PAISAGENS DE LUIS ATHOUGUIA por Madalena Braz Teixeira

Page 1

PAISAGENS DE LUร S ATHOUGUIA

MADALENA BRAZ TEIXEIRA

Uma Anรกlise da Obra do Pintor



PAISAGENS DE LUÍS ATHOUGUIA Por Madalena Braz Teixeira

Aos tantos de tal, Luís Athouguia nasce em Cascais, no ano de 1953. Estuda em Lisboa, tendo regressado sempre à sua terra natal, para passar as férias e conviver com amigos e familiares. Ali vive ainda hoje, sendo aqui que vêm nascendo e renascendo as suas pinturas. Filho de arquiteto, foi com ele que iniciou a sua vida profissional num domínio complementar, relativo à arquitetura de interiores, após ter terminado a sua formação no IADE, o então recém-inaugurado Instituto de Artes Decorativas e Design, aberto em 1969, pela mão amiga e talentosa do escritor António Quadros, 1923-93. Integrado familiarmente no meio artístico, Luís Athouguia descola devagar, não sem algumas dúvidas e constrangimentos, no domínio da expressão criativa. Foi na Galeria Metrópole, na Barata Salgueiro, que expôs, em 1983, numa coletiva, mostrando uma série de colagens e fotografias que constituíam os seus primeiros trabalhos. Decorreram dez anos até que este autor se sentisse com fôlego e suficientemente confortável para apresentar a sua obra numa individual que veio a ter lugar na, já famosa, Galeria de S. Mamede. De então para cá, nestes vinte e tantos anos de carreira artística, Luís Athouguia ganha, não só fama entre os profissionais, como é convidado a expor nos mais recônditos lugares deste país e, similarmente, em diversas galerias internacionais, que o seu longo e rico curriculum bem ilustra. Esta constante e bem-sucedida divulgação da sua obra desenrola-se numa gradual e progressiva sucessão de encontros com outros autores e com galeristas numa extraordinária expansão dos seus trabalhos. Relativamente aos locais em que a obra de Luís Athouguia tem vindo a ser apresentada, há a referir alguns museus portugueses e estrangeiros, assim como outras e relevantes instituições culturais indicadas no seu curriculum. Deverá acrescentar-se que muitas das suas obras se encontram em vários organismos museológicos e ainda em inúmeras coleções privadas europeias como em Portugal, Espanha, França, Suíça, Alemanha, Inglaterra, Holanda, Itália, Suécia, Irlanda, Croácia, República Checa, e ainda noutros continentes, de que se destacam o Brasil, a Guatemala, o Uruguai, a Argentina, a Malásia, o Líbano, Moçambique, os USA e o Canadá.


2

Da imensa plêiade de exposições onde Luís Athouguia foi patenteando a sua obra, nomeadamente se atendermos à sua tão alargada geografia, há a concluir a existência de uma invulgar capacidade produtiva que torna viável esta fluência de mostras. Trata-se de uma torrente expressiva que vai permitindo criar um sem número de novos trabalhos e, consequentemente, dar a ver as suas mais recentes criações. Permite também regressar aos mesmos centros culturais, ou às mesmas galerias, com novas abordagens, visto que, para o público que as observa, existem sempre novas obras originais, decorrentes da dinâmica da sua vida, dos acontecimentos que vão surgindo neste início de milénio, em que o planeta se fez uno e global. Parece que tudo se conjuga numa intensa sincronia para que, a cada convite que o autor recebe para expor, se desencadeie em Luís Athouguia uma resposta ao desafio que lhe é dirigido. A resposta traduz-se então numa torrente de peças que atingem um enorme e raro volume de produções que se podem analisar de seguida quanto à técnica. Luís Athouguia expressa-se fundamentalmente em duas técnicas que compõem este extraordinário universo de pinturas. Por um lado, existe um apreciável número de obras, mais de quatro centenas de aguarelas de pequenos formatos: definem-se por si só, na espontaneidade e na rapidez do efeito, as quais constituem aliás, as principais características da arte de aguarelar. Por outro, existe uma sólida e dedicada paixão pela técnica do pastel, através da qual o artista cria um universo de imagens a duas dimensões. Estas imagens, de formatos médios, não são dezenas mas centenas, constituindo hoje mais de um milhar de pinturas. Convém referir ainda que Luís Athouguia foi distinguido com o Prémio Vespeira, na Bienal do Montijo, em 1997, o Prémio Valentín Ruiz Aznar, em Granada, 2004 e ainda o Prémio do Salão da Sociedade Nacional de Belas Artes, em 2011.


3

I PARTE As Raízes Procurei fazer uma introdução que vai tratar do tema da evolução artística ocorrida desde 1840, até aos Anos 40 do século XX. A descoberta da fotografia, em 1840, veio ilustrar à saciedade que a pintura ganhara um grande rival. Neste sentido, representar a natureza na tela, deixou de ser o principal objetivo dos pintores, pois a fotografia passou a fazê-lo num crescente realismo e perfeição. Assim o entenderam os impressionistas que decidiram ir para Fontainebleau e pintar, ao ar livre, o comportamento da luz, transpondo para os seus quadros as ambiências e os movimentos das cenas que foram retratando num imenso gozo de policromias justapostas e numa pincelada rápida e expressiva. O romantismo e o realismo tinham ficado para trás e, é a partir deste movimento francês que nasce o modernismo ou, os modernismos, que se foram multiplicando em diversas aventuras estéticas e que constituíram até aos Anos 60, com maior ou menor ligação direta, as raízes picturais da obra de Luís Athouguia. Van Gogh, é considerado como um dos pioneiros modernistas, sendo a sua influência reconhecida em variadas frentes, como o expressionismo e o fauvismo, demonstráveis na famosa pintura que representa o seu Quarto, datada de 1888. Gauguin pintara, em 1889, o seu famoso Cristo Amarelo e vem a apaixonar-se pelo exotismo do Taiti, para onde foi viver, elegendo o quotidiano de um modo quase ingénuo e decorativo, aplicando cores planas e puras sobre a superfície da tela. Todos estes pioneiros fizeram nascer uma nova paisagem sobre a qual Cézanne, trabalhou, elegendo a geometria como base de toda a representação e assinalando três formas fundamentais: a esfera, o cilindro e o cone. Cézanne procurou captar essas volumetrias, sobretudo na paisagem e acentuá-las com diferentes tonalidades, de modo a destacar as figuras geométricas que observava na natureza, de que é um belo exemplo a série da Montanha de Santa Vitória, e o retrato, de grande modernidade dos Jogadores de Cartas, 1890-1892. Razão pela qual é fundamental realçar Cézanne como o pai de todos os pintores, já que foi assim que os próprios Matisse e Picasso o reconheceram. No início do século XX, o movimento da Arte Nova abre com a Belle Époque, num clima de paz e de felicidade. Mas, logo em 1907, Picasso envereda definitivamente pelo cubismo com a sua famosa tela, Les Demoiselles de Avignon. Por sua vez, Matisse, em 1910, pinta uma das suas obras mais carismáticas, a Dança, e vem a ser reconhecido como o leader dos fauvistas, pela explosão da policromia e da violência com que usa a cor para definir contornos e figuras gráceis e estilizadas. Nesse mesmo ano, ocorre mais um disparo de obus com a criação da primeira aguarela abstrata de Kandinsky. Em 1911, Duchamp pinta a tela, Nu descendo as escadas que revela a sua ligação ao futurismo e a sua vocação posterior.


4

Esta rutura com o realismo, surge como um pioneiro aviso para o turbilhão de sucessivas ondas e constantes mutações que a arte contemporânea foi disparando pelas restantes décadas. Para além dos reconhecidos pioneiros do abstracionismo, como Kandinsky, Klee e Mondrian, há a referir Malevich, um importante teórico e produtor cultural, considerado um dos mentores das vanguardas artísticas. Neste contexto, deve nomear-se ainda Amadeo de Sousa-Cardoso1, abstracionista lírico, que viveu e conviveu com o Grupo de Paris e ali expôs, no Grand Palais, em 1912. Não pode deixar de se mencionar ainda a Bauhaus, fundada por Walter Gropius, em 1919. Foi na realidade a primeira escola de design mas igualmente uma escola de artes plásticas e de arquitetura de vanguarda onde Klee e Kandinsky também lecionaram. Transgeracional e internacional, veio a ter um impacto fundamental no progresso das artes e da arquitetura da Europa, mas também das Américas, do norte e do sul, no sentido de uma crescente geometrização e na depuração quer dos objetos quer das chamadas Belas Artes e mesmo das chamadas artes decorativas. Surrealismo Este movimento foi-se constituindo inicialmente como uma anti-arte, no sentido social e cultural, contagiado pelo dadaísmo e à margem do racionalismo da Bauhaus. Findo o conflito bélico de 14-18, o surrealismo desenvolve-se no período entre guerras, num tempo de paz, tendo-se constituído como um movimento europeu do Século XX. Passados quase 100 anos sobre o Manifesto de 1924, é claro constatar hoje, através das obras de centenas de autores que cultivaram este estilo, que o surrealismo foi um movimento de elevação do homem, pela descoberta e pela exaltação do seu mundo interior. Esta questão constituiu o fundamento e a característica primordial que faz do surrealismo uma disciplina estética universal, a qual é transversal a todas as artes, desde a pintura ao cinema, do teatro à política, e ainda à ópera e à dança. O Surrealismo teve desde logo, uma vocação mundial até porque trazia à luz do dia uma outra realidade. Deve todavia referir-se que, em paralelo, a exposição Art Decô, de tonalidade racionalista, realizada em Paris, em 1925, também conduziu a uma enorme expansão pela Europa e pelas Américas. Todavia, foi Freud, 18561939, quem elaborou os fundamentos teóricos e científicos sobre o inconsciente, área em que este médico austríaco trabalhou, tendo publicado em 1899, a sua Interpretação dos Sonhos. Apresentava um outro lado do homem e do seu mundo onírico, ignorado até então, mas susceptível de ser analisado do ponto de vista estético e, nomeadamente do ponto de visto pictural. Foi nestas bases que os pintores trouxeram à cena a realidade interior que veio a constituir uma 1

ALFARO, Catarina, Amadeo de Souza-Cardoso. Fotobiografia, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian / Assírio & Alvim, 2006.


5

apaixonante aventura quer da nova ciência chamada Psicanálise quer da nova expressão artística chamada Surrealismo. Centrado em Paris, foi abraçado por uma plêiade de cultores de primeira água como Dali, Gorky ou René Magritte. Entusiasmaram-se por esta pesquisa sobre o inconsciente e o subconsciente, tendo criado inimagináveis consequências estéticas ao retratarem o mundo dos sentimentos e das emoções. O surrealismo surgiu então como uma enorme novidade e uma insaciável senda de aprendizagem pessoal sobre o que habitava e habita em cada ser humano. Se bem que se possa detetar na história da humanidade a emergência do inconsciente na manufatura das máscaras africanas ou ameríndias, no mundo onírico de Bosch, na Sant’Anna e a Virgem de Leonardo da Vinci, nas fantasiosas cabeças representadas por Arcimboldo, ou na Série Negra de Goya, a verdade é que a consciencialização da existência do inconsciente trouxe uma novíssima busca pessoal e uma investigação sobre o mundo sub e sobre real noutros moldes, postura que se manteve como um tema caro e apetecível a muitos seguidores. O surrealismo como obra de vanguarda veio transcender tudo que se fizera até então em termos artísticos. Segundo este novo paradigma, era urgente restaurar o poder da imaginação e mesmo da intuição, tentando consagrar uma poética de ampliação da consciência. Havia uma crença na possibilidade de criar uma espécie de realidade absoluta, uma sobrerrealidade, no dizer de André Breton. A escrita automática procurava buscar o impulso criativo para escrever no momento, sem planos, sem preconceitos e de um modo espontâneo, de preferência como uma atividade coletiva que se ia completando, até atingir o famoso cadavre exquis. Esse e outros métodos como as colagens, não eram exercícios gratuitos de caráter estético, mas sim, subversivos: Para além de criar uma arte nova, era urgente criar um homem novo Octávio Paz2. Acresce a esta análise, o facto de o surrealismo ser entendido hoje, como uma categoria artística, tão vital e tão essencial às artes como o clássico, o barroco ou o romântico. Luis Ángel Barragán Ramírez teorizou sobre esta temática no seu livro, Estilos Artísticos, tendo definido dez estilos: Barroco, Classicismo, Romantismo, Cubismo, Surrealismo, Expressionismo, Arte Naif, Abstracionismo, Arte Pop e Fauvismo, procurando compreender os conceitos de cada deles, bem como as suas diversas características. Muito embora possam existir críticas a este trabalho, a verdade é que se tornou incontornável atender à categorização das obras dos diversos autores e às suas principais linhas de atuação e/ou de investigação estética. Apesar de existirem hoje em dia, muitas áreas e expressões artísticas, de difícil senão impossível classificação, dada a multiplicidade e a constante inovação ou reformulação das mais diversas variantes e correntes 2

https://pt.wikipedia.org/wiki/Surrealismo [Consulta: 22-8-2016].


6

estéticas, a verdade é que existem autores em que a classificação se torna essencial para a interpretação da sua obra. No tocante ao surrealismo há a entender que, após a primeira e a segunda geração dos seus fundadores, outros autores houve e continua a haver que reassumiram no todo, ou em parte, a temática, as técnicas ou os motivos dos surrealistas integrados na sua própria identidade. Aceitam e aderem aos fundamentos desta postura no quadro estético que a envolve, mas distanciam-se das suas traves mestras, libertos do purismo e do automatismo psíquico de Breton e das suas fantasias infantis, do famoso relógio contra natura de Salvador Dali, do erotismo de Paul Delvaux, da construção dos espaços inquietantes de Giorgio de Chirico ou da grandeza da monumentalidade surrealista de Picasso3. Na realidade, todas estas figuras representam as raízes mais próximas da pintura abstracionista de Luís Athouguia. O mais importante sinal do modernismo no nosso país acontece pela mão de poetas como Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros, e pela mão de pintores como o próprio Almada, Amadeo de Souza-Cardoso e Santa-Rita Pintor. Em 1915, nasce em Lisboa, em torno de um café no Rossio, o movimento Orfeu. Um grupo de escritores, artistas e intelectuais propunham-se desenhar uma nova mentalidade e dar uma bofetada no gosto público, numa citação de Mayakovsky que Almada4 elege como figura tutelar. Fernando Pessoa e Almada Negreiros constituíram as personagens centrais decidindo de algum modo o futuro cultural do século. A intervenção pública de Almada e a sua obra não marcaram apenas o primeiro quartel do século XX, foram sobrepondo-se ainda à segunda e à terceira geração de modernistas. Orfeu e o grupo de artistas que se foram sucedendo, não só seguiam as vanguardas europeias como, do mesmo modo, davam a conhecer, na Lisboa provinciana de então, alguns dos melhores artistas do Ocidente. Atenda-se que esta ação cultural se passava durante a 1ª grande guerra e dois anos antes da Revolução russa de 1917. Na realidade, é a partir desses conflitos que começam a emergir na Europa diversas correntes, procurando cada artista e cada grupo de pintores e de escultores, eleger o modo certo e ajustado da modernidade, condizente com a nova sociedade que ia surgindo, fruto das inúmeras transformações sociais e culturais, mas também económicas e, do mesmo modo, científicas e técnicas, que iam paralelamente acontecendo. A nova estética internacional ficou conhecida no nosso país, sobretudo pelo regresso de Paris de Amadeo de Souza-Cardoso, Dórdio Gomes, Carvalhais e Santa-Rita Pintor, bem como a partir de três exposições, a primeira das quais teve 3

http://www.monografias.com/trabajos59/estilos-artisticos/estilos-artisticos.shtml [Consulta: 22-8-2016]. 4 FRANÇA, José-Augusto, Amadeo e Almada, Lisboa, Bertrand, 1983.


7

lugar no Porto, 1912, Humoristas e Modernistas e as individuais de Amadeo, em 1916, no Porto e em Lisboa5. Seguiu-se um segundo grupo de pintores, também regressados de Paris, composto por Diogo de Macedo, Eduardo Viana, e novamente Amadeo, seguidos nos Anos 20 por Dórdio Gomes, Abel Manta, Mário Eloy, Diogo de Macedo, os irmãos Franco (Francisco e Henrique), e ainda por Almada Negreiros, entre outros. Considera-se esta a grande geração que marca a pintura portuguesa até aos Anos 406. Nessa última década, Salazar decidiu comemorar com toda a pompa e circunstância os 500 anos da Restauração, os 800 anos da conquista de Lisboa e os 800 anos da fundação da nacionalidade. A Exposição do Mundo Português foi concebida para glorificar o regime e a história, de um modo épico, centrada nas características territoriais e culturais identitárias do país. António Ferro convidou todos os artistas que se encontravam então em laboração, os quais deram o seu contributo para o sucesso desta grandiosa comemoração que teve uma extraordinária adesão popular. A exceção foi Maria Helena Vieira da Silva, que vivia em Paris, onde era reconhecida, pelo marido, o pintor Arpad Szenes, de nacionalidade húngara, e pelos artistas dos meios internacionais, como um dos expoentes do abstracionismo, evocando amiúde, não só o casario de Lisboa como os seus azulejos e as suas bibliotecas.

A Presença, revista literária coimbrã, lançada em 1927, durou até 1940, quando foi extinta pelo regime. Difundiu a segunda fase do Modernismo, usualmente designado por Segundo Modernismo. Foi criada, em consequência do Orfeu, com o objetivo de marcar uma presença crítica e teórica. Teve como colaboradores, além de escritores e filósofos que a fundaram, poetas como José Régio, pintores e diversos artistas como: Almada Negreiros, Júlio, Diogo de Macedo, Dórdio Gomes, Sarah Afonso, Arlindo Vicente, Bernardo Marques, Mário Eloy, João Carlos, Paulo Ferreira, Ventura Porfírio, e ainda, no seu último número, Arpad Szenes e Maria Helena Vieira da Silva, em 1940. As Gerações Precedentes Em 1939, a II guerra deflagra na Europa e estende-se rapidamente a quase todo o planeta. Portugal decide pela neutralidade, fica fora do conflito bélico e longe das dificuldades de toda a espécie que os restantes países 5

SILVA, Raquel Henriques da; SOARES, Marta, Amadeo de Sousa Cardoso. Porto / Lisboa 2016-1916, Lisboa, Direção Geral do Património Cultural, 2016. 6 FRANÇA, José-Augusto, A Arte em Portugal no séc. XX, Lisboa, Bertrand, 1974. PERNES, Fernando (coord.), Panorama da Arte Portuguesa do séc. XX, Porto, Edições Afrontamento / Fundação de Serralves, 2002.


8

europeus sofreram. Por outro lado, não irá participar na onda de euforia do pós-guerra que gerou um desenvolvimento em cadeia de muitos países ocidentais, nem nas muitas consequências de ordem política e cultural mas também científica e tecnológica que se seguiram. Deverá referir-se sempre Maria Helena Vieira da Silva que, vivendo em Paris, estava bastante distanciada do que por cá se ia produzindo. Sequentemente, parece importante destacar os autores que trabalharam nos Anos 40 e 50 e que constituem a 3ª geração de pintores modernistas portugueses, os quais exploraram três expressões picturais de forte e diferenciada estética, a abstração, o neorrealismo e o surrealismo. Fernando Lanhas, arquiteto e pintor, deverá ser referido no domínio do abstracionismo. Era oriundo do Porto onde se formou e sempre trabalhou. Percorreu continuadamente a senda abstracionista, fixando-se neste modo de se exprimir, ao longo dos seus dias. Dedicou-se a diversas atividades como arqueólogo, antropólogo e até museólogo, tendo estado à frente do Museu Etnográfico e Histórico do Porto. A sua obra mais conhecida é o Violino, 1943-44 relatando uma distorção geométrica que evoca a vibração de uma sonoridade. Participou, em 1958, na Bienal de São Paulo e dois anos mais tarde na XXX Bienal de Veneza. Muito relevante foi a sua participação, em 1961, na II Exposição de Artes Plásticas organizada pela Fundação Calouste Gulbenkian. Desenhou ainda o projeto e a montagem de numerosas exposições e criou edifícios de função museológica entre os quais: o Museu Municipal da Figueira da Foz; o Museu Monográfico de Coimbra; o Museu de Mineralogia da Faculdade de Ciências do Porto e o Museu Militar do Porto. Recebeu o Grande Prémio Amadeo de SouzaCardoso, Amarante, em 1997 e, em 2002, o Prémio consagração de Artes Plásticas – CELPA (Associação da Indústria Papeleira). Júlio Pomar, pintor de reconhecido mérito, iniciou a sua obra como neorrealista. Teve uma fervilhante vida cívica com uma dupla ação, enquanto homem, agindo contra o Estado Novo, nomeadamente nas décadas acima mencionadas e, enquanto pintor, na afirmação do movimento neorrealista, expressando a especificidade das vivências portuguesas no contexto europeu. Muito embora, continue ainda hoje a pintar e a sua obra tenha evoluído noutros sentidos, é consensualmente considerado o mais destacado dos artistas do neorrealismo nacional. O Almoço do Trolha, 1947, representa a sua obra paradigmática. Participa e organiza várias exposições na Sociedade Nacional de Belas Artes, entre


9

1946 e 1956. Integra a I e a II Exposições de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian que tiveram lugar em Lisboa, em 1957 e 1961 e que constituíram os primeiros sinais públicos do gosto pela arte contemporânea. Organiza a exposição 50 Artistas Independentes que teve lugar na SNBA, em 1959, e que foi um marco simbólico da rutura de muitos artistas com as atividades culturais promovidas pelo governo. Em 1963, parte para Paris e ali se instala, desalinhando-se da luta política e, a partir de 1969, dá início à colaboração regular com a Galeria 111 de Manuel de Brito, que passa a representá-lo em Portugal. Nos anos de 1980, a obra de Pomar descobre sintonias com a figuração expressionista que se afirma a nível internacional. As exposições multiplicam-se quer no país quer no estrangeiro, nomeadamente no Brasil. Em 2003, é-lhe atribuído o Prémio Amadeo de Souza-Cardoso. No ano seguinte, o Sintra Museu de Arte Moderna – Coleção Berardo realiza uma retrospetiva e o Centro Cultural de Belém vem a expor a antologia A Comédia Humana, dedicada às obras mais recentes. Em 2008, será a vez do Museu de Arte Contemporânea de Serralves apresentar as suas assemblages…e esculturas inéditas. Pomar tem-se vindo a dedicar ao desenho e à pintura, mas a sua área de trabalho estende-se à gravura, à escultura, à assemblage, à ilustração, à cerâmica, à tapeçaria, à cenografia para teatro e à decoração mural em azulejo. Entre os inúmeros textos que publicou ao longo dos anos, podem destacar-se os seus livros de ensaios sobre pintura. Em 2013 inaugurou o Atelier-Museu Júlio Pomar, num edifício, adquirido no ano 2000 pelo Município de Lisboa e que veio a ser remodelado segundo projeto do Arq. Álvaro Siza Vieira. O surrealismo emerge nos horizontes culturais portugueses, mais concretamente no domínio da literatura, a partir de 1936. Este movimento tinha nascido em Paris com o Manifesto Surrealista de André Breton, em 1924 que René Magritte e Dali tanto divulgaram. Em 1947, Cândido Costa Pinto contacta, em Paris, o recém-organizado Grupo Surrealista e Breton sugere-lhe a organização de um grupo idêntico em Portugal que veio a ser o Grupo Surrealista de Lisboa. Formou-se um outro grupo, mais sólido e de maior relevância social, Os Surrealistas, como assim se denominavam entre si. Cada um destes artistas manteve-se inserido num grupo de trabalho que procurava desenvolver uma consciência individual e uma postura de espontaneidade com as sessões de escrita automática, método específico para fazer vir à superfície o inconsciente, de acordo com as teorias de Freud.


10

Os Surrealistas participaram, em 1949, na primeira e única exposição do grupo de que faziam parte António Pedro, António Dacosta7, Fernando Azevedo, Moniz Pereira, Vespeira, Alexandre O'Neill, e José Augusto França, além de dois Cadavres Exquis, um de Vespeira e Fernando Azevedo e o outro, de grandes dimensões, de António Domingues, Fernando Azevedo, António Pedro, Vespeira e Moniz Pereira. A iniciativa agitou o meio artístico lisboeta, fez escândalo e foi proibida pela censura. Estas diferentes personalidades acabaram por se autonomizar e devir independentes mantendo-se, de algum modo, na mesma linha de atuação política e estética8. Enquanto o abstracionismo português, à exceção de Maria Helena Vieira da Silva, tem uma menor expressão em terras lusas, o surrealismo e o neorrealismo dominaram durante os Anos 40 e 50 as tendências artísticas nacionais. Estes dois últimos movimentos tinham, além das suas próprias características e modos de expressão, desejos de militância pela liberdade quer no tocante aos direitos cívicos, quer em relação às artes. Dominados por uma certa rebeldia, buscavam novas formas de expressão e interpretação pessoal da realidade, procurando ainda desconstruir o realismo que permanecia no contexto académico da Escola de Belas Artes e, em geral no gosto vigente, tanto em Lisboa como no Porto9. Luís Athouguia fica à margem do neorrealismo mas abraça com intensidade este património surrealista que vem a constituir o seu principal alfabeto e a sua gramática da transmissão de emoções. Os Anos 60 O grupo KWY, constituído nos Anos 60, não pode deixar de se referir, sendo composto por René Bertholo, João Vieira, Lourdes Castro, José Escada, Gonçalo Duarte, Christo e Jan Voss, a que se juntou um número mais alargado de artistas plásticos e poetas contemporâneos. KWY era uma sigla que incluía três letras ausentes do alfabeto português, e que poderia significar Ká Wamos Yndo e que correspondia também a uma revista com o mesmo nome. A publicação de tiragem limitada e de fabrico caseiro só 7

PORFÍRIO, José Luís, António Dacosta 1914-2014 [catálogo exposição], Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2014. 8

ALMEIDA, Bernardo Pinto, Força da Imagem. O Surrealismo, Porto, Campo das Letras, 2007. 9 GONÇALVES, Rui Mário, A Arte Portuguesa do séc. XX, Lisboa, Temas e Debates, 1998.


11

teve 12 números e reuniu um extenso acervo de materiais, das artes plásticas e do campo literário. Foi publicada, em Paris entre 1958 e 1964. No universo da arte portuguesa este grupo assinala o início de um novo modelo de associação. Na realidade, reuniam-se não porque tivessem um projeto estético comum, como os surrealistas e os neorrealistas, mas porque sentiam que pertenciam à mesma geração e que tinham de ter uma ação de intervenção, procurando realizá-la em conjunto. Não queriam ficar alheios aos graves problemas sociais que iam ocorrendo nos seus diferentes países e na própria cidade que os acolhia. A primeira exposição do grupo realizou-se na Sociedade Nacional de Belas Artes, em 1960, mas só em 2001, veio a acontecer uma retrospetiva no Centro Cultural de Belém que devolveu a este grupo o lugar certo no contexto da arte portuguesa desses Anos 6010. Em 2015, o Museu da Fundação de Serralves no Porto organizou uma exposição que apresentou uma seleção de obras e publicações de artistas da Coleção de Serralves que integraram o grupo KWY, bem como de artistas portugueses e estrangeiros que colaboraram no projeto editorial KWY11. Este grupo constitui de algum modo um fermento anterior à revolução de 74, abre mais uma vanguarda a nível nacional com a sua múltipla intervenção estética. Neste contexto deverá salientar-se Gonçalo Duarte que integrou o Grupo KWY e que constitui para Luís Atouguia uma importante e recorrente fonte de inspiração. Pertence à primeira geração de artistas que foram bolseiros da Fundação Calouste Gulbenkian. É em Paris que encontra e se associa com os representantes deste grupo. A sua pintura inicial aproxima-se da abstração lírica, o que tem um certo paralelismo com a série de aguarelas de Luís Athouguia. Posteriormente, os seus trabalhos afirmamse em pinturas e assemblages que expressam um forte pendor surrealizante, prosseguindo nas novas direções figurativas que se desenham na década de 60, entre as quais o Nouveau réalisme. Estas sucessivas preocupações e interesses estéticos voltam a estar fortemente ligados à segunda fase e muito especialmente à última fase da obra de Luís Athouguia.

10

VEIGA, Margarida; ACCIAIUOLI, Margarida, KWY: Paris 1958-1968, Lisboa Centro Cultural de Belém / Assírio e Alvim, 2001. 11 ROSENDO, Catarina, Um realismo Cosmopolita: O Grupo KWY na coleção de Serralves, Porto, Fundação de Serralves, 2015.


12

Algumas Personalidades Procurei, ao longo destas linhas apresentar uma breve evolução da pintura ocidental. Entendo ainda que me parece necessário focar algumas personalidades que constituem parte da família surrealista ou surrealizante que, de um modo mais direto ou indireto, estão na génese da obra de Luís Athouguia. Tive igualmente em conta, a ação desenvolvida pela crítica de arte, inserida na AICA, Associação Internacional de Críticos de Arte que foi acompanhando a atividade do meio surrealista português. 1. Cruzeiro Seixas, 1920-, representa hoje em dia (2017) a memória viva do surrealismo português, sendo uma personalidade de múltiplo talentos, nomeadamente poéticos e picturais. Foi aluno da Escola António Arroio e colega de Fernando de Azevedo, Júlio Pomar, Vespeira e Cesariny. Na década de 40, começa por se aproximar do neorrealismo mas acaba por se identificar com os princípios do surrealismo. Cria, juntamente com Cesariny, Mário Henrique Leiria, Carlos Calvet e Pedro Oom o Grupo Surrealistas de Lisboa. Correu mundo mas acaba por se fixar em Angola onde viveu entre 51 e 64, ano em que regressa a Lisboa. Trabalhou com diversas galerias, entre as quais a 111 e a S. Mamede, das quais também foi programador. Foi expondo os seus trabalhos, compostos maioritariamente por colagens, nestas últimas galerias. Em 2000, teve lugar na Fundação Cupertino de Miranda uma grande exposição das suas pinturas e desenhos com a curadoria de Bernardo Pinto de Almeida12. A sua obra literária veio a ser publicada numa antologia que integra as principais obras deste autor, em 2002. Na verdade, este artista assinalou a segunda metade do século XX com a sua criativa presença e com a excentricidade cultural e social tão característica dos surrealistas. 2. Cesariny, 1923-2006, de seu nome completo Mário Cesariny de Vasconcelos, é considerado por alguns críticos como o principal representante do surrealismo português. Completou os seus estudos na Escola de Artes Decorativas António Arroio. Foi cofundador do grupo Surrealistas de Lisboa com António Pedro, José-Augusto França, Dacosta, Vespeira e Fernando de Azevedo. Dissidente, vem a fundar um novo grupo designado como Os Surrealistas, do qual fazem parte entre outros, António Maria Lisboa, Cruzeiro Seixas e Mário Henrique Leiria. Foi poeta e pintor. Fez desenho e gravura. Trabalhou para a galeria S. Mamede como artista 12

ALMEIDA, Bernardo Pinto, (coord), Cruzeiro Seixas, Vila Nova de Famalicão, Fundação Cupertino de Miranda, 2000.


13

plástico. A sua obra divide-se entre colagens, pintura, objetos e instalações, recorrendo a diversas técnicas surrealistas, tendo exposto diversos trabalhos na Galeria Neupergama de Torres Vedras. Doou o seu espólio à Fundação Cupertino de Miranda. 3. Raúl Perez, 1944-, é uma personalidade muito especial, ligado à corrente surrealista portuguesa, em particular a Cruzeiro Seixas. Expôs pela primeira vez aos 28 anos e vem a apresentar os seus trabalhos continuadamente na Galeria de São Mamede em 1972, 1982 e 1985, tendo participado em diversas exposições organizadas pelo escritor e pintor Mário Cesariny. Raúl Perez, minhoto de nascença, é uma personalidade com um modo de ser sumamente discreto e, à medida que o tempo passa, a sua obra, embora sempre arreigada ao que André Breton definia como arte mágica, supera e assume-se como uma arte metafísica mais perto do italiano Chirico, 18881978. Existe nas obras de Perez uma presença onírica de enfeitiçamento, resultando em paisagens simultaneamente inquietantes e perfeitas, de tonalidades suaves e quase transparentes. Na sua exposição individual Desenho e Pintura, 1963-2008, as suas obras tratam em paralelo do que é substancial e do que é aparente, até porque constituem a inspiração fundamental dos surrealistas, os Sonhos transformados. Maria João Fernandes assim se refere no catálogo à pintura de Perez: O universo assombroso de Raúl Perez que hoje se oferece à nossa decifração situa-se e situa-nos na atmosfera sombria dos sonhos da noite, e vem, no caudal de imagens que alimentam o nosso imaginário, definir um território, um horizonte de trevas, onde adivinhamos o retrato em abismo de uma aventura e de uma desventura ocidentais. Interessante é lembrar a fidelidade ao seu projeto de 1972, Diário Onírico, apresentado na Galeria S. Mamede quando enunciou, sem rodeios, o caminho da sua investigação pictural e metafísica. Raul Perez constitui uma coluna de referência do surrealismo português que se foi mantendo até hoje numa lenta e sempre fascinante caminhada poética. A sua personalidade vai-se desenrolando em óleos mas sobretudo em tinta-da-china sobre papel que constitui o suporte da quase totalidade da sua obra. A última exposição, Fragmentos, Pintura e Desenho de Raúl Perez, realizada em 2015, na Fundação Dom Luís, em Cascais, consistiu numa reaparição e numa revisão antológica da obra deste autor que, tranquilamente, continua a desenhar os seus sonhos, sempre solitário, ecoando sempre a estética de que é oriundo e que abraçou desde a


14

juventude, percorrendo a intimidade do seu ser e as suas paisagens interiores. 4. Paula Rego, 1935-, é a primeira de um série de artistas incontornáveis e de grande relevância no universo dos pintores portugueses. Esta artista é sobejamente conhecida pelos seus trabalhos de constante efabulação e crítica sobre a sociedade portuguesa em que viveu e foi criada. A sua mestria técnica a óleo, mas também a pastel, constitui a grafia mais habitual desta pintora. O título do seu museu em Cascais, A Casa das Histórias, revela o foco fundamental da sua obra que consiste em criar quadros encenados sobre as suas vivências, inicialmente elaborados num sabor surrealizante numa imensa e provocadora sátira. Todavia é o carácter dramático que vai definir os seus trabalhos mais emblemáticos, quer os que retratam temas sacros quer os que revelam tragédias sociais. As suas obras integram quase sempre fortes diacronias temporais e/ou religiosas que geram a maior estupefação nos espectadores. 5. Há a referir complementarmente, Álvaro Lapa, 1939-2006, que expõe pela primeira vez na Galeria 111, em Lisboa, em 1964, revelando-se desde logo um pintor e um poeta. De grande exigência estética e profundamente reflexivo, Álvaro Lapa desenha o seu caminho, situando-se entre um abstracionismo expressionista tanto europeu como norte-americano, e numa desconstrução de formas sem narrativa que se aproximam de um surrealismo iniciático. Por outro lado, este artista também cria um heterónimo que emerge em As Profecias de Abdul Varetti, 1973, onde se assume como um personagem de sinuoso percurso de vital sobrevivência, nas palavras de David Santos13. O interesse pelo surrealismo explicará que tivesse projetado desenvolver uma tese de doutoramento, que seria orientada pelo Prof. José-Augusto França, sobre O Surrealismo em Portugal14. 6. Mário Botas, 1952-1983, é um outro pintor que revela um certo apreço pelo surrealismo e que pertence à geração de Luís Athouguia. Natural da Nazaré, licenciou-se em medicina mas desenvolveu paralelamente uma notável e criativa carreira de pintor, tendo-se dedicado igualmente ao desenho e à ilustração. Ao expor na Galeria S. Mamede em Lisboa, em 1973, entra no universo dos surrealistas sobreviventes e as suas obras 13

RODRIGUES, António, Álvaro Lapa. Voz das pedras, Lisboa, Assírio & Alvim, 2006. PINHARANDA, João, Álvaro Lapa. Grande Prémio EDP [catálogo exposição], Lisboa, EDP, 2006, 2 vols. 14


15

receberam então um excelente acolhimento por parte da crítica. É-lhe reconhecida a sua qualidade e inovação, da qual vai derivar o seu sucesso a nível nacional e internacional, em parte devido à época revolucionária que se viveu logo de seguida, em 1974. Deve destacar-se a retrospetiva que esteve patente no Centro Cultural de Belém, em 199915, em data posterior à morte do artista16 e que vem revelar o importante significado da obra do autor que detinha um forte e vincado lastro surrealizante. Esta exposição, realizada em colaboração com a Fundação Mário Botas, vem a constituir a peça de arranque daquela instituição que vem a sediar-se na Nazaré. Esta passagem pela evolução do surrealismo deve-se à opção surrealista de Luís Athouguia, terminando nele a linha surrealista que atrás se desenhou desde o início do século XX. Todavia há ainda a referir duas personalidades de destaque que estão ligadas de modos diversos ao surrealismo no nosso país. Isabel Meyrelles, uma mulher, a única pintora surrealista portuguesa que cedo foi viver para Paris e Roberto Matta, um homem do Chile, pertencente ao grupo inicial dos surrealistas parisienses que, quis o acaso, veio a ter obras de sua autoria expostas no Centro Cultural de Belém, trazendo para o nosso convívio um importante expoente do surrealismo internacional. 7. Isabel Meyrelles, 1929-2005, natural de Matosinhos, estudou escultura no Porto e pertenceu ao famoso grupo intelectual do Café Gelo, no Rossio, em Lisboa. Ainda jovem e, reconhecendo a sua marginalidade, vai viver para Paris, em 1950. Fez escultura, na École Nationale Supérieure des Beaux-Arts, e literatura, na Sorbonne. Foi uma figura de intelectual, desenvolvendo na sua casa parisiense um convívio em tudo semelhante ao que Natália Correia, 1923-1993, realizou no seu Botequim, em que Isabel Meyrelles também participou, encarregue do respectivo restaurante entre 1971 e 1977. Foi amiga de Mário de Cesariny e de Cruzeiro Seixas e assistiu ao surgimento do Grupo Surrealista Português e do Os Surrealistas, mantendo-se sempre ligada a esta corrente artística quer como escultora quer como poetisa, tendo dividido a sua vida profissional fazendo exposições e publicando a sua obra poética e as suas antologias17.

15

Mário Botas (1952-1983) : retrospectiva : visões inquietantes = retrospective : restless, visions, Centro Cultural de Belém, Fundação Mário Botas, Lisboa, C.C.B., 1999. 16 http://www.fundacaomariobotas.pt [Consulta: 18-8-2016] 17 https://aviagemdosargonautas.net/2015/06/17/a-ideia-24/ [Consulta: 19-8-2016]


16

8. Malangatana, 1936-2011, natural de Moçambique, mais precisamente de Matalana, no distrito de Marracuene, foi um autodidata que veio a apresentar na sua obra, relevantes e espontâneas pinturas de sabor surrealista. Aos 12 anos encontra trabalho no Clube de Ténis local, servindo Malangatana como apanhador de bolas. Por coincidência do destino, aí veio a encontrar um famoso arquiteto português, Pancho Guedes que residia em Lourenço Marques. Este artista descobre a alma criativa de Malangatana e advém o seu protégè, propiciando-lhe espaço e material para executar as suas pinturas, bem como a aquisição mensal de 2 obras. Aos poucos, Malangatana passa a ser reconhecido como um artista na cidade de Lourenço Marques onde vem a realizar a sua 1ª Individual em 1961. Acusado de pertencer à Frelimo, esteve várias vezes preso, ocasiões em que se dedicou à realização de desenhos p&b que vieram a ser expostos em Lisboa muitos anos após a Independência18. 9. Roberto Matta, 1911-2002, arquiteto, humanista, pintor e poeta chileno, considerado o último grande pintor do surrealismo. Algumas das suas obras integram a Coleção Berardo e estiveram patentes desde 1995, no Museu de Arte Moderna, em instalações cedidas pela Câmara Municipal de Sintra, donde vieram a ser transferidas para o Centro Cultural de Belém-Museu Berardo em 2005, onde atualmente se encontram. A presença deste grande surrealista nas coleções portuguesas, não só torna acessível aos nossos olhos a obra de grandeza internacional de Matta, como dá a conhecer um dos mais importantes vultos deste movimento ocidental que tem a paridade do neoclassicismo ou, do barroco como estética comum a muitos artistas de quase todos os países do Ocidente. Roberto Matta viveu esporadicamente em Lisboa, nos Anos 30, tendo partido para Paris, onde trabalhou com Le Corbusier. Conviveu com as grandes personalidades, fundadoras do surrealismo como André Breton, Salvador Dalí, Gorky y René Magritte, tendo conhecido nesse ambiente diversos artistas seus contemporâneos, como Pablo Picasso y Marcel Duchamp. Trabalhou para a revista surrealista Minotauro com artigos e ilustrações. A partir de 1938, dá início à pintura a óleo, de sabor surrealizante com fortes imagens inspiradas nos conflitos bélicos, tema que se mantém na sua obra até aos Anos 50. Passa então à argila, não só para dar maior vigor e dramatismo, como para introduzir uma certa tridimensionalidade e distorção volumétrica às suas pinturas. Nos Anos 60, a sua obra ganha uma forte componente social, 18

Malangatana, Os anos da prisão Sala Branca, Abril e Maio, 2016.


17

empenhando-se numa via de intervenção e de afirmação das desigualdades e das injustiças. A presença deste grande surrealista nas coleções portuguesas outorga uma relevante e constante oportunidade de ser amiúde visitável. Apesar de ser natural do Chile, este artista vem a receber, o maior galardão de Espanha, o Prémio Príncipe das Astúrias, na categoria Pintura, em 1992. 10. Joan Miró, 1893-1983, foi um escultor, pintor, gravador e ceramista surrealista de origem Catalã. Conheceu Picasso e as tendências modernistas como o fauvismo e o dadaísmo, numa primeira estada em Paris, em 1919. Posteriormente, veio a conhecer André Breton, fundador do movimento surrealista, tendo-se integrado neste movimento e participado na primeira exposição surrealista em 1925. Foi desenvolvendo os seus trabalhos numa grafia simbólica e singela, tendo pintado a sua mais conhecida obra, Números e constelações em amor com uma mulher, em 1941. Ganhou o Prémio de gravura da Bienal de Veneza, em 1954. Recebeu, por sua vez, em 1958, o Prémio Internacional da Fundação Guggenheim pelo mural que realizou para a sede da UNESCO, em Paris. Algumas obras de Miró, propriedade do Estado Português, acabam de ser apresentadas na Casa de Serralves. Esta exposição, Joan Miró: Materialidade e Metamorfose com museografia de Siza Vieira, foi comissariada por Robert Lubar Messeri, reconhecido especialista da obra deste famoso pintor catalão. A mostra, inaugurada em 2016, abarca um período de seis décadas da carreira deste surrealista de 1924 a 1981. Aborda as suas metamorfoses artísticas nos campos do desenho, pintura, colagem e trabalhos em tapeçaria. Está patente o pensamento visual de Miró, o modo como trabalha com sensações que variam entre o táctil e o ótico, tendo sido publicado um catálogo profusamente ilustrado com imagens, com um ensaio da autoria do comissário. Estas obras de Miró passaram a constituir mais um espólio surrealista, existente no nosso país19. 11. Críticos e Historiadores. A secção portuguesa da AICA foi acompanhando a atividade de muitos dos artistas acima mencionados. Deve destacar-se José-Augusto França pela sua contínua ação de divulgação da arte contemporânea e da crítica de arte, publicada em livros e expressa em jornais, revistas e catálogos de exposições. O mesmo foi acontecendo com Fernando de Azevedo, Rui Mário Gonçalves, Salette Tavares, Fernando 19

http://www.serralves.pt/pt/actividades/joan-miro-materialidade-e-metamorfose/ [Consulta: 1-10-2016]


18

Pernes, Rocha de Sousa, Sílvia Chicó ou João Pinharanda. Devem ainda destacar-se Alexandre Pomar, José Manuel Fernandes, Maria João Gamito e Alexandre Melo, entre outros, que muito contribuíram para o conhecimento da obra dos artistas contemporâneos e para o entendimento e leitura das renovadas experiências que se foram desenvolvendo no nosso país, sobretudo a partir dos Anos 60. Saliento neste contexto Bernardo Pinto de Almeida, crítico de arte natural do Porto, que seguindo a esteira de Fernando Pernes, se tem vindo a dedicar à análise dos novos talentos nortenhos, nomeadamente ao estudo dos trabalhos de artistas dedicados ao surrealismo. Apoiado pela Fundação Cupertino de Miranda, Bernardo Pinto de Almeida, vem desenvolvendo uma obra de rigor e de qualidade, especializando-se em recolher todos que, de algum modo, se identifiquem com este género pictural e estético. O Museu da Fundação Cupertino de Miranda, fundado em 1963, deve ainda ser mencionado, a propósito do surrealismo, na medida em que é uma Instituição Cultural ao serviço da comunidade que tem por missão a divulgação da Arte Moderna e Contemporânea, especialmente do Surrealismo20. Como é sabido, os seus objetivos são de ordem museológica e disciplinar no domínio da história e da crítica de arte, bem como no âmbito cronológico do seu acervo. Este museu tem vindo a adquirir e a colecionar um relevante núcleo de obras, composto essencialmente por peças de artistas portugueses, procurando assim, vir a ser representativo dos cultores do Surrealismo no nosso país. Neste sentido, devem referir-se as sucessivas exposições que tem vindo a realizar com o intuito de divulgar as suas coleções, bem como o próprio movimento surrealista, mas também os artistas que, de algum modo, se inspirem ou atendam a este estilo de uma forma direta ou indireta. Deve ainda salientar-se a criação, em 2003, de um Centro de Estudos do Surrealismo, o CES, sob proposta de Bernardo Pinto de Almeida que tem vindo a desenvolver um plano editorial contínuo através da publicação dos seus cadernos ou ainda de catálogos das exposições realizadas no museu ou, em parcerias, extramuros. Por outro lado, criou uma lista dos artistas representados, em que Luís Athouguia está incluído e, do mesmo modo, vem recolhendo um corpus dos autores de outros domínios que não a 20

www.fcm.org.pt/Museu.aspx [Consulta: 2-10-2016]


19

pintura e que reflitam nas suas obras um pendor surrealista21. Passados quase 100 anos sobre a fundação deste movimento, 1925, é mais uma vez importante realçar a durée desta categoria estética, mesmo já longe dos padrões psicanalíticos das origens.

21

http://www.fcm.org.pt/Museu.aspx?p=artistas [Consulta: 2-10-2016]


20

II PARTE Luís Athouguia O volume de trabalhos deste artista merece por si, uma apreciação valorativa, visto que se pode afirmar que Luís Athouguia não tem pausas e que, com maior ou menor atividade, o autor detém uma notável fluidez criativa. O constante domínio das técnicas que usa desenvolve-se no sentido da mestria oficinal. Este facto é observável aliás, em qualquer disciplina artística visual ou musical, poética, operática ou ainda balética. O mesmo acontece, como é sabido à saciedade, em qualquer modalidade desportiva. As olimpíadas conquistam-se fundamentalmente com aturados treinos. Na realidade, a repetição conduz à destreza e à perfeição tanto no domínio físico como mental ou espiritual, científico, técnico ou artístico. Quem faz muito, quem usa experimentação como fator do desenvolvimento e de superação das dificuldades, acaba por fazer bem, ou mesmo muito bem. Embora não seja habitual dizer ou falar da quantidade como sinónimo de qualidade, no caso de Luís Athouguia, o volume da obra é tal que indicia o seu perfeccionismo técnico, podendo mesmo ser caracterizado como um homem de oficina e afirmar, como é uso dizer nestas circunstâncias, que este pintor tem mão. 1. As Técnicas Observando esta gigantesca obra, convém analisar separadamente as peças que correspondem à técnica da aguarela e à técnica do pastel, já que estas duas distintas categorias são engendradas numa postura diferenciada. Enquanto as aguarelas não são individualizadas com um título, as peças a pastel são intituladas, correspondendo a uma ideia ou a um conceito que é designado por palavras que contribuem para explicitar o seu sentido. Deste modo, procura-se aqui atender a estas diferenciações que distinguem as duas técnicas pictóricas de Luís Athouguia. Aguarela Todas as aguarelas, muito embora não sejam, intituladas individualmente, recebem de Luís Athouguia a classificação geral de Imaterialidades, o que significa que estão desligadas do mundo real e que pertencem ao mundo espiritual ou ao mundo dos sonhos e das quimeras ou mesmo de nostalgias infantis. Parecem constituir trabalhos de circunstância, criados espontaneamente, sem programa prévio e executados ao som do impulso da expressividade e do desejo de Luís Athouguia se libertar de desafios ou de pesadelos, revelando a hora do descanso, como se fora uma necessidade de brincar com a paleta e de deixar a alma limpa de quaisquer atavios. Segundo o próprio autor trata-se mais de exercícios de trabalho do que obras do mesmo nível expressivo que os pastéis que constituem o seu verdadeiro foco de interesse estético e artístico.


21

Pastel O pastel é constituído por uma massa de pigmentos coloridos, no formato de pequenos batons ou barrinhas, adaptados à concha da mão, mais volumosos que os lápis. Permitem uma grande maleabilidade e flexibilidade de movimento com os dedos: polegar, indicador e médio. Existem outros pequenos e discretos gestos, que podem convocar, por momentos, um ou outro dos dedos da mão, numa variante de dimensão e de força que são próprias de cada autor e que são espontâneas, ou improvisadas na hora, ou ainda construídas para atingir certos níveis de coloração ou de interligação entre diferentes tonalidades. A linguagem de cada artista e a sua destreza manual constituem parte do seu património de execução. Sabiamente elaboradas, podem ter segredos ou ser matéria de ensino, dependendo da personalidade de cada artista. Leonardo Da Vinci usava o pastel nos seus desenhos, também executados a carvão. O pastel é referenciado nos ateliês de artistas do Renascimento que o usavam nos esboços das suas pinturas. A têmpera, era feita artesanalmente numa mistura de pigmentos e ovo que criava uma argamassa diluída com que então se pintava e que era o resultado de um trabalho participativo de oficina, num processo lento e muito complexo. Pintar a ouro ou na cor esmeralda, ou vermelha era assegurado usando o pó da própria gema, o que não era tarefa nem fácil, nem barata. Vários exemplos ilustram bem o virtuosismo conseguido nos séculos XV e XVI, o que só veio a ser superado no século XIX com o aparecimento das bisnagas industriais, cheias de uma variada paleta de tintas a óleo. O pastel foi continuadamente usado ao longo dos séculos, sendo utilizado sobretudo para a pintura de retratos e, por vezes, de género. Permitia o colorido rápido para a realização de esboços ou de estudos, facilitando o trabalho individual. Por outro lado, as próprias épocas e os estilos contribuíram também para uma apreciação especial ou mesmo preferencial de uma determinada técnica mais adaptável a um estilo que a outro. E assim aconteceu com a arte Rococó e a sua elegância formal que distinguiu no século XVIII o pastel. A ambiência de deleite e de prazer sensorial que se destaca neste período da história de arte foi também favorável à multiplicação das cenas de interior e de exterior, em festas galantes, trabalhadas muitas delas a pastel, que eram espelho da vida dolce fare niente da aristocracia europeia do Século das Luzes. O Rococó, reconhecido como património nacional francês, com o seu caráter lúdico e mundano, expandiu-se todavia por toda a Europa e Américas. O charme e a delicadeza cortesãos, bem como a preferência por temas leves e sentimentais, acompanhavam as linhas curvas, os concheados, as cores claras e as assimetrias. As tonalidades usadas provinham da técnica do pastel e traduziam-se em suavidades de azul, amarelo, lilás, salmão, rosas e esverdeados, sempre esbatidos,


22

de modo a criar uma aura de tranquilidade e de conforto visual, referentes de uma sociedade em busca da arte de viver e mesmo da felicidade. Este tema vem a propósito de Luís Athouguia que usa a técnica do pastel nas suas mais de mil obras. Desde o século XVIII que se tem mantido na gíria oficinal e na apreciação e análise crítica da pintura, a referência a esses tons claros eleitos pelo Rococó. Quando nós ainda hoje dizemos que uma pintura tem cores pastel, estamos a referirmo-nos às tonalidades suaves e pálidas, acima descritas, conforme confirmei pessoalmente com Vítor Serrão, professor catedrático de História de Arte da Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa. Ora, nada disto acontece na obra de Luís Athouguia. Este pintor já nos tinha surpreendido na sua técnica de aguarelar, executada de uma forma vigorosa e de tonalidades quentes. O mesmo acontece com a sua técnica e com o modo de utilizar o pastel. O artista aproxima-se do papel de algodão, agredindo o suporte com as barrinhas do pastel e forçando-as, a seu gosto, desenhando robustos e bem claros contornos, preenchendo as suas formas e manchas com cores intensas de grande e variada policromia. No domínio do gesto, Luís Athouguia tem a mesma atitude perante a aguarela e o pastel, ao exibir-se contra a natural expressividade, violentando estas técnicas do ponto de vista matérico e forçando-as a desenhar uma outra e nova linguagem, de expressividade contrária àquelas que constituem o modo mais habitual e comum de utilização destas técnicas picturais. 2. Arquitetura Icónica Depois de se terem evocado as raízes da sua obra se tratará de seguida de analisar a sua pintura e as suas três séries de trabalhos, executadas entre 1991 e a atualidade, para finalmente se abordar o tema da palavra, referenciável aos títulos com que Luís Athouguia vem apelidando a sua extensa e prolífera iconografia. Resta então iniciar uma tarefa impossível que consiste em analisar a colossal obra de pintura que é constituída por mais de um milhar de peças, como acima referi, e tentar distinguir quais são os elementos fundamentais da sua arquitetura icónica. Há que atender em primeiro lugar ao pastel que usa em permanência, para desenhar e colorir o papel, material que escolheu desde sempre, para servir de suporte aos seus diversificados trabalhos. Reconhece-se nas variadas composições picturais duas linhas que correspondem a duas técnicas. A primeira, já referida, é executada em aguarela, com violenta dosagem de tinta, num programa abstracionista de grande enfoque erótico. Na segunda, executada a pastel, Luís Athouguia afirma-se num enfoque surrealizante de carácter espiritual, todavia vai paralelamente dando continuidade à aguarela. O pastel advém por fim a técnica definitiva em que Luís Athouguia prosseguirá a sua constante abordagem surreal, na qual se expressa ainda na ilustração dos 22 capítulos do Apocalipse, também designado como Livro da Revelação.


23

Abstração A primeira série é realizada na técnica da aguarela entre 2000 e 2011, tratando-se de cerca se quatrocentas peças de abstracionismo lírico. Um olhar atento sobre estas centenas de obras aguareladas, encontra diversos elementos comuns que se vão desenrolando como se fossem esquissos de uma BD ainda sem enredo. A leitura destas aguarelas sugere que se trata de estudos preparatórios para a ilustração de um conto que não tem um percurso historiado. Constituem aparentemente uma vaga de arabescos ondulados abstratos, de desenho irregular e plural, sem rumo e sem norte, sem vento e sem dor, num frenesi de movimento. Destacam-se, de onde em vez, alguns elementos figurativos, nomeadamente animais, tais como pássaros, peixes, cães e outros indecifráveis. A figura humana é fugaz distinguindo-se por vezes rostos e sobretudo olhos que surgem inesperada e isoladamente em composições de carácter labiríntico, num turbilhão de colorido vigoroso, avesso às habituais tonalidades suaves das aguadas. As aguarelas constituem um núcleo que corresponde a algo que se pode categorizar como um pousio para descansar do pastel ou para repousar o espírito. Luís Athouguia inventou assim uma forma expressiva de apaziguar a alma, criando estas aguarelas onde descarrega estados de espírito e emoções em cores vibrantes. A cor dominadora e luminosa constitui na verdade uma das grandes ousadias das aguarelas de Luís Athouguia que retêm uma poderosa força de afirmação pessoal e de imperativa decisão. A paleta das tonalidades foge à discrição e à transparência habitual desta técnica, como já referi, opondo-se pelo vigor, pela arrogância até, ao ousar ultrapassar a policromia pálida, mantendo-se num superlativo de tonalidades agressivas e violentas. É-lhe muito impositivo o uso de negros contornos que mais raramente aparecem noutro tom. Estes contornos contribuem para realçar o desenho das formas que lembram as figuras geometrizadas de Cézanne, a esfera, o cilindro e o cone, dramatizadas nas violentas cores dos fauvistas. O papel de Luís Athouguia contém apontamentos da natureza, de onde decanta caules e folhas mas também elementos animistas de uma floresta onde vivem cisnes e se caçam peixes de variadas configurações. Nesse mesmo papel, subsistem imagens provenientes de viagens por galerias e por museus como memórias integradas no seu imaginário de formas e de conteúdos. Tudo é sólido e bem delineado, desenhando círculos, quadrados e batons brisés, as célebres figuras quebradas que reaparecem na arquitetura popular portuguesa. A vibração lumínica constitui outra das facetas assumidas do artista que espalha pelo papel o vigor das suas inquietações e devaneios. Desenha-se nas suas aguarelas um intenso impulso erótico, parecendo constituir uma forma de evasão ou de sublimação dos seus desejos. De carácter indefinido ou abrangente, a sensualidade não se detém nas formas, afirmando-se em insinuações que rodopiam pelo papel num constante memento, destinado a repetir


24

incessantemente o percurso, o caminho, a viagem pela vida que lhe ocorre percorrer. É este contínuo que se transforma num eco da sua sensorialidade. O desejo assoma numa tonalidade como se fora musical, inscrita numa escala de alguns artifícios e de muitas cumplicidades que vão decorrendo sem figura e sem história mas como bordão de vitalidade. Post surreal A imensa e longa fase surrealista de Luís Athouguia é composta por mais de um milhar de peças, pareceu relevante abordar com mais profundidade a história e os conceitos do surrealismo. Este artista representa no nosso país um caso que se integra nesta senda centenária que vem sendo o surrealismo. É, ele próprio, que se assume como um pintor Post surreal, querendo com isto dizer que se sente integrado na categoria, Surrealismo, entendida como um estilo artístico. Aceita e adere à coerência lógica e conceptual dos seus fundadores, revelando uma imensa admiração pela descoberta e pela inovação criativa que os pintores que o antecederam foram revelando. É profundamente fiel à sua grafia poética e pictural, bem como à linguagem das formas que desenha e vai construindo, ao longo do seu percurso lírico e onírico. Nessa atitude surrealizante, vai traduzindo a busca de sentido e o entendimento das emoções e da relação entre umas e outras coisas, das quais vai descobrindo os significados. Parece necessário entender as diversas fases pelas quais o autor foi passando, na medida em que, artistas ou não, todos nós temos uma expressão e um modo de comunicar, próprio a cada tempo e por vezes a cada lugar. A extensão da obra convida a uma procura de identificação de momentos e de formas que se foram acentuando ou, pelo contrário, desaparecendo ao longo do seu trabalho. Trata-se de uma aventura surreal que Luís Athouguia tem vindo a desvendar, elaborando mais de um milhar de peças, facto a ser realçado, dada a sua singularidade. 1983-1995 A primeira série de obras executadas a grafite e lápis de cor situa-se entre 1983 e 1991. Todavia deu, paralelamente, início ao pastel, mantendo algumas destas características entre 1991 até 1995. Do ponto de vista formal, a dominância destes primeiros anos de trabalho reside fundamentalmente numa busca de expressividade. Trata-se de exercícios em que o artista tem em conta o estabelecimento de uma orgânica composta por curvas e contracurvas, novelos ou até embrulhos de formas concavas e convexas que evocam embriões de seres que se expandem, criando células e aderências, num jogo de conformações por vezes eróticas, sem que haja aparências relacionáveis com organismos vivos, ou mesmo de qualquer especificidade física. Reconhece-se o fenómeno da multiplicação das células e o dinamismo vital, desenhado sempre, em variantes de tendência circular uni ou policêntrica.


25


26


27


28


29

O pintor indaga-se e vai penetrando nesse mistério de forma cautelosa, de tal modo que os títulos contribuem para o processo de significação das suas obras: Obcecação curvilínea ou Intermináveis cruzamentos ilustram bem o sentido de busca e, igualmente, o modo errático como o pintor vai dialogando consigo próprio e com o papel. Afogamento espiralado ou Vã Aprendizagem noticiam ainda essa pesquisa cujo percurso é frequentemente balbuciante e inseguro. No ano de 91, o pastel é usado como se fosse argila, moldando esses desenvolvimentos expansivos sem uma âncora axial que os sustenha. Em 92, começa a desenhar-se o desejo de representar alguma coisa. Essência Volátil traduz bem o apontar para um centro que se desfaz. Fóssil, Fruto Cósmico ou Gema do olho da festa, Visão Purpurina ou mesmo Poseidon refletem essa procura de um núcleo, ou um sentido que defina ou indicie as suas emoções e as suas inquietações. Em 93, aparece uma considerável e crescente ideia de movimento, em dinâmicas desenhadas com o sentido da harmonia e de equilíbrio. Dança rodopiante, Dança Volátil ou mesmo Gravitação translúcida e Turbilhão de um voo Ausente são disso exemplo. Muito embora, em 94, se possa detetar um Voo Flamejante e um Turbilhão em corpo Onírico, perpassa nestas obras um acentuado sentido da espiritualidade e surge um estimável Peregrino que informa sobre essa busca que é corpórea e física, pessoal e intimista, velada e discreta. Esta série desenvolve-se com uma certa lentidão e na penumbra do olhar, como se as repetidas perguntas a si próprio ou aos outros, não tivessem fim, e as respostas fossem sempre incongruentes ou insatisfatórias. Nesta pesquisa sobre a vida, quase não há cor e as tonalidades dominantes são sépias e ocres, surgem também verdes e azulados, espaçando-se por vezes nalguns castanhos e laranjas mas sem amarelos ou vermelhos. 1995-2000 Uma segunda fase instala-se em 1995 e perdura até ao ano 2000. Parece ser neste período que Luís Athouguia começa a desenhar uma expressão própria e a criar a sua linguagem pictural, definindo aos poucos uma organização espacial da tela, através de uma oscilação entre as geometrias e as ondulações. Logo em 1996, surgem umas quantas pinturas desapossadas da dominância da geometria que revelam um mundo onírico e surreal: Álgebra do Mistério, Ancoradouro Errático, Belle Époque e Versificação Transcendentalista. Todavia, nas restantes telas desse ano, o quadrado, o retângulo e a diagonal, são quase omnipresentes. Chave para outras Paragens vem trazer-nos o caminho do seu futuro trabalho, não só nas formas, como principalmente na cor azul e anil que vão dominar as suas últimas pinturas. Em 1997, acontece À Beira da Extinção que marca a fronteira para novos caminhos, dando passo a pinturas intermédias como Terra Nua Sem Geometria, Rasga-se-me a Alma e Presságio Convulsivo ou mesmo Tua Ondulação Pélvica, já que Azul e Laranja Cúmplices e fundamentalmente Timoneiro Primordial





33


34

conduzem o espectador para o que virão a ser as tonalidades e as formas preferidas de Luís Athouguia. Em 1998, existe uma forte e intensa tonalidade dominante do laranja, de que é exemplo Ventos do Sul mas que também se pode observar em Catedral Fosfórica, Escoa-se no Tempo o Calor do teu Ventre ou ainda em Pórtico para Outro Calabouço. Em 1999, do ponto de vista das formas continua a manter-se uma ténue presença das geometrias mas uma contínua obsessão pela violência da cor intensa e vibrante. Erupção, Crista de Galo e Tear dos Sonhos marcam uma fortíssima expressão de erotismo que também é demonstrável noutros pastéis, em que a liberdade das emoções salta para o palco da invenção pictural como em Pregas na Lava da Criação e em Fenda Piroclástica ou ainda na Torrente Magmática. Em 2000, emerge um tempo de conturbação, em que aparece um Desejo Peregrino e um Falso Peregrino que, de algum modo, refletem esse ano de transição, em que Luís Athouguia sente que vai ter de mudar, de escolher uma via, na medida em que no novo tempo, Há-de chegar a Hora, em que nos Céus Revoltos, haverá uma Quimera do Dessossego e uma Ogiva de Silêncio, em que, depois de uma prece, terá lugar um Alerta Messiânico. 2001-2012 Uma terceira fase pode ser analisada em dois ciclos, de modo a que melhor se entenda este universo fechado que é constituído pelos pastéis de Luís Athouguia que, já de si, se encontram enclausurados num vidro, ao serem emoldurados, sempre com o intuito de ficarem encerrados e herméticos. Num primeiro tempo, há a assinalar que o artista foi dividindo a tela como se fora as divisões de uma casa, dominantemente geometrizada. Esta casa pode dominar toda a tela, contendo num espaço central onde todas as divisões e subdivisões se distinguem, em claras ou mais diferenciadas geometrias. Acontece noutras pinturas que essa casa-núcleo se separa para a periferia da tela, criando uma barra habitualmente lisa e colorida, em que a comunicação com o espaço central é nenhuma ou multiforme, isto é: esse contacto, tanto pode acontecer de um modo geometrizado e linear, como intrincado com uma ou mais aberturas que constituem pontes de diálogo, de intercomunicação e de interligação entre esses lugares existentes, reais ou imaginários. 2001-2005 No início do 3º milénio, são claras as palavras de Cruzeiro Seixas ao referir-se a Luís Athouguia: o Pintor provoca-nos…na descoberta do processo poético. A geometria perde a qualidade de reguladora dos gestos para se encaminhar, em ritmos inesperados e insuspeitados, que se destinam a representar a consagração do imprevisto. Parte para a intemporalidade, evocando terras onde aparecem figuras fora dos lugares. Não se vislumbra nem espaço nem tempo. A cor adensa-


35

se e toda a tela é veementemente agredida. Perpassa a violência e as cores intensificam-se numa redobrada luz valorativa. Pode mesmo acrescentar-se que o pintor se inebria numa Vertigem da Imagem, como o artista, a si próprio, se refere. Em 2001, Rasgado o Mar a Fogo, há uma Narrativa Suspensa sob a Esteira do teu Navio onde subjaz um Alerta de Rutura e o Buda Surge do Breu. Existe uma Chave que Não Encontra o seu Enigma, como se fora uma Comporta Escancarada Do Território Irracional, ou a Memória Cáustica de uma imaginada Jaula do Instinto. Em 2002, no Tempo Extático das Luas, Cruzam-se as Escritas numa Dialética Desbragada, sobre um Retábulo Preso ao Chão de onde sai um Zumbido, de Voo Pungente e Mansas feras de sombra se iluminam. Em 2003, ocorre uma Explosão Esfíngica donde imana uma Opulência Expressiva e uma Fórmula Imagética que, numa Frase Peremptória, se refere aos Perfumes Visíveis e os Jardins Submersos. A Ameaça Renascida e No Turbilhão da Vida lembram simplesmente uma Melodia Antiga. Em 2004, Luís Athouguia descobre uma Passagem Secreta, o grande óvulo da vida, um Monumento Encarcerado numa Geografia Singular. Trata-se de um Objeto Invisível com uma Mensagem Oculta e Sublime Taça que se distingue à Velocidade do Vento por Uma Voz Noturna. Trata-se de Um Lugar Ermo de Psique Maculada onde teve lugar a Cerimónia do Fim. Em 2005, renasce um Monumento Insubmisso, um Muro de todos os Desejos e uma Nau do Espanto. Esplêndido, Luís Athouguia expressa-se com mais firmeza e com mais certezas: as Trevas Coroadas constituem o Limiar de Fenómeno que vai gerando, passo a passo, a Lembrança Infernal como se fora uma Lenda Premonitória. 2006-2012 No ano de 2006, Luís Athouguia mantém a cadência das imagens que se tornam cada vez mais velozes numa ousada afirmação da policromia, expressa em cores poderosas e vermelhos intensos. Neste período de seis anos vão-se diferenciando duas séries: na primeira podem observar-se mais geometrias e, numa segunda, aos poucos, vai-se destacando uma nova e mais feroz volúpia de cor e de intensidade lumínica. À Boca de Cena ouve-se uma Cantata Lírica entoada por um Cego diante do Crepúsculo. Tinha uma Voz Coagulada que expressava Versos por Sangrar e Uma Estória que não Entendi. No Asfalto do Sonho, Estremeceu o Fogo e saiu veloz um Poema na Sombra, que era afinal Um Conto de Verão, em que entrava o Rei das Meias com Punhal e Pêndulo. No Palácio, havia um Sulco ao Meio, e Margem de Constelação. Em 2007, afirma-se uma dinâmica incessante, em que se destacam, como se fora numa cavalgada, sucessivas janelas de substância, de sonho e de força. É intrigante como, com os suaves batons de pastel, Luís Athouguia continua a afirmar com a maior veemência o seu astral onírico e voluptuoso. Num Jardim Perdido, há um Cruzamento de Improbabilidades, numa Lógica Inundada muito especial. Ocorre um Pensamento


36


37


38


39


40


41


42


43


44


45


46


47


48


49


50

Imperfeito, um Sussurro Incandescente e a Trepidação da Fábula. Há Brilho e Fogo no Desenho da Matéria, de que ressalta uma Ilusão Pretérita e um Intruso Sideral. Do Assombro nos Bastidores, refletem-se Mistérios do Invisível. Mantêmse a Álgebra insondável do Encantamento, bem como o Habitáculo e Céu Ardente pleno de Anotações Disléxicas, sobretudo quando visto sob um Ângulo Hipnótico. Em 2008, o valor cromático altera-se e os amarelos passam a ter primazia sobre os vermelhos. Estas forças lumínicas competem com os encarnados que, todavia, ainda marcam alguns dos trabalhos de Luís Athouguia. Mantêm-se as formas geométricas entrecruzadas e a determinação da violência da policromia, mas afrouxa a intencionalidade da narrativa visual, sendo na diversidade dos títulos das obras que se continua a definir a ousadia da postura post surreal. A pluralidade tonal é uma constante, mesmo quando o título de uma peça aponta para a monocromia, como é o caso do Universo Esmeralda. Parece que os batons já conhecem os caminhos da sua posição e o seu lugar no retângulo de papel: Repetese o Feitiço Na Esfera de outras Geometrias. A Página com Sonho de Ontem tanto pode dever-se a um Idioma Onírico como a um Impulso Luminoso ou a um Imaginário Flamejante. Tanto pode ser uma Voz Triunfal como um Poema Óptico, um Panorama Cristalizado como uma Fragmentação de Paradoxo. Em 2009, continua a haver um Espelho de Incertezas, um Alarido Ficcional ditado por um Verbo Incandescente. As obras de Luís Athouguia multiplicam-se incessantemente entre sonhos, quimeras e intencionalidades espirituais e lúdicas numa torrente de contínuas familiaridades formais e cromáticas, num jogo de casamentos entre as geometrias e as cores, entre as abstrações e algumas figurações. Há Las Meninas de Athouguia, Trovas pelo Santo Graal e uma Zona de Milagres. Em 2010, existem as Cordilheiras da Invenção, uma Paz Esquiva de Fronteias Inquietas que surge numa Vigília Efusiva havida após um Sonho Analógico que apelou à Reivindicação dos Corpos. Do sonho desceu uma Narrativa Insuflada em que o Karma desenhou um Sortilégio Cartografado. Em 2011, deve salientar-se uma Pulsão Totémica, a aparição de uma Estrela Omnívora e o surgimento de uma Profecia Milagreira bem como a Ocorrência de Feitiço. Existe um Outro lado da Farsa, em que o Cerimonial Suspenso dignifica a Cenografia por Cumprir, a qual atenderá à Maquinação Latente que se manifestará como um Canhão de Luz através de um Alfabeto Ilusionista. Em 2012, tratou-se de uma Questão Iniciática: o Profeta tem uma Nitidez no Absurdo e uma Primavera do Sonho. O Caminho da Luz é um Exercício Inusitado, transmitido numa Exclamação Difusa ditada pela Dama Pé de Cabra. A Caminhada faz-se com um Cão de Guarda em Inquieta Geometria que visa atingir a Visão de Esplendor com Cânticos do Mar.


51


52


53


54


55


56


57


58


59


60


61

2013-2014 A partir de 2013, Luís Athouguia estabiliza as suas criações, o que se vinha detetando desde os anos anteriores, devotando-se a criar variações líricas e surreais até à atualidade. Isto significa que atingiu o seu ponto mais alto e, consequentemente, o seu equilíbrio. Há a destacar nas pinturas mais recentes, não só a vigorosa e densa paleta de cor, como a constante presença de uma linha serpenteada que une e separa os diversos ícones da sua imaginária. Esse elo de comunicação com os restantes elementos, dominantemente geométricos, que participam da presença de alguns símbolos figurativos como olhos, mãos, faces, folhas, peixes e outras subtis e inesperadas alegorias de ordem pessoal. Devem referir-se a acontecimentos ou a memórias vivenciadas ou desejadas pelo pintor que a elas alude, deixando-nos em perplexas interrogações. Os elos participativos ocorrem na forma de enrolamentos mas também em crescendos espiralados ou labirínticos, mantendo-se sempre uma marca de construção. Existe ainda uma dominante, ao insistir na evidência de uma constituição de áreas no seio do papel, as quais permanecem nas suas pinturas como módulos de explicitação universal do mundo, do próprio planeta ou mesmo do cosmos. Em 2013, A Narrativa Alastrou depois de desenhar um Registo de Viagem como se fora um Mapa Mediúnico. Afinal tinha sido apenas um Poema Traçado de Noite, um Sortilégio Fulminante que se transformou num Raio em Variação. Nesse Palco Herético um Pé de Feijão chega ao Céu conduzido pelo Elenco para outra Fábula. O sofrimento vem da Súplica Luminosa, bem como das Espinhas Ancestrais vividas num Arquipélago Inverosímil. Em 2014, apresenta No Teor do Silêncio, a Odisseia Discursiva, qual Oráculo Coabitado e faz ouvir Vozes Fragmentadas de Divindades fora da Ilusão que ritualizam um Cerimonial Vulnerável em que entram Caligrafias com Assombro: trata-se de uma Inspiração Equivocada, de um Murmúrio de Paradigmas, bem como de uma Narrativa de Fenómenos, destinada a uma Cartografia Remota em que se desvelam Atmosferas Circulares numa Incandescência Ondulante.


62


63


64


65


66


67


68


69


70


71


72

III PARTE 2015-2016 Luís Athouguia cria, em 2014, um pastel intitulado Soberania da Ficção. Esta obra constitui, por um lado, o detonador dos trabalhos realizados em 2015 e 2016 e resume a essência da esmagadora maioria das peças pintadas nessas datas. Por outro lado, a Ficção, na sua natureza Soberana, abre as portas para o tema do Apocalipse, a que o artista se vai dedicar nesse mesmo biénio seguinte, tendo como objetivo ilustrar os 22 capítulos do texto mais esotérico do Novo Testamento que constitui o último dos livros sagrados do Cristianismo. Apocalipse O Apocalipse faz parte do Novo Testamento e contém a previsão dos últimos acontecimentos antes, durante e após o retorno que o Messias fará à terra no fim dos tempos. Tem um caracter profético, revelando vaticínios sobre o futuro de forma não cronológica. A literatura apocalíptica tem uma importância considerável na história da tradição judaico-cristã-islâmica, ao veicular crenças como a ressurreição dos mortos, o dia do Juízo Final, o céu, o inferno e outras que são ali referidas de forma mais ou menos explícita. Esta linguagem simbólica, aparentemente cifrada, permite inúmeras interpretações raramente literais mas sempre complexas e labirínticas. Bem-aventurado aquele que lê e os que ouvem as palavras desta profecia, e guardam as coisas que nela estão escritas; porque o tempo está próximo22. Até ao presente, o Apocalipse foi sendo atribuído a S. João, que o terá escrito na ilha grega de Patmos, localizada na costa oriental do Mar Egeu. Entendia-se que o Evangelista recebera inspiração divina, sendo considerado, ao longo dos séculos, não como um autor mas como um escriba, na medida em que o texto tinha sido revelado por Cristo aos seus apóstolos, ditado pelo próprio Messias, ainda em vida, mas igualmente fruto de um tempo de recolhimento e de meditação a que S. João se dedicou em Patmos. O Apocalipse, também conhecido como Livro da Revelação acaba de ser editado em português, numa tradução direta do grego por Frederico Lourenço, neste ano de 201723. Existe uma coincidência de datas, que Fernando Pessoa seria capaz de decifrar, a partir do seu horóscopo de Portugal, em que o número 17 vem continuadamente a marcar e a acentuar uma precisa afiliação identitária e uma significância simbólica relativa à Pátria. Frederico Lourenço põe em causa a autoria do Apocalipse, considerando que a expressão de S. João não coincide com a obra literária deste Livro da Revelação. Cita outros

22

https://pt.wikipedia.org/wiki/Apocalipse [Consulta: 25-10-2016] LOURENÇO, Frederico, Bíblia. Novo Testamento, vol. II, Lisboa, Quetzal, 2017.

23


73

bíblicos com idênticas dúvidas e discorre de um modo erudito, assente noutros autores de idêntica opinião24. Realizaram-se inúmeras cópias e traduções do texto original e muitos foram os artistas que o ilustraram. Destaca-se na alta Idade Média, os 22 Commentarium in Apocalypsin, ilustrados por diversos autores europeus e derivados da versão do monge moçárabe, Beato de Liébana, 701-798. Convém ainda referir os diversos manuscritos iluminados em diferentes países europeus que se encontram nos respetivos arquivos nacionais, bem como em numerosos conventos e mosteiros, nomeadamente a partir dos século XI e XII25. É forçoso exaltar, atendendo à sua singularidade, o conjunto seriado de tapeçarias monumentais, executado, por encomenda do 1º Duque de Anjou, na oficina de Nicolas Bataille, em Paris, entre 1373 e 1380, a partir de cartões de Hennequin de Bruges, 1340-1400?26. Já no período moderno há a registar, no Renascimento, a existência de numerosas Bíblias iluminadas entre os séculos XVI e XVIII, de que se destaca a famosa Bíblia dos Jerónimos manuscrita em sete volumes, produzida na última década do século XV em Florença para o futuro rei D. Manuel I de Portugal27, fruto de uma encomenda portuguesa. Anton Koberger, 1440/45 - 1513, ourives alemão, igualmente impressor e editor, publicou a Bíblia com gravuras da sua autoria, conhecida como Koberger’s Bible. É interessante referir que este artista e pioneiro da gravura, estabelecido em Nuremberg era padrinho de Durer, 1471-1528 que muito apreciava a sua obra. A este último devemos a magistral série de 16 xilogravuras do Apocalipse que ainda revelam os temores medievais da fome, da peste e da guerra, a par com a promessa do regresso do Messias que irá trazer a paz e o amor28. Foram muitíssimo os autores que se dedicaram ao Apocalipse, a fim de realizarem gravuras que ilustrassem cada um dos seus capítulos. Ainda do século XVI, há a referir Jean Duvet, 1485-1562, que, inspirado na obra singular de Durer, realizou uma série de 23 gravuras29. Por sua vez, o reconhecido pintor inglês William Blake, 1757-1827, também se inspirou no texto bíblico para criar um conjunto de desenhos aguarelados30. Gustave Doré, 1832-1883, procede similarmente à execução de uma série de gravuras sobre os 22 capítulos do Apocalipse, à semelhança do que diversos artistas dos séculos XVI a XVIII, tinham elaborado, no quadro de diversificados estilos, do renascimento ao período barroco e neoclássico. 24

Id, p. 552 e 553. https://www.gallica.fr [Consulta: 2-5-2017] 26 www.chateau-angers.fr/Explorer/La-Tapisserie-de-l-Apocalypse [Consulta: 2-5-2017] 27 https://pt.wikipedia.org/wiki/B%C3%ADblia_dos_Jer%C3%B3nimos [Consulta: 28-42017]. Ordem de São Jerónimo, Mosteiro de Santa Maria de Belém, liv. 67. 28 KORTE, Werner, El Apocalipsis, de Durero, Madrid, Alianza Editorial, 1982. 29 https://wikipedia.org/wiki/Jean_Duvet [Consulta: 26-4-2017] 30 https://wikipedia.org/wiki/William_Blake [Consulta: 26-4-2017] 25


74

Historiando um pouco a presença do Apocalipse no nosso país, convém lembrar que a mais antiga fixação portuguesa deste texto data do reinado de D. Sancho I, mais precisamente de 1189. Crê-se que um escriba de nome Egeas, monge copista do Mosteiro do Lorvão, tenha igualmente executado as extraordinárias iluminuras que acompanham o belíssimo manuscrito, designado por Apocalipse do Lorvão31. Este mosteiro, originalmente masculino, foi fundado em 878, no tempo das Cruzadas, logo após a primeira conquista de Coimbra. Já no Renascimento, o 1º e famoso historiador de arte português, Francisco de Holanda, 1517-1584, inclui 21 visões do Apocalipse, desenhadas e aguadas, na sua obra De Aetatibus Mundi Imagines publicada em 154532. Será preciso esperar pelo período barroco para que outro português, João Ferreira Annes d’Almeida, se debruce sobre este texto e venha a redigir em vernáculo os 22 capítulos do Apocalipse, postumamente editado, mas sem ilustração33. Mais recentemente e, já no Século XX, Martim Avillez ilustrou com 32 desenhos a grafite o texto bíblico, numa edição da Afrodite de 1972. Este autor interpretou o texto sagrado como um poema onírico e profético de uma civilização que se sente caminhar para a destruição, obra-prima do onirismo do Ocidente34.

31

Esta obra é uma cópia de um dos vários códices então existentes do Commentarium in

Apocalypsin do chamado Beato de Liébana, do século VIII, e insere-se assim no universo dos chamados Beatos. O Apocalipse do Lorvão encontra-se hoje em Lisboa, no arquivo nacional da Torre do Tombo (Ordem de Cister, Mosteiro de Lorvão, Códice 44). 32 HOLANDA, Francisco de; SEGURADO, Jorge, De Aetatibus Mundi Imagines, Lisboa, XVII Exposição de Arte, Ciência e Cultura , 1983. 33

João Ferreira Annes de Almeida, Apocalipse ou Revelação do Apóstolo S. João, o Teólogo, Lisboa, Edição Presente, 2011. https://pt.wikipedia.org/wiki/João_Ferreira_de_Almeida,1628-1691 [Consulta: 26-4-2017]. 34 AVILLEZ, Martim, Apocalipse do Apóstolo João, Lisboa, Ed. Afrodite, 1972.


75

IV PARTE 22 Visões Luís Athouguia propõe-se agora realizar um projeto de grande envergadura, ao debruçar-se sobre esta peça fundamental do Novo Testamento, procurando retirar deste Livro da Revelação inspiração para as 22 pinturas com que ilustrou o texto sagrado. Muito embora haja no Apocalipse algumas revelações que contêm uma linguagem figurativa e mensagens que apelam a um sentido do real, grande parte dos textos é indecifrável e portanto avesso a sugerir formas de representação. Todavia, é com base no imaginário e na crença que Luís Athouguia aborda cada capítulo de per si, fazendo emergir um seu e pessoal esoterismo cristão. Perante os 22 capítulos de grande densidade e com características eminentemente crípticas, o artista retira alguns elementos que considerou sugestivos para compor e interpretar visualmente esta série que trata o intrincado labirinto do tema e os múltiplos significados da letra bíblica. Não pode deixar de se comentar que vivemos num mundo globalizado e numa fase conturbada da história da humanidade, plena de situações inesperadas e de contínuas crises e conflitos internacionais que perigam, não só a paz e a solidariedade entre os povos, como a sobrevivência da própria espécie e do nosso singular planeta. É pois nesta conjuntura que, de seguida, se analisa a obra de Luís Athouguia que seguiu a tradução de João Ferreira Annes de Almeida, acima indicada, realizando as suas ilustrações em data anterior à publicação assinada por Frederico Lourenço. Apresenta-se de seguida o texto sagrado traduzido por este Prof. da Universidade de Coimbra que recebeu no passado mês de Março o consagrado Prémio Fernando Pessoa, referente ao ano de 2017. Esta tradução serviu de âncora aos resumos dos vinte e dois capítulos do texto bíblico, bem com à interpretação visual das imagens e da iconografia de Luís Athouguia, aqui propostas. O Apocalipse vem sendo lido e admirado, com uma inquietante procura do entendimento ou do reconhecimento dos sinais do fim dos tempos. Temido pela promessa do aparecimento do Anticristo que, se sabe, será eliminado pela Palavra de Cristo. O temor que ainda hoje assola os mais diversos espíritos reside também na crença de que Satanás imprimirá uma marca na testa ou na mão dos homens mas a Besta perecerá eternamente no Lago de Fogo. Segue-se a isso o Juízo Final e o destino eterno dos salvos na Nova Jerusalém. A mensagem apocalíptica fundamental proclama a esperança de que Cristo voltará para acolher os justos.


76

Capítulo I Apocalipse de Jesus Cristo, que Deus lhe deu para mostrar aos Seus escravos as coisas que é preciso que aconteçam depressa, ‘coisas essas que Deus’ indicou através do Seu anjo ao Seu escravo, João; ele que testemunhou a palavra de Deus e a palavra e o testemunho de Jesus Cristo ‘no tocante a’ tudo quanto viu. Bem aventurado quem lê e ‘bem aventurados’ os que ouvem as palavras da profecia e observam as coisas que nela estão escritas, pois o tempo ‘está’ próximo. João às sete congregações que ‘estão’ na Ásia: graça para vós e paz da parte d’Aquele que é e que era e que está a chegar; e da parte dos sete espíritos diante do seu Trono; e da parte de Jesus Cristo, a testemunha, o fiel, o primogénito dos mortos e o regente dos reis da terra. Àquele que nos ama e nos liberta dos nossos erros no seu sangue e nos fez um reino, sacerdotes ‘delicados’ a Deus, Pai dele, a Quem a glória e o poder ‘sejam dados’ pelos séculos dos séculos, Amém! Eis que chega com as nuvens E todo o olho o verá Até aqueles que trespassaram; E todas as tribos da terra se lamentarão por causa dele. Sim, Amém! «Eu sou o alfa e o ómega» diz o Senhor Deus. «Aquele que é, que era e que está a chegar: o Todo-Poderoso.» Eu, João, vosso irmão e coparticipante na aflição e no reino e na perseverança em Jesus, estive na ilha chamada Patmos por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus. Estive em espírito no dia dominical e ouvi atrás de mim uma voz ingente como de trombeta a dizer: «Aquilo que estás a ver, escreve-o num livro e manda-o às sete congregações para Éfeso e para Esmirna e para Pérgamo e para Tiatira e para Sardes e para Filadélfia e para Laodiceia. E voltei-me para ver a voz que falava comigo e, tendo-me voltado, vi sete candelabros dourados e, no meio dos candelabros, ‘alguém’ semelhante ‘a’ um filho de pessoa humana, vestido até aos pés e cingido na zona dos peitos com um cinto dourado. A cabeça dele e os cabelos ‘eram’ brancos como lã branca, como neve; e os olhos dele ‘eram’ como chama de fogo e os pés dele semelhantes a bronze como que abrasado numa forja; e a voz ‘dele’ era como uma voz de águas numerosas; e tendo na mão direita sete estrelas; e saindo da sua boca uma espada afiada de dois gumes; e a visão dele, como o Sol, brilha na sua força. E quando o vi, caí a seus pés como um morto, e ele colocou a sua mão direita sobre mim, dizendo:


77

«Não receies. Eu sou o primeiro e o último e aquele que está vivo; e estive morto e eis que, vivo, continuo a ser pelos séculos dos séculos; e tenho as chaves da morte e do Hades. Escreve, então, as coisas que viste e as coisas que estão para ser depois destas. ‘Escreve sobre’ os mistérios das sete estrelas que viste na minha mão direita e ‘sobre’ os sete candelabros dourados. As sete estrelas são anjos das sete congregações e os sete candelabros são as sete congregações.

O autor do texto, seja ele o evangelista ou não, refugiara-se na Ilha de Patmos para refletir e receber a graça de Deus. Vivia entre folhagens e animais num ambiente ermo de pessoas. São descritas no Apocalipse as coisas que Deus’ indicou através do Seu anjo ao Seu escravo, João. Existem assim três personagens fundamentais nesta narrativa, Deus, o Anjo/Arauto do Senhor e João, o escriba que recebe a mensagem e a divulga. Deverá ser difundida por todas as terras. João narra os mistérios de Deus, por Ele inspirados, dirigindo as Profecias divinas a todas as Igrejas (congregações=comunidades) então existentes. As sete estrelas são anjos das sete congregações e os sete candelabros são as sete congregações. As sete igrejas representam, simbolicamente, a totalidade da Igreja de Deus, desde o Pentecostes até a segunda vinda de Jesus. O tempo está dividido em sete períodos. Cada fase corresponde à situação espiritual da Igreja em determinado período.

Luís Athouguia pintou para ilustrar este capítulo primeiro uma imagem marcada por uma certa fluidez, referindo-se a um ambiente bucólico. A composição organiza os diferentes elementos enquadrados em duas dimensões, sem perspetivas diferenciadas. A atmosfera é labiríntica e irreal povoada por formas que provêm da conhecida gramática e policromia, a que o artista nos vem habituando. Surgem cabeças de animais de maior e menor acentuação, um olho vigilante e as letras gregas referentes ao Princípio e às diferentes idades do Homem no tempo, o Alfa e o Beta. Nós, os que aguardamos o Senhor, somos a letra Beta. Há uma cabeça de homem no canto esquerdo que parece ser o Arauto do porvir que sopra, toca e anuncia: Todos o irão ver, ao Senhor, com o Olho quando chegar a vinda do Messias. O Senhor é o Alfa e o Ómega, o princípio e o fim. Este ícone vai sendo repetido na quase totalidade das 22 visões do artista. Existe ainda a conjugação de um variado leque de componentes formais que se irão repetir ao longo da interpretação das 22 visões. Estes elementos contribuem para enfatizar uma certa unidade formal ao conjunto dos capítulos, como se poderá observar nas imagens seguintes. Luís Athouguia mantém uma idêntica paleta cromática, dominada plasticamente pela mesma batuta estética, um post surrealismo como o próprio pintor classifica estas suas obras.


78


79

Capítulo II Ao anjo da congregação de Éfeso escreve: Estas coisas diz aquele que tem na mão direita as sete estrelas, aquele que caminha no meio dos sete candelabros dourados. “Conheço as tuas obras e o teu esforço e a tua perseverança e ‘sei’ que não consegues aguentar os maus; e puseste à prova os que se dizem apóstolos e que não o são; e descobriste que eles são uns mentirosos; e tens perseverança e aguentaste por causa do meu nome e não esmoreceste. Mas tenho ‘como motivo de censura’ contra ti que abandonaste o teu primeiro amor. Lembra-te, portanto, donde caíste e arrepende-te e faz ‘de novo’ as obras primeiras. Porém se não ‘fizeres assim’, venho ter contigo e tirarei o teu candelabro do seu sitio, se não te arrependeres. Mas tens isto ‘a teu favor’, porque odeias as obras dos nicolaitas, as quais também eu odeio. Quem tem ouvido que oiça aquilo que o espírito diz às congregações. Ao vencedor darei a comer a árvore da vida, que está no Paraíso de Deus”. E ao anjo da congregação de Esmirna escreve: Estas coisas diz o primeiro e o último, aquele que esteve morto e viveu. “Conheço a tua aflição e a tua mendicância (mas és rica) e a blasfémia ‘vinda’ daqueles que se dizem judeus e não são, mas ‘são’ uma sinagoga de Satanás. Nada temas em relação às coisas que estás para sofrer. Eis que o diabo está prestes a atirar ‘alguns’ de vós para a prisão para que sejais postos à prova; e tereis aflição durante dez dias. Sê fiel até ‘à’ morte e dar-te-ei a coroa da vida. Quem em ouvido que ouça aquilo que o espírito diz às congregações. O vencedor não será injustiçado pela segunda morte. E ao anjo da congregação de Pérgamo escreve: Estas coisas diz aquele que tem a espada afiada de dois gumes. Conheço onde moras, onde ‘está’ o trono de Satanás; e seguras o meu nome e não renegaste a minha fé até nos dias de Antipas, a minha testemunha, o meu fiel, que foi morto no meio de vós, onde Satanás habita. Mas tenho poucas coisas contra ti, porque tens aí alguns que dão força ao ensinamento de Balaão, ele que ensinou Balaque a lançar um escândalo diante dos filhos de Israel, para ‘os levar’ a comer carnes imoladas a ídolos e a fornicar. Também tens uns que do mesmo modo dão força à doutrina dos nicolaítas. Arrepende-te. Se não o fizeres, venho ter contigo depressa e far-lhes-ei guerra com a espada da minha boca. Quem tem ouvido que ouça aquilo que o espírito diz às congregações. Ao vencedor dar-lhe-ei do maná escondido; e dar-lhe-ei uma pedra branca e na pedra ‘estará’ um nome novo escrito, o qual ninguém conhece a não ser quem ‘a’ recebe.


80

E ao anjo da congregação de Tiatira escreve: Estas coisas diz o filho de Deus, ele que tem os seus olhos como chama de fogo e os pés dele ‘são’ semelhantes a bronze. Conheço as tuas obras e o amor e a fé e o serviço e a tua perseverança e as tuas últimas obras, mais numerosas do que as primeiras. Mas tenho ‘isto’ contra ti, porque perdoas a mulher Jezabel, que se afirma profetiza e ensina e desvia os meus escravos, ‘levando-os’ a fornicar e a comer carnes imoladas a ídolos. E eu dei-lhe tempo para que ela se arrependesse, mas não quer arrepender-se da sua fornicação. Eis que a lanço para uma cama e ‘lanço’ os que com ela cometeram adultério para uma grande aflição, se eles não se arrependerem das obras dela, e os filhos dela eu matarei com morte. E todas as congregações saberão que eu sou aquele que examina rins e corações e dar-vos-ei a cada um de vós’ retribuição’ segundo a vossas obras. Digo a vós e aos demais de Tiatira, tantos quanto não têm esta doutrina, esses que não conheceram as profundezas de Satanás, como eles dizem. Não vos lanço outro fardo a não ser o que tendes; segurai-o até que eu venha. E o vencedor e o que cumpre até ao fim as minhas obras, a esse darei autoridade sobre as nações e apascentá-los-á com férreo bastão tal como quebrará os vasos de cerâmica, tal como também eu recebi de junto do meu pai e dar-lhe-ei a estrela da manhã. Quem tem ouvido que oiça aquilo que o espírito diz às congregações.

Deus delega no Anjo/Arauto a mensagem que João há-de enviar às sete diferentes igrejas locais então existentes, de acordo com a situação que cada uma enfrentava. Estas coisas diz aquele que tem na mão direita as sete estrelas, aquele que caminha no meio dos sete candelabros dourados. São distintos os discursos proferidos às igrejas que serão no futuro comunidades exemplares e simbólicas. Neste capítulo João escreve a 4 dessas congregações cristãs. Quem tem ouvido que oiça aquilo que o espírito diz às congregações. Ao vencedor darei a comer a árvore da vida, que está no Paraíso de Deus”… o que cumpre até ao fim as minhas obras, a esse darei autoridade sobre as nações e apascentá-los-á com férreo bastão tal como quebrará os vasos de cerâmica, tal como também eu recebi de junto do meu Pai e dar-lhe-ei a estrela da manhã. O tempo também está sujeito ao número sete porque as idades sucedem-se a um ritmo que corresponde a este algarismo.

Luís Athouguia ilustra este segundo capítulo com uma imagem em que dominam dois medalhões que têm inscritas as figurações do Anjo/Arauto e de João. Na esquerda baixa da pintura, encontra-se o medalhão com a cabeça do anjo que difunde um sopro celestial sobre o mundo, representado de uma forma simbólica. Está contida num círculo que diferencia a ordem divina da ordem terrena. Na


81

direita alta figura uma ave de bico comprido, a Águia joanina. A sua representação distanciada e contida num círculo vermelho faz prever uma ameaça tenebrosa. Também parece indicar que pertence a uma ordem diversa quer do terreno quer do divino, muito embora tenha inserto o Olho de Deus. Uma expressiva Árvore da Vida, com quatro ramos indicativos de uma geografia, sugere quatro caminhos, as quatro igrejas a que este capítulo se refere: Éfeso, Esmirna, Pérgamo e Tiatira. A cada uma destas congregações, o pintor faz corresponder um conjunto de elementos figurativos. Enfaticamente estão ainda representados quatro candelabros que evocam essas comunidades. A espada representada no primeiro plano tem dois gumes e assenta sobre círculos, na forma de pequenos globos: Ao que vencer, darlhe-ei a comer do Maná escondido.


82


83

Capítulo III E ao anjo da congregação de Sardes escreve: Estas coisas diz aquele que tem os sete espíritos de Deus e as sete estrelas: “Conheço as tuas obras ‘e sei’ que tens nome ‘e sei’ que vives – e ‘porém’ estás morto. Torna-te vigilante e fortalece as restantes coisas que estavam prestes a morrer, pois não encontrei as tuas obras completadas diante do meu Deus. Recorda, portanto, como recebeste e ouviste e guarda ‘as minhas recomendações’ e arrepende-te. Se não te mantiveres vigilante, virei como um ladrão, sem que saibas qual a hora ‘em que’ virei ter contigo. Mas tens poucos nomes em Sardes que não conspurcaram as suas vestes; e caminharão comigo ‘envoltos’ em vestes brancas, porque são dignos. O vencedor, assim, estará envolto em vestes brancas e não limparei o nome dele do livro da vida e confessarei o nome dele diante do meu pai e diante dos anjos d’Ele. Quem tem ouvido que oiça aquilo que o espírito diz às congregações.” E ao anjo da congregação de Filadélfia escreve: Estas coisas diz o santo, o que tem a chave de David, o que abre e ninguém fechará e, fechando, também ninguém abre. “Conheço as tuas obras; eis que dei diante de ti uma porta aberta, a qual ninguém consegue fechar, porque tem exíguo poder e guardaste a minha palavra e não renegaste o meu nome. Eis que dou ‘aqueles’ da sinagoga de Satanás, que dizem ser judeus e não são, pois mentem – eis que farei com que eles venham prostrar-se diante dos teus pés e com que saibam que eu te amei. Porque guardaste a palavra da minha perseverança; e eu te guardarei da hora da privação que está prestes a chegar para todo o mundo habitado, para pôr à prova os habitantes da terra. Venho depressa. Fortalece o que tens, para que ninguém tire a tua coroa. O vencedor: fá-lo-ei coluna no templo do meu Deus e para fora não mais sairá; e ainda escreverei nele o nome do meu Deus e o nome da cidade do meu Deus, da nova Jerusalém, ela que desce do céu de junto do meu Deus; e ‘escreverei’ o meu nome novo. Quem tem ouvido que ouça aquilo que o espírito diz às congregações. E ao anjo da congregação de Laodiceia escreve: Estas coisas diz o Amém, a testemunha fiel e verdadeira, o princípio da criação de Deus. “Conheço as tuas obras, porque não és frio nem quente. Assim, porque és morno, e nem quente nem frio, estou prestes a vomitar-te da minha boca. Porque dizes que ‘sou rico’ e ‘enriqueci’ e ‘não preciso de nada’; e não sabes que tu és o desgraçado e miserável e mendigo e cego e nu. Aconselho-te a comprares junto de mim ouro purificado pelo fogo para que enriqueças, e vestes brancas para que ‘as’ vistas e não fique visível a vergonha da tua nudez; e


84

‘aconselho-te’ colírio para ungires os teus olhos, para que vejas. Àqueles que eu amo eu repreendo e castigo. Sê zeloso, portanto, e arrepende-te. Eis que estou em pé, à porta, e bato. Se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei para junto dele e jantarei com ele, e ele comigo. O vencedor: dar-lhe-ei ‘o privilégio’ de se sentar comigo no meu trono, assim como eu venci e me sentei com o meu Pai no Seu trono. Quem tem ouvido que ouça aquilo que o espírito diz às congregações. O texto deste terceiro capítulo refere que Deus, na pessoa de Cristo, manda que João escreva quais os cuidados e as orientações que as congregações devem adotar para se prepararem para a chegada do redentor. Dirigem-se às restantes três igrejas das 7 comunidades cristãs, então existentes (Sardes, Filadélfia, Laodiceia), a fim de darem continuidade ao projeto divino. Faz uma ameaça à comunidade de Sardes: Se não te mantiveres vigilante, virei como um ladrão, sem que saibas qual a hora ‘em que’ virei ter contigo. Promete ao vencedor que não limpará o nome dele do livro da vida e…que dirá o nome dele diante do meu Pai e diante dos anjos d’Ele. Faz ainda promessas à comunidade de Filadélfia, sempre numa linguagem cifrada: “Conheço as tuas obras; …tens diante de ti uma porta aberta, a qual ninguém consegue fechar, porque… guardaste a minha palavra e não renegaste o meu nome. Os da sinagoga de Satanás, mentem. Farei com que eles venham prostrar-se diante dos teus pés e… saibam que eu te amei…. e eu te guardarei da hora da privação que está prestes a chegar… para todo o mundo habitado, para pôr à prova os habitantes da terra. Ao vencedor: fá-lo-ei coluna no templo. Por fim, Deus, na pessoa de Cristo, dirige-se ao vencedor da comunidade de Laodiceia prometendo: dar-lhe-ei ‘o privilégio’ de se sentar comigo no meu trono, assim como eu venci e me sentei com o meu Pai no Seu trono. Luís Athouguia continua em Patmos, nessa ilha que apresenta ao expectador como se fora um jardim. O ambiente é noturno para que se destaquem e se apreciem, pelo seu brilho e intensidade, as sete estrelas. Nesta imagem o artista representa, em diagonal, uma onda de luz que separa a terra dos céus onde se encontram as estrelas que são os Sete Espíritos de Deus. Num plano recuado, desenha-se um acentuado vértice invertido que termina numa ponta de luz. Inscrito nesse triângulo, envolto numa ambiência florestal está representada a Águia joanina. Esta ave, cujo olho possui um intenso brilho, dirige o seu olhar para as portas do céu, sobre as quais existe uma figura que parece representar o 1º vencedor. Uma outra figura parece aludir ao 2º vencedor que se integra nas colunas púrpuras do templo. Por fim, uma última figura entra olimpicamente com um facho de luz na Nova Jerusalém, encimada pela chave de David.


85


86

Capítulo IV Depois que vi estas coisas, eis que ‘se mostrou’ uma porta aberta no céu; e a voz, a primeira que eu ouvira como uma trombeta, estava a falar comigo, dizendo: “Sobe até aqui e eu mostrar-te-ei as coisas que é preciso que aconteçam depois destas». De imediato estive em espírito e eis que um trono estava colocado no céu e no trono ‘estava’ um Sentado; e o Sentado era semelhante na aparência à pedra de jaspe e sardónica; e um arco-íris em torno do trono ‘era’ semelhante na aparência a esmeralda. E em torno do trono ‘havia’ vinte e quatro tronos e nos tronos ‘havia’ anciãos sentados, vestidos com vestes brancas e ‘tinham’ nas suas cabeças coroas de ouro. E a partir do trono vinham relâmpagos e vozes e trovões, e sete lâmpadas de fogo ardendo diante do trono, as quais são os sete espíritos de Deus; e diante do trono ‘havia’ como um mar vítreo, semelhante a cristal. E no meio do trono e em torno do trono ‘havia’ quatro criaturas vivas com olhos à frente e atrás. E a primeira criatura ‘era’ semelhante a um leão; e a segunda criatura ‘era’ semelhante a um vitelo; e a terceira criatura tinha o rosto como de ser humano; e a quarta criatura ‘era’ semelhante a uma águia alada. E as quatro criaturas, cada uma delas, tinha seis asas à volta e por dentro repletas de olhos, e descanso não têm nem de dia nem de noite, dizendo: «Santo, santo, santo, o Senhor Deus, o Todo-Poderoso, O que era e é está a chegar.» E quando as criaturas derem glória e honra e graça ao Sentado no trono, ao Vivo pelos séculos dos séculos, os vinte e quatro anciãos cairão diante do Sentado no trono e prostrar-se-ão em adoração ao Vivo pelos séculos dos séculos e atirarão as suas coroas diante do trono, dizendo: «És digno, ao Senhor e Deus nosso, De receber a glória e a honra e o poder, Porque tu criaste todas as coisas E por causa da Tua vontade elas existiram e foram criadas.»

O autor do Apocalipse discorre neste capítulo sobre uma visão transcendente de 24 anciãos trajados com vestes brancas, possuindo cada um deles a sua coroa de ouro. Nessa visão, surgem também sete lâmpadas de fogo ardendo diante do trono, as


87

quais são os sete espíritos de Deus. Rodeando esse poderoso trono, havia quatro criaturas, os evangelistas, representadas pelos seus atributos: Touro (Mateus), Leão (Marcos), Anjo (Lucas), e Águia (João). Esta visão prenuncia simbolicamente a unificação pelo Novo Testamento das 12 tribos de Israel com os 12 Apóstolos, reconhecendo-se o Livro Sagrado como pertença dos cristãos: os vinte e quatro anciãos cairão diante do Sentado no trono e prostrar-se-ão em adoração ao Vivo pelos séculos dos séculos e tirarão as suas coroas diante do trono.

Ao introduzir este capítulo IV, Luís Athouguia desenha uma porta para o céu na forma de um óvulo uterino rodeada dos 24 anciãos que correspondem aos 12 apóstolos e às 12 tribos de Israel. Em primeiro plano, o pintor desenha a mesma cabeça de Anjo/Arauto que dá as mercês para a introdução nesse local sagrado onde se encontram as sete lâmpadas de fogo as quais são os sete espíritos de Deus. Nesse recinto, que se adivinha ser um lugar de eleição, espraia-se um mar azul vítreo, coexistindo num modo triunfal, os 4 evangelistas, 3 dos quais figurados nos seus atributos: o Touro de Mateus, o Anjo (pomba) de Lucas e a Águia de João, desenhada no cerne da abóbada celestial. Luís Athouguia omite o leão de Marcos.


88


89

Capítulo V E vi, na mão direita do Sentado no trono, um livro escrito por dentro e por fora, selado com sete selos. E vi um anjo forte, anunciando em voz alta: «Quem é digno de abrir o livro e soltar os seus selos?» E ninguém conseguiu – no céu, nem na terra nem debaixo da terra – abrir o livro nem mirá-lo. E eu chorava muito, porque ninguém foi encontrado digno de abrir o livro ou de o mirar. E um dos anciãos diz-me: «Não chores, eis que o Leão da tribo de Judá, a raiz de David, venceu para abrir o livro e os seus sete selos.» E vi no meio do trono e das quatro criaturas e dos anciãos um Cordeiro de pé, como que degolado, com sete chifres e sete olhos, os quais são sete espíritos de Deus enviados para toda a terra. E veio e tirou ‘o livro’ da mão direita d’Aquele que estava sentado no trono. E quando tirou o livro, as quatro criaturas vivas e os vinte e quatro anciãos caíram diante do Cordeiro, tendo cada um deles uma cítara e taças douradas cheias de incenso, as quais são as orações dos santos, e cantam um cântico novo, dizendo: «Digno és de tomar o livro e de abrir os seus selos, Porque foste degolado e compraste para Deus o teu sangue A partir de toda a tribo e povo e nação; E fizeste-o, para o nosso Deus, reino e sacerdotes; E eles reinarão sobre a terra.» E vi e ouvi ‘a’ voz de muitos anjos em círculo ‘à volta’ do trono e das criaturas vivas e dos anciãos; e era o número deles de miríades de miríades e milhares e milhares, dizendo em voz alta: «Digno é o cordeiro degolado de tomar O poder e riqueza e sabedoria E força e honra e glória e bênção.» E ouvi toda a criatura que está no céu e na terra e debaixo da terra e por cima do mar e todas as coisas nele, dizendo: «Àquele que ‘está sentado’ no trono e ao Cordeiro A bênção e a honra e a glória e o domínio Pelos séculos dos séculos.»


90

E as quatro criaturas vivas diziam: «Amém». E os anciãos caíram e prostraramse.

Neste capítulo narra-se que, na presença do Senhor sentado no trono, havia um Anjo que procurava alguém capaz de entender o Livro Sagrado mas ninguém foi encontrado digno de abrir o livro ou de o mirar. Num segundo momento, os 4 evangelistas e os 24 anciãos testemunham que um Cordeiro de pé… veio e tirou ‘o livro’ da mão direita d’Aquele que estava sentado no trono. E quando tirou o livro, todos se prostraram. O livro sagrado fechado com sete selos virá a ser aberto por Cristo Jesus, o Cordeiro, por o ter merecido. «A bênção e a honra e a glória e o domínio Pelos séculos dos séculos.» E as quatro criaturas vivas diziam: «Amém».

Para ilustrar este capítulo, Luís Athouguia criou uma imagem em que pintou, ao alto, uma zona solar com dominância de luz, sublinhada por um coroa de aparência estrelar. Distingue-se um forte e primeiro plano que é terra, ornamentado com as folhagens da ilha de Patmos. A figura do Anjo/ Arauto com sua trombeta vermelha também está representada, encontrando-se inscrita num círculo que é atravessado por um cone na diagonal e que é repetido por outros cincos triângulos isósceles que se dirigem ao alto, em diferentes orientações. Propõem a indicação da existência de diferentes caminhos para atingir a Cidade Santa. Nesta imagem, vislumbra-se o olho que tudo observa e, acima dele, a cabeça do pássaro de bico pontiagudo (Águia joanina), que vem aparecendo nestas imagens do pintor. Existem 4 figuras humanas que ascendem erguendo 4 flâmulas triunfais, numa alusão aos quatro evangelistas cujas obras correspondem à palavra de Deus.


91


92

Capítulo VI E vi quando o Cordeiro abriu um dos sete selos e ouvi uma das quatro criaturas vivas dizer «Vem». E olhei – e eis um cavalo branco! E quem está sentado em cima dele tem um arco; e uma coroa lhe foi dada e saiu vencendo e para que vencesse. E quando ‘o Cordeiro’ abriu o segundo selo, ouvi a segunda criatura dizendo: «Vem!» E saiu outro cavalo, ruivo! E a quem está sentado em cima dele foi dado tirar a paz da terra, para que todos se degolem uns aos outros; e deu-lhe uma grande espada. E quando ‘o cordeiro’ abriu o terceiro selo, ouvi a terceira criatura dizendo: «Vem!» E olhei – e eis um cavalo preto! E quem está sentado em cima dele tem uma balança na mão. E ouvi ‘algo’ como uma voz no meio das criaturas vivas dizendo: «Uma medida de trigo por um denário; e três medidas de cevada por um denário; e no que toca a azeite e vinho não sejas injusto.» E quando abriu o quarto selo, ouvi ‘a’ voz da quarta criatura dizendo: «Vem!» E olhei – e eis um cavalo verde! E quem se senta em cima dele tem como nome a morte e o Hades seguia atrás e foi-lhes dada autoridade sobre a quarta parte da terra, para matarem com espada e com fome e com morte e por intermédio das feras selvagens da terra. E quando abriu o quinto selo, vi debaixo do altar as almas daqueles que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que deram. E gritaram em voz alta, dizendo: “Até quando Senhor, Santo e Verdadeiro, ficas sem julgar e vingar o nosso sangue sobre os habitantes da terra? E foi-lhes dada a cada um deles uma veste branca e foi-lhes dito que descansassem durante pouco tempo, até que se enchessem de sofrimento’ os seus companheiros de escravidão e os seus irmãos que estavam prestes a serem mortos como também eles ‘o tinham sido’. E vi quando ‘o Cordeiro’ abriu o sexto selo e houve um grande terramoto e o Sol ficou preto como um saco piloso e a Lua cheia ficou como sangue e os astros do céu caíram à terra, tal como ‘uma figueira’ atira ao chão os seus figos verdes, agitada por um grande vento; e o céu abriu-se como um livro a ser enrolado e toda a montanha e ilha moveram-se dos seus lugares. E os reis da terra e os grandes e os quiliarcas e os ricos e os pobres e todo o escravo e todo o ‘homem’ livre esconderam-se nas grutas e nos rochedos das montanhas e dizem às montanhas e às rochas: caí em cima de nós e escondei-nos do rosto d’Aquele que está sentado no trono e da ira do Cordeiro, porque chegou o dia, o grande da ira deles – e quem poderá resistir?


93

O Cordeiro abriu o Livro e dele saiu um cavalo branco: quem está sentado em cima dele tem um arco; e uma coroa lhe foi dada e saiu vencendo e para que vencesse. Novamente o Cordeiro abriu o Livro e dele saiu um cavalo ruivo: a quem está sentado em cima dele foi dado tirar a paz da terra, e deu-lhe uma grande espada. Novamente o Cordeiro abriu o Livro e dele saiu um cavalo preto e quem está sentado em cima dele tem uma balança na mão para ser justo e equitativo: Novamente o Cordeiro abriu o Livro e dele saiu um cavalo verde: E quem se senta em cima dele tem como nome a morte…para matarem com espada e com fome… por intermédio das feras selvagens da terra. Depois da vinda dos quatro cavaleiros do Apocalipse, abriu-se o 5º selo e as almas daqueles que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e do testemunho que deram estavam debaixo do altar. Ao abrir do 6º selo houve um grande terramoto e uma turbulência cósmica porque chegou o dia grande e terrível o dia da ira.

Luís Athouguia atravessa a imagem a meio, no sentido vertical, para desenhar um vigoroso e fortíssimo relâmpado púrpura. Numa atmosfera noturna, o crescente da lua branca ergue-se no breu. Ocorre uma chuva de estrelas multiplicada por grossas lágrimas, distribuídas por todo o plano. Mais uma vez, há o Olho, atento aos quatro círculos multicolores onde se destacam os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, montados nos seus cavalos coloridos. O círculo do cavaleiro arqueiro está encimado por três peixes de sopros vermelhos que simbolizam os cristãos. Aos cavaleiros, munidos do Arco, da Espada, da Balança e da Morte, ser-lhes-ão entregues missões temporais específicas e implacáveis, às quais se seguirá o Dia da IRA.


94


95

Capítulo VII Depois disto, vi quatro anjos de pé nos quatro cantos da terra, para que não sobrasse vento sobre a terra nem sobre o mar nem sobre árvore alguma. E vi outro anjo subindo do ‘lado do’ sol nascente, com ‘o’ selo de Deus vivo e gritou em voz alta aos quatro anjos a quem fora dado prejudicar a terra e o mar, dizendo: «Não prejudiqueis a terra nem o mar nem as árvores até que tenhamos marcado com um selo os escravos do nosso Deus nas suas testas.» E ouvi o número dos que foram selados: cento e quarenta e quatro mil, selados de toda a tribo dos filhos de Israel: Da tribo de Judá, doze mil selados; Da tribo de Rúben, doze mil; Da tribo de Gad, doze mil; Da tribo de Aser, doze mil; Da tribo de Neftali, doze mil; Da tribo de Manassés, doze mil; Da tribo de Simeão, doze mil; Da tribo de Zabulão, doze mil; Da tribo de José, doze mil; Da tribo de Benjamim, doze mil selados. Depois que vi estas coisas, eis uma multidão numerosa, que ninguém conseguia contar, de toda a nação e tribos e povos e línguas de pé diante do trono e diante do Cordeiro, tendo-se vestido com roupas brancas e ‘segurando ramos de’ palmeira nas suas mãos, e gritam em voz alta, dizendo: A salvação ‘pertence’ ao nosso Deus, o que se senta no trono. E ao Cordeiro! E todos os anjos tinham-se colocado em pé em círculo ‘à volta’ do trono e dos anciãos e das quatro criaturas e caíram diante do trono com as faces ‘por terra’ e prostraram-se em adoração a Deus, dizendo: «Amém! A bênção e a glória e a sabedoria e A ação de graças e a honra e o poder e a força


96

‘Pertencem’ ao nosso Deus pelos séculos e séculos. Amém. E respondeu um dos anciãos, dizendo-me: «Estes vestidos de vestes brancas quem são e donde vieram?» E eu disse-lhe: «Meu senhor, tu sabes.» E disse-me: «Estes são os que chegam da grande aflição E lavaram as vestes deles E branquearam-nas no sangue do Cordeiro. Por causa disto, estão diante do trono de Deus E servem-no de dia e de noite no Seu templo, e o Sentado no trono os abrigará na ‘Sua’ tenda. Não terão fome já; não terão sede já; Nem cairá sobre eles o sol ou o calor, Porque o Cordeiro no meio do trono os apascentará E os conduzirá para as nascentes de água de vida E Deus limpará toda a lágrima dos olhos deles. O autor do Apocalipse descreve neste capítulo a chegada de quatro Anjos que se posicionam nos quatro cantos do mundo, a quem Deus ordena que façam mal à terra. Surge um 5º anjo que os avisa: «Não prejudiqueis a terra nem o mar nem as árvores até que tenhamos marcado com um selo os escravos do nosso Deus nas suas testas». E assim foi feito. Em redor do trono do Senhor, junto com os Anciãos (24) e as quatro criaturas (evangelistas), as multidões dos eleitos (marcados com um selo na testa) gritavam: A salvação ‘pertence’ ao nosso Deus, o que se senta no trono. Mas também ao Cordeiro. E todos os Anjos ao redor do trono se prostraram e a Deus adoraram e ao fim todos serão salvos e se prostrarão perante o Senhor: Dizendo: Louvor, e glória, e sabedoria, e fazimento de graças, e honra, e potência, e força pertencem a nosso Deus, para todo sempre. Ámen. Luís Athouguia cria uma imagem quase totalmente dominada pelos quatro anjos representados nos quatro cantos da pintura. Ao centro, encontra-se um quinto anjo mais proeminente que anuncia a profecia das palavras do Apocalipse, estando todos eles com vestes brancas que os unificam. Esta cena passa-se no céu onde brilha uma intensa luz solar entrecortada por barras de azul celeste. As multidões estão representadas por círculos de várias cores e dimensões, correspondendo aos eleitos, pertencentes às 12 tribos de Israel. Este dramatismo profético, acaba por se transformar em salvação, que o artista traduz num forte vigor cromático, tratado com muita expressividade.


97


98

Capítulo VIII E quando ‘o Cordeiro’ abriu o sétimo selo, aconteceu um silêncio no céu de aproximadamente meia hora. E vi os sete anjos que estão de pé diante de Deus e foram-lhes dadas sete trombetas. E veio outro anjo e colocou-se junto do altar, segurando um turíbulo dourado e foram-lhe dados muitos incensos, para que ele ‘os’ oferecesse com as orações de todos os santos no altar dourado diante do trono. E subiu o fumo dos incensos com as orações dos santos da mão do anjo diante de Deus. E o anjo tomou o turíbulo e encheu-o de brasas do fogo do altar e lançou-o em direção à terra; e aconteceram trovões e vozes e relâmpagos e um sismo. E os sete anjos com as sete trombetas prepararam-se para tocar. E o primeiro tocou a trombeta. E aconteceu granizo e fogo misturado em sangue e foi lançado para a terra; e a terça parte da terra ficou queimada e a terça parte das árvores ficou queimada e toda a erva verde ficou queimada. E o segundo anjo tocou a trombeta. E ‘algo’ como uma grande montanha de fogo foi atirado ao mar; e a terça parte do mar tornou-se sangue e morreu a terça parte das criaturas que têm vidas no mar e a terça parte dos barcos foi destruída. E o terceiro anjo tocou a trombeta. E caiu do céu uma grande estrela, ardendo como uma tocha e caiu na terça parte dos rios e sobre as nascentes das águas e o nome da estrela diz-se «o Absinto»; e a terça parte das águas tornou-se absinto e muitas das pessoas morreram a partir do facto de as águas terem ficado amargas. E o quarto anjo tocou a trombeta. E a terça parte do Sol foi atingida e a terça parte da Lua e a terça parte das estrelas, para que ficasse escurecida a sua terça parte e o dia não aparecesse durante a sua terça parte e a noite de igual modo. E olhei – e ouvi ‘o som’ de uma águia a voar no meio do céu, dizendo em alta voz: «Ai, ai, ai dos habitantes da terra por causa das restantes vozes da trombeta dos três anjos prestes a tocar.»

O Cordeiro (Cristo) abriu o 7º selo e aconteceu um silêncio no céu. Junto ao Senhor havia sete anjos com sete trombetas. E veio outro anjo e colocou-se junto do altar, segurando um turíbulo dourado e foram-lhe dados muitos incensos… Esse mesmo anjo tomou o turíbulo e encheu-o de brasas do fogo do altar e lançou-o em direção à terra; e aconteceram trovões e vozes e relâmpagos e um sismo. Seguidamente 4 dos sete anjos fizeram soar os seus instrumentos. Depois do 1º, aconteceu granizo e fogo misturado em sangue e foi lançado para a terra que ficou um terço queimada, assim como as árvores e as ervas. Depois do 2º, uma grande montanha de fogo foi atirada ao mar que se transformou em sangue e a


99

terça parte das criaturas que vivem no mar morreram e a terça parte dos barcos foi destruída. Depois do 3º, caiu uma grande estrela e a terça parte das águas tornou-se absinto e muitas das pessoas morreram porque as águas ficaram amargas. Depois do 4º anjo fazer soar a sua trombeta, a terça parte do Sol, da Lua e das estrelas, escureceu. Por fim, uma águia voando no céu dizia Ai, ai, dos habitantes da terra por causa das restantes trombetas dos três anjos prestes a tocar.

Luís Athouguia representa o sétimo selo, como um outro mundo, fora da escuridão da terra e do azul do céu e na forma de um círculo. Nele está representado o Anjo/Arauto, soprando sobre a esquerda, no sentido inverso ao que o pintor tem vindo a figurar. Organiza assim duas ordens de espaços, uma circular e espiritual e a outra terrena. Rodeando o círculo, encontram-se os sete anjos com as suas trombetas. Um 8º anjo, coroado, lança e espalha calamidades sobre a terra e faz subir em fumaça o incenso com as orações dos santos. No altar polícromo, assente numa barra de ouro, de amarelo reluzente, está presente o Olho de Deus, atento ao que se passa entre os céus e a terra. As catástrofes anunciadas pelas 4 primeiras trombetas estão representadas de um modo bem explícito: o fogo e o granizo sobre a terra; o fogo sobre o mar, transformando-o em sangue; e uma estrela candente que cai sobre as águas, envenenando-as. Após o soar da 4ª trombeta, surge no cosmos escurecido uma águia branca, anunciando a vinda das 3 restantes trombetas.


100


101

Capítulo IX E o quinto anjo tocou a trombeta. E vi uma estrela que caíra do céu para a terra; e foi-lhe dada a chave do poço do abismo. E abriu o poço do abismo e saiu fumo do poço como fumo de uma grande fornalha; e obscureceu-se o Sol e o ar por causa do fumo do poço. E do fumo saíram gafanhotos para a terra e foi-lhes dada autoridade como ‘a’ autoridade que têm os escorpiões da terra. E foi-lhes dito que não prejudicassem a erva da terra nem todo o verde nem toda a árvore, mas só as pessoas que não têm o selo de Deus nas testas. E foi-lhes concedido que não os matassem, mas que os torturassem durante cinco meses; e a tortura deles era como uma tortura de escorpião quando ataca uma pessoa, E naqueles dias, as pessoas procurarão a morte e não a encontrarão; e desejarão morrer e a morte foge deles. E a aparência dos gafanhotos ‘era’ semelhante a cavalos treinados para ‘a’ guerra; e nas cabeças ‘tinham objetos’ como coroas semelhantes a ouro; e os seus rostos ‘eram’ como rostos humanos; e tinham cabelos como cabelos de mulheres; e os dentes deles eram como ‘dentes’ de leões; e tinham couraças como couraças de ferro e o som das suas asas ‘era’ como ‘o’ som de muitos carros de cavalos correndo para uma batalha; e têm caudas semelhantes a escorpiões e aguilhões; e nas suas caudas ‘existe’ a autoridade para prejudicarem os humanos durante cinco anos. Têm ‘a reinar’ sobre eles um rei, o anjo do abismo, cujo nome em hebraico ‘é’ Abbadôn e tem na ‘língua’ helénica o nome Apollíôn. Passou o primeiro ai. Eis que chegam ainda dois ais depois destas coisas. E o sexto anjo tocou a trombeta. E ‘ouvi’ uma voz proveniente dos quatro chifres do altar de ouro, dizendo ao sexto anjo, o que tem a trombeta: «Solta os quatro anjos que foram presos junto do grande rio Eufrates!» E soltaram os quatro anjos que tinham sido preparados para a hora e dia e mês e ano, para que matassem a terça parte da Humanidade. E o número de exércitos de cavalaria ‘era’ de duzentos milhões: ouvi o seu número. E assim vi os cavalos na visão e aqueles que estavam sentados em cima deles com couraças fogosas e hiacintinas e enxofradas; e as cabeças dos cavalos ‘eram’ como cabeças de leões e das suas bocas sai fogo e fumo e enxofre. A partir destas três pragas, morreu a terça parte dos humanos: a partir do fogo e do fumo e do enxofre que sai das suas bocas. Pois a autoridade dos cavalos está na boca deles e nas caudas deles; pois as caudas deles são semelhantes a serpentes: têm cabeças e com elas atacam. E os restantes humanos, os que não foram mortos por estas pragas nem sequer se arrependeram dos trabalhos das suas mãos de modo a não adorarem os demónios e os ídolos dourados e os prateados e os brônzeos e os pétreos e os lenhosos, os quais nem ver conseguem, nem ouvir, nem andar; e não se arrependeram das suas


102

matanças nem das suas poções mágicas nem da sua fornicação nem dos seus roubos.

Este capítulo, o nono, relata um presságio de destruição comandado pelas três restantes trombetas dos 7 anjos indicados no capítulo anterior. Quando o 5º anjo tocou a trombeta, caiu uma estrela e foi-lhe dada a chave do poço do abismo…donde saiu fumo como de uma grande fornalha que obscureceu o Sol. E do fumo saíram gafanhotos para a terra E foi-lhes dito que só prejudicassem as pessoas que não tinham o selo de Deus nas testas. Os gafanhotos ‘eram’ como cavalos treinados para ‘a’ guerra… decorados com coroas e armaduras …; tinham fortes e poderosas caudas com que maltratavam os homens. O seu rei era o anjo do abismo, Satanás. Quando o sexto anjo tocou a trombeta, uma voz vinda do altar disse: Solta os quatro anjos que foram presos junto do grande rio Eufrates para que matem a terça parte da Humanidade. E assim aconteceu. Os restantes humanos, os que não foram mortos por estas pragas não se arrependeram dos trabalhos das suas mãos, continuando a adorar os demónios e os ídolos, sem nunca se arrependerem dos diversos males que infligiram.

Luís Athouguia cria um céu de breu e sobre ele dispersa pequenas esferas coloridas de dimensões variadas. No primeiro plano, figuram a estrela azul caída do céu e o 5º anjo, a quem foi dada a chave do poço do abismo, donde irradia um feixe de magnetismo. Desse poço, que se encontra ao centro do quadro, sai uma figura fantasmagórica que simboliza a energia negativa ou o anjo do abismo, Lúcifer. Num plano elevado da composição e inscritos em círculos de cor, pairam 4 cavalos, soprando em vermelhão destruidor. Possuem rostos e cabelos humanos bem como caudas de lacraus, numa alusão aos gafanhotos referidos neste capítulo. Num plano mais recuado, junto do altar, está figurado o 6º anjo que observa a trágica destruição. Fortes gotas escarlates, esparsas pelo papel, simbolizam a morte que domina o texto sagrado.


103


104

Capítulo X E vi outro anjo forte descendo do céu, vestido de uma nuvem; e o ‘arco-íris’ estava sobre a sua cabeça e o ‘seu’ rosto era como o Sol e os seus pés como colunas de fogo; e ‘desceu’ tendo na mão dele um livrinho aberto. E colocou o seu pé direito sobre o mar e o esquerdo sobre a terra. E gritou em voz alta como ruge o leão. E quando ele gritou, os sete trovões fizeram soar as suas vozes. E quando os sete trovões falaram, eu estava prestes a escrever; e ouvi uma voz do céu, dizendo: Sela as coisas que disseram os sete trovões e não as escrevas!» E o anjo, que eu vi de pé no mar e na terra, levantou a mão direita ao céu e jurou por Aquele que vive pelos séculos dos séculos, Ele que fez o céu e as coisas que nele ‘se encontram’ e ‘fez’ a terra e as coisas que nela ‘se encontram’ e ‘fez’ o mar e as coisas nele. ‘E o anjo disse’ que ‘tempo já não haverá! Mas nos dias da voz do sétimo anjo, quando ele estiver prestes a fazer soar ‘a’ trombeta, então o mistério de Deus ficou completo, tal como foi proclamado aos Seus escravos, os profetas. E a voz que ouvi do céu está a falar de novo comigo, dizendo: «Vai! Recebe o livro aberto na mão do anjo que está de pé sobre o mar e sobre a terra.» E dirigime ao anjo, dizendo-lhe: «Dá-me o livrinho.» E ele diz-me: «Toma e come-o. Ele amargar-te-á o ventre, mas na tua boca será doce como mel.» E tomei o livrinho da mão do anjo e comi-o; e na minha boca era como mel doce. E, quando o comi, amargou-se-me o ventre. E dizem-me: «É preciso que tu profetizes novamente a povos e a nações e línguas e a muitos reis.»

Neste capítulo, João tem mais uma visão que corresponde à chegada de um anjo com cabeça de sol e pés de fogo, vestido metaforicamente de nuvem. Desce sobre a abóbada celeste e traz um livro na mão. E quando ele gritou… seguiram-se sete trovões e uma voz do céu disse: Sela as coisas que disseram…e não as escrevas! Este novo anjo traz a missão de interpelar os viventes para algo de imensa relevância que ocorrerá sobre o mar e sobre a terra e, no futuro, sobre todo o mundo, conforme tinha sido anunciado pelos Profetas. A voz do céu dirige-se a João incumbindo-o de receber o livro para que possa profetizar novamente aos povos e às nações e línguas e muitos reis.

Luís Athouguia assinala nesta pintura três planos horizontais, que se interligam. O primeiro representa a terra, em cinzentos violáceos, e o segundo refere-se ao mar, pintado a azul. O 3º plano é dominado pelo vermelho e representa o céu, rematado por uma fita com 3 faixas coloridas que augura o arco-íris. Intercetando o fundo encarnado, o pintor figura um anjo vestido de nuvem, tendo o seu pé direito sobre


105

o mar e o esquerdo sobre a terra. Este anjo detém o livro e anuncia, com o seu sopro esmeralda, que o Dia está próximo. Inscrito num medalhão, continua a afirmar-se a figura do Arauto do Senhor com o seu poderoso sopro. É enorme o estrondo do anúncio do anjo que incita João a comer o livro que será indigesto para o ventre e doce para a boca. O artista dispara por todo o quadro uma série de ziguezagues de várias tonalidades primárias, acrescidas de lágrimas de fogo, de modo a criar uma atmosfera de violência que transmite a incongruência entre o doce e o amargo. Enquanto, na base do quadro, uma pequena figura alada parece representar o 7º anjo, aquele que há-de fazer soar a sua trombeta...e o mistério de Deus ficará completo.


106


107

Capítulo XI E foi-me dado um cálamo semelhante a um bastão de medir, dizendo: «Levanta-te e mede o templo de Deus e o altar e os que nele se prostram em adoração. E deixa de fora o pátio de fora do templo e não o meças, porque foi dado aos pagãos e a cidade santa eles calcarão durante quarenta e dois meses. E darei às minhas duas testemunhas ‘uma incumbência’ e profetizarão durante mil duzentos e sessenta dias, vestidos de saco». Estas duas testemunhas são as duas oliveiras e os dois candelabros que estão de pé diante do Senhor da terra. Se alguém os quiser danificar, sai fogo da sua boca e devora os seus inimigos. E se alguém quiser danificá-los, assim é preciso ele seja morto. Estas têm a autoridade para fechar o céu, para que nenhuma chuva chova nos dias da sua profecia; e têm autoridade sobre as águas, ‘autoridade’ para as mudar em sangue e para ferir a terra com toda a praga, quantas vezes ‘o’ queiram. E quanto terminarem o seu testemunho, a besta que sobe do abismo fará guerra com eles e os vencerá e os matará. E o corpo caído deles ‘jazerá’ na rua da cidade grande, que se chama espiritualmente Sodoma e Egito, onde o Senhor deles foi crucificado. E mirarão ‘alguns’ dentre os povos e as tribos e as línguas e as nações os seus corpos durante três dias e meio e não permitirão que os corpos deles sejam postos em túmulos. E os que habitam sobre a terra regozijam-se sobre eles e se alegram e enviam dons uns aos outros, porque estes dois profetas atormentaram os habitantes da terra. E depois dos três dias e meio, um espírito de vida ‘vindo’ de Deus entrou neles e ficaram de pé e um terror grande caiu sobre os que estavam a vê-los. E ouviram uma voz enorme ‘vinda’ do céu, dizendo-lhes: «Subi para aqui.» E eles subiram até ao céu na nuvem e viram-nos os inimigos deles. E naquela hora aconteceu um sismo grande e a décima parte da cidade ruiu e morreram no sismo ‘os’ nomes de sete mil pessoas e as restantes ficaram cheias de medo e deram glória ao Deus do céu. O segundo ai passou. Eis que o terceiro ai chega depressa. E o sétimo anjo tocou a trombeta. E houve grandes vozes no céu, dizendo: «O reino do mundo tornou-se ‘o reino’ do Nosso Senhor E do Seu Cristo; E reinará pelos séculos dos séculos.» E os vinte e quatro anciãos, sentados nos seus tronos, diante de Deus, caíram de rosto no chão e adoraram a Deus, dizendo:


108

«Graças Te damos, Senhor Deus, Todo-Poderoso, O que é e O que era, Porque tomaste o Teu grande poder E reinaste. E as nações se enfureceram: E veio a Tua ira; E o tempo dos mortos serem julgados E de dar a recompensa aos Teus escravos e profetas E aos santos e aos que temem o Teu nome – Os pequenos e os grandes – E o ‘tempo’ de destruir os que destroem a terra.» E abriu-se o templo de Deus no céu e foi vista a arca da aliança no templo d’Ele, e aconteceram relâmpagos e vozes e trovões e um sismo e imenso granizo.

João ouve novamente a voz do Senhor que lhe ordena que meça o interior do templo. Duas oliveiras e dois candelabros, simbolizando a liturgia, irão profetizar durante largo tempo pois estão de pé diante do Senhor da terra. Mas a besta que sobe do abismo fará guerra com eles e os vencerá e os matará. Renasce-lhes a esperança ao ouvirem uma voz enorme ‘vinda’ do céu, dizendo-lhes: Subi para aqui. E naquela hora aconteceu um sismo grande, em que uns morrem e outros serão salvos e deram glória ao Deus do céu. O segundo ai passou. Eis que o terceiro ai chega depressa. E o sétimo anjo tocou a trombeta. O reino do mundo tornou-se ‘o reino’ do Nosso Senhor e do Seu Cristo, e reinará pelos séculos dos séculos. Haverá muitas calamidades que irão acontecer com redobrada intensidade até que chegue o tempo dos mortos serem julgados e de dar a recompensa a todos que seguem o Senhor… bem como de destruir os que destroem a terra…e será vista a arca da aliança no templo d’Ele.

Luís Athouguia regressa a Patmos para encarnar a Escritura, desenhando no plano mais próximo do seu quadro, relativo ao Capítulo nº 11 do Apocalipse, uma folhagem de sabor lírico e campestre, donde emerge um sentido de esperança e de fé. Num plano mais interior, adensa-se a perturbação entre os céus e o mundo, a terra e o mar, correspondendo a uma das características do Apocalipse. Tempestades e mortes, destruição e calamidades ocorrerão ao longo dos tempos.


109

Uma enorme cabeça de peixe sopra sobre 2 oliveiras esquematizadas, poupando-as da destruição. Virá um dia em que Deus chegará de novo para destruir aqueles que foram destruindo a terra: Os reinos do mundo vieram a ser de nosso Senhor e do seu Cristo, e ele reinará para todo o sempre. Muito embora o texto seja violento e pleno de calamidades, o texto também anuncia um futuro de salvação. O artista respeita a dicotomia do Apocalipse, organizando dois cenários, prevalecendo, no entanto, uma imagem de carácter mais ameno e pacífico.


110


111

Capítulo XII E um sinal enorme foi visto no céu: uma mulher vestida do Sol. E a Lua «estava» debaixo dos pés dela e, na cabeça dela, uma coroa de doze estrelas; e está grávida e grita em trabalho de parto e está atormentada ‘com as dores» de dar à luz. E foi visto outro sinal no céu: e eis um dragão grande, ruivo, com sete cabeças e dez chifres e, nas suas cabeças, sete diademas; e a sua cauda arrasta a terça parte dos astros do céu e atirou-os por terra. E o dragão estacou diante da mulher que está prestes a dar à luz, para que, quando parir o filho dela, o devore. E ela deu à luz um filho macho, que vai apascentar todas as nações com bastão férreo. E o filho dela foi arrebatado para junto de Deus e do trono d’Ele. E a mulher fugiu para o deserto, onde ela tem um lugar que lá lhe foi preparado por Deus, para que lá a alimentem durante duzentos e sessenta dias. E deu-se uma guerra no céu. Miguel e os anjos dele ‘vieram’ para guerrear com o dragão. E o dragão guerreou e os anjos dele ‘também’; e ‘o dragão’ não teve força nem se encontrou para eles lugar no céu. E foi lançado o dragão, o grande, a serpente, o antigo, o chamado diabo e Satanás, o que ludibria o mundo inteiro: foi lançado para a terra e os anjos dele foram lançados com ele. E ouvi uma voz enorme no céu, dizendo: «Já aconteceu a salvação e o poder E o reino do nosso Deus E a autoridade do Cristo d’Ele, Porque foi lançado o acusador dos nossos irmãos; O que os acusa diante do nosso Deus de dia e de noite. E venceram-no devido ao sangue do Cordeiro E devido à palavra do testemunho deles E não amaram a vida deles até à morte. Por isso regozijai-vos, céus! E aqueles que nele habitam! Ai da terra e do mar, Porque desceu o diabo até vós Com grande raiva, Sabendo que tem pouco tempo. E quando o dragão viu que fora lançado para a terra, perseguiu a mulher que dera à luz o macho. E foram dadas à mulher as duas asas da grande águia para


112

que voe para o deserto, para o lugar dela, onde é alimentada, nesse sítio, tempo e tempos e meio tempo, longe da face da serpente. E da sua boca a serpente lançou água como um rio atrás da mulher, para que a fizesse ‘uma vítima’ levada pelo rio. E a terra ajudou a mulher e a terra abriu a sua boca e bebeu o rio que o dragão lançara da sua boca. E o dragão enfureceu-se contra a mulher e partiu para fazer guerra com os restantes da semente dela, ‘os restantes’ que observam os mandamentos de Deus e que sustêm o testemunho de Jesus. E ‘o dragão’ ficou sobre a areia do mar.

Este capítulo relata um evento raro pois refere-se ao aparecimento de uma mulher coroada e vestida de sol, sendo esta a 1ª vez que o Apocalipse menciona a figura feminina e a exalta, pois está prestes a dar à luz. Relata ainda o aparecimento de um dragão ruivo com sete cabeças e dez chifres e, nas suas cabeças, sete diademas… para que, quando parir o filho dela, o devore. Todavia o filho é arrebatado para junto de Deus e do trono d’Ele. Por sua vez, a mulher foge para o deserto, onde será alimentada durante o devido tempo. Paralelamente, dá-se uma guerra no céu entre Miguel e o dragão que vem a ser lançado para a terra juntamente com a serpente, Satanás e os seus anjos. E houve então regozijo no céu. Como o dragão ainda estava na terra, persegue novamente a mulher que acaba por ser salva. Mas o dragão não desiste e parte para fazer guerra com os restantes que observam os mandamentos de Deus.

Luís Athouguia introduz o medalhão do lado esquerdo do primeiro plano onde está inscrito o Arauto do Senhor, tal como tem vindo a ser apresentado, de perfil e com o seu sopro, aqui vermelho. No centro da composição, o pintor representa a mulher vestida de sol. Uma esfera intensamente branca simboliza o seu ventre e exalta a sua gravidez. Tem coroa e está pousada no crescente lunar. Possui ainda duas enormes asas que indicam a sua ascensão celeste. Olhando sobre a direita, recorta-se outro rosto, de nariz adunco, contornado a laranja, que igualmente sopra, a verde, como se viesse transmitir a esperança no futuro. Representa Miguel, o anjo guerreiro que luta com os seus anjos contra o dragão e a sinuosa serpente. Esta última, dirige-se ao alto marcando uma certa verticalidade e conduzindo o olhar do expectador. No canto superior esquerdo da pintura encontra-se o dragão das sete cabeças, miniaturizado, parecendo afastar-se. O desenho da ramagem aponta para a ligação entre o relâmpago, a serpente e o dragão. Existe ainda um terceiro olho que a tudo assiste e observa. Um vincado relâmpago amarelo descarga sobre a terra, pelo que é preciso orar.


113


114

Capítulo XIII E vi uma besta saindo do mar, com dez chifres e sete cabeças e nos seus chifres dez diademas e nas suas cabeças nomes de blasfémias. E a besta que vi era semelhante a um leopardo e as patas dela ‘eram’ como de urso e a boca dela como boca de leão. E o dragão deu-lhe o seu poder e o seu trono e grande autoridade. E ‘vi’ uma das suas cabeças como que ferida de morte; e a sua ferida da morte foi curada. E toda a terra se maravilhou atrás da besta e prostraram-se em adoração diante do dragão, porque ele dera a autoridade à besta e prostraram-se diante da besta, dizendo: «Quem ‘é’ semelhante à besta? E quem consegue lutar com ela?» E foi-lhe dada uma boca que diz enormidades e blasfémias e foi-lhe dada autoridade para agir durante quarenta e dois meses. E abriu a sua boca para proferir blasfémias em relação a Deus, para blasfemar contra o Seu nome e o Seu tabernáculo ‘e contra’ os que no céu habitam. E foi-lhe dado fazer guerra com os santos e vencê-los; e foi-lhe dada autoridade sobre toda a tribo e povo e língua e nação. E adorá-la-ão todos os que habitam a terra, cujo nome não está escrito no livro da vida do Cordeiro degolado, ‘livro escrito’ desde a fundação do mundo. Se alguém tem ouvido, oiça! Se alguém ‘vai’ para ‘o’ cativeiro, para ‘o’ cativeiro vai. Se alguém com ‘a’ espada é morto, com ‘a’ espada é morto. Aqui está a perseverança e a fé dos santos. E vi outra besta surgindo da terra e tinha dois chifres como um cordeiro e falava como um dragão. E exerce toda a autoridade da primeira besta na presença dela e faz com que a terra e os que nela habitam adorem a primeira besta, cuja ferida da morte fora curada. E realiza grandes prodígios, para que faça até o fogo descer do céu para a terra à vista das pessoas. E engana os habitantes sobre a terra pelos prodígios que lhe foram dados fazer diante da besta, dizendo aos habitantes sobre a terra para fazerem uma imagem para a besta que tem a ferida da espada e sobreviveu. E foi-lhe dado dar um sopro ‘de vida’ à imagem da besta, para que a imagem da besta também falasse e fizesse com que tantos quantos não adorassem a imagem da besta fossem mortos. E faz com que todos – os pequenos e os grandes, e os ricos e os mendigos, e os livres e os escravos – lhes deem uma marca na sua mão direita ou na testa deles, para que ninguém possa comprar ou vender a não ser a pessoa que tem a marca: o nome da besta ou o número do seu nome. Aqui está a sabedoria: o que tem entendimento que decifre o número da besta, pois é um número de homem e o seu número é seiscentos e sessenta e seis.


115

O texto relata o aparecimento da Besta, uma figura odiosa e hedionda com dez chifres e sete cabeças e nos seus chifres dez diademas e nas suas cabeças nomes de blasfémias. O dragão das sete cabeças delegou o seu poder e trono nesta besta que passou a ser adorada por todos a considerarem invencível. A besta profere constantes blasfémias contra o Senhor, diz enormidades e faz guerra com os santos e vence-os, recebendo poder sobre toda a tribo e povo e língua e nação. E adorá-la-ão todos os que habitam a terra. Soa então um aviso de que a perseverança e a fé dos santos podem salvar os humanos: Se alguém tem ouvido, oiça! Surge depois outra besta que, investida do poder da primeira, realiza grandes prodígios…pedindo aos homens para fazerem um ícone e adorarem a primeira besta, aquela que sobreviveu após ter sido ferida. Todos serão marcados com o seu nome ou número, na sua mão direita ou na testa.

Luís Athouguia figura a Besta no centro da composição, ostentando os seus sete chifres. Aos seus pés, encontram-se homens que a louvam e lhe erguem estandartes. Tem sido muito divulgada a profecia sobre a vinda de uma besta, mais monstruosa e animalesca que todos os animais ferozes juntos, também designada com um número, 666. Já foi personificada com a figura de Hitler. Nesta pintura, a besta, não só domina toda a paisagem como se encontra bem assente na terra. Tem as patas mergulhadas num lamaçal. No primeiro plano, está figurada a segunda besta em tamanho diminuto. Como um periscópio, emerge do pântano. Tem chifres e uma língua viperina com que expele granadas disfarçadas pela cor, duas das quais, maiores, parecem possuir atributos bestiais. Entre a besta e a sua representação numérica, está a Mulher que se encontra pousada sobre uma nuvem e assim sabemos que já teve o Filho. Reconhece-se pelos seus halos de luz. A besta será vencida pela sabedoria do espírito que está simbolizada no círculo branco, incompleto e rematado por pontas brancas. No seu interior, encontra-se novamente a Mulher, aqui com grandes asas que lhe saem da cabeça. Esse círculo contém ainda dois peixes de simbologia cristã e um vaso com uma planta e um único fruto, vermelho, eventualmente uma romã, símbolo da fertilidade e do Amor.


116


117

Capítulo XIV E olhei – e eis o Cordeiro de pé sobre o Monte Sião e com ele cento e quarenta e quatro mil ‘homens’ que têm o seu nome e o nome do Pai dele escrito nas testas. E ouvi uma voz ‘vinda’ do céu como voz de muitas águas e como voz de grande trovoada; e a voz que eu ouvi ‘era’ como ‘o som’ de harpistas harpejando as suas harpas. E cantam um cântico novo diante do trono e diante das quatro criaturas vivas e dos anciãos; e ninguém conseguiu aprender o cântico a não ser os cento e quarenta e quatro mil ‘homens’, os resgatados da terra. Estes são aqueles que não se conspurcaram com mulheres, pois eles são virgens; estes são aqueles que seguem atrás do Cordeiro, para onde quer que ele vá. Estes foram resgatados dentre os seres humanos: primícias para Deus e para o Cordeiro. E na boca deles não foi encontrada mentira: são irrepreensíveis. E vi outro anjo voando no meio do céu, tendo uma boa-nova eterna para anunciar sobre os habitantes da terra e sobre toda a nação e tribo e língua e povo, dizendo em voz alta: «temei a Deus e dai-Lhe glória, porque chegou a hora do Seu julgamento; e prostrai-vos em adoração ao que fez o céu e a terra e ‘o’ mar e ‘as’ fontes de águas!.» E outro anjo, um segundo, seguiu ‘atrás do primeiro anjo’, dizendo: «Caiu, caiu Babilónia, a Grande ! Ela que deu a beber a todas as nações Do vinho da paixão da sua fornicação!» E outro anjo, um terceiro, segui-os, dizendo em voz alta: «Se alguém adora a besta e a sua imagem e recebe uma marca na sua testa ou na sua mão, ele também beberá do vinho do furor de Deus, misturado sem diluição no cálice da sua ira; e será torturado com fogo e enxofre diante de anjos santos e diante do Cordeiro. E o fumo da sua tortura sobe pelos séculos dos séculos; e não têm repouso de dia nem de noite os adoradores da besta e da sua imagem e se alguém recebe a marca do seu nome ‘...’. Aqui está a perseverança dos santos, aqueles que observam os mandamentos de Deus e a fé de Jesus.


118

E ouvi uma voz do céu, dizendo: «Escreve: Bem aventurados os mortos que morrem no Senhor a partir de agora.» «Sim», diz o espírito, «para que descansem dos seus trabalhos; pois as suas obras seguem com eles.» E olhei – e eis uma nuvem branca! E sobre a nuvem está sentado ‘alguém’ semelhante a um ser humano, tendo na sua cabeça uma coroa dourada e na sua mão uma foice afiada. E outro anjo saiu do templo, gritando em voz alta ao que está sentado na nuvem: «Atira a tua foice e ceifa, porque Chegou a hora de ceifar; porque Amadureceu a seara da terra.» E aquele que está sentado na nuvem atira a sua foice para a terra e a terra foi ceifada. E outro anjo saiu do templo no céu, segurando também ele uma foice afiada. E outro anjo saiu do altar, com autoridade sobre o fogo e chamou em voz alta ao que tem a foice afiada, dizendo: «Atira a tua foice afiada e vindima os cachos de vinha da terra, porque amadureceram as uvas dela.» E o anjo atirou a sua foice para a terra e vindimou a vinha da terra e atirou ‘as uvas’ para o grande lagar da ira de Deus. E foi pisado o lagar fora da cidade e saiu sangue do lagar até aos freios dos cavalos numa distância de seiscentos estádios.

O Cordeiro de pé sobre o Monte Sião encontrava-se com uma grande multidão de homens marcados nas testas. Entoavam um cântico novo diante do trono, dos evangelistas e dos 24 anciãos e somente os resgatados da terra conseguiram aprender o cântico. Todos eles eram discípulos do Cordeiro. E na boca deles não foi encontrada mentira. Apareceu então um anjo com uma boa-nova eterna para anunciar sobre toda a nação e tribo e língua e povo: prostrai-vos em adoração ao Criador. Um 2º anjo anunciou a queda da Babilónia! E outro anjo, um terceiro, gritava avisando que os adoradores da Besta seriam torturados com fogo e enxofre, não tendo repouso de dia nem de noite. Por fim, uma voz do céu, disse: Bemaventurados os mortos que morrem no Senhor a partir de agora. E outro anjo saiu do templo, gritando ao que está coroado e sentado na nuvem: Atira a tua foice e ceifa, porque chegou a hora de ceifar. Seguidamente, outros anjos deram início a vários trabalhos sobre a terra destinados ao grande lagar da ira de Deus. E foi pisado o lagar fora da cidade e saiu sangue do lagar até aos freios dos cavalos numa distância de seiscentos estádios.


119

Luís Athouguia organiza a narrativa deste capítulo em dois grandes níveis. Uma linha de horizonte demarca o céu da superfície da terra. Ao alto, está representado o Anjo/Arauto num medalhão que se encontra inscrito no céu dourado, pleno de intensa luz solar. Este Anjo elimina a besta com o seu poderoso sopro. No centro da composição, sentada sobre a nuvem, encontra-se uma figura com uma enorme foice. Esta figura é replicada numa outra que, em baixo, na terra, ceifou a vinha com a sua foice azul. A mancha vermelha representa o rio de sangue que, saído do lagar, pressagia o castigo que cairá sobre os homens. Sobre este rio, está figurado um pequeno medalhão que parece aludir ao castigo que o Senhor dará aos adoradores da besta. É ainda de destacar a representação do Templo numa igreja encimada com o sinal da paz. Inesperadamente, o artista representa 3 mulheres, duas das quais se dirigem com convição para a nuvem. Uma enorme haste de folhagem desenvolve-se ondulando, ligando as três figuras femininas. Para cá do rio, no plano mais próximo, está representada a cabeça de uma ave. Este pássaro, de olhar atento e vigilante, observa toda a cena, de um modo distanciado mas pronto a intervir.


120


121

Capítulo XV E vi outro sinal do céu, grande e espantoso: sete anjos com sete pragas, as últimas, pois nelas a ira de Deus ficou completa. E vi ‘algo’ como um mar de vidro misturado com fogo; ‘e vi’ os que vencem a besta e a imagem dela e o número do nome dela: ‘vi-os’ de pé junto do mar de vidro, segurando as cítaras de Deus. E cantam o cântico de Moisés, escravo de Deus, e o cântico do Cordeiro, dizendo: Grandes e maravilhas ‘são’ as Tuas obras, Senhor Deus, Todo-Poderoso. Justos e verdadeiros ‘são’ os teus caminhos, Ó rei das nações! Quem não ‘Te’ temeria, Senhor? E quem não glorificará o Teu nome? Porque só ‘Tu és’ santo, Porque todas as nações virão E se prostrarão em adoração diante de Ti. Porque os ‘teus atos’ justos foram revelados. E depois destas coisas olhei: e abriu-se o templo do tabernáculo do testemunho no céu; e saíram os sete anjos com as sete pragas do templo, vestidos de linho puro e luminoso e cingidos à volta dos peitos com cintos dourados. E uma das quatro criaturas vivas deu aos sete anjos sete taças cheias da ira do Deus vivo pelos séculos dos séculos. E o templo encheu-se de fumo a partir da glória de Deus e do seu poder; e ninguém conseguiu entrar no templo até que se completassem as sete pragas dos sete anjos.

O Anjo/Arauto vê um sinal do céu, grande e espantoso que corresponde às últimas sete pragas com que termina a ira de Deus. Vê ainda um mar de vidro misturado com fogo e os que vencem a besta e a imagem dela e o número do nome dela, tangendo as cítaras de Deus. Entoam o cântico de Moisés e o cântico do Cordeiro, louvando o Senhor. Por fim, abre-se o templo e saem, vestidos de linho puro e luminoso, sete anjos com as sete pragas do templo, cingidos com cintos dourados. Um dos evangelistas, uma das quatro criaturas vivas, deu-lhes sete taças cheias da ira do Deus vivo, a fim de ser ultrapassado o tempo do castigo. E o templo


122

encheu-se de fumo a partir da glória de Deus e do seu poder; e ninguém conseguiu entrar no templo até que se completassem as sete pragas dos sete anjos.

Luís Athouguia dispersa por toda a superfície do papel e, de uma forma distendida, como se tratasse de uma divagação, a sua interpretação da mensagem deste capítulo. O Anjo/Arauto, reaparece no rosto medalhado, o qual vem sendo incluído em quase todas as suas pinturas. O artista figura novamente a Águia, atributo de S. João, que narra o que vê e o que está para haver. No primeiro plano, encontram-se geometrias polícromas alinhadas, sugerindo multidões, São tocadas por uma seta vermelha que imprime a ideia de acusação. Três delas, com seus pescoços e línguas, parecem aludir a espécies submersas que acorrem à superfície. Todo o segundo plano é desenhado sobre a direta, num movimento ascensional apenas contrariado por uma pequena escada azul que ascende em sentido contrário. Muito embora o texto do Apocalipse se refira aos anjos que tocam cítaras e entoam cânticos, Luís Athouguia opta por figurar sete mulheres destemidas e eufóricas que perseguem o seu destino escatológico. Uma delas segura uma enorme figura musical, composta por duas colcheias. Reaparece ainda o símbolo cristológico dos peixes, inscrito numa fabulosa estrela vermelha incompleta. Há um sentido de vitória daqueles que, pelos cânticos, derrotam a besta e se expressam numa emoção de sonoridades e de elevação espiritual.


123


124

Capítulo XVI E ouvi uma voz ingente ‘vinda’ do templo, dizendo aos sete anjos: «Ide e derramai na terra as sete taças da ira de Deus.» E o primeiro partiu e derramou a sua taça na terra; e aconteceu uma úlcera má e iníqua às pessoas que têm a marca da besta e às que adoram a sua imagem. E o segundo derramou a sua taça para o mar; e ‘o mar’ tornou-se sangue, como que de um cadáver; e todo o ser vivo morreu – os seres que estão no mar. E o terceiro derramou a sua taça para os rios e nascentes das águas; e ‘tudo’ se tornou sangue. E ouvi o anjo das águas, dizendo: «Justo és, O que és e O que eras, o Santo! Porque julgaste estas coisas; Porque derramaram sangue de santos e de profetas, E sangue lhes deste para beber: São merecedores.» E ouvi o altar, dizendo: «Sim! Senhor Deus, Todo-Poderoso! Verdadeiras e justas são as tuas sentenças.» E o quarto derramou a sua taça sobre o Sol; e foi-lhe dado queimar os seres humanos no fogo. E os seres humanos foram queimados numa deflagração enorme e blasfemaram ‘contra’ o nome de Deus que tem a autoridade sobre estas pragas e não se arrependeram para lhe dar glória. E o quinto derramou a sua taça sobre o trono da besta; e o reino dela tornou-se escuro e mordiam as suas línguas por causa do sofrimento; e blasfemavam ‘contra’ o Deus do céu devido aos seus sofrimentos e às suas úlceras e não se arrependeram das suas obras, E o sexto derramou a sua taça sobre o grande rio, o Eufrates, e a água do rio secou, para que fosse preparado o caminho dos reis – dos ‘que vêm’ do nascer do sol. E vi ‘saindo’ da boca do dragão, e da boca da besta, e da boca do falso profeta, três espíritos impuros, como batráquios. Pois são espíritos de demónios, realizando prodígios, que saem em direção aos reis do mundo todo para os reunir para a guerra do grande dia do Deus Todo-Poderoso. «Eis que chego como um ladrão. Bem-aventurado o que vigia e guarda as suas roupas, para que não ande nu e para que não vejam a sua impudicícia.»


125

E reuni-os para o lugar que se chama em hebraico Harmaguedão. E o sétimo derramou a sua taça sobre o ar, e saiu uma voz ingente do templo, a partir do trono, dizendo: «Aconteceu.» E aconteceram relâmpagos e vozes e trovões e aconteceu um grande sismo, tal como não houvera desde que o ser humano existe na terra – de tal maneira grande ‘foi o’ sismo. E a grande cidade tornou-se em três partes; E as cidades das nações caíram; e Babilónia, a Grande, foi lembrada diante de Deus, para se lhe dar a taça do vinho do furor da ira d’Ele. E toda a ilha fugiu e as montanhas não se encontravam. E granizo enorme, com o peso de um talento, caiu do céu sobre as pessoas, e as pessoas blasfemaram ‘contra’ Deus devido à praga do granizo, porque a sua praga era mesmo enorme. Este capítulo do Apocalipse revela que, num dado momento histórico, irão ocorrer trágicos acontecimenros sobre a terra e os céus, os mares e os oceanos, os humanos e os animais, o sol e o planeta, num processo trágico de destruição para castigo dos homens que blasfemaram de Deus e, por isso, sofrerão pragas e saraiva que os destruirá a todos. Uma voz vinda do templo dizia aos anjos que derramassem as sete taças da ira de Deus. Sucessivamente cada um dos sete anjos foi derramando a sua taça, causando diferentes castigos às pessoas que têm a marca da besta e às que adoram a sua imagem. Do primeiro resultou o aparecimento de uma úlcera má e iníqua. O segundo tornou o mar em sangue e todo o ser vivo morreu. E o terceiro fez o mesmo para os rios e nascentes das águas. E o quarto anjo fez queimar os seres humanos no fogo. E o quinto derramou a sua taça sobre o trono e o reino da besta que escureceu e provocou grande sofrimento. E o sexto fez secar o Eufrates para preparar o caminho dos reis. Apareceram então três espíritos impuros, como batráquios, saindo da boca do dragão, da boca da besta e da boca do falso profeta. E o sétimo fez acontecer relâmpagos, vozes e trovões, um grande sismo que destruiu as cidades, seguindose uma praga do granizo. Luís Athouguia cria um fundo solar sobre o qual desenha, na esquerda alta, o Anjo/Arauto medalhado, soprando num tom esverdeado a voz do Senhor. O pintor organiza a narrativa deste capítulo, elegendo sete pontas de lança, correspondentes aos diferentes castigos provocados pelo derramamento das taças dos sete anjos, numa das quais é reforçada a presença do Anjo/Arauto. Noutras duas, destaca-se a figura da besta, pintada a vermelho e, em paralelo, numa nuvem encarnada, qual bola de fogo visando a exterminação, onde está inscrito o número 666, duplicando a representação da besta. O artista sobrepõe ainda vários ziguezagues para enfatizar o clima de destruição, dramatismo e dor. Todavia, uma haste de folhagem reaparece novamente, marcando todo o quadro numa linha ascencional de índole promissora.


126


127

Capítulo XVII E um dos sete anjos com as sete taças veio falar comigo, dizendo: «Vem cá: mostrar-te-ei o castigo da grande prostituta, a que se senta sobre muitas águas, com quem os reis do mundo fornicaram; e os habitantes da terra foram embebedados com o vinho da fornicação dela.» E levou-me para um deserto, em espírito. E vi uma mulher sentada sobre uma besta escarlate, cheia dos nomes da blasfémia, com sete cabeças e dez chifres. E a mulher estava vestida de púrpura e de escarlate e estava adornada com ouro e pedras preciosas e pérolas, tendo uma taça dourada na mão dela, cheia de abominações e com as impurezas da sua fornicação. E na testa dela ‘está’ um nome escrito, um mistério: «Babilónia, a Grande, A mãe das prostitutas e das abominações da terra.» E vi a mulher bêbada com o sangue dos santos e com o sangue das testemunhas de Jesus. E vendo-a, espantei-me com grande espanto. E o anjo disse-me: «Porque te espantas? Eu dir-te-ei o mistério da mulher e da besta que a leva, ‘da besta’ que tem as sete cabeças e os dez chifres. A besta que viste era e não é; e está para subir do abismo e avançar para ‘a’ destruição; e espantar-se-ão os habitantes da terra, cujos os nomes não foram escritos no livro da vida desde ‘a’ fundação do mundo ao verem a besta que era, e não é, e que estará presente. Aqui ‘entra em ação’ a mente que tem sabedoria: as sete cabeças são sete montanhas, onde a mulher se senta; e há sete reis. Cinco caíram; um está ‘presente’; o outro ainda não chegou, e quando chegar é preciso que fique pouco tempo. E a besta que era, e não é, é ela própria um oitavo ‘rei’ e faz parte dos sete e avança para ‘a’ destruição. E os dez chifres que viste são dez reis, os quais não receberam ainda um reino, mas recebem autoridade como reis durante uma hora, juntamente com a besta. Estes têm uma só opinião e oferecem à besta o seu poder e autoridade. Estes guerrearão com o Cordeiro e o Cordeiro vencê-los-á, porque é Senhor de senhores e Rei de reis e os que estão’ com ele ‘são’ chamados escolhidos e fiéis. E diz-me: «As águas que viste onde se senta a prostituta são povos e multidões e nações e línguas. E os dez chifres que viste, e a besta, estes odiarão a prostituta e fá-la-ão desolada e nua; e comerão as carnes dela e queimá-la-ão no fogo. Pois Deus deu aos corações deles ‘a vontade’ de fazer o Seu desígnio e de realizar um ‘só’ propósito e dar o reino deles à besta, até que as palavras de Deus se


128

cumpram. E a mulher que viste é a cidade, a Grande, detentora de realeza sobre os reis da terra.»

O autor desta narrativa é conduzido até ao deserto para conhecer a figura da grande Babilónia tratada como a personificação de uma meretriz. E vi uma mulher sentada sobre uma besta escarlate, com sete cabeças e dez chifres. Vestida de púrpura e de escarlate e adornada com ouro e pedras preciosas e pérolas, tinha na testa um nome escrito: Babilónia, a Grande. O anjo disse a João que há um mistério entre a mulher e a besta. Neste ponto, ‘entra em ação’ a mente que tem sabedoria: as sete cabeças são sete montanhas, onde a mulher se senta; e há sete reis mas haverá um oitavo que também avançará para a destruição. Mais outros dez reis irão sucumbir vencidos pelo Cordeiro e os que estão com ele são chamados escolhidos e fiéis. As águas que viste onde se senta a prostituta são povos e multidões e nações e línguas. Durante um tempo os reis terão uma só opinião, oferecendo à besta o seu poder e autoridade. Estes guerrearão com o Cordeiro e o Cordeiro vencê-los-á.

Luís Athouguia elege quatro maciços e monumentais elementos de cor laranja, numa eventual alusão às colunas de tijolo da Grande Babilónia. No primeiro plano, o pintor alude de uma forma discreta ao ambiente carnal da cidade pecadora, destacando-se, ao centro, a figura erotizada da mulher, que representa a meretriz. Num plano mais recuado, no centro da composição, o artista desenha um círculo amarelo, sucedâneo do mostruário de um relógio, numa alusão ao tempo em que os setes reis governaram a terra sob a autoridade da besta. De novo, reaparece uma haste de folhagem ascencional que remete para a Ilha de Patmos, ligando a terra e o céu e que conduz o olhar do espectador para o alto. Sobre o céu, figuram quatro elementos esparsos e fora do tempo. Recordam e acentuam o poder do Senhor: a pomba branca, os dois peixes cristológicos, o Anjo/Arauto medalhado e o Olho que tudo vê.


129


130

Capítulo XVIII Depois destas coisas, vi outro anjo descendo do céu, com grande autoridade; e a terra ficou iluminada a partir da sua glória. E ele gritou com voz ingente, dizendo: «Caiu, caiu Babilónia, a Grande! E tornou-se habitação de demónios E a prisão de todo o espírito impuro, E a prisão de toda a ave impura E a prisão de toda a besta impura e odiada. Porque do vinho do furor da sua fornicação Beberam todas as nações; E os reis da terra fornicaram com ela; E os comerciantes da terra enriqueceram-se A partir do poder da sua luxúria.» E ouvi outra voz, dizendo: «Saí dela, meu povo, Para que não partilheis os seus pecados E para que não recebeis das suas pragas; Porque os pecados dela foram amontoados até ao céu E Deus recordou as suas iniquidades. Pagai-lhe ‘na medida’ como ela própria pagou; E pagai-lhe a dobrar, duas vezes de acordo com as suas obras. Na taça que ela misturou, Misturai para ela o dobro. Tanto quanto ela se glorificou e se luxuriou, Na mesma medida lhe dai tortura e sofrimento. Porque no seu coração ela diz: “Sento-me ‘como’ a rainha, E não sou viúva


131

E sofrimento ‘do luto’ não verei.” Por causa disto, as suas pragas virão um dia, Morte, miséria e fome, E ela será queimada no fogo, Porque poderoso ‘é o’ Senhor Deus, Ele que a julgou.» E chorarão e gemerão sobre ela os reis da terra que com ela fornicaram e viveram luxuosamente, quando virem o fumo da sua incineração de pé, ao longe (por causa do medo do tormento dela), dizendo: «Ai, ai da cidade, a Grande! Babilónia, a cidade, a Poderosa! Porque em uma hora chegou o teu julgamento» E os comerciantes da terra choram e sofrem por ela, porque a carga deles já ninguém compra, carga de ouro e de prata e de pedras preciosas e de pérolas e de linho e de ‘vestes’ purpúreas e sedosas e de escarlate e de toda a amadeira odorífera e todo o artigo de marfim e todo o artigo de madeira preciosíssima e de bronze e de mármore e de ferro e de mármore; e canela e especiarias e fragrâncias e mirra e incenso e vinho e azeite e finíssima farinha e trigo e gado e ovelhas; e ‘carga de’ cavalos e de carros e de corpos e almas de seres humanos. «E o teu fruto maduro do desejo da alma Afastou-te de ti; E todas as coisas brilhantes e esplêndidas se afastaram de ti; E eles já não as encontrarão.» Os comerciantes destas coisas, os que se tinham enriquecido por causa dela, ficarão de pé, à distância, por causa do medo do tormento dela, chorando e sofrendo, dizendo: «Ai, ai da cidade, da Grande! Tendo sido vestida de linho e de púrpura e de escarlate, E dourada com ouro e pedras preciosas e pérola: Porque numa ‘só’ hora ficou devastada uma tal riqueza.» E todo o piloto e todo o que navega para um sitio e nautas e todos quanto trabalham o mar ficaram de pé à distância, e gritaram ao ver o fumo da sua


132

incineração, dizendo: Quem ‘é’ semelhante à cidade, a Grande?» E atiraram pó sobre as suas cabeças e gritavam, chorando e sofrendo, dizendo: «Ai, ai da cidade, da Grande! Na qual se enriqueceram todos os que têm os barcos No mar por causa da preciosidade dela! Porque numa ‘só’ hora ficou devastada.» »regozija-te sobre ela, ó Céu; E ‘vós’ os santos e os apóstolos e os profetas! Porque Deus ditou a vossa sentença a partir dela.» E um anjo poderoso levantou uma grande pedra como uma grande mó de moinho e atirou-a ao mar, dizendo: «Assim num lance será lançada Babilónia, a Grande cidade, E não mais será encontrada. E o som de citaristas e de músicos E de tocadores de flauta e de trombeta Não mais será ouvido em ti; E todo o artista de toda a arte Não mais será encontrado e ti; E uma voz de mó Não mais será ouvida em ti; E uma luz de candeia Não mais brilhará em ti; E uma voz de noivo e de noiva Não mais será ouvida em ti: Porque os teus comerciantes foram os grandes da terra; Porque pela tua feitiçaria todas as nações foram enganadas.» E nela foi encontrado o sangue de profetas e de santos e de todos os que foram degolados à face da Terra.


133

Um anjo anuncia a queda da Babilónia e de todos os reis que lidaram com ela. Desaparece então a abundância e toda a sorte de víveres e de produtos de luxo, bem como a carga de cavalos e de carros e de corpos e almas de seres humanos. O autor do Apocalipse ouve outra voz, avisando o povo para abandonar a cidade para se livrar das suas pragas: a Morte, a Miséria e a Fome. Na verdade, o texto vaticina que o grande império das mercadorias de toda a ordem se desmorona, convidando todos os povos a sairem da cidade que o texto designa como a grande Babilónia… porque todas as nações foram enganadas pelas tuas feitiçarias. Ricamente adornada, a urbe será queimada no fogo, estando vestida de linho e de púrpura e de escarlate e dourada com ouro e pedras preciosas e pérola. O desaparecimento da cidade será abrupto e definitivo pois, numa hora, toda a riqueza será devastada. E um anjo poderoso levantou uma grande pedra como uma grande mó de moinho e atirou-a ao mar, exemplificando assim como, num lance, Babilónia desaparecerá e não mais será encontrada.

Luís Athouguia situa-se num tempo babilónico, colocando em primeiro plano, sobre um fundo negro, três enigmáticas figurações representando a luxúria: uma enorme pérola branca e um vaso intemporal de perfumes e bálsamos que equivalem ao mundo dos bens, do poder e do prazer. Num segundo plano, paira um imenso fumo cor de rato que parece aludir à destruição da Babilónia, dos seus habitantes e de todas as maléficas criaturas. O Anjo/Arauto, inscrito num medalhão, domina a composição ao alto. Sopra com vigor provocando a destruição da cidade pecaminosa e das suas artes. Atravessando toda a imagem, a haste de folhagem ascende ondulante até ao Olho que tudo observa. Rematando ao alto, a toda a largura do suporte, reaparece um friso de geometrias polícromas alinhadas. Constitui um ícone já usado pelo artista no capítulo 15 e parece aludir aos povos que foram avisados para deixar a cidade.


134


135

Capítulo XIX Depois destas coisas, ouvi ‘algo’ como uma voz ingente de uma numerosa multidão no céu, dizendo: «Aleluia! A salvação e a glória e o poder do nosso Deus! Porque ‘são’ verdadeiras e justas as suas sentenças. Porque julgou a grande prostituta, Que corrompera a terra com a sua fornicação; E vingou o sangue dos seus escravos da mão dela.» E disseram, em segundo lugar: «Aleluia! E o fumo dela sobe pelos séculos dos séculos.» E caíram ‘ao chão’ os anciãos, os vinte e quatro, e as quatro criaturas vivas e adoraram a Deus, sentado no trono, dizendo: «Amém! Aleluia!» E uma voz veio do trono, dizendo: «Louvai o nosso Deus, Todos ‘vós que sois’ Seus escravos E ‘vós’ que O temeis: Os pequenos e os grandes.» E ouvi ‘algo’ como uma voz de numerosa multidão e como voz de águas abundantes e como voz de fortes trovões, dizendo: «Aleluia! Porque reinou o Senhor Nosso Deus, o Todo-Poderoso. Regozijemo-nos e exultemos e demos-Lhe a glória, Porque chegou a boda do Cordeiro e a esposa dele já se preparou; E foi-lhe dado vestir-se de linho luminoso e puro.» Pois o linho é as obras justas dos santos.


136

E diz-me: «Escreve: “Bem aventurados os convidados para a ceia da boda do Cordeiro. E ele diz-me: «Estas são as palavras verdadeiras de Deus.» E eu cai diante dos seus pés para me prostrar à frente dele. E ele diz-me: «Olha – não! Sou também escravo como tu e como os teus irmãos detentores do testemunho de Jesus. Prostra-te diante de Deus. Pois o testemunho de Jesus é o espírito da profecia.» E vi o céu aberto e eis um cavalo branco! E sentado nele o que é chamado fiel e verdadeiro; ‘ele que’ julga com justiça e guerreia. Os seus olhos ‘são’ como chama de fogo; e sobre a sua cabeça ‘estão’ muitos diademas com um nome escrito, o qual ninguém conhece a não ser ele; e está vestido com uma veste embebida em sangue. E chama-se o nome dele o verbo de Deus. E os exércitos no céu seguiam-no montados em cavalos brancos, vestidos de linho branco ‘e’ puro. E da boca dele sai uma espada afiada, para que com ela fira as nações; e ele próprio os apascentará com férreo bastão; e ele próprio pisa o lagar do vinho da fúria da ira de Deus Todo-Poderoso. E tem na veste e na sua coxa um nome escrito. Rei de reis e Senhor de senhores. E vi um anjo de pé no Sol e gritou com voz ingente, dizendo a todas as aves que voam pelo meio do céu: «Vinde, reuni-vos para a grande ceia de Deus, para que comeis carnes de reis e carnes de quiliarcas e carnes de capitães e carnes de cavalos e dos que neles montam; e carnes de todos, livres e escravos, pequenos e grandes.» E vi a besta e os reis da terra e os seus exércitos, tendo-se reunido para fazer a guerra com o que está montado no cavalo e com o seu exercito. E a besta foi capturada, e com ela o falso profeta – aquele que fizera prodígios diante dele, pelos quais enganara os que tinham recebido a marca da besta e os que adoram a imagem dela. Vivos, foram lançados os dois para o lago de fogo ardendo com enxofre. E os restantes foram mortos com a espada do qual está montado no cavalo – a espada que lhe saíra da boca. E todas as aves se fartaram com as carnes deles.

Uma numerosa multidão no céu expressa a sua alegria pela glória do Senhor, porque salvou os homens de serem escravos da Babilónia e esta irá esfumar-se para sempre. De seguida prostraram-se os 24 anciãos e os evangelistas, glorificando o Senhor. Chegara a hora da boda do Cordeiro e da esposa dele, Nova Jerusalém, vestindo de linho puro. Bem-aventurados os convidados para a ceia da boda, os detentores do testemunho de Jesus. O autor do Apocalipse anuncia que vê


137

um cavalo branco, montado por aquele que é chamado fiel e verdadeiro. A túnica parece embebida em sangue com um nome escrito: Rei de reis e Senhor de senhores. Tem a cabeça coroada com muitos diademas e um nome que ninguém conhece. Posteriormente, um anjo de pé no Sol convida todas as aves de rapina para cearem carnes de reis, de patriarcas, de capitães, de soldados, de livres e de escravos. Seguidamente, João vê a besta e o falso profeta serem capturados e atirados ao fogo. As restantes pessoas foram mortas com a espada de Cristo. E todas as aves se fartaram com as carnes deles.

Luís Athouguia concebe esta composição, desenhando, de baixo para cima, elementos simétricos frontais, encimados por uma figura de cavaleiro alado que se eleva para o céu, parecendo expressar um sentimento da alegria: Aleluia! Pois já o Senhor Deus Todo-Poderoso reina. O artista apresenta uma dualidade de campos visuais. A pintura está organizada com diferentes pares de elementos figurativos. Ao centro, uma forma que parece um pulmão/coração negro, tem inscritos os 24 anciãos prostados. Esta mancha está assente em dois elementos de recorte floral, no interior dos quais estão sentados dois pares de animais afrontados. Por sua vez, cada um destes elementos está apoiado num cone colorido. Ladeando o pulmão/coração estão desenhados, à esquerda, o peixe cristológico e um pássaro espectante e, à direita, uma ave esvoaçante, e dois peixes soprando em uníssono. A configuração do pulmão que se assemelha a um tronco humano, acrescida das suas articulações/membros, lembra um corpo em Vitória. A policromia, através das tonalidades diferenciadas, confere um sentido de elevação, num crescendo de luminosidade. Afirma que tudo o que se ergue da terra, passando do cinza ao amarelo e deste para o negro da morte, ascende por fim à luz num áureo radioso.


138


139

Capítulo XX E vi um anjo a descer do céu, segurando a chave do abismo e uma grande corrente na sua mão. E agarrou no dragão – a serpente, a antiga – que é o diabo e satanás. E acorrentou-o durante mil anos e atirou-o para o abismo e fechou ‘o abismo’ e selou-o por cima dele, para que não ludibriasse mais as nações até que se cumprissem os mil anos. Depois destas coisas é preciso que ela seja liberto por pouco tempo. E vi tronos; e eles sentavam-se em cima deles; e era-lhes dado julgamento. E ‘vi’ as almas dos que tinham sido decapitados devido ao testemunho de Jesus e devido à palavra de Deus. E aqueles que não tinham adorado a besta nem a imagem dela e não receberam a marca na testa e nas suas mãos: também estes vieram e reinaram com Cristo durante mil anos. Os demais mortos não vieram até se cumprirem os mil anos. Esta é a primeira ressurreição. Bem-aventurado e santo o que tem parte na primeira ressurreição. Sobre estes a segunda morte não tem autoridade, mas serão sacerdotes de Deus e de Cristo e reinarão com ele durante mil anos. E quando se cumprirem os mil anos, Satanás será liberto da sua prisão e sairá para enganar as nações nos quatro cantos do mundo, Gog e Magog, para os reunir para a guerra, ‘eles’ cujo nome ‘é’ como a areia do mar. E subiram para a planície da terra e cercaram o acampamento dos santos e a cidade amada e desceu fogo do céu e devorou-os. E o diabo, aquele que os engana, foi lançado para dentro do lago de fogo e de enxofre, onde a besta e o falso profeta também ‘se encontram’. e eles serão torturados de dia e de noite pelos séculos dos séculos. E vi um grande trono branco e aquele que nele se senta, de cujo rosto a terra e o céu fugiram e lugar não foi encontrado para eles. E vi os mortos, os grandes e os pequenos, de pé diante do trono; e os livros estavam abertos. E outro livro foi aberto, que é o ‘livro’ da vida. E os mortos foram julgados a partir de coisas escritas nos livros, segundo as suas ações. E a morte e o Hades foram lançados para o lago de fogo. Esta é a segunda morte, o lago de fogo. E se alguém não foi encontrado, escrito no livro da vida, foi atirado para o lago de fogo.

O autor do Apocalipse vê um anjo com a chave do abismo e uma grande corrente na sua mão. Com esta, prende a Besta/dragão, fecha-a e sela o abismo por mil anos. Cristo voltará a reinar e será dado julgamento às almas. Esta é a primeira ressurreição. Mais tarde, Satanás será liberto da sua prisão para enganar as nações nos quatro cantos do mundo, mas acabarão por ser torturados de dia e de noite pelos séculos dos séculos. João assiste então ao juízo final: vê os mortos de


140

pé, diante de um grande trono, a serem julgados segundo as suas ações, a partir de coisas escritas nos livros. É neste momento que ocorre a segunda morte e se alguém não foi encontrado, escrito no livro da vida, será lançado para o lago de fogo.

Luís Athouguia centra a composição na figura da Besta triplamente assinalada pela cabeça do Dragão, a Serpente nele enroscada, e o número 666. Adivinha-se uma ideia de queda. Satanás está prestes a ser engolido por um turbilhão de água que o conduzirá ao abismo. Ao alto, está figurada a corrente que o prendeu e a chave que irá fechar o abismo. Medalhado, como vem sendo recorrente, encontra-se o Anjo/Arauto soprando a voz de Deus. Do topo da pintura pendem oito tentáculos policromados sobre um fundo forte e luminoso. Em contraponto e rematando a linha inferior do suporte, está figurado um friso de geometrias polícromas alinhadas, como se fossem uma orla de estacas. Representam provavelmente os eleitos.


141


142

Capítulo XXI E vi um céu novo e uma terra nova. é que o primeiro céu e a primeira terra tinham passado, e o mar já não existe. E vi a cidade santa, ‘a’ nova Jerusalém, descendo do céu ‘vinda’ de Deus, tendo-se preparado como uma noiva adornada para o seu marido. E ouvi uma voz ingente do trono, dizendo: «Eis o Tabernáculo de Deus no meio dos seres humanos. E Ele habitará com eles e eles serão os Seus povos; e Ele próprio estará com eles ‘como’ Deus deles. E limpará cada lágrima dos seus olhos e a morte não existirá, nem o luto nem o pranto nem a dor, não existirão mais, porque as coisas passadas passaram.» E disse o Sentado no trono: «Eis que faço novas todas as coisas.» E diz: «Escreve ‘isto’ porque estas palavras são confiáveis e verdadeiras. E disse-me: «Aconteceram! Eu sou o alfa e o ómega, o princípio e o fim. Ao sedento eu darei da fonte da água da vida gratuitamente. O vencedor herdará estas coisas e serei para ele Deus e ele será para mim um filho. Aos cobardes e descrentes e abomináveis e assassinos e fornicadores e feiticeiros e idólatras e todos os mentirosos: a parte deles ‘está’ no lago ardendo de fogo e enxofre, que é a segunda morte.» E veio um dos sete anjos, dos que têm as sete taças cheias das sete últimas pragas, e me falou dizendo: «Vem cá, mostrar-te-ei a noiva, a esposa do Cordeiro.» E levou-me em espírito para uma montanha enorme e alta; e mostrou-me a cidade santa, Jerusalém, descendo do céu ‘vinda’ de Deus, tendo a glória de Deus. A sua luminosidade ‘era’ semelhante a uma pedra preciosíssima, como uma pedra de jaspe cristalina, tendo uma grande e alta muralha e doze portões; e nos portões ‘estão’ doze anjos e os nomes gravados são os nomes das doze tribos de Israel. A leste ‘estão’ três portões; e a norte, três portões; e a sul, três portões; e a oeste, três portões. E a muralha da cidade tem doze alicerces; e neles ‘estão os’ doze nomes dos doze apóstolos do Cordeiro. E aquele que fala comigo tinha uma cana dourada para medir, para que medisse a cidade e os portões dela e a muralha dela. E a cidade jaz quadrangular e o seu comprimento ‘é’ tanto quanto a sua largura. E mediu a cidade com a cana: tinha doze mil estádios. O comprimento e a largura e a altura dela são iguais. E mediu a sua muralha: cento e quarenta e quatro côvados ‘segundo a’ medida do ser humano; que é ‘a medida’ do anjo. E a estrutura da sua muralha ‘era’ jaspe; e a cidade ‘era’ ouro puro semelhante a puro vidro. Os alicerces da muralha da cidade estão adornados com toda a pedra preciosa. O primeiro alicerce: jaspe. O segundo: safira. O terceiro: calcedónia. O quarto: esmeralda. O quinto: sardónica. O sexto: sárdio. O sétimo: crisólito. O oitavo: berilo. O nono: topázio. O décimo: crisópraso. O décimo primeiro: jacinto. O décimo segundo: ametista. E


143

os doze portões ‘eram’ doze pérolas: cada um dos portões era de uma pérola; e a rua da cidade ‘era’ ouro puro, como vidro transparente. E não vi templo nela, porque o Senhor Deus Todo-Poderoso é o seu templo, assim como o Cordeiro. E a cidade não precisa do Sol nem da Lua, para que nela brilhassem; pois a glória de Deus iluminou-a; e a sua candeia é o Cordeiro. E as nações caminharão através da sua luz e os reis da terra trar-lhe-ão a sua glória. E os seus portões não ficarão fechados de dia, pois ali não haverá noite. E trarão a glória e a honra das nações para dentro dela. E não entrará nela qualquer coisa profana, nem quem cometa abominação ou mentira; ‘só entrarão’ aqueles que foram escritos no livro da vida do Cordeiro.

O autor do Apocalipse refere que teve uma visão da Cidade Santa (a Nova Jerusalém), preparada como uma noiva para o seu marido. E a voz vinda do trono dizia: Eis o Tabernáculo de Deus no meio dos seres humanos. Não haverá mais morte nem sofrimento nem dor: tudo isso serão coisas passadas. E o que eu digo acontecerá! Eu sou o alfa e o ómega, o princípio e o fim. Darei da fonte da água da vida e o vencedor herdará as coisas de Deus e será como um filho. Os descrentes e abomináveis sofrerão uma segunda morte, ardendo de fogo. Surge então um dos sete anjos que têm as taças das pragas, mostrando a Nova Jerusalém, descrevendo o seu tamanho, a sua forma cúbica e os preciosos metais nobres e gemas de que é construída. E a cidade não precisa do Sol nem da Lua, para que nela brilhassem; pois a glória de Deus iluminou-a; e a sua candeia é o Cordeiro. Na Nova Jerusalém só entrarão aqueles que foram escritos no livro da vida do Cordeiro, os eleitos que viverão eternamente. Luís Athouguia desenha mais uma vez o medalhão do Anjo/Arauto soprando os desígnios divinos. Introduz também um enorme e fortíssimo feixe de luz que, vindo da direita alta, se projeta sobre um quadrado verde que representa simbolicamente a Nova Jerusalém. Toda a imagem tem um fundo escuro porque a Cidade Santa não precisa do sol nem da lua. A forma quadrangular desdobra-se em quatro outros quadrados, numa alusão à estrutura da Cidade, cujos portões o pintor figurou em número de doze, tantos quantas as tribos de Israel. No interior da cidade, encontram-se os eleitos, figurados no friso de geometrias policromadas que o pintor vem utilizando. Muito embora, a dominância do sentido desta imagem seja de júbilo pela chegada final dos eleitos à Nova Jerusalém, os excluídos estão também representados, figurados no primeiro plano, em dois pares de fornicadores. A eixo, no sentido vertical, pairam uma mulher e um pássaro branco e luminoso de contornos de difícil leitura. Podem remeter para uma poética intimista do artista ou para uma simbologia cristã, referente à salvação das almas por interceção do Espírito Santo e da Mulher. Recorrentes, crescem onduladamente duas hastes de folhagem, animando toda a cena.


144


145

Capítulo XXII E mostrou-me um rio de água viva, brilhante como cristal, fluindo do trono de Deus e do Cordeiro. No meio da sua rua e do rio, de um lado e de outro, ‘estava’ uma árvore de vida, que produz doze frutos, dando o seu fruto consoante cada mês; e as folhas da árvore ‘servem’ para cura das nações. E toda a coisa maldita já não existirá. E o trono de Deus e do Cordeiro estará nela; e os escravos d’Ele servi-lo-ão e verão o Seu rosto; e o nome d’Ele ‘estará’ nas suas testas. E já não haverá noite e não precisarão da luz da candeia e de luz solar, porque o Senhor Deus iluminá-lo-á; e reinarão pelos séculos dos séculos. E disse-me: «Estas palavras ‘são’ confiáveis e verdadeiras e o Senhor Deus dos espíritos enviou o Seu anjo para mostrar aos Seus escravos o que deve acontecer depressa. E eis que chego depressa. Bem-aventurado o que observa as palavras da profecia deste livro.» E eu, João, ‘sou’ quem ouve e vê estas coisas. E quando ouvi e vi, caí ‘ao chão’ para me prostrar diante dos pés do anjo que me mostrou estas coisas. E diz-me: «Olha – não! Sou escravo como tu assim como os teus irmãos, os profetas, e os que observam as palavras deste livro. Prostra-te diante de Deus.» E diz-me: «Não seles as palavras da profecia deste livro, pois o tempo está próximo. Que o injusto pratique ainda injustiça; que o imundo seja ainda imundo; e que o justo pratique ainda a justiça; e que o santo, seja ainda santo.» Eis que chego depressa. E a minha recompensa ‘chega’ comigo, para dar a cada segundo a sua obra. Eu sou o alfa e o ómega, o primeiro e o último, o princípio e o fim.» Bem aventurados os que lavam as suas vestes, para que obtenham direito à árvore da vida e pelos portões entrem na cidade. De fora ‘ficam’ os cães e os feiticeiros e os fornicadores e os assassínios e os idólatras e todo aquele que ama e pratica a mentira. «Eu, jesus, enviei o meu anjo para vos testemunhar estas coisas nas assembleias. Eu sou a raiz e a descendência de David, a estrela brilhante da manhã.» E o espírito e a noiva dizem: «Vem!» E quem ouve que diga: «Vem!» E quem tem sede, que venha; e quem queira, que tome gratuitamente água de vida. Testemunho perante todo o ouvinte as palavras da profecias deste livro. Se alguém acrescentar a estas coisas, Deus acrescentar-lhe-á as pragas escritas neste livro. E se alguém retirar ‘algo’ às palavras do livro desta profecia, Deus retirar-lhe-á a sua parte da árvore da vida e da cidade santa, escritas neste livro. Diz quem testemunha estas coisas: «Sim, chego depressa.»


146

Amém. Vem, Senhor Jesus! A graça do Senhor Jesus ‘esteja’ como todos.

João foi conduzido por Deus a um lugar no Céu onde corre um rio de água viva. No meio ‘estava’ o trono de Deus e do Cordeiro e uma árvore de vida, que produz doze frutos, e as folhas da árvore ‘servem’ para cura das nações… E toda a coisa maldita já não existirá. O Senhor Deus reinará para sempre e iluminará a todos. Bem-aventurado o que observa as palavras da profecia deste livro. É sempre João quem ouve e vê estas coisas… E Deus diz-lhe: Não seles as palavras da profecia deste livro, pois o tempo está próximo. De fora ‘ficam’ os cães e os feiticeiros e os fornicadores e os assassínios e os idólatras e todo aquele que ama e pratica a mentira. Jesus enviou um anjo para testemunhar estas coisas nas assembleias. E o espírito e a noiva dizem: «Vem!»… E quem tem sede, que venha; e quem queira, que tome gratuitamente água de vida. Deus castigará quem adulterar esta profecia. A graça do Senhor Jesus ‘esteja’ com todos.

Luís Athouguia cria pela primeira vez um fundo luminoso que é dominante, onde introduz, à guisa de conclusão, os elementos imaginários com que vem traduzindo a sua interpretação do Apocalipse. Reaparece o Olho de Deus cuja íris corresponde ao símbolo da Paz, desígnio final do Senhor. Este olho tem um poderoso sobrolho vermelhão, acima do qual se encontra uma figura astral, em forma de gota, rodeada de pequenas esferas coloridas que parecem aludir às doze tribos de Israel. Lateralmente, sobre a direita, reconhece-se a Mulher simbolizando a Igreja? Encaminha-se destemida, convicta e afoita para a esquerda, onde paira uma estrela vibrante que tem inscrito um triângulo emblemático. E o espírito e a noiva dizem: Vem!…No patamar superior, corre um rio de água viva. No plano inferior, estão figurados os condenados, isolados num ambiente subterrâneo e obscuro. Sobre eles evocam-se as colossais montanhas/portões da Cidade Santa, a que ascende um homem vitorioso. Numa linha ascensional, estão representados mais dois homens que sobem em direção ao prometido céu, encaminhados pela pomba/espírito? Luís Athouguia pinta pela última vez o Anjo/Arauto com o seu sopro de inspiração divina. O medalhão, assente sobre a Terra, remete para o local onde João recebeu e deu testemunho da voz do Céu, nas vinte e duas profecias do Apocalipse.


147


148

Iconografia

Luís Athouguia mostra, através da sua pintura, pedaços de sonho, jardins para os nossos olhos passearem, lembranças obscuras, iluminações intermitentes, palavras tresmalhadas, janelas da sua alma e a sua natural respiração. Pode dizer-se que se está perante uma caligrafia cujos códigos e significado nos são, por momentos, desconhecidos mas que, numa sucessão cronológica, se vão encadeando ao longo das vinte e duas profecias do Apocalipse.

O artista criou uma iconografia própria para ilustrar um texto metafórico de difícil interpretação. Ao desejar expressar o seu entendimento do Apocalipse, criou um alfabeto de formas que vem desenvolvendo na sua extensa obra. Ao longo das suas vinte e duas pinturas dedicadas ao texto sagrado, Luís Athouguia recorre à sua gramática pictural, inovando, contudo, a linguagem. Reconhecem-se figurações de diversa tipologia como o Olho de Deus, de variadas dimensões e cores; a Águia joanina, sempre de perfil e com o bico acentuado; a cabeça do Anjo/Arauto com o rosto de perfil soprando vigorosamente e, em diversas policromias e orientações; a Besta, com quatro imagens: dragão das sete cabeças, a serpente, o monstro dos sete chifres e o número 666. Na verdade, estes personagens constituem os intervenientes determinantes da tragédia humana ao longo dos tempos que passa por diferenciados períodos de fortes características devastadoras. Todavia, os homens vão resistindo à sua condenação eterna, graças à ajuda do Cordeiro.

Existem ainda figuras de anjos que, umas vezes, são representadas de um modo simbólico e outras, menos frequentemente, de uma forma antropomórfica, enquanto os Evangelistas são representados pelos seus atributos. Os seres humanos, homens e mulheres, são tratados esquematicamente e diferenciados pelo seu traje. Aparecem na ilustração dos capítulos em diversas ações, ora como pecadores, em fornicação, ora como vencedores, ostentando flâmulas ou estandartes, segundo a situação a que o texto alude. Por dois momentos, Luís Athouguia socorre-se daquelas figuras esquemáticas para representar os 24 anciãos do Apocalipse que podem corresponder aos 12 Apóstolos conjugados com as 12 tribos de Israel. A figuração humana surge também isolada, o que indica, quase sempre, a sua maior intervenção na trama do Apocalipse.

A figura do cavaleiro surge várias vezes no desenrolar dos acontecimentos. Destaca-se o grupo dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse, como grandes atores emblemáticos do texto sagrado. Todos eles estão inseridos num círculo, mas


149

diferenciam-se pela cor e pelas funções: o cavaleiro do cavalo branco tem um arco que é o símbolo da guerra, o cavaleiro do cavalo cor de fogo tem uma espada e vem tirar a paz, o cavaleiro do cavalo preto não tem atributo mas vem para trazer equilíbrio. O cavaleiro negro representa o sofrimento e a morte. São estes cavaleiros, os que hão-de vir para alertar os povos para o dia da Ira de Deus.

A figura feminina aparece nas últimas imagens de uma forma mais destacada, parecendo representar ou a Mulher, mãe do Cordeiro, ou a Igreja. Todavia, o pintor para representar a Grande Babilónia recorre a uma figura feminina erotizada. Luís Athouguia representa também aves de diversas proporções e cores, salientando-se, de vez em quando, um pássaro branco que pode sugerir a pomba do Espírito Santo. Os peixes aparecem em grupo e soprando uma energia divina, constituindo sinais significantes da simbologia cristã. O pintor também introduz parcelas arquitetónicas como portas, portões, pilares, rampas, escadas, poços e, por uma vez, o edifício de uma igreja com sua torre sineira que se reporta à Cidade Santa ou à Nova Jerusalém.

Pairam na esmagadora maioria das suas pinturas diversos elementos naturais como hastes de folhagem, rios, lagos ou mares, nuvens e relâmpagos. Acontecem ainda pequenas figuras geométricas como esferas policromadas e gotas ou lágrimas de diferentes dimensões que representam emoções, de sofrimento ou de regozijo. Encontram-se ainda figuras cósmicas como o sol, a lua e as estrelas. Deve ainda citar-se a presença de alguns objetos de significado bíblico como o altar, os candelabros, o vaso de perfumes e bálsamos, o livro, a chave, a corrente e a espada. Num outro registo pictural, existem geometrias polícromas alinhadas, formando um compacto muro que parece corresponder à presença de multidões.

Luís Athouguia organiza as suas composições em dois planos, um de terra/mar e outro de céu, definindo a linha do horizonte. Em algumas imagens, estes planos são intercecionados por acentuadas figuras geométricas como cones, círculos ou ovais, em que o pintor inscreve figuração, diferenciando assim, os múltiplos tempos narrativos do texto sagrado, de cronologia profética. Nesta análise da iconografia, é fundamental atender ao tratamento e à relevância com que cada cor é usada para definir personagens, tempos, e geografias, encenando narrativas. A qualidade cromática constitui mesmo um elemento fundamental da produção autoral de Luís Athouguia. Existe uma dominância das primárias, que são aplicadas em largas manchas contornadas a preto. O pintor serve-se ainda do preto para o contorno de figuras e objetos. Convém ainda salientar que o artista usa tanto


150

o preto com outras cores para desenhar a variada tipologia das suas figurações, tendo o espetador a noção de que a grafia se encontra subjacente à pintura.

Todas estas formas conjugam-se para integrarem composições surreais cujos fundos são, ora de céu azul ou dourado, ora de terra lamacenta, ora em rios de sangue. O pintor deambula entre registos de valores naturalistas, simbólicos e espirituais, criando atmosferas de índole fortemente dramática, deixando-nos, contudo, uma marca de aliança entre Deus e os Homens. Numa linha civilizacional do Ocidente, o artista evoca o milenar símbolo cristão da Paz, divulgado por Picasso após a II guerra Mundial e utilizado, desde então, nas campanhas de desarmamento nuclear. Coloca este símbolo no Olho de Deus, defendendo que a Paz é o novo nome do Amor. É esta esperança que melhor define as Paisagens metafóricas de Luís Athouguia.

Madalena Braz Teixeira Lisboa, 30 de Junho de 2017


151

BIBLIOGRAFIA

ALFARO, Catarina, Amadeo de Souza-Cardoso. Fotobiografia, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Assírio & Alvim, 2006 ALMEIDA, Bernardo Pinto de, Força da Imagem. O Surrealismo, Porto, Campo das Letras, 2007. LOURIDO, Rui d’Ávila (coord.), Malangatana: o homem e as obras, Lisboa: ed. UCCLA, 2011. ALMEIDA, Bernardo Pinto de (coord.), Cruzeiro Seixas, Vila Nova de Famalicão, Fundação Cupertino de Miranda, 2000. ALMEIDA, João Ferreira Annes de, Apocalipse ou Revelação do Apóstolo S. João, o Teólogo, Lisboa, Edição Presente, 2011. [https://pt.wikipedia.org/wiki/João_Ferreira_de_Almeida,1628-1691] AVILLEZ, Martim, Apocalipse do Apóstolo João, Lisboa, Ed. Afrodite, 1972. FERREIRA, Emília (coord.), Malangatana: novos sonhos a preto e branco, [Catálogo] Almada, Câmara Municipal de Almada - Centro de Arte Casa da Cerca, 2010. FRANÇA, José-Augusto, Amadeo e Almada, Lisboa, Bertrand, 1983. FRANÇA, José-Augusto, A Arte em Portugal no século XX, Lisboa, Livros Horizonte, 4.ª ed. 2009 (1.ª ed. 1974). GONÇALVES, Rui Mário, “Um olhar sobre Malangatana”, In: Cadernos do terceiro mundo, n.º 58 (Novembro 1983), p. 77-78. GONÇALVES, Rui Mário, A Arte Portuguesa do século XX, Lisboa: Temas e Debates, 1998. GONÇALVES, Rui Mário, “O talento multifacetado de Cesariny”, Diário de Notícias, Lisboa, 27 Nov. 2006. KORTE, Werner, El Apocalipsis, de Durero, Madrid, Alianza Editorial, 1982. HOLANDA, Francisco de; SEGURADO, Jorge, De Aetatibus Mundi Imagines, Lisboa, XVII Exposição de Arte, Ciência e Cultura , 1983. LOURENÇO, Frederico, Bíblia: Novo Testamento, vol. II, Lisboa, Quetzal, 2017. MALANGATANA, Os anos da prisão, Sala Branca, Abril e Maio, 2016. PERNES, Fernando (coord.), Panorama da Arte Portuguesa do séc. XX, Porto, Edições Afrontamento / Fundação de Serralves, 2002. PINHARANDA, João, Álvaro Lapa. Grande Prémio EDP [catálogo exposição], Lisboa, EDP, 2006, 2vols.


152

PORFÍRIO, José Luís, António Dacosta 1914-2014 [catálogo exposição], Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2014. RODRIGUES, António, Álvaro Lapa. Voz das pedras, Lisboa, Assírio & Alvim, 2006. ROSENDO, Catarina, Um realismo Cosmopolita: O Grupo KWY na coleção de Serralves, Porto, Fundação de Serralves, 2015. SILVA, Raquel Henriques da; SOARES, Marta, Amadeo de Sousa Cardoso. Porto / Lisboa 2016-1916, Lisboa, Direção Geral do Património Cultural, 2016. VEIGA, Margarida; ACCIAIUOLI, Margarida, KWY: Paris 1958-1968, Lisboa, Centro Cultural de Belém / Assírio & Alvim, 2001. VILAR, Clara Távora (coord.), Mário Botas (1952-1983) : retrospectiva : visões inquietantes = retrospective : restless, visions, Lisboa, Centro Cultural de Belém / Fundação Mário Botas, 1999.

SITES

[Château Angers] www.chateau-angers.fr/Explorer/La-Tapisserie-de-l-Apocalypse [Fundação Calouste Gulbenkian: Coleção Moderna]: https://gulbenkian.pt/cam/artists/ [Fundação Cupertino de Miranda]: www.fcm.org.pt/Museu.aspx [Fundação Mário Botas]: www.fundacaomariobotas.pt [Fundação Serralves]: www.serralves.pt/pt/actividades/joan-miro-materialidade-emetamorfose/ [Gallica] www.gallica.fr [site de Luis Athouguia]: http://athouguia.wixsite.com [Viagem dos Argonautas]: https://aviagemdosargonautas.net/2015/06/17/a-ideia-24/ [wikipedia: Apocalipse] https://pt.wikipedia.org/wiki/Apocalipse [wikipedia: Bíblia dos Jerónimos] https://pt.wikipedia.org/wiki/B%C3%ADblia_dos_Jer%C3%B3nimos 28-4-2017 [wikipedia: Jean Duvet:] https://wikipedia.org/wiki/Jean_Duvet [wikipedia: Surrealismo] https://pt.wikipedia.org/wiki/Surrealismo [wikipedia: William Blake:] https://wikipedia.org/wiki/William_Blake




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.