORES

Alessia Avila

Psicóloga clínica (neuropsicóloga) na Unidade Local de Saúde Santa Maria; Assistente Convidada na Faculdade de Medicina da Universidade Católica Portuguesa.

Alexandra Fonseca

Psicóloga Clínica e da Saúde; Especialista em Psicologia da Saúde e Psicoterapia pela Ordem dos Psicólogos Portugueses; Mestrado em Educação Especial na Universidade Técnica de Lisboa; Dou toranda em Educação para a Saúde pela Universidade Técnica de Lisboa; Assistente Principal da Carreira de Técnico Superior de Saúde no Serviço de Psiquiatria e Saúde Mental da Unidade Local de Saúde Santa Maria; Diretora Associada do Espaço Neurociências, Saúde e Desenvolvimento.

Ana Marques

Assistente Hospitalar Graduada de Psiquiatria; Coordenadora do Programa de Intervenção Precoce na Psicose (PIPP) do Serviço de Psiquiatria da Unidade Local de Saúde de Gaia e Espinho (ULSGE).

Ana Sofia Cabral

Assistente Hospitalar Graduada de Psiquiatria na Unidade Local de Saúde de Coimbra. Especialista em Psiquiatria Forense pela Ordem dos Médicos.

Ana Sofia Coutinho

Médica Especialista em Psiquiatria.

Ângela Silva Pinto

Médica Interna de Formação Especializada em Psiquiatria na Unidade Local de Saúde Gaia e Espinho.

António Ferreira de Macedo

Professor Catedrático de Psiquiatria/Psicologia Médica da Faculdade de Medicina da Universida de de Coimbra (FMUC); Professor Afiliado da Faculdade de Medicina da Universidade do Por to (FMUP) e da Faculdade de Medicina de Barbacena (Brasil); Diretor do Instituto de Psicologia Médica da FMUC; Assistente Graduado de Psiquiatria (ULS Coimbra); Coordenador da Unidade de Internamento Agudo do Centro de Responsabilidade Integrada de Psiquiatria (ULS Coimbra); Coordenador da Unidade de Neuromodulação e da Consulta de Perturbação Obsessivo Compulsiva.

Carla Ferreira

Médica Psiquiatra na Clinique de Notre de Dame de Grâce, Gosselies (Bélgica).

Catarina Klut Câmara

Assistente Hospitalar Graduada de Psiquiatria, Coordenadora do Programa de Avaliação e Inter venção no Primeiro Episódio Psicótico e Coordenadora da Unidade de Internamento no Serviço de Psiquiatria no Hospital Beatriz Ângelo, Unidade Local de Saúde Loures/Odivelas. Docente da Unidade Curricular de Psicopatologia e Saúde Mental, Mestrado Integrado em Medicina na Facul dade de Medicina da Universidade Católica Portuguesa.

Cátia Dias

Assistente Hospitalar Graduada de Psiquiatria no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital de Cascais.

Celeste Silveira

Assistente Hospitalar Graduada de Psiquiatria na Unidade Local de Saúde de São João. Professora Auxiliar Convidada da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

Diana Vila-Chã

Médica Interna de Formação Especializada em Psiquiatria na Unidade Local de Saúde São José (Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa).

Fernando Vieira

Médico Especialista em Psiquiatria, subespecialidade de Psiquiatria Forense.

Filipe Peste Martinho

Médico Interno de Formação Especializada em Psiquiatria na Unidade Local de Saúde Amadora Sintra.

Joana Romão

Médica Interna de Formação Especializada em Psiquiatria do Serviço de Psiquiatria e Saúde Mental da Unidade Local de Saúde Santa Maria.

Joana Silva Ribeiro

Médica Especialista em Psiquiatria.

Joaquim Gago

Psiquiatra e Psicoterapeuta; Psiquiatria da Unidade Local de Saúde de Lisboa Ocidental e da Uni dade de Saúde Mental de Oeiras – Unidade Local de Saúde de Lisboa Ocidental; Professor Auxiliar

de Psiquiatria da Nova Medical School; Formador da Associação Portuguesa de Terapias Compor tamental, Cognitiva e Integrativa.

Leonor Santana

Médica Especialista em Psiquiatria; Formanda da Pós‑Graduação Terapia Cognitivo‑Comportamen‑ tal e Integrativa na Associação Portuguesa de Terapias Comportamental, Cognitiva e Integrativa; Psiquiatra da Unidade Local de Saúde de Lisboa Ocidental na Unidade de Saúde Mental de Oeiras e na Unidade de Psiquiatria Perinatal.

Liliana P. Ferreira

Médica Especialista em Psiquiatria; Assistente Hospitalar de Psiquiatria no Centro de Respon sabilidade Integrado (CRI) de Psiquiatria e Saúde Mental da Unidade Local de Saúde do Oeste (Coordenadora da Equipa Comunitária de Saúde Mental, Membro da Equipa de Intervenção Precoce da Psicose); Mestrado em Intervenção Sócio Organizacional na Saúde: Diagnóstico e Intervenção Comunitária; Formação em Intervenção Sistémica e Familiar na Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar.

Manuela Araújo

Assistente Hospitalar no Serviço de Psiquiatria da Adolescência do Departamento de Saúde Mental e Psiquiatria da Infância e da Adolescência no Centro Hospitalar Universitário de Santo António, Unidade Local de Santo António.

Margarida Vieira

Médica Interna de Formação Especializada em Psiquiatria na Unidade Local de Saúde Gaia e Espinho.

Maria João Avelino

Assistente Graduada de Psiquiatria; Coordenadora Clínica do MESMO (Mafra, Espaço de Saúde Mental e Ocupacional) da Unidade Local de Saúde Santa Maria; Coordenadora das Consultas de Fases Iniciais de Psicose/Psicose Resistente e Saúde Mental Perinatal – Joaquim Chaves Saúde; Membro do Conselho Consultivo da Manifestamente.

Maria João Martins

Psicóloga. Especialista em Psicologia Clínica e da Saúde. Serviços de Saúde da Universidade de Coimbra.

Mónica Grais

Psicóloga. Especialista em Psicologia Clínica e da Saúde, Terapeuta Sexual e Terapeuta Familiar no Centro de Responsabilidade Integrado (CRI) de Psiquiatria e Saúde Mental da Unidade Local Saúde do Oeste.

Otília Queirós

Diretora do Departamento de Saúde Mental e Psiquiatria da Infância e da Adolescência no Centro Hospitalar Universitário de Santo António da Unidade Local de Saúde de Santo António.

Fases Iniciais das Perturbações Psicóticas. Avaliação e Intervenção

Patrícia Frade

Médica Especialista em Psiquiatria, Assistente Hospitalar Graduada de Psiquiatria, Diretora do Departamento e do Centro de Responsabilidade Integrado (CRI) de Psiquiatria e Saúde Mental da ULS do Oeste (membro da Equipa de Intervenção Precoce na Psicose); Presidente da Assembleia Geral da Secção de Intervenção Precoce na Psicose; Competência em Sexologia Clínica e Compe tência em Gestão de Serviços de Saúde pela Ordem dos Médicos; Mestrado na Faculdade de Medi cina da Universidade de Coimbra.

Rita Felício

Médica Interna de Formação Especializada em Psiquiatria na Unidade Local de Saúde de Amadora/ /Sintra.

Rodrigo Saraiva

Assistente Hospitalar de Psiquiatria na Unidade Local de Saúde Santa Maria (PROFIP – Programa de Intervenção nas Fases Iniciais da Psicose); Assistente na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.

Sofia Marques

Assistente Hospitalar de Psiquiatria na Unidade Local de Saúde da Região de Leiria.

Salomé Caldeira

Psicóloga. Especialista em Psicologia Clínica e da Saúde na Unidade Local de Saúde de Coimbra.

Susana Jorge

Assistente Hospitalar Graduada de Psiquiatria; Coordenadora da Equipa Espaço@Com, Equipa de Reabilitação do Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca, Unidade Local de Saúde de Amadora/ /Sintra.

Teresa Maia

Chefe de Serviço de Psiquiatria; Diretora do Departamento de Saúde Mental na Unidade Local de Saúde de Amadora/Sintra.

Tiago Mendes

Neuropsicólogo Clínico no Hospital CUF Tejo/Campus Neurológico; Professor Auxiliar de Psicologia Médica na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.

Verónica Podence Falcão

Médica Interna de Formação Especializada em Psiquiatria na Unidade Local de Saúde de Loures/ /Odivelas. Palestrante Afiliada de Investigação da Universidade de Deakin em Melbourne, Austrália.

Prefácio

The onset of psychotic illness typically occurs in young people on the threshold of productive life when they are evolving their sense of identity, reworking their relationships with family and peers and completing their education and starting a career. It is the point of maximum vulnerability across the lifespan. When I commenced my training in psychiatry, psychiatrists, guided by Kraepelinian orthodoxy, uniformly delivered a psychological death sentence to first episode patients, indicating that they would never recover, would probably not find a life partner or be able to reach their potential in terms of education and career. This pessimistic message meant that hope was denied to these patients and their families in a way that we do not even see in the setting of late‑stage cancer. No wonder iatrogenic effects including depression, substance use, and increased suicide risk were produced.

Starting from the premise that we did have effective biological and psychosocial treatments for psychosis and schizophrenia, the concept of early detection and intensive stage specific intervention for early psychosis was developed and tested in innovative service models, initially in Australia from the early 1990s, and subsequently in a number of other countries around the world. It was hypothesised that if treatment was provided before the extensive harm had occurred to developmental trajectories, to social relationships and to education and employment prospects, then better levels of functional outcome could be achieved. Timing of diagnosis and treatment as well as stage specific aspects, as in most other potentially serious illnesses, was a key variable that had never been previously considered. The results gradually accumulated to show that outcomes at least in the early years post diagnosis could be substantially improved. However, once discharged to standard and typically under‑resourced and intermittent aftercare in standard adult mental health and primary care settings, some or most of these gains were eroded. Some critics sought to argue that this called the value of early intervention into question. However, what it actually indicated was that, because psychosis tends to be a persistent vulnerability for the majority of patients (not all), continued high quality and sustained care is needed to maintain the gains created by the early intervention strategy. As the authors of this handbook highlight, this paradigm shift simulated a rearguard action from traditional psychiatry and a small group of academic psychiatrists. However, this eventually dissipated as more and more evidence accumulated to support the value of early intervention.

It is extremely inspiring to witness the determined leadership for early intervention within psychiatric profession in Portugal led by Pedro Levy, Nuno Madeira and Ricardo Coentre. I have had the pleasure of visiting Portugal and hearing first hand of the wide range of endeavours that are underway, often under challenging resource conditions, however a critical mass has been assembled and the prospects for further reform appear promising. This is a standard of care that should be available to young patients and families worldwide and the collaborative leadership of Portuguese colleagues in this mission is invaluable. This handbook is a much awaited and welcome resource for the early intervention movement. I congratulate the authors, and everyone associated with the project.

Patrick McGorry Médico especialista em Psiquiatria. Líder mundial na investigação na área da Saúde Mental em Jovens. Diretor Executivo do Orygen Centre, Austrália. Professor na Universidade de Melbourne, Austrália.

I CONCEITOS FUNDAMENTAIS I

Capítulo 1

Psicose: evolução do conceito

Psicose – doença mental em que a personalidade se desintegra de forma profunda, com perturbações da perceção, do raciocínio e do comportamento, das quais o paciente não tem consciência.

Infopédia – Dicionários Porto Editora[1]

▪ INTRODUÇÃO

A história da(s) psicose(s) confunde‑se com a história da própria psiquiatria e das descrições iniciais de insanidade. Este conceito genérico tinha, no início do século XIX, o significado clí nico e legal de loucura ou demência e servia para representar muitas das condições clínicas que, mais tarde, viriam a ser incluídas sob a de signação “psicose”, incluindo todas as condi ções de estados delirantes e grave desorganiza ção comportamental[2]. É a Ernst Von Feuchter‑ sleben que é atribuído o primeiro uso do termo “psicose”[3]. No entanto, há menções anteriores a esta designação, como a de 1841, de Karl Frie‑ drich Canstatt (1807‑1850)[4], e outra de 1835, de Gottfried Eisenmann (1795‑1867), que teria usado o mesmo termo, com o mesmo signifi cado, mas uma diferente grafia – psychrose[5] . Etimologicamente, “psicose” deriva do grego psyche, que significa alma, assumindo, para nós, mais o significado de mente, e da junção do sufixo ‑osis, que se reporta a “qualquer doença de”, neste caso, da mente, o que não deixa de ser um conceito vago e impreciso. Esse é um defei to congénito do constructo que se vai manter ao longo de toda a sua evolução conceptual. No século xix , a psiquiatria é essencial mente dominada pelas escolas alemã e france sa, sendo os contributos de outros países mais

residuais. Nesses primórdios, a psiquiatria alemã tinha fortes ligações aos departamentos universitários de Filosofia e sob essa influência eram relativamente prolixos no desenvolvi mento de um novo léxico para este ramo médi co nascente. A própria definição de psiquiatria (Psychiatrie) foi cunhada por Johann Chris tian Reil, em 1808. Este autor, assim como os seus contemporâneos da escola alemã, tinham fortes raízes intelectuais no pensamento filosó fico e na cultura do movimento romântico, sen do influenciados por autores como o filósofo Friedrich Schelling, que afirmou que a mente ou alma (Seele) não poderia adoecer[5]. Nesse período, no seio da psiquiatria alemã, estava instalado um intenso debate entre os fisicalistas ou somaticistas (Somatiker) e os mentalistas (Psychiker). Os somaticistas, como Friedreich e Nasse, acreditavam que a alma estava livre (do corpo) e não poderia adoecer. Assim, as perturbações mentais (Seelenstörungen) seriam causadas por influências somáticas, enquanto os mentalistas, como Johan Heinroth[6], afirmavam que eram causadas por fatores psicológicos.

“A mente é a sede imediata da doença, o sofrimento corporal é secundário. Os transtor nos mentais podem ser claramente atribuídos à sua origem, pecado, erro, paixão… O modo psíquico de cura é aquele que é adequadamente eficiente”[6] .

Pré-mórbido

Saudável

Aumento da gravidade dos sinais e sintomas

Nenhuns ou poucos sintomas

Estádios da doença

doença

Pródromo Início/Progressão

Estádio crónico/Residual

Intervenção precoce Prevenção da progressão

Deterioração

Sintomas psicóticos

Sintomas psicóticos

Sintomas negativos

Sintomas cognitivos Incapacidade funcional

Gestação/Nascimento 10 Puberdade 20 30 40 50 Anos

Figura 3.1 – Curso natural da doença (adaptado de Lieberman et al.[18])

Grupo 1

Apenas um episódio – sem deterioração

Grupo 2

Vários episódios com nenhuma ou mínima deterioração

Grupo 3

Deterioração após o primeiro episódio com exacerbação subsequente e sem retorno à normalidade

Grupo 4

Deterioração crescente a cada um dos vários episódios e sem retorno à normalidade

Figura 3.2 – Modos de evolução da psicose (adaptado de Organização Mundial da Saúde[20])

▪ MODELO DE ESTADIAMENTO

Nas perturbações psicóticas estão incluídas entidades clínicas heterogéneas, no que diz respeito à fenomenologia e ao curso, com esperada progressão ao longo do tempo. Uma das maiores dificuldades das abordagens diagnósticas tradicionais tem sido o não reconhecer

esta natureza evolutiva num continuum. Mas, nos últimos anos, o estadiamento clínico da psicose, à semelhança do que acontece com outras áreas da Medicina, tem sido conceptualizado como um método suplementar de diagnóstico, ajudando na caracterização dessa progressão e dos seus determinantes. Esta é uma conceptualização da evolução das doenças psiquiátricas

em Portugal, uma determinação política para a generalização da existência de equipas de IPP nos serviços de psiquiatria, apesar dos evi dentes benefícios clínicos e económicos desta intervenção[10‑12]. Assim, a heterogeneidade das intervenções disponíveis nas diferentes equi‑ pas são a regra, condicionadas pelos recursos humanos e técnicos existentes[13]. Os cuidados standard aos doentes jovens com o denomina do “primeiro episódio psicótico” (PEP) incluem disponibilidade de internamento na fase aguda e seguimento em regime de ambulatório, sem práticas assertivas, psicoeducação, intervenção familiar ou terapia cognitivo‑comportamental para a psicose (TCCP) de forma generalizada, intervenções consideradas nucleares para estes doentes. As boas práticas estão vertidas nas nor mas de orientação internacionais que eviden ciam os melhores cuidados a estes doentes[14,15]. Os objetivos clínicos do PROFIP são:

▪ Abordagem psicofarmacológica;

▪ Redução da DUP;

▪ Abordagens psicossociais;

▪ Promoção do funcionamento dos doentes;

▪ Prevenção das recaídas;

▪ Identificação precoce e tratamento das recaídas.

▪ DESCRIÇÃO

O PROFIP ocupa um espaço de avaliação e tratamento dos doentes necessário no contex to assistencial, sendo um programa estruturado, multidisciplinar e aberto para doentes com um PEP afetivo e não afetivo[16]. O PROFIP procu ra que as suas práticas sejam baseadas na melhor evidência clínica, sem, contudo, ignorar a rea lidade assistencial particular em que se insere. Baseia, assim, a sua atividade numa estrutura tri dimensional: assistencial, porventura a essencial, formativa de diferentes profissionais e de investi gação. A equipa PROFIP faz parte integrante do Serviço de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospi tal de Santa Maria. Este é um hospital universi tário terciário, com próxima interação com a Fa culdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Em termos de recursos humanos, tem ha vido alguma instabilidade na sua constituição,

todavia, podemos afirmar que a equipa tem, apesar de forma mais lenta do que gostaríamos, vindo a aumentar os seus recursos e, assim, as intervenções disponíveis, com melhoria dos cuidados prestados aos doentes. A equipa é atu almente constituída por dois médicos especialis tas em Psiquiatria (sendo um deles o coordena dor da equipa), um interno da especialidade de Psiquiatria ou Psiquiatria da Infância e Adoles cência em rotação (estágio de três meses) e duas psicólogas (uma em regime de tempo parcial). Também colaboram com a equipa PROFIP ou tras valências do serviço, designadamente Uni‑ dades de Dia, Serviço Social, Terapia Ocupacio nal e Enfermagem. O PROFIP iniciou uma nova etapa em outubro de 2017, com a inclusão de um segundo médico especialista em Psiquiatria, facto que permitiu ampliar as intervenções ofe recidas aos doentes. Nessa altura, um novo pro tocolo de avaliação dos doentes foi implemen tado. Também em janeiro de 2023 foi integrada na equipa uma nova psicóloga, com especial diferenciação e treino no seguimento clínico de doentes com PEP, o que permitiu uma generali‑ zação das intervenções psicossociais, nomeada mente a TCCP e a avaliação neuropsicológica, a todos os doentes.

▪ PROGRAMA DE INTERVENÇÃO

NAS FASES INICIAIS DA PSICOSE

FunciOnamEntO gERal

A equipa do PROFIP tem a sua base de tra balho num piso de internamento, partilhando o espaço com uma equipa de internamento geral. Não possui número fixo de camas de interna mento, sendo a sua utilização em função das ne cessidades, podendo referir‑se que, em média, temos quatro doentes internados. No PROFIP decorrem duas reuniões semanais de equipa: uma de carácter sobretudo assistencial e outra formativa e de organização. Na primeira são discutidos os casos em seguimento pelos diver sos técnicos, sendo um espaço fundamental de discussão clínica, sobretudo dos novos doentes e doentes especialmente difíceis. Na segunda

reunião são abordados diversos assuntos para otimização da equipa, projetos de investigação e apresentação de artigos científicos nesta área de conhecimento. É também nesta reunião que são observados doentes em equipa, quando qualquer dos técnicos considere relevante.

Cada um dos diferentes elementos da equi pa tem tempos de consulta externa nos quais segue em ambulatório os doentes e efetua as diferentes intervenções psicossociais. É tam bém neste espaço que decorrem os dois grupos psicoeducacionais (de famílias e de doentes).

O PROFIP não possui uma unidade de dia pró‑ pria, articulando‑se com as diferentes existentes no serviço, designadamente com o Hospital de Dia B, que tem por base uma intervenção meta cognitiva para a psicose.

cRitéRiOs dE inclusãO

São critérios de inclusão no PROFIP:

▪ Doentes entre os 16‑35 anos;

▪ Diagnóstico de PEP afetivo ou não afetivo, de finido como a presença de sintomas psicóticos contínuos durante pelo menos uma semana[17];

▪ Tratamento antipsicótico inferior a seis meses;

▪ Residência na área geográfica assistencial do Hospital de Santa Maria.

Como critérios de exclusão incluem‑se a de ficiência intelectual moderada a grave e a doen ça cerebral orgânica.

Uma significativa proporção dos doentes que se apresentam com um PEP têm um quadro clínico com diferentes níveis de sintomas psicó ticos e de humor, entre outros, típico das primei ras fases da psicose. Este facto conduz a uma significativa instabilidade diagnóstica nas fases iniciais, com possível mudança do diagnóstico nosológico em fases posteriores da perturbação psicótica. Assim, optou‑se, no PROFIP, por uma abordagem transdiagnóstica, incluindo psicose afetiva (perturbação bipolar e perturbação de pressiva major com sintomas psicóticos) e não afetiva (psicoses do espectro da esquizofrenia). Sem exceção, todos os doentes e respetivas fa mílias da área assistencial do Hospital de Santa

Maria com um primeiro diagnóstico de psicose, incluindo secundárias ao consumo de substân cias, são abrangidos pelo programa. Apesar dos critérios de inclusão e exclusão referidos, ocorre frequentemente a integração, no programa, de exceções aos critérios, designadamente em re lação ao escalão etário ou área geodemográfica assistencial.

O PROFIP não está conceptualizado para a assistência a doentes em fases prodrómicas, hoje identificadas de forma prospetiva e designadas “ultra high-risk” (UHR), fundamentalmente por limitação de recursos[17]. Todavia, estes doentes acabam por chegar à nossa consulta, sobretudo por erros ou dúvidas diagnósticas. Tal como para os doentes com PEP, procuramos cumprir com as intervenções através da melhor evidên cia clínica para este grupo de doentes[18,19].

Havendo alguma heterogeneidade nos do entes que são integrados no PROFIP, as suas necessidades são também diferentes, pelo que as intervenções oferecidas são necessariamente diferentes. Oferecemos intervenções baseadas na evidência, nomeadamente tratamento farma‑ cológico, TCCP, psicoeducação e intervenção familiar. Da nossa experiência, o contacto pró ximo com as famílias é um aspeto fundamental do plano de tratamento e, assim, a intervenção familiar com um componente psicoeducacional é um aspeto essencial da nossa intervenção[20]. Temos dois grupos que ocorrem sequencial mente no tempo com forte componente psico educacional: um com as famílias e outro com os doentes.

O primeiro contacto com a equipa pode ter origens variadas: iniciativa do doente ou da sua família, professor ou psicólogo da escola, refe renciação a partir do médico de família ou de outro colega médico (incluindo outros psiquia tras). No PROFIP, a grande fonte de referencia ção dos nossos doentes é o Serviço de Urgência (superior a 85%), sejam doentes que necessita ram de internamento ou que, após observação naquele serviço, foram referenciados para a nos sa consulta.

Todas as novas referenciações ao PROFIP são observadas por um psiquiatra, incluindo a

Quadro 6.2 – Estudo analítico básico

A. Hemograma

B. Funções hepática, renal e tiroideia

C. Ionograma

D. Cálcio livre e ionizado; fosfatos

E. Perfil lipídico

F. Glicose em jejum

G. Prolactina

H. Ceruloplasmina

I. Despiste treponémico

J. Pesquisa de drogas de abuso

K. V itaminas B1, B3, B12, folatos e vitamina D

L. Despiste VIH

M. Teste de gravidez

N. Eletrocardiograma

O. Proteína C reativa

P. Testes anti - Borrelia

Quadro 6.3 – Algumas substâncias associadas ao aparecimento de psicoses (adaptado de Griswold et al., 2015)[72]

▪ Adrenérgicos

▪ Álcool, benzodiazepinas ou barbitúricos (abstenção)

▪ Antiarrítmicos

▪ Antibióticos

▪ Anticolinérgicos

▪ Anti - histamínicos

▪ Antimaláricos

▪ Tuberculostáticos

▪ Canábis, quetamina ou catinonas sintéticas

▪ Cocaína, metanfetaminas ou MDMA

Os testes de despiste urinário de drogas de abuso poderão acrescentar informação útil; no entanto, com o aumento do mercado das desig ner drugs, assiste‑se muitas vezes a situações dúbias, pois muitas dessas substâncias conse‑ guem escapar aos kits disponíveis para diagnós tico. A colaboração do doente, neste contexto, poderá ser preciosa para o estabelecimento do diagnóstico mais provável.

Nos doentes com problemas de malnutrição, o doseamento das vitaminas poderá ser infor mativo para o estabelecimento da etiologia da psicose.

Naqueles doentes com profissões que en volvem contacto frequentes com metais pesa dos, sobretudo no contexto profissional, como é o caso dos pintores automóveis, operários de fábricas de construção de baterias e mineiros, deverá avaliar‑se a presença de chumbo, mercú rio e o arsénio.

Já o doseamento da ceruloplasmina e do co bre urinário poderá ajudar à realização do diag nóstico diferencial com a doença de Wilson.

Visto que a panóplia de causas orgânicas para um PEP é vasta, poderá ainda ser realizado um EEG, se houver suspeita levantada pela his tória clínica.

▪ Corticoides

▪ Agonistas da dopamina

▪ Metais pesados

▪ Organofosforados

▪ Hormonas tiroideias

Além dos testes básicos, existe um conjunto de procedimento laboratoriais que poderão au‑ xiliar na exclusão de outros diagnósticos dife renciais (Quadro 6.4).

Como se verifica, trata‑se de um estudo que se pretende pormenorizado, visando excluir múltiplos diagnósticos diferenciais, mas adaptá vel em função dos dados obtidos através da en‑ trevista clínica, não se esgotando nos diagnósti cos que serão referidos em seguida, mas antes permitindo a junção de outros testes e técnicas auxiliares, sempre que se revelem essenciais para estabelecer um diagnóstico fiável.

Assim, se houver a suspeita de uma intoxi cação ou da retirada abrupta de uma substân cia de abuso, com privação, poderá ser difícil diferenciar entre um quadro de delirium e um quadro psicótico inaugural. O delirium é muitas vezes um estado reversível, caracterizado por confusão mental, com início súbito, mais diag nosticado nos estratos etários de pessoas enve lhecidas, mas também necessita de ser excluído.

Existem ainda alguns estudos que apontam para a existência da maior probabilidade de desenvolvimento de quadros psicóticos após a ocorrência de traumatismos cranioencefálicos, pelo a imagiologia deverá ser um dos exames

Quadro 6.4 – Exames complementares (adaptado de Skikic & Arriola, 2020)[73]

▪ Doença de Wilson – ceruloplasmina

▪ LES – ANA

▪ Neurossífilis – venereal disease research laboratory (VDRL) e Treponema pallidum hemaglutination assay (TPHA)

▪ Intoxicação/abstinência de drogas – Exame toxicológico de urina

▪ Feocromocitoma – Metanefrinas

▪ Paraneoplásico – Painel anticorpos anti- NMDA

▪ Neuroborreliose (Lyme) – título sérico

l aboratório

punção lombar

▪ VIH – [ polymerase chain reaction/enzyme linked immunosorbent assay (PCR/ELISA)] de VIH

▪ Sarcoidose – amiloide, enzima conversora de angiotensina, radiografia do tórax

▪ Endocrinopatias (hipoglicemia, doença de Addison, doença de Cushing, hipertireoidismo, hipotireoidismo, hiperparatireoidismo, hipoparatireoidismo) – PTH, sódio (Na+), potássio (K+), cálcio (Ca2+), cortisol matinal

▪ Homocistinúria – homocisteína, metionina

▪ Porfirias – porfirinas

▪ Deficiências nutricionais – Magnésio (Mg), vitaminas A, D, B1, B3, B12

Doença priónia, esclerose múltipla, encefalite viral [herpes-vírus simplex (HSV), sarampo, citomegalovírus (CMV), rubéola, vírus de Epstein - Barr (EBV, do inglês Epstein-Barr virus), varicela] – glicose, culturas, proteínas 14 -3-3, bandas oligoclonais eeg Epilepsia/Convulsões

rm

teste genético

o utros

Traumatismo craniano, demências, doença priónia, acidente vascular cerebral (AVC), hidrocefalia, doenças desmielinizantes (esclerose múltipla, leucodistrofia metacromática, tumores, abscessos, esclerose tuberosa, sarcoidose), infeções parasitárias do SNC (malária, toxoplasmose, cisticercose, criptococose, tuberculose)

Huntington, anomalias cromossómicas [XXY, síndrome de Turner (XO), síndrome do X frágil, VCFS 22q11], Prader-Willi, doença de Niemann - Pick tipo C

Perturbações do sono (narcolepsia, alucinações hipnagógicas e hipnopómpicas) –polissonografia

obrigatórios nos casos em que a anamnese apon ta nesse sentido[74]

Adicionalmente, a literatura científica tem evidenciado relações robustas entre patologias da autoimunidade e o aparecimento de quadros psicóticos[75 79] .

As encefalites autoimunes apresentam‑se, caracteristicamente, com início subagudo de sintomas psiquiátricos, a par de sintomas neuro lógicos, frequentemente com sintomas prodró micos de febre, cefaleias, alterações da função gastrointestinal ou sintomas respiratórios.

O tipo de encefalite límbica mais frequen te é a encefalite anti‑NMDA, que afeta predo minantemente mulheres em idade fértil. Neste caso, são descritas frequentemente alterações

marcadas da personalidade, agitação, desorga nização comportamental com sintomas catató nicos, alucinações e delírios.

Outros anticorpos envolvidos neste tipo de patologia incluem o anti leucine‑rich, glio ma inactivated 1 (anti‑LGI1), anti glutamatic acid decarboxylase (anti‑GAD), anti VGKC complex encephalitis (anti VGK Ab), antirre cetor de ácido alfa‑amino‑3‑hidroxi‑5‑metil‑4‑ ‑isoxazol‑propiónico (anti‑AMPA‑r) e antirre cetor ácido gama‑aminobutírico (anti‑GABA‑r). As encefalites com anticorpos anti‑NMDA‑r, anti‑AMPA‑r e anti‑GABA‑r têm sido responsa bilizados por quadros psicóticos inaugurais[80 83] . A encefalomielite aguda disseminada é uma patologia imunitária envolvendo a substância

para adquirir e armazenar informação por um período de tempo de minutos a horas); função executiva (volição, planificação, atividade diri gida a um fim, autocontrolo do comportamen to); fluência verbal (capacidade para gerar pala vras); e capacidades visuoespaciais[8,9].

Apresentamos em seguida uma listagem, que não tem a pretensão de ser exaustiva*, de provas neurocognitivas, em função do domínio que pretendem avaliar.

▪ Funcionamento intelectual geral: a Esca la de Avaliação da Inteligência de Wechsler para Adultos – 3.ª e 4.ª Edição (WAIS‑III[10]; WAIS‑IV[11]) é a mais frequentemente utili zada na avaliação da função intelectual geral. A pontuação do teste de vocabulário da WAIS e o National Adult Reading Test (NART) [12] são também utilizadas como medidas do funcionamento intelectual geral pré mórbido. Em Portugal, dispomos do Teste de Leitura de Palavras Irregulares (TeLPI)[13], que permite a estimação da inteligência pré mórbida;

▪ Velocidade de processamento: a veloci dade de processamento tem sido medida através do recurso a várias tarefas neuropsi cológicas, sendo as mais importantes o Trail Making Test Part A (TMT‑A)[14] e o subteste Código da WAIS. Alguns subcomponen tes do Teste de Stroop (palavra e cor) e do Hayling Sentence Completion Test (Parte A), também permitem inferir o desempenho nesta dimensão cognitiva;

▪ Atenção e concentração: existem alguns testes utilizados especificamente para ava liar o processamento atencional. O Continuous Performance Test (CPT)[15] avalia, primariamente, a atenção sustentada, tendo surgido ao longo dos anos diferentes versões alternativas que medem, de um modo geral, o desempenho na mesma dimensão neuro cognitiva;

▪ Memória e aprendizagem verbal: têm sido utilizadas diferentes versões de listas de

palavras – California Verbal Learning Test (CVLT)[16], Auditory Verbal Learning Test (AVLT)[17], Rey Auditory Verbal Learning Test (RAVLT)[18], Hopkins Verbal Learning Test – Revised (HVLT R)[19], assim como testes da Wechsler Memory Scale (WMS), nas suas diferentes formas (WMS‑III[20]; WMS‑IV[21]);

▪ Memória e aprendizagem visual: os tes tes de memória e aprendizagem visual incluem tarefas da WMS (por exemplo, Faces – reconhecimento imediato e diferi do) ou da Cambridge Neuropsychological Test Battery (CANTAB)[22], bem como a Figura Complexa de Rey Osterrieth[17,23], o Teste de Retenção Visual de Benton[24] e o Brief Visuospatial Memory Test – Revised (BVMT‑R)[25];

▪ Memória de trabalho: este tipo de processo neurocognitivo pode ser avaliado com várias tarefas span, nas quais os sujeitos evocam ou reconhecem uma sequência de dígitos, letras ou formas (por exemplo, memória de dígitos, sequência de letras e números da WAIS);

▪ Funções executivas: tarefas cognitivas que testem diferentes componentes do funciona mento executivo, com diferentes circuitos neurais subjacentes, são necessárias para se ‑ parar alguns destes processos. Por exemplo, o Stroop Colour and Word Test (SCWT)[26] é utilizado para medir a capacidade de ini bição de resposta e a interferência, embora contenha um importante componente aten cional e de velocidade psicomotora. Também o Hailing Sentence Completion Test (HSCT) corresponde ao processo de controlo inibitó rio, suportado pelo córtex pré frontal (PFC) ventral. Por outro lado, um teste frequente mente incluído na avaliação desta função é o Wisconsin Card Sorting Test (WCST)[27], utilizado para medir a mudança de enqua dramento conceptual e a formação de con ceitos. O Trail Making Test Part B (TMT‑B) também mede a capacidade executiva de

* Podem ser encontradas informações adicionais sobre testes neuropsicológicos nos seguintes manuais: Neuropsychological Assessment [8] e Compendium of Neuropsychological Tests [Strauss, E. Sherman, E.M.S. & Spreen, O. (2006). A compendium of neuropsychological tests (3rd ed). Oxford University Press].

Capítulo 8

PRImeIRO ePIsóDIO PsIcóTIcO: TRaTameNTO aNTIPsIcóTIcO

▪ INTRODUÇÃO

A primeira teoria explicativa da origem neurobiológica da esquizofrenia surgiu na dé cada de 60 do século xx. Através do estudo do mecanismo de ação dos fármacos utilizados na época no tratamento dos sintomas psicóticos (particularmente a cloropromazina), avançou‑se com a hipótese de o efeito antipsicótico resul tar do bloqueio dos recetores dopaminérgicos D2. Adicionalmente, constatou‑se que o uso de anfetaminas (estimulantes com ação agonista dopaminérgicos) pode provocar um quadro de alterações da perceção sensorial e do conteúdo do pensamento, à semelhança dos quadros psi cóticos primários. Estes factos levaram a que se postulasse que a hiperatividade do sistema dopaminérgico seria a “lesão” neurobiológica pri mária subjacente à psicose. Esta hipótese guiou a investigação ao longo das décadas seguintes, no entanto, os resultados revelaram‑se variáveis e de difícil interpretação, dada a heterogeneida de das metodologias e das amostras clínicas uti lizadas. Apesar disso, os estudos desenvolvidos permitiram aprofundar o conhecimento acerca dos vários sistemas de neurotransmissores e vieram a convergir no reconhecimento de uma série de alterações a nível celular e molecular presentes na esquizofrenia e noutras perturba ções psicóticas[1,2,3].

Relativamente ao sistema dopaminérgico, identificaram­‑se as quatro principais projeções dos neurónios dopaminérgicos: as vias mesolím‑ bica, nigroestriada (NE), mesocortical e tuberoin fundibular (TI). É a via mesolímbica que se teo riza estar na origem dos sintomas psicóticos, por

ser a base anátomo­‑fisiológica do sistema de mo tivação e recompensa, e ter um papel importante na cognição e modulação das emoções e afetos. Os estudos imagiológicos funcionais e com ra dioligandos têm demonstrado um aumento do conteúdo dopaminérgico a nível das sinapses subcorticais e um aumento da capacidade de síntese e libertação da dopamina no estriado em doentes com quadros psicóticos, relativamen te aos grupos de controlo[1,2,3].

Alterações da transmissão dopaminérgica também têm sido identificadas antes do primeiro episódio psicótico (PEP) em indivíduos de alto e muito alto risco para psicose. O aumento da ca pacidade de síntese e libertação da dopamina pa rece, inclusive, progredir com o tempo e ser mais pronunciado nos doentes em quem os sintomas psicóticos vêm efetivamente a emergir[3,4,5].

Uma outra via de interesse é a mesocortical, que se projeta para o córtex pré‑frontal (PFC). Postulou‑se que os sintomas cognitivos e negativos da esquizofrenia se devem a uma hipoatividade a este nível, com diminuição da dopamina no córtex cerebral. A hipótese dopa‑ minérgica passou então a englobar mais do que um aumento generalizado da transmissão do‑ paminérgica, sendo a teoria mais consensual a de que existe uma desregulação da transmissão dopaminérgica[1,2].

As vias NE e TI não estão envolvidas na etio‑ patogenia dos sintomas psicóticos, mas estão na base de alguns efeitos adversos do tratamento com antipsicóticos. A via nigroestriada projeta‑se para o estriado dorsal, sendo integral na coordenação motora e modulação dos movimentos voluntários. O bloqueio dopaminérgico a este nível pode

Entretanto, outras intervenções pontuais ocorreram, mas só no fim da década de 80 do século xx, e de forma mais evidente nos anos 90, foram desenvolvidas, de modo mais sistemático, intervenções cognitivo-comportamentais para pessoas com esquizofrenia e perturbações psicóticas em geral[24] e, mais recentemente, para as IPPP[25,26]

O desenvolvimento da TCCP implicou intervenções específicas e a realização de vários estudos, que foram progressivamente sustentando esta abordagem, com resultados mais consistentes, reforçados por meta-análises entretanto realizadas[1,24,27-31]

Nas NICE guidelines[1] foram considerados 31 estudos aleatorizados e controlados referentes à TCC para a esquizofrenia e meta-análises. Os resultados foram consistentes em relação à existência de vantagens da TCC para estes doentes, no que diz respeito à redução do número e duração dos internamentos, à melhoria do funcionamento social e, inclusive, no manejo dos casos resistentes ao tratamento psicofarmacológico. Nestas guidelines, e para a TCC na esquizofrenia, foi recomendado um período superior a seis meses e um número de sessões de psicoterapia superior a dez, na complementaridade com a medicação.

Neste processo evolutivo surgiram intervenções mais abrangentes, menos confrontativas e mais centradas no doente. Em termos conceptuais, a TCC foi integrando vários modelos, desde modelo biopsicossocial[32], de stress-vulnerabilidade[33], o modelo da recuperação, princípios da reabilitação e, posteriormente, as designadas terapias de terceira geração. Foi também adaptada para abordagens mais simplificadas, realizadas no contexto clínico das equipas de saúde mental comunitária, nomeadamente por enfermeiros de saúde mental e outros terapeutas de referência pertencentes a estas equipas, e após estes terem recebido formação adequada[34].

O terapeuta não deve impor o seu modelo de doença, mas trabalhar com a pessoa a partir do seu entendimento e evoluir na construção de modelos alternativos explicativos e progressi-

vamente mais adaptativos. Dar significado às experiências vividas pelo próprio através de um processo de colaboração, ou seja, desenvolver um modelo compreensivo da psicose. Mesmo nas fases em que não existe insight, esta terapia pode ser particularmente útil no sentido de o doente aprender a lidar melhor com os sintomas, desenvolver estratégias de coping e participar ativamente na recuperação.

Os principais objetivos da TCCP são[27]:

▪ Desenvolver formas alternativas de compreender experiências anómalas;

▪ Lidar com os comportamentos e as emoções associadas;

▪ “Normalizar” e aprender a lidar com os sintomas;

▪ Reduzir fatores precipitantes e de manutenção;

▪ Modificar os pensamentos negativos acerca de si próprio de os outros e, se possível, modificar atitudes, crenças e esquemas do próprio;

▪ Melhorar ou desenvolver insight ;

▪ Prevenir recaídas;

▪ Estimular mecanismos de adaptação à doença e promover a recuperação clínica e pessoal.

Componentes essenciais da TCCP e possível sequência base[27]:

1. Estabelecer o início da relação terapêutica e engagement.

2. Avaliação.

3. Formulação e definição dos objetivos.

4. Desenvolver e suscitar explicações alternativas.

5. “Normalização” e início da psicoeducação.

6. Psicoeducação baseada nas vivências pessoais.

7. Aprender a lidar com sintomas psicóticos positivos, negativos, depressivos, ansiedade, comportamentos aditivos e comorbilidades.

8. Se possível, modificar ou reajustar atitudes, crenças e esquemas cognitivos.

9. Melhorar adesão terapêutica.

10. Prevenção de recaídas.

11. Término da psicoterapia e continuidade do seguimento.

que trabalham com jovens que sofrem as primeiras manifestações das perturbações psicóticas, este livro alia o conhecimento científico à experiência prática, com vista à melhoria dos cuidados prestados. Procura-se também incentivar a criação de novas equipas especializadas na avaliação e no tratamento destes doentes.

Este livro destina-se aos profissionais de saúde que cuidam de doentes nas fases iniciais das perturbações psicóticas, designadamente médicos psiquiatras e de outras especialidades, psicólogos, enfermeiros, técnicos de Serviço Social, terapeutas de diferentes áreas, entre outros.

Ricardo Coentre

Professor Auxiliar Convidado da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Médico Psiquiatra na Unidade Local de Saúde Santa Maria, EPE.

Nuno Madeira

Professor Auxiliar Convidado da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Médico Psiquiatra na Unidade Local de Saúde de Coimbra, EPE.

Pedro Levy

Médico Psiquiatra e Coordenador da Equipa de Intervenção Precoce na Psicose na Unidade Local de Saúde Santa Maria, EPE.

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Fases Iniciais das Perturbações Psicóticas_9789897529566 by Grupo Lidel - Issuu